BAR DO MAU


BAR DO MAU
De Gabriel Tonin

PERSONAGENS:
ANTÔNIO (JOVEM BÊBADO)
MAURO (DONO DO BAR)
DENISE (JOVEM CANTORA)
BÊBADO (VELHO)

CENÁRIO: UM BAR.


CENA 1

(ANTÔNIO ESTÁ CANTANDO NO KARAOKÊ ENQUANTO MAURO LAVA COPOS; O BÊBADO ESTÁ O TEMPO INTEIRO DESMAIADO EM UMA MESA)

ANTÔNIO
“Existe um bar na cidade aqui
Lugar para um cantor
Também é onde alguns vão morrendo
E um deles eu sei que eu sou.

Mamãe morreu cedo, no tempo
Nem lembro, foi no jardim
Papai foi embora, eu nunca mais vi
E moramos na cidade aqui.

Pra se dar melhor nesse lugar
Um terno e gravata, e olha lá
Mas aquela hora, que o cara sente bem
É aqui com o cu no bar.

MAURO
Vai mais uma, companheiro?

ANTÔNIO
Por favor, Mau. Tem dia que precisa um pouco mais pra conseguir chegar no clima.

MAURO
Pois é. Agora chega a parte que você quer acabar com meus negócios.

ANTÔNIO
Que isso, Mau? Tô aqui fazendo propaganda pra você. Divulgando seu bar.

MAURO
Todo mundo sabe que isso aqui é lugar de tristeza camuflada em distração.

ANTÔNIO
Moçada! Fortaleça!
Não faça o que eu faço aqui
No fumo, bebida, enxergo meu deus
Queria sem usar conseguir
Queria sem usar conseguir
Queria sem usar conseguir.

(VERSÃO DA MÚSICA “HOUSE OF THE RISING SUN” DA BANDA THE ANIMALS; ANTÔNIO DESCE DO PALCO E VOLTA PRO BALCÃO)

MAURO
Vai ficar sem terminar a música de novo?

ANTÔNIO
Já expressei o que queria expressar. Pode tomar o microfone, já que não tem mais ninguém nessa joça querendo cantar as mágoas.

(MAURO DESLIGA A MÚSICA)

MAURO
O senhor pensa que é só você que tem mágoas no mundo. Você não tem noção de quanto cachaceiro feito você eu tenho que aguentar todo dia. É que vocês alternam o horário...

ANTÔNIO
Eles eram cantores também?

MAURO
Nem todos. Nem todos precisam. Mas precisam de música. E cachaça, claro.

ANTÔNIO
Eu era um bom cantor...

MAURO
Você ainda dá pro galho, garoto.

ANTÔNIO
A minha voz já era... perdi. Depois do acidente... perdi. Agora eu tô aqui cantando pra você de plateia e pra aquele cara.

MAURO
Você acha que você tá cantando só