UM CARA COM UMA CAPA, UM
CARA COM UM CHAPÉU E UM CARA COM UM CELULAR
Texto
de Gabriel Tonin
PERSONAGENS
Antônia
Cara
com capa
Cara
com chapéu
Cara
com celular
CENÁRIO:
UM QUARTO.
CENA
ÚNICA
(ANTÔNIA
ENTRA CORRENDO DESESPERADA; ELA TRANCA A PORTA COM VÁRIOS CADEADOS E CORRENTES)
ANTÔNIA
Eu
sei que eu fico parecendo louca. Eu venho aqui toda vez fazer esse papel de
maluca, fazer esse drama todo aqui pra vocês. E eu venho porque... porque
mostrar a realidade é o meu dever. (PAUSA) Eu... eu sou... uma pessoa
sensitiva. Não é um super poder, todos nós temos um pouco de um sexto sentido
dentro da gente. Alguns desenvolvem mais que outros e é isso. (REVELA) Eu vejo
gente que já morreu. Pelo menos eu acho, eu acho que eu vejo. Não tenho como
provar, não tenho como mostrar uma prova, tudo o que eu tenho é o meu relato. E
de relatos o mundo está cheio, não é mesmo? Todo mundo tem alguma história,
todo mundo pelo menos conhece alguém que já diz ter visto coisas sobrenaturais.
E quando me aconteceu pela primeira vez, aconteceu depois de velha, eu vi, eu
tive uma experiência confusa, com uma visão, uma alucinação, sei lá o quê, e no
segundo seguinte, a gente tem que lidar, a vida volta ao normal. Não tem pra
quem você telefonar que a pessoa não vá te colocar de volta no chão, entende?
Se o fantasma não te matou, não tem pra quem mostrar o desespero dessa descoberta.
Pra quem você liga quando você vê um fantasma pela primeira vez na sua vida?
Não tem. Não tem pra onde buscar respostas além
de sentar e refletir. “Que porra foi essa?”. Então quando acontece a
primeira vez você até tenta chamar alguém, contar o que aconteceu, aí você toma
um calmante e dorme, fim, vida que segue porque nada mudou. Aí na segunda vez
que você tem uma experiência maluca, comprovando a primeira vez, você fica mais
doida de pavor ainda, foi real, foi real! Mas no dia seguinte não importa seu
medo e urgência, ninguém vai poder fazer mais do que um abraço e dizer “calma”.
E então quando chega na terceira vez que você vê um bagulho sinistro, você se
acomoda. Outra vez, ué. Fantasmas andam me visitando mesmo ou meu cérebro está
dando tilt? Veja, eu pensei muito no negócio de meu cérebro me enganar, é óbvio
que eu pensei, é a primeira coisa que você acha. Mas aí depois, não tem ninguém
pra dar uma resposta concreta, então você fica nesse limbo. Eu acho que eu vejo
gente morta, ao mesmo tempo... eu não sei.
(UM
FOCO MOSTRA O CARA COM A CAPA)
ANTÔNIA
A
primeira visão que eu tive, foi um cara com uma capa. Eu tava dormindo, aí
alguma coisa me acordou de madrugada. Eu olhei pro canto da parede, no teto, e
tinha um cara com uma capa preta descendo na minha direção, assim. Aí,
desesperada, mordi a boca assim e acendi a luz. Sumiu.
(O
FOCO DO CARA COM A CAPA DESAPARECE)
ANTÔNIA
O
curioso... é que ao mesmo tempo que não foi uma visão exatamente muito clara,
você tá acordando, meio dormindo, meio acordada, ao mesmo tempo me lembro de
uns detalhes muito absurdos de lembrar. Como a capa preta e inclusive botões
e... um bigode, talvez. É difícil de explicar a memória de um choque. (PAUSA) Aí,
passou alguns meses e veio a segunda experiência.
(UM
FOCO MOSTRA O CARA COM O CHAPÉU)
ANTÔNIA
A
segunda vez era um cara com um chapéu. E não apareceu descendo do teto,
apareceu atrás do meu mancebo. Me pareceu não ser o mesmo cara, não tinha
bigode ou capa, e era baixinho. Mesmo contexto, eu estava dormindo, acordei de
madrugada e ele estava ali, me encarando. Eu pisquei algumas vezes no escuro
mesmo, não tive coragem de acender a luz. E eu vi ele voltar a fazer parte do
cenário ao redor. Era como se ele se desintegrasse e voltasse a fazer parte do
canto da parede com o mancebo. Como se meus olhos colocassem as peças de volta
onde havia relances de luz. E ele sumiu, ao tempo que eu recobrava a
consciência pós susto. (O FOCO DO CARA COM O CHAPÉU DESAPARECE) Aí eu acendi a
luz. Dessa vez eu não quis ligar pra ninguém, nem contei pra ninguém, nem tomei
calmante. Fiz uma oração, apaguei a luz e voltei pra cama. Não tem pra onde
fugir, tem que aceitar a maluquice inexplicável dessa vida, seja a maluquice
mais estúpida e sem fundamento do mundo.
