MR. BRAIN NÃO ENGOLE


MR. BRAIN NÃO ENGOLE

PERSONAGENS
NOÊMIA
IARA
MR. BRAIN

CENÁRIO: MR. BRAIN FAZ PARTE DA CENOGRAFIA. ELE É PARTE DE UMA MAQUINARIA ELÉTRICA QUE COBRE TODO O FUNDO DO PALCO, ALGO COMO UM COMPUTADOR.


CENA 1

(quando as luzes se acendem, Mr. Brain está em curto circuito freneticamente enquanto Noêmia faz uma faxina ao redor bastante nervosa; ela esvazia uma lixeira)

NOÊMIA
É vírus. Eu falei que cê ia ficar doente de novo. Sobra pra mim toda vez, né? Abre a boca. (ela força Mr. Brain tomar um remédio; ele resmunga) Hã, hã! Sem reclamar! Recebe a informação e engole. Engole!

MR. BRAIN
Vrau! Biriléu, biriléia, birilado, vrau! Biriléu.

NOÊMIA
Não. Nada de biriléu, não. Chega!

MR. BRAIN
(birrento) Biriléu, biriléia!

NOÊMIA
Eu disse não. Engole!

MR. BRAIN
(bravo) Pririririririiiiiiiii, bum! (ele engole) Ca, ca, ca, ca, ca...

NOÊMIA
Chiu! Fala baixo.

(longo silêncio; ela reflete com Mr. Brain, sutilmente tendo alguns mesmos espasmos; ambos ficam meio grogues)

NOÊMIA
(olha o celular) Ainda não consigo acreditar. Ainda não consigo acreditar. Ela... ela visualizou. E até agora... (faz sinal de negativo). Ela... eu não acredito que ela foi capaz de... Eu achei que podia ser diferente, eu juro que eu achei que ia ser diferente. Elas são todas iguais, não existe... Não existe aquele negócio, era tudo uma farsa. Planos mensais, juras eternas, arquivos nas nuvens... (pausa)  Eu tava tão tranquila até ver aquela foto! Aquela menina... eu sabia, eu sentia! Eu fui uma estúpida de ter deixado isso acontecer. É claro que isso ia acontecer! Elas são sempre todas muito iguais. Todas, sem vírgula.

MR. BRAIN
Ca, ca, ca...

NOÊMIA
Cala a boca! Isso não tem nada a ver! (pausa) Eu tô cansada, ela demorando pra chegar... Ela visualizou. E até agora... (faz sinal de negativo)

(Mr. Brain faz a máquina funcionar vagarosamente)

NOÊMIA
Eu queria uma droguinha que ajudasse a relaxar sem efeitos colaterais. Mas não parece que acentua? Parece! Parece muito que acentua.   

MR. BRAIN
Última atualização: Sereia à quinhentos metros.

NOÊMIA
Oi? Eu não acredito que ela vai ter a cara de pau de aparecer aqui sem responder a minha mensagem! Manda uma mensagem pra ela, fala pra ela que é melhor a gente dar um tempo. Que eu não quero olhar pra cara dela agora. Não, não fala desse jeito. Diz que ela vai dormir no sofá, diz isso.

(um som de notificação de mensagem; Noêmia vai atender a porta desgostosa)

IARA
(entra) Oi, gata. (dá um beijo rápido e some para o outro lado) Vou fazer xixi, tô explodindo.

NOÊMIA
Ela tem zero respeito. Que raiva.

IARA
(fora de cena) Viu, eu vi a sua mensagem, No. Eu não respondi porque eu queria falar pessoalmente com você.

(longo silêncio; Iara entra)

IARA
Ouviu o que eu falei, No?

NOÊMIA
Uhum.

IARA
Eu vi a sua mensagem.

NOÊMIA
Eu vi que você viu.

IARA
Sim.

NOÊMIA
Então?

IARA
Meu... bobeira sua, No.

MR. BRAIN
Tá de bobeira, dando bobeira, bobeira, não dá bobeira, bobeira de boba... Boba, filha da puta?

NOÊMIA
Claro, Iara. Você tem razão. Você é diferente...

IARA
Eu falo que a gente precisa de um upgrade, No. A gente tem que... a gente não pode fazer todos os nossos julgamentos baseado nos outros traumas.

MR. BRAIN
Que? Que? Que? Que?...

NOÊMIA
Cê ouviu o que você falou, Iara? Não faz sentido, flor. A gente só faz os nossos julgamentos baseado nos nossos traumas. Não tem segunda opção. Não tem como eu fazer os meus julgamentos baseados nos seus traumas. Percebe?

