AS DESAGRADÁVEIS PALHAÇADAS DO BICHA-PAPUDO


AS DESAGRADÁVEIS PALHAÇADAS DO BICHA-PAPUDO
De Gabriel Tonin

PERSONAGENS
LALU
MARIEL
BICHA-PAPUDO

CENA 1

(LALU E MARIEL SE APRESENTAM)

MARIEL
Senhoras e senhores expectadores desse dia de espetáculo! Me apresento, meu nome é Mariel e eu sou um ator!

LALU
Eu sou a Lalu, gente! Olá! E eu sou uma atriz!

MARIEL
Estamos reunidos nesse dia especial pra contar uma história extremamente desagradável.

LALU
Peço desculpas desde já por essa porcaria.

MARIEL
Não somos os donos desse planeta pra conseguir colocar ordem de um dia pro outro.

LALU
Porcarias existem nesse mundo.

MARIEL
E também existe o Bicha-Papudo!

(O BICHA-PAPUDO ENTRA ORGULHOSO, GRANDIOSAMENTE)

BICHA-PAPUDO
Sou seu amigo, amigo é
O preferido de todas as mulhé
Aqui estou e eu vim pra ficar
E nenhum homem vai me derrotar

MARIEL e LALU
Não é amigo, não é, não é
Se acha querido de todas as mulhé
Mas elas acham você um paspalhão
Nem adianta cantar essa canção

BICHA-PAPUDO
Não sou do mal, não é assim que é
Que mundo chato, sai do meu pé chulé
Porque eu estou no meu local de razão
E é por isso que eu canto essa canção

TODOS
La, la, la
La, la, la, la...

MARIEL E LALU
É colorido e mesmo assim
É um perigo pra você e pra mim
E mesmo se ele disser que não
Nem adianta cantar essa canção

BICHA-PAPUDO
E eu repito, eu sou legalzão
Sou eu quem canto o final dessa canção...

(BICHA-PAPUDO AGRADECE)

BICHA-PAPUDO
Aplaudam, seres inferiores! Aplaudam! Esse povinho não tem costume de apreciar a verdadeira cultura e não sabem quando e como aplaudir um verdeiro artista. É lamentável esse público analfabeto e brasileiro.

MARIEL
Começou com a prepotência.

LALU
Gente, não liguem pra ele. Ele é assim todo o tempo. E não percebe como é desagradável.

BICHA-PAPUDO
Colegas de palco, quando vocês fofocam sobre minha pessoa, é vocês que estão sendo desagradáveis. Vocês que não percebem que eu sou o protagonista desse show. Quem aqui tem o nome no cartaz de divulgação além de mim? É o meu destino ser o personagem principal, assim como é o destino vocês serem a plateia e vocês aqui como mero coadjuvantes da minha história.

LALU
Queridinho, a gente veio aqui exatamente pra mostrar como não ser uma pessoa que quer papar toda a atenção só pra ela.

MARIEL
E você sempre quer papar toda a atenção só pra você.

LALU
Ou seja, você é o exemplo errado.

BICHA-PAPUDO
(RI ORGULHOSO) Todos sabemos que eu tenho meu lugar de fala garantido nesse lugar, eu sou homem, eu sou branco, e eu tenho mãe e ainda eu tenho pai! Se estivéssemos montando Hamlet, eu seria o Hamlet, e por destino! 

LALU
Você só seria o Hamlet porque eu sou mulher.

BICHA-PAPUDO
Deveria ter pedido pra nascer homem, ué. Reclama com deus!

MARIEL
Eu poderia muito bem ser o Hamlet.

BICHA-PAPUDO
(RI) Não é racismo, mas a sua cor não combinaria muito com o príncipe da Dinamarca.

(SOM DE SUSPENSE)

BICHA-PAPUDO
O que foi, gente? Pra quê o choque? Eu sou estou sendo sincero. Minha mãe sempre me ensinou que a honestidade é nossa melhor arma.

MARIEL
(EXPLODE) Isso é um absurdo! Para esse teatro! O que é isso? O que é isso? Quem você pensa que você é?

BICHA-PAPUDO
Calma, segundo ator, mantenha a postura.

LULA
Isso que você faz é um crime!