(OS
TRÊS CARAS ENTRAM CANTANDO, NO DEBOCHE)
CARAS
Sem fundamento
Sem razão
Que puta medo
Escuridão
O cerebelo
E a confusão
É um segredo
Um teatrão
Quem vê
Quem vai
Mostrar pro papai
O medo é tão forte quanto o
amor
Saber
Tem mais
Não tem pra onde ir
O amor deixa rastro na
história de terror
ANTÔNIA
Traumas.
Nesse meio tempo entre a segunda visão e a terceira eu fui saber mais sobre
mim, fui duvidar das minhas crenças, do meu ego. Fui cavocar a minha história,
as coisas do meu mundinho. Fiz terapia, tomei até aquele chá do santo daime,
pra me encontrar, talvez pra ter outra visão que me explicasse melhor, que
pudesse me dar respostas. E eu cheguei na palavra trauma.
(OS
CARAS RIEM)
CARAS
Ela está traumatizada
O que faz todo mundo rir
Essa história aqui
É pra fazer o boi dormir
Que medinho de você... (ELES DESAPARECEM)
ANTÔNIA
A
gente tava vivendo o caos. Vocês devem lembrar. Tínhamos um chefe de estado que
debochava das mulheres, negros, índios, gays. Um discurso sendo inflamado no coração
de uma turma que abraçou uma causa violenta e de destruição. Nós ficamos com
medo. Recuados. Traumatizados pela ameaça. Essa é a melhor explicação que eu
encontrei. Os meus fantasmas eram delírios da realidade.
(UM
FOCO MOSTRA O CARA COM O CELULAR EM CENA; ELE TIRA FOTOS DE ANTÔNIA)
ANTÔNIA
A
terceira aparição, mesmo contexto, acordei de madrugada e vi um cara tirando
fotos de mim com um celular. Lembro claramente de ter gritado “O que você está
fazendo, cara? Sai do meu quarto!”. Aí ele se desintegrou igual o cara do
chapéu e voltou a fazer parte do fundo do meu quarto.
(O
FOCO DESAPARECE; FORA DE CENA OS TRÊS CARAS CANTAROLAM UM SOM SINISTRO)
ANTÔNIA
Não
consigo explicar exatamente o que significou cada detalhe dessas aparições. A capa,
o chapéu ou o celular. Não tenho uma explicação concreta sobre isso. Mas sei
que eram homens. Homens. Invadindo. Invasores. Abusados. Poderosos. Debochados.
Cantores. Violentos. Fascistas.
(OS
TRÊS CARAS ENTRAM EM MARCHA)
CARAS
Você queria falar
Falou muito e nada
Não está preparada
Pra essa luta enfim ganhar
O mundo real
O preconceito acabou
Se você é mulher
Viado, é?
A nossa cor não está com
você
Essa cara surpresa
Muito entediante
Mas o mundo real
O bem e o mal
O homem que nasceu pra
decidir
O mundo real
Você nasceu
Para servir
Aqui e ali
Não tem como alguém então
fugir...
(ELES
DESAPARECEM; ANTÔNICA FICA PENSATIVA EM UM FOCO FECHADO)
ANTÔNIA
Uma
bobagem musicada. Não tem nenhum sentido, nenhuma conclusão científica, nem
mesmo espiritual. É só... o medo. Medo de trombar com essas almas sebosas por
aí. Esses seres que nos olham como um cidadão de segunda, abaixo, inferior. Medo
porque o medo deles é violento. O medo que esses monstros tem da gente ele
desconta com o braço, no músculo, na
porra do pau! E esse medo enfim mata a gente. Se você não morre no mundo real,
você morre de medo trancada dentro de casa, esperando ser arrombada, tanto a
porta como o corpo! (ELA DESMONTA NO CHORO) É esse medo que eu queria mostrar. Por
isso eu faço esse drama toda vez aqui. Gente ainda me chama de vitimista por
gritar de pavor, por gritar por socorro numa historinha boba de fantasma, que
eu não sei se é mesmo real ou não. Se eu fosse realmente vitimista eu não
estaria nesse caralho desse palco contando essa história, eu estaria chorando
num canto em posição fetal, desassistida, desistida. Mas eu estou na luta,
fazendo ciranda ou fazendo baderna, dane-se! A minha luta é sobrenaturalizada. Com
arte.
(OS
TRÊS CARAS ENTRAM DANÇANDO)
ANTÔNIA
Eu
então, depois de muito clonazepam e muito chá de cogumelo, descobri que eu
podia controlar o medo, que eu podia controlar as minhas alucinações. Eu sou a
diretora dessa peça e quem manda na cena seguinte sou eu.
(COMO
SE FOSSEM MARIONETES, ANTÔNIA BRINCA COM OS CARAS, DEIXANDO ELES NUS, FAZENDO
ELES SE APALPAREM E POR FIM, ACARICIANDO-A OS TRÊS DE UMA VEZ)
FIM
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