IARA
Claro, claro que sim. Eu tô dizendo que... Você tá inventando coisa. Não tem nada acontecendo.

NOÊMIA
Tá na cara daquela foto, Iara. Não me faça de idiota, não minta pra mim.

IARA
Aquilo foi um Happy Hour, Noêmia!

NOÊMIA
Parece ter sido bem happy mesmo.

IARA
Nô, pelo amor de deus...

NOÊMIA
Pelo amor de deus eu, Iara! Pelo amor de deus eu.

(silêncio)

IARA
O que você quer que eu fale? Não aconteceu nada.

MR. BRAIN
Ai, será? Será, será? Será? Ai, será, será, será? Será, será, será, será, será, será? Ai. Será? Será, será? Será? Será, será?

NOÊMIA
Eu tenho que confiar em você...

IARA
Sim, cara, você tem que confiar em mim! Se não for focado na confiança a gente tá fazendo o que aqui? Me diga.

NOÊMIA
(desaba num choro dolorido, e se recupera rápido) Cara... Sereia, você sabe que eu não consigo evitar.

IARA
Eu sei, eu sei.

NOÊMIA
Eu não sei direito o que pensar. Vem todas as opções, como se abrisse várias janelas de uma vez na página de pesquisa de possibilidades, como se tivesse um leque de todas as opções de possibilidades de acontecimentos das coisas. Eu vejo uma coisa, eu passo pelo problema, tanto quanto pela solução, mas não consigo evitar de sublinhar a ideia do problema, mesmo que ele nem tenha acontecido, mesmo que nunca vá acontecer. Você deve me achar uma louca, né?

IARA
Nô, eu sou igualzinha você. A gente é tudo igual. Essas coisas de tecnologia mexe dentro da gente. Eu sei que soa piegas, mas às vezes a gente devia parar de pensar um pouco e deixar o trabalho pro coração.

NOÊMIA
Sim. Se bem que não seria diferente. Uma coisa é interligada à outra.  

IARA
Eu sempre falo pra você do equilíbrio. Falo ou não falo, Noêmia?

NOÊMIA
Fala.

IARA
Um pouco de cada um, tem que ser.

NOÊMIA
E se eu já estou no equilíbrio e esse equilíbrio faz com que além de raciocinar demais, eu também sinta sobre tudo? E por estar mais equilibrada mesmo é que eu consiga percerber as coisas que estão rolando por trás das coisas, nas entrelinhas?

IARA
O que eu sei é que você inventa essas entrelinhas.

NOÊMIA
Você tá dizendo que eu invento as coisas que estão acontecendo, Iara?

IARA
Não está acontecendo nada! Eu já falei!

NOÊMIA
(pausa) Mas poderia estar acontecendo.

IARA
Poderia, mas não está. Eu também tenho que esvaziar a lixeira todo dia, Nô. A gente faz lixo pra caralho nessa porra. Eu também me exausto como você. Mas você... (pausa) Não tem nenhum problema enxergar a possibilidade de um problema. Você pode visualizar todas as possibilidades disponíveis sobre o que você vê, ouve e sente. Inclusive as possibilidades de dar merda. Se você estiver pra atravessar uma ponte e essa ponte tá meio zoada, é nosso instinto de sobrevivência pensar na tragédia pra que possamos averiguar outras possibilidades de atravessar. Em alguns casos, realmente, é a tragédia que acontece dessa reflexão. Mas faz muito mais sentido a gente fazer a visualização geral de todas as páginas desse leque, e colocar foco na solução apenas. Só colocar foco no que tem de bom. Se tem uma opção de realidade ruim, passa por ela, mas abandona ela. Entende? Entende, Nô?

NOÊMIA
Mais ou menos. Você é boa. Eu fiquei confusa...

IARA
Gata, relaxa dessas paranóias. Isso atrapalha você.

MR. BRAIN
Parabólica, bólica, bulemica, paranóica! Ma-lu-ca!

IARA
Não foi isso que eu quis dizer.

NOÊMIA
Foi o que você disse!

IARA
Nô, por favor...

NOÊMIA
Iara, não me faça eu ficar me sentindo que tô sendo passada pra trás.

IARA
Você não tá sendo passada pra trás.

NOÊMIA
Você falou sobre aquele negócio de colocar foco só na possibilidade boa, mas E SE – por um acaso, claro, por um acaso – E SE a possibilidade ruim for mesmo a realidade? SE estiver acontecendo algo, quando estiver acontecendo algo? Ainda assim eu devo evitar esse pensamento sobre esse acontecimento que está acontecendo?