BICHA-PAPUDO
Dizer que o Príncipe da Dinamarca supostamente seria homem e branco? É a verdade, oras. Não é uma princesa e veja como são a maioria dos dinamarqueses. Brancos.

MARIEL
Se eu quisesse eu poderia fazer a minha peça com uma Dinamarca que o príncipe teria a minha cor.

BICHA-PAPUDO
Não faria sentido.

MARIEL
Aqui, nessa caixa preta da imaginação, não precisa fazer sentido!

BICHA-PAPUDO
Não seria a verdadeira Dinamarca.

LALU
Mas você não é dinamarquês e isso é um palco, não a Dinamarca! Você é brasileiro que, apesar de ser branco e (sic) homem, é uma mistureba assim como a gente.

BICHA-PAPUDO
Vocês estão distorcendo as coisas, eu tenho mais experiência que vocês dois. O espetáculo que estamos fazendo é sobre mim.

MARIEL
Sim, sobre suas desagradáveis palhaçadas.

BICHA-PAPUDO
É um ponto de vista humorístico...

LALU
Cara, você nunca baixa a bola? Você nunca consegue ver quando está sendo mesquinho e prepotente?

BICHA-PAPUDO
Flor, você sabe que eu estou blindado. Eu estou no meu lugar de fala, aqui é a minha casa, esse lugar fui eu quem escrevi! Eu me empoderei tanto, mas tanto, que nada, nem vocês, nem ninguém, podem me tirar do foco desse holofote nunca mais! (DRAMÁTICO) Nunca!

(BICHA-PAPUDO SAI DE CENA E BATE A PORTA; MARIEL E LALU FICAM SEM ENTENDER, BICHA-PAPUDO VOLTA)

BICHA-PAPUDO
Eu adoro fazer esses dramas de novela! Não precisam aplaudir, por favor...

MARIEL
Cansei.

LALU
Eu também cansei. Toda vez é essa mesma coisa, esse mesmo orgulho.

MARIEL
Não sei se você sabe, mas descobriram há séculos que o planeta Terra (GRITA) não gira ao redor do seu umbigo!

BICHA-PAPUDO
Não precisa de violência...

LALU
Eu vou embora.

MARIEL
Eu também.

LALU
Público presente, peço desculpas, mas eu não posso continuar.  (VAI SAIR)

MARIEL
A gente já devia ter saído na fala racista dele. (VAI SAIR)

BICHA-PAPUDO
Agora eu sou racista! Só falta você falar que eu sou machista agora!

LALU
(VOLTA CONFIANTE) Sim, você é um baita de um machista sim, bicho.

BICHA-PAPUDO
Você sabe que eu não posso ser machista, minha querida.

LALU
Eu sei que você se acha blindado porque é um homem diferente dos outros, mas homem nenhum está blindado de ser machista. Nem homens como você!

BICHA-PAPUDO
Deixa eu te explicar, eu não sou machista.

LALU
Não é só você falar que não é, que você não é! Não é assim que funciona. É nas atitudes, cara.

BICHA-PAPUDO
Fala aí alguma hora que eu fui machista, então.

LALU
Ah... eu... ARGH! (SAI BRAVA; MARIEL SAI ATRÁS)

BICHA-PAPUDO
Eu entendo que a discussão dessas coisas de racismo e machismo estão em alta. Entendo a importância e quem não entende não tem o mínimo de civilidade. Mas... eu não posso ser machista. Eu nunca seria machista. Eu também luto contra o machismo. Eu sou um ser humano com uma auto-estima acima da média, é isso. Não posso ser racista, a minha prima casou com um japonês. Não posso ser machista, por causa que eu sou gay.

(BICHA-PAPUDO FAZ UMA PERFORMANCE GRANDIOSA)

BICHA-PAPUDO
Não posso ser racista
A minha prima casou com um japonês
Não posso ser machista
Por causa que eu sou gay
Pense comigo, cumpadre
Eu sou brasileiro e somos misturados
Se existe mesmo essas coisas
Eu estou blindado

Não posso ser racista
A minha prima casou com um japonês
Não posso ser machista
Por causa que eu sou gay
Sou seu amigo, cumpadre
Não tenho dinheiro eu estou do seu lado
Se existe mesmo essas coisas
Eu estou blindado.