IARA
Não está acontecendo nada.

NOÊMIA
É o que você está dizendo, Sereia. Percebe? Na minha cabeça surge uma possibilidade muito lógica de estar acontecendo e você estar mentindo. Aquela foto...

IARA
A gente trabalha no mesmo escritório, Noêmia!

NOÊMIA
Tem mais clichê? Amante colega de escritório? Exatamente por ser óbvio que a possibilidade fica mais... óbvia!

(silêncio)

IARA
O que você quer que eu faça?

MR. BRAIN
Tomar no cu! Sair daqui! Chupar um pau! Ir pra casa do caralho do seu pai!

NOÊMIA
Eu não quero que você fale nada.

MR. BRAIN
Tomar no cu! Sair daqui! Chupar um pau! Ir pra casa do caralho do seu pai!

IARA
Você quer confrontar a menina cara a cara? Vai ser muito constrangedor.

NOÊMIA
Jamais.

IARA
Então você precisa confiar em mim.

NOÊMIA
Na maioria das vezes eu confio. Eu confio muito na maioria das vezes.

MR. BRAIN
(gargalha de nervoso)

NOÊMIA
Desculpe. Essa merda de atualização baixou naquele site de vídeos, não aprendi a bloquear.

IARA
PornTube?

NOÊMIA
Se liga.

IARA
Tô brincando.

(Iara beija Noêmia com muito carinho)

IARA
Eu preciso deitar, tô quebrada.

NOÊMIA
Não vai comer alguma coisa?

IARA
(saindo) Eu comi um lanche na rua. Preciso tirar esses sapatos. (sai)

(Iara fica visivelmente perturbada com a nova informação do lanche; Mr. Brain mais uma vez entra em um curto circuito)

MR. BRAIN
Happy Hour, dez horas do dia, colegas de trabalho, “vamo tomar um café?”, “vamo!”, “minha esposa fez almôndegas”, “a minha fez brócolis gratinado”, “vamo trocar?”, “vamo!”, vagabunda! Calma. Paranóica. Maluca. Não tá acontecendo nada. Mas poderia. “Mas poderia”. Poderia! “Passar comer um lanche?”. “Claro, por que não?”. “Um lanche e um sorvete”. “Manda um beijo pra idiota que está esperando na sua casa!”. Motel.

NOÊMIA
Motel. Elas foram pra um motel.

(Mr. Brain tem um tilt dramático; black-out)


CENA 2

(quando as luzes se acendem, Mr. Brain está dormindo e Iara entra se arrumando atrasada, com a escova de dentes na boca e conversando no celular)

IARA
Aham... é verdade. Vou levar um bolo, você leva alguma coisa pra gente beber. (pausa) Ontem não teve janta aqui, vou comer no Carlinho. Vamo? Fechô. (Mr. Brain acorda) Eu tenho que almoçar às onze hoje porque eu vou no dentista à tarde. Beleza. A gente se vê lá na recepção.  (Noêmia entra recém acordada, já desconfiada; Iara não a vê) Fim de semana fazer o quê? Cê pirou, né? Final de semana é meu e da Nô, já falei. Já falei que de final de semana não dá pra fazer nada. (pausa) Até parece! Tem que ser de dia de semana depois do trabalho só.

NOÊMIA
O que tem que ser de dia de semana depois do trabalho?

IARA
(vê Noêmia) O que? Espera um segundinho que eu tô no telefone...

(Noêmia ataca Iara e tira o celular da mão dela)

MR. BRAIN
Você pode estar em risco, faça limpezas com frequência.

IARA
O que é isso? O que você tá fazendo?

NOÊMIA
Com quem você tava combinando de sair depois do trabalho? Desligou. Olha! Ju. Ju, Iara. Eu sabia.

IARA
É o Júlio, Noêmia, é o Júlio. Aquele menino novo.

NOÊMIA
Você acha que eu sou idiota, Iara? A menina da foto também é Ju! É ou não é?

IARA
Eu não tenho o telefone da Ju, eu mal vejo a Ju, a gente trabalha em setor diferente. Mil vezes que eu já te disse as mesmas coisas, Noêmia!

NOÊMIA
Vocês estavam abraçadas na foto!

IARA
Pra uma pose de foto, Noêmia! Liga pro número. Liga. Liga agora. Aperta ligar, aperta!

NOÊMIA
Não.

IARA
Ué. O que foi? Fala com o Júlio. Ele me convida sempre pra ir jogar vídeo game num bar que ele conhece, Iara. Eu não tenho nada com a Juliana do almoxarifado, Noêmia. Eu nem acho ela bonita.

NOÊMIA
Ela é linda, Iara, nem vem...

IARA
Liga. Se for a Juliana que atender eu tô aqui pra você me matar.

NOÊMIA
Eu nunca faria isso.

IARA
Eu sei.

MR. BRAIN
Ai, será? Será, será, será, será, será, será, será? Será?

(silêncio)

NOÊMIA
(desiste) Desculpe. Logo cedo, né?

IARA
Sim. Logo cedo, né? Eu tô atrasadíssima! (dá um beijinho de despedida) A gente se fala. Tchau.

(silêncio; Noêmia está exausta, ela tenta relaxar os ombros com dor, ela suspira profundamente)

NOÊMIA
Será?

(ela percebe que o lixo está cheio novamente e inicia uma limpeza demorada)

NOÊMIA
Eu achava que essa doideira toda era aqui. (ela esfrega o peito) Mas na verdade... (ela esfrega a cabeça) É muito... problemático. Tá enraizado! Fica uma voz martelando, o tempo inteiro criando histórias, criando problemas. Parece uma música que uma hora está lenta, uma hora está pesadíssima. E você pula de susto! E você se sufoca, você fica sem ar. Não é coisa de ciúmes, não é um ciúmes normal, é uma dor que eu não consigo entender racionalmente como é que tudo isso acontece. Eu não consigo raciocinar direito exatamente por raciocinar demais sobre as possibilidades! Isso tá muito errado, tá muito errado. Eu acho muito errado. Mas... (pausa) Que dor de cabeça.

MR. BRAIN
Eu acho isso muito errado! Eu acho isso muito errado! Eu acho isso muito errado! Eu acho isso muito errado! Eu acho isso muito errado! Eu acho isso muito errado! Mas... desculpe, eu não consigo evitar. 

(Mr. Brain grita e se contorce de dor; Noêmia acompanha os movimentos coreografados; a máquina quase explode de tão carregada)

CENA 3

(quando as luzes se acendem, Noêmia está em posição fetal com um fone de ouvido; Mr. Brain canta)

MR. BRAIN
Dói aqui esse tanto
Machuca a ferida
Eu pedi pro santo
Me acompanhar
Como conseguir
Se manter colorida
Paranóia, preocupar

Todas são iguais
Inimiga e amiga
A pressão que cai
Fez o PC travar
Comunicação
Que não há garantia
Paranóia, continuar

Eu só queria tempo
Pra você também se apaixonar
E que esse sentimento
Não mais me incomodar

Pode ser que logo amanheça outro dia
E que o coração continue a reinar
Essa explosão é da mente, mentira

Paranóia, parar
Quero saber
Se confirmar
Então vai doer
Mas que assim doa
Eu quero porque
Acho que eu vou te perder.

(Noêmia desaba no choro)

NOÊMIA
Uma hora ela não vai voltar pra sempre. Pra sempre. Eu sei que... eu sei que uma hora isso vai acontecer, é inevitável. Uma hora ela vai cansar. Uma hora ela vai me odiar. Uma hora ela vai lembrar de mim como se tivesse acontecido tudo numa outra vida, numa outra realidade paralela. A gente vai se encontrar na rua e a gente vai balançar a cabeça uma pra outra. (chora e se recupera) Isso se ainda eu tiver com a cabeça no lugar! Se ainda tiver algum respeito entre nós talvez uma ou outra vez a gente mande uma mensagem uma pra outra pra perguntar como a gente tá. Talvez reveillón ou no aniversário de cada uma, talvez, pra desejar felicitações. Talvez. (pausa) Ou talvez a gente se mate. Pode acontecer. (pausa) Dói. Sabe? Dói.

MR. BRAIN
Dói muito que até dá dói muito que até dá dói muito que até dá dói muito que até dá dói muito que até dá dói muito que até dá dó.

NOÊMIA
É muito errado viver assim. A gente precisa de um bloqueio, Mr. Brain! Colocar uma proteção, uma garantia de dois anos pelo menos! A gente precisa parar de colocar ela num pedestal, de ficar stalkeando toda hora, de ficar feito bichinho de estimação tomando chute no rabo e depois voltando com todo amor do mundo como se ela fosse a deusa rainha dona dessa porra toda. E se fazendo de gato e sapato porque a gente inventa os relacionamentos com base no que a pessoa posta nas redes sociais.