LALU
(INVADE) Permita que eu fale
Você precisa ter limites
Você pensa que tem razão
Em toda situação
Não existe essa blindagem...

MARIEL
(ENTRA JUNTO) Permita que eu fale
São as minhas cicatrizes
Você não vai dizer pra gente
Coisa que a gente sente
Baixa essa bolinha aí.

MARIEL E LALU
Você se acha demais
Mas só é chato pra caramba
Baixa essa bola aí
Branco não sabe fazer samba
Você se acha demais
Mas só é chato pra caramba
Baixa essa bola aí
Branco não sabe fazer samba
Baixa essa bola aí
Branco não sabe fazer samba!

(BICHA-PAPUDO, DESAFIADO, VAI ATÉ O CENTRO E SAMBA ESQUISITO)

BICHA-PAPUDO
Essa é pra todo mundo que tem preconceito e diz que branco não pode fazer samba.

(MARIEL E LALU GARGALHAM)

LALU
Querido, mas você foi péssimo!

MARIEL
Você não consegue mesmo enxergar a vergonha que você tá passando?

LALU
Realmente você ficou com o maior papel da peça mesmo, com o papel de maior trouxa.

(MARIEL E LALU GARGALHAM)

BICHA-PAPUDO
(SE IRRITA PELA PRIMEIRA VEZ) Já chega! Se tem uma coisa que me deixa passada, é rir da minha cara, sem eu ter feito nada. (DRAMÁTICO) Vocês não sabem com quem estão brincando, isso não vai ficar assim!

(SILÊNCIO EM SUSPENSE; BICHA-PAPUDO NOVAMENTE SAI DE CENA E BATE A PORTA)

LALU
Calma que ele vai voltar.

MARIEL
Acho que ele ficou bravo de verdade.

LALU
É teatro. Fica vendo. Ele ama fazer cena. Ele não vai perder a redenção do personagem.

(BICHA-PAPUDO VOLTA BRAVINHO)

BICHA-PAPUDO
Tá bom, olha só! Eu não vou pedir desculpas por ser feliz e ter uma bem trabalhada auto estima. Eu fui ensinado a ser honesto com o que eu penso e sinto, e vocês sabem muito bem que a sociedade também não me aceita dignamente ainda, por conta da minha natural sexualidade! Eu preciso ficar me afirmando o tempo todo sim, porque a vida já me coloca pra baixo.

LALU
A vida também me coloca pra baixo.

MARIEL
A minha vida também.

LALU
E você é uma parte dessa vida que me coloca pra baixo junto.

MARIEL
Sim, você é e não percebe que é.

BICHA-PAPUDO
Mas entendam, acho que vocês não entenderam, eu não posso ser racista e machista, a minha prima...

LALU
Migo, dá aqui a mãozinha que eu vou te mostrar, eu, não sei se você percebeu, mas eu sou uma mulher. Tá vendo? Eu sou uma mulher.

BICHA-PAPUDO
Sim, eu percebo.

MARIEL
E eu. Enxerga bem, olha bem. Você consegue ver a diferença na nossa pele? Não existe esse negócio de “somos todos iguais”, isso é uma patifaria, somos bem diferentes um do outro sim.

BICHA-PAPUDO
Sim, eu percebo um pouco, mas...

LALU
Mas! Mas o quê, cara?! Você não pode dizer o que é machismo e racismo pra nós dois. Você não consegue entender isso?

BICHA-PAPUDO
São vocês que estão sendo racistas e machistas comigo...

LALU E MARIEL
Aaaargh!

LALU
Você é muito teimoso!

MARIEL
É burro! Ele é muito burro!

BICHA-PAPUDO
Olha aí! Precisa apelar pro xingamento?

MARIEL
Ah, precisa, viu! Eu também não sou de ferro! Minha vontade é de dar um murro na sua cara!

BICHA-PAPUDO
Seria homofobia.

MARIEL
O que? Não é por você ser gay que eu tenho vontade de te bater...

BICHA-PAPUDO
Todos dizem isso.

MARIEL
É por você ser chato!