MR. BRAIN
Acho isso muito errado.

NOÊMIA
Sabe, Mr. Brain, ela finge muito bem. Ela finge muito bem. Todas elas fingem muito bem. Tanta coisa que a gente sabe que tá acontecendo, mas a gente não consegue descobrir a buceta da verdade!

MR. BRAIN
Finge bem, rainha.

NOÊMIA
(engole em seco) Não entendi. Eu consigo entender você só às vezes.

MR. BRAIN
Claro.

NOÊMIA
Sim.

MR. BRAIN
Claro.

NOÊMIA
Sim.

(silêncio)

MR. BRAIN
Claro.

NOÊMIA
(pausa) Sim.

(Noêmia e Mr. Brain se encaram)

NOÊMIA
Não me julgue. Eu não te julgo.

MR. BRAIN
Eu me julgo e você se julga.

NOÊMIA
É isso.

MR. BRAIN
Quem sou eu pra falar alguma coisa?

NOÊMIA
Exatamente. Quem é você?

MR. BRAIN
Quem é você? Quem sou eu? Quem é você? Quem sou eu? Quem sou eu? Quem é você? Quem é você?...

NOÊMIA
Para, não começa, por favor...

(silêncio; Mr. Brain vai até Noêmia com malícia)

MR. BRAIN
Ora, ora. É curioso. É muito curioso. É muito, muito curioso.

NOÊMIA
O que é curioso?

MR. BRAIN
Quem sou eu? Não é mesmo? Como posso fazer exigências, com o meu livro da cara tão aberto e tão... fingida?!

NOÊMIA
Para com isso! Chega!

MR. BRAIN
Essa culpa, flor, essa culpa... É dessa culpa que a paranóia, parabólica, paraíso, paramédico, nasce, flor. Esse medo todo vem do peso da culpa.

NOÊMIA
Não viaja na maionese!

MR. BRAIN
Será? Será, será, será?...

(Noêmia enfia remédios à força em Mr. Brain)

NOÊMIA
Engole! Engole, buceta!

(Iara entra com uma sacola; Noêmia disfarça)

IARA
Oi, Nô! Tá bem?

NOÊMIA
Aham.

IARA
Que foi?

NOÊMIA
(grossa) Nada, ô. Que foi o quê?

IARA
Nossa. Desculpa.

NOÊMIA
Tá desculpada.

IARA
Obrigada.

(silêncio)

IARA
Comprei um negócio pra você.

(deixa a sacola e sai; Noêmia se sente culpada por ter sido grossa)

NOÊMIA
Putz.

IARA
(de fora) Vou fazer xixi. Espera pra abrir.

NOÊMIA
Tá. (ela sorri apaixonada e brinca com o embrulho do presente)

(Iara volta)

IARA
Tomara que sirva. Tava em promoção, eu sabia que você queria pra ajudar, então...

NOÊMIA
Desculpa, Sereia.   

IARA
Do que?

NOÊMIA
De ser uma chata.

IARA
Ai, Nô! Que boba! (beija Noêmia com carinho; Mr. Brain chora dolorido) Você não é uma chata. Eu amo você, você sabe disso. Não sabe? Quem é o amor da sereia?

NOÊMIA
Eu.

IARA
Venha aqui.

(elas se beijam quente)

MR. BRAIN
O presente!

NOÊMIA
(desconfiada) O presente, Iara.

IARA
Ah, sim! Abre. Se não servir você troca, tem garantia.

(silêncio; Noêmia fica olhando para o pacote fechado, criando uma paranóia)

NOÊMIA
Por que você tá me dando um presente hoje, Iara?

MR. BRAIN
Um presente no presente?! Que dia é hoje?

IARA
Ué. Como assim? Não posso dar presente pra minha esposa mais?

NOÊMIA
Pode. Mas é que... (pausa)

IARA
É que o quê?

NOÊMIA
Não sei. Me pareceu... meio... fora de algum contexto. Como se você estivesse tentando me agradar porque... (pausa) Ai, deixa pra lá.

IARA
Mas a minha função como namorada não é agradar os seus dias, Noêmia? Se você não quer, tá bom.

NOÊMIA
É que eu só tenho desagradado seus dias, Iara, eu sei o quanto eu posso parecer uma louca desesperada, ciumenta! Eu não te dou razão, circunstância pra você ainda continuar comigo, ainda mais com presentinho sem um motivo especial. A menos que... (pausa)

IARA
A menos que o quê?

NOÊMIA
Nada. Paranóia.

IARA
Meu. Que constrangedor isso. (tira o pacote da mão de Noêmia) Desculpa, Noêmia. Meu motivo especial é você.

MR. BRAIN
Será?

(Iara espera alguma resposa e sai; Noêmia fica em silêncio)

MR. BRAIN
Cara, você é chata pra caralho.

NOÊMIA
Quando a gente sabe que uma hora vai ter um fim, não tem porque ficar alimentando esse monstro.

MR. BRAIN
Mas eu amo ela. Ela diz que me ama. Você ama ela. Ela diz que ama você.

NOÊMIA
Mas pode dar alguma merda. Sempre pode dar alguma merda! Não existe mais esse negócio de amor eterno entre duas pessoas! Uma hora vai acabar mesmo! E aquele presente...! É culpa, eu sei que é culpa. É muito clichê esse negócio de trazer presente pra esposa fora de algum contexto especial. E é exatamente por ser óbvio que tudo isso ainda consegue ser cada vez mais... óbvio!

MR. BRAIN
Mas eu amo ela. Ela diz que me ama. Você ama ela. Ela diz que ama você.

NOÊMIA
E pode dar alguma merda. Sempre pode dar alguma merda. Às vezes já tá acontecendo a merda. (pausa) Uma hora tem que acabar mesmo. A gente não precisa ficar enrolando no inevitável. (pausa) Buceta!

MR. BRAIN
Mas eu amo ela. Ela diz que ama você.

(Iara entra fazendo alguma tarefa rotineira)

NOÊMIA
Sereia.

IARA
Que?

NOÊMIA
Me desculpa. Eu acho... eu acho que... isso não tá dando certo. Eu sei que eu faço da sua vida um inferno.

IARA
Não faz. Tem feito. Não era pra fazer. Não fazia.

NOÊMIA
Me desculpa.

IARA
Para.

NOÊMIA
Sério. Me desculpa mesmo. Eu sei.

IARA
Tá tudo bem, Nô.

(Noêmia deita no ombro de Iara; silêncio)

NOÊMIA
Meu medo, o medo que fica martelando na cabeça é muito... físico. Entende? Eu não consigo evitar, eu não consigo deixar de pensar que a gente tem data de validade, que não tem garantia de que você vai ficar comigo, de que você possa aguentar a viver comigo...

IARA
Mas eu tô aqui, cara. Eu tô aqui. Onde que eu tô, Nô? Eu tô aqui com você. Por escolha. Eu escolho vir aqui, eu escolho ficar aqui com você.

NOÊMIA
Mas e no futuro? Eu sei que é exatamente toda essa paranóia sobre isso que no final é que vai fazer você ir embora! Tem coisa mais estúpida? A minha paranóia sobre você ir embora é que vai fazer você ir embora!

IARA
Nô, pelo amor de deus...

NOÊMIA
Pelo amor de deus eu, Sereia. Pelo amor de deus eu. (pausa) Eu não tô sabendo lidar. Eu acho que é melhor a gente... só... antecipar o que é óbvio.

IARA
(entende a mensagem e disfarça o choque) Tá. E o que é óbvio?

(silêncio)

IARA
Tá bom, Nô. Você venceu.

NOÊMIA
Tudo tem data de validade.

(Iara se arruma pra sair)

IARA
É a falta de garantia que deixa isso tudo muito mais perigoso, muito mais forte, muito mais sexy. É a falta de garantia que deixa isso tudo muito mais pesado, poderoso, que faz a gente se sentir viva todo dia, pra gente voltar aqui e se sentir especial nas coisas que a gente tem pra viver com o outro. O que existe é o presente, Nô, por mais clichê e óbvio que isso possa parecer. Você criou a sua sofrência e agora ela é real. Parabéns. (dá um beijo em Noêmia) Eu sinto muitíssimo.

NOÊMIA
Não era isso que eu queria.

IARA
Parece muito que era sim.

(Iara sai)


CENA 4

(Noêmia desaba de chorar; Mr. Brain se sufoca)

MR. BRAIN
Uma cena de despedida
Que pena que ela já vai
Por suas mentiras e as minhas também
O tempo que me convém
Todo mundo trai

Antecipa
Isso aí
Antecipa
Isso aí
Antecipa, não vamos fazer tudo igual
Eu meto o louco, mas quero um final
Antecipa
Sereia, rainha
Serei a mocinha
Antecipa...