BICHA-PAPUDO
Todos dizem isso também. Vocês estão fazendo bullying com a minha pessoa, desde que a peça começou. Eu não aguento mais, eu não aguento! (SAI NOVAMENTE DRAMÁTICO BATENDO A PORTA)

LALU
Ah, não! De novo não!

MARIEL
Esse cara é muito chato! Fala a verdade, você também não tem vontade de dar uns murros nele?

LALU
Olha, por mais que eu seja totalmente contra a violência, tenho que confessar que às vezes tenho vontade sim. Eu me seguro muito, que é pela redenção dos nossos personagens também.

(BICHA-PAPUDO RETORNA)

BICHA-PAPUDO
Olha, vejam bem, acho que vocês não entenderam o meu ponto de vista...

LALU
A gente entendeu sim, a gente não é burro.

BICHA-PAPUDO
Vocês tem que me dar o direito de me defender.

MARIEL
Não tem defesa, nós demos a sentença que, por mais que você diga que não, você foi sim racista e machista por muitas e muitas vezes.

LALU
Além de ser um mesquinho prepotente que se acha a última bolacha do pacote!

BICHA-PAPUDO
Mas e a democracia?

(LALU DÁ UM MURRO NA CARA DE BICHA-PAPUDO; SILÊNCIO)

LALU
Democracia é o caramba!

MARIEL
Minha nossa! Você bateu nele mesmo.

LALU
Eu... eu não sou um robô.

BICHA-PAPUDO
Ditadores, homofóbicos!

(MARIEL DÁ UM CHUTE NA BUNDA DE BICHA-PAPUDO)

MARIEL
Cara, a gente para quando você parar.

BICHA-PAPUDO
Isso é um absurdo! Plateia, vocês estão vendo isso! Eu sou o protagonista dessa merda e vocês não podem espalhar essa fakenews, de que eu sou racista e machista, porque a minha prima casou...

(LALU DÁ UM MURRO FORTE EM BICHA-PAPUDO QUE CAI DESMAIADO)

MARIEL
Meu deus! Você matou ele, Lalu!

LALU
Calma, ele tá só desmaiado.

MARIEL
O que a gente faz agora?

LALU
Gente, não se preocupem, vai ficar tudo bem com ele. A gente não pretende fazer nenhum mal com ele, mas a gente também não aguenta mais toda vez a mesma coisa. A gente vem aqui e a gente repete a mesma peça, ele é chato toda vez do mesmo jeito. Daí pra pior! A gente precisa de... o que a gente precisa na verdade, nós e ele e vocês... é de redenção. (SILÊNCIO) Vamos amarrá-lo.

MARIEL
Eita, porcaria.

(ESCURIDÃO)


CENA 2

(QUANDO AS LUZES SE ACENDEM, O BICHA-PAPUDO ESTÁ AMARRADO EM UMA CADEIRA, AMORDAÇADO; ELE ACORDA ASSUSTADO E TENTA FALAR SEM SUCESSO; UMA MÚSICA SE INICIA E ELE CANTA COMO SE ESTIVESSE EM UM SHOW, PORÉM SEM CONSEGUIR FALAR NENHUMA PALAVRA, SÓ BALBUCIANDO COM A BOCA AMARRADA; ELE DRAMATIZA A MÚSICA COMO SE NÃO ESTIVESSE AMORDAÇADO, A MÚSICA INTEIRA; MARIEL E LALU ESTÃO NA PLATEIA)

MARIEL
O cara consegue ser insuportável e prepotente até mesmo com a boca amordaçada.

LALU
Eu não sei mais o que fazer.

MARIEL
Você acha que a gente devia... (SUSPENSE)

LALU
Devia?

MARIEL
Soltar ele. A gente uma hora vai ter que fazer isso, né?

LALU
Vamos tentar conversar mais uma vez.

(O BICHA-PAPUDO FALA UM TEXTO GIGANTE SEM NINGUÉM CONSEGUIR ENTENDER NADA; ELE FALA COMO SE ESTIVESSE CONVERSANDO NORMALMENTE)

MARIEL
Amigão, ninguém tá entendendo nada do que você tá falando.

(BICHA-PAPUDO COSPE A MORDAÇA COM FACILIDADE)

BICHA-PAPUDO
Vejam bem, meus coadjuvantes, eu claramente sou a vítima aqui. Eu não estou preocupado. Se eu morro, eu viro um mártir. E vocês homofóbicos assumidos e assassinos.

MARIEL
A gente nunca falou da sua sexualidade, cara!

BICHA-PAPUDO
Então! Invisibilidade!

LALU
Não adianta, Mariel. Ele nunca vai conseguir enxergar o que a gente tá dizendo. Talvez, a culpa não seja toda dele.

MARIEL
Eu acho que a culpa é dele sim.

LALU
Sim. Estamos numa democracia. Podemos discordar.

BICHA-PAPUDO
Mas se eu discordo de vocês eu sou racista e machista! E se vocês discordam de mim então vocês são homofóbicos sim, fim!

MARIEL
Então você assume.

BICHA-PAPUDO
O que?

MARIEL
Que é racista.

LALU
E machista.

BICHA-PAPUDO
Não, eu não disse isso.

MARIEL
Sim, você disse. Pra poder estar certo em dizer que somos homofóbicos você assume que é racista e machista.

BICHA-PAPUDO
Sou eu quem estou amarrado aqui.

(SILÊNCIO; LALU ENTENDE O RECADO E DESAMARRA O BICHA-PAPUDO)

LALU
Sabe o que eu acho, Bicho-Papudo? Eu acho que você é uma pessoa com um atraso cognitivo. E a gente realmente não tem o direito de te punir por ser desse jeito.  Peço desculpas pra você, e também pra todo público aqui presente. Eu... nós agimos no calor da emoção.

MARIEL
É um absurdo a gente ter que se desculpar por se defender.

BICHA-PAPUDO
Eu nunca levantei a mão para vocês. Os primitivos descontrolados aqui são vocês.

MARIEL
Violência não é só murro na cara não. Tem a violência das palavras, amigão. Ela machuca às vezes até mais do que um nariz quebrado.

BICHA-PAPUDO
Isso tudo porque eu disse que você não podia ser Hamlet, meu amigo.

MARIEL
E quem disse que eu pretendo ser? Eu tenho os heróis da minha turma pra reverenciar. Pode ficar com seu Hamlet e sua branquetude imaculada.

BICHA-PAPUDO
Fiquem felizes de eu não chamar meu advogado e abrir um processo contra vocês dois e contra vocês todos como cúmplices de um sequestro. E anotem... isso não vai ficar assim.

(SAI E BATE A PORTA)

MARIEL
Meu deus do céu, eu tô ficando com dor de cabeça de tanto virar os olhinhos de raiva!

LALU
Veja bem, Mariel. Talvez existe um tipo de pessoa que não possui a capacidade de se perceber no mundo, e entender esse propósito que é claro pra nós. Isso que a gente sente no nosso coração sobre o certo e o errado, é nosso, e talvez seja um privilégio nosso ser assim.

MARIEL
Mas ele tem que entender! A gente tem que mostrar pra ele que ele é chato, que ele tá errado!

LALU
É isso que eu tô dizendo! E se ele não pode entender?

MARIEL
Como assim?

LALU
Talvez ele não possa entender, Mariel. Talvez tenha gente que não vai nunca conseguir entender, simplesmente porque ele não tem o privilégio de entender.

MARIEL
Ele não tem culpa de ser um ignorante.

LALU
Exatamente. A gente que entende, às vezes a gente perde as estribeiras porque a gente não é de ferro também. Mas porque a gente pode entender, isso nos dá uma responsabilidade maior nesse mundo, de tentar ser cada dia melhor, mesmo com quem não quer.

MARIEL
Eu não posso assumir esse fardo pra sempre. De ter que ficar suportando as cagadas dos outros.

LALU
É parte da luta, companheiro. É parte da luta.

(BICHA-PAPUDO ENTRA)

BICHA-PAPUDO
Dramático e moralista esse final. Vocês acham que estão tão certos, e depois o prepotente sou eu.

LALU
Você pode ganhar, lindão. A verdade é toda sua.

MARIEL
Pois é. A gente pensou aqui melhor e você tem razão. Como você é gay e a gente discordou de você, realmente nós fomos homofóbicos. Peço sinceras desculpas pelo nosso ato falho.

(SILÊNCIO)

BICHA-PAPUDO
Estão desculpados.