(Noêmia abraça Mr. Brain)

NOÊMIA
Inevitável, era a palavra. (pausa) Se ao menos ela pedisse pra ficar, mas nem isso. Eu sei que isso era inevitável na nossa vida, eu sentia. No fim eu realizei o meu sentimento por conta própria, nada de acaso não, eu controlo. (pausa) Eu controlo.

(Mr. Brain pensa em algo que lhe deixa muito preocupado)

MR. BRAIN
Será que...? Podia ter feito pelo contrário. Não podia? Podia ter feito o controle no contrário. Não podia? Não podia? Podia! Podia ter colocado foco. Confiança. Eu já não tenho ela. Se ela voltava todo dia, que se foda se ela tava dando uns beijinhos na Juliana. Não. Não. É difícil. Mas... cadê? Cadê as partes que eram boas? Cadê? Não. Não, muito errado! Acho isso muito errado! Tô muito confuso. Me limpa?

NOÊMIA
Tô muito confusa também. Que merda!

MR. BRAIN
É a culpa. É culpa da culpa. Culpa da culpa da culpa. Culpa. Culpa, culpa. Culpa da culpa da culpa, da culpa, da culpa. Da culpa. Da culpa da culpa.

NOÊMIA
Cala a boca.

MR. BRAIN
Cala a boca já morreu.

(o celular de Noêmia toca; ela lê a mensagem)

MR. BRAIN
“Oi, sumida. Vamo se ver esse findi? Já faz um mês.” (Noêmia digita) Esse F, D, S – vulgo final de semana – não vai rolar. Tô com problemas aqui. “Problemas com a Ariel?”

NOÊMIA
É Iara, besta

MR. BRAIN
Ah, sim, Iara. Claro. Queria te ver. Tô com saudade. Coraçãozinho.

NOÊMIA
A gente terminou. Eu terminei com a Iara.

MR. BRAIN
Jura? O que aconteceu?

NOÊMIA
Não sei bem.

MR. BRAIN
Eu acho muito que a gente devia era se ver agora então!

NOÊMIA
Desculpa, Ca. Eu não tô no clima.

MR. BRAIN
Eu não imaginava que você traria essa notícia pra mim hoje. Estou surpreso.

NOÊMIA
Eu já expliquei pra você. Eu amo muito a Iara. Mas... ela me passa uma insegurança.

MR. BRAIN
E eu? O que eu passo pra você?

(silêncio)

NOÊMIA
Você é meu gostosinho.

MR. BRAIN
Adoro ser seu gostosinho. Vamo se ver agora, nesse instante?

NOÊMIA
Não dá.

MR. BRAIN
Você tá de luto?

NOÊMIA
Não é isso... Eu não quero ficar parecendo que...

MR. BRAIN
Parecendo uma pessoa solteira?

NOÊMIA
Não...

MR. BRAIN
Não existia Iara quando a gente se conheceu, Noêmia. Nossa história é muito mais romântica. Eu sei que eu sou o número um. E eu adoro você do jeito que você quiser que eu adore. Vamo fazer um sexo, só eu e você, bem gostoso, vamo?

NOÊMIA
Tá acabando a bateria. Vamo se ver no fim de semana sim. Vou colocar o celular pra carregar. Depois a gente se fala.

MR. BRAIN
Vai lá. Coraçãozinho.

(silêncio; Noêmia deixa o celular em qualquer lugar e, incomodada, procura o remédio e toma uns cinco comprimidos de uma vez)

NOÊMIA e MR. BRAIN
É exatamente por eu saber que dá pra esconder mentiras que não possuem testemunhas com facilidade, que eu desconfio que todo mundo sabe que dá pra esconder mentiras que não possuem testemunhas com facilidade. E é também por saber que todo mundo sabe que dá pra esconder mentiras que não possuem testemunhas com facilidade que eu não consigo evitar de não querer sair por baixo nessa história e aí eu também entro no joguinho de esconder mentiras que não possuem testemunhas.

MR. BRAIN
Eu não confio em ninguém, porque eu não confio em mim.

NOÊMIA
Eu não confio em mim, porque eu não confio em ninguém.  

NOÊMIA e MR. BRAIN
Que merda, hein?

MR. BRAIN
Que merda, hein?

NOÊMIA
Que merda.

(longo silêncio; os dois meditam por um tempo; a luz cai com resistência)


CENA 5

(quando as luzes retornam Noêmia tromba com Iara na rua)

NOÊMIA
Ai, desculpa!

IARA
Desculpa!

NOÊMIA
Oi.

IARA
Nô! Como você tá?

NOÊMIA
Bem.

IARA
Você tá bonita.

NOÊMIA
Obrigada.

(silêncio)

NOÊMIA
Você também tá bonitona.

NOÊMIA
Obrigada.

(silêncio)

NOÊMIA e IARA
(elas falam juntas) Eu tenho muita saudade./Eu tenho que ir.
   
NOÊMIA
Ah, claro! Tudo bem.

IARA
Eu também tenho muita saudade.

NOÊMIA
A gente se vê por aí.

IARA
Sim, sim. Marca meu novo número.

MR. BRAIN
Não. Não, melhor não. Não. Não, não. Melhor não, não. Não, não, melhor não.

NOÊMIA
Não. Não, melhor não.

(silêncio)

IARA
Tá bom, Noêmia. Bom te ver.

NOÊMIA
Sim, bom.

MR. BRAIN
Maravilhoso! Eu quero beijar essa sua boca!

IARA
Tchau.

MR. BRAIN
Por favor, eu te amo!

NOÊMIA
Tchau.

(Iara sai; Noêmia senta no colo de Mr. Brain e eles se beijam com muita sensualidade)

MR. BRAIN
Achei que você gostasse de mulheres.

NOÊMIA
Amo. O B da sigla não significa biscoito.

MR. BRAIN
E aquela sua namorada?

NOÊMIA
Tá com a namorada dela. História clichê. Colega de trabalho em happy hour.

MR. BRAIN
Bem happy mesmo. Ela trocou você por outra, foi?

NOÊMIA
Eu troquei ela. Eu deixei ela.

MR. BRAIN
Mas ela era ou não era o amor da sua vida?

NOÊMIA
Era. Ela era. Era ela.

MR. BRAIN
Então...?

NOÊMIA
Não sei bem o que dizer.

(eles se beijam mais um pouco)

NOÊMIA
Todo mundo mente. Todo mundo finge.

MR. BRAIN
Você mente? Você finge?

(Mr. Brain aperta Noêmia gostoso)

NOÊMIA
Ah! Com você não.

MR. BRAIN
E como eu vou saber que você não está fingindo? (beija o corpo de Noêmia) Você consegue segurar o personagem?

(longo silêncio; Mr. Brain lambe entre as pernas de Noêmia; ela recebe o carinho sem expressões, fria)

NOÊMIA
Não vai. Você nunca vai saber.

(quando Mr. Brain volta a olhar pro rosto de Noêmia, ela finge estar excitada)

NOÊMIA
Você sabe bem usar essa língua, né, garoto?

MR. BRAIN
Como e quando você quiser.

(Mr. Brain faz sexo oral em Noêmia; uma música grandiosa mantém o foco e introduz Iara à cena)

MR. BRAIN
O clitóris é aqui, né?

(Noêmia se excita vendo Iara e aperta a cabeça de Mr. Brain entre as pernas)

NOÊMIA
Engole!

IARA
Você queria tempo
Pra você também se apaixonar
E que esse sentimento
Não mais te incomodar

Pode ser que logo amanheça outro dia
E que o coração continue a reinar
Essa explosão é da mente, mentira

Paranóia, parar
Cê quer saber?
Vou confirmar
Então vai doer
Mas que assim doa
Precisa porque
Eu também já traí você

(em vídeo vemos a foto do Happy Hour com Iara e a Juliana do almoxarifado abraçadas; discretamente outras fotos aparecem, primeiro com elas em festas e outros amigos; mas logo fotos mais românticas, só das duas, mostrando o claro relacionamento assumido entre elas)

(black-out)


EPÍLOGO

(um foco fraco mostra Noêmia deitada no colo de Mr. Brain)

NOÊMIA
Eu acho que a gente devia aprender a engolir algumas coisas sobre o que é traição exatamente.

MR. BRAIN
Eu acho isso muito errado.

NOÊMIA
A gente perde amor achando que está lutando por amor.

MR. BRAIN
Erradíssimo.

NOÊMIA
E todo mundo quer ter o direito de ser livre pra prender o outro.

MR. BRAIN
Porra!

NOÊMIA
(para Mr. Brain, com firmeza) Você vai ter que engolir a vida real, Mr. Brain! A vida real é essa!

MR. BRAIN
Todo mundo trai.

NOÊMIA
Não. É que não existe tempo pra se perder tendo um único amor. Eu sinto... que eu tenho... muito amor. Não cabe numa única pessoa.

MR. BRAIN
Acho isso muito errado.

NOÊMIA
É a vida real.

(longo silêncio; os dois refletem por um tempo)

MR. BRAIN
Não.

(black-out)

FIM



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