LALU
Venha aqui, venha aqui! Assume o seu foco principal pra você cantar o último solo. Iluminador, acende o foco aqui, por favor!

BICHA-PAPUDO
Obrigado, obrigado. Adoro mulheres como você, que sabem ser prestativas e carinhosas com nós gays.

LALU
Que isso? Estamos aqui pra fazer tudo por você!

MARIEL
Você é a Fernanda Montenegro LGBT do teatro!

BICHA-PAPUDO
Ah, para. Não é pra tanto.

LALU
Pode curtir seu momento. O palco é todo seu!

MARIEL
É as desagradáveis palhaçadas do Bicha-Papudo, não é mesmo? A peça é toda sua.

(LALU E MARIEL PEGAM SEUS PERTENCES E VÃO EMBORA DO TEATRO; BICHA-PAPUDO FICA SOZINHO EM SILÊNCIO POR UM TEMPO, SEM ENTENDER, UM POUCO SEM GRAÇA)

BICHA-PAPUDO
Eles vão voltar, fica vendo. Eles adoram fazer um drama, são artistas, dramáticos. Eles ainda precisam fazer o backing vocal do meu solo final. Quer ver? À qualquer momento aquela porta vai se abrir e eles vão entrar. Fiquem vendo. (SILÊNCIO)
Chama eles lá pra mim, por favor. Fala que acabou a graça. Vamo finalizando a peça por hoje. Diretor! Chama eles lá, por favor. Tá ficando desagradável já essa cena toda. Palhaçada isso, depois pedem respeito! (SILÊNCIO; ELE MESMO VAI ATÉ A PORTA DO TEATRO, IRRITADO) Ô, seus energúmenos! Vamo voltar pra dentro pra finalizar a peça logo! Falta a minha música final! Vai logo! Não adianta correr! Eu tô vendo vocês! Pega eles, diretor! Pega! (SILÊNCIO; ELE RETORNA PARA O PALCO INSEGURO) Eles fugiram mesmo, foram embora. (SILÊNCIO) Será que eu falei alguma coisa errada, gente?

(ESCURIDÃO)


CENA FINAL

(MARIEL E LALU FINALIZAM O ESPETÁCULO COM UM DUETO)

MARIEL E LALU
Ninguém tá blindado de ser um cara chato
E a concorrência está por todo o lado
Ninguém tá blindado de ser desagradável
Falta inteligência...

Pra poder então assumir
Saber se reconhecer
Precisa às vezes ouvir
Depois vai entender
Quem fala, raclama a dor
Ninguém tá fora, senhor
Só abaixa essa bolinha
Vamos brigar por amor

Venha aqui, você tá merecendo
Um soco na sua boca porque você tá querendo
Venha aqui, você tá implorando
Ninguém é de ferro, eu tô na luta, eu tô tentando

BICHA-PAPUDO
Ei, ei, não, não, não!
Chega, parou!
Ei, ei, não, não, não!
O bicha chegou!

(LALU E MARIEL ENFRENTAM BICHA-PAPUDO AMEAÇADORAMENTE)

BICHA-PAPUDA
Ninguém tá blindado de ser um cara chato
E a concorrência está por todo o lado
Ninguém tá blindado de ser desagradável
Falta inteligência...

MARIEL E LALU
É bom poder assumir
Saber se reconhecer
Precisa às vezes ouvir
Depois vai entender
Quem fala, raclama a dor
Ninguém tá fora, senhor
Só abaixa essa bolinha
Vamos brigar por amor

OS TRÊS
Venha aqui, você tá merecendo
Um soco na sua boca porque você tá querendo
Venha aqui, você tá implorando
Ninguém é de ferro, eu tô na luta, eu tô tentando
Venha aqui, você tá merecendo
Um soco na sua boca porque você tá querendo
Venha aqui, você tá implorando
Ninguém é de ferro, eu tô na luta, eu tô tentando.

(OS ATORES AGRADECEM O FIM DO ESPETÁCULO; O FOCO VOLTA PARA BICHA-PAPUDO QUE PARECE QUE QUER DIZER ALGO)

BICHA-PAPUDO
Eu não vou pedir desculpas por algo que eu não acho que eu fiz. (SAI E BATE A PORTA ORGULHOSO)

FIM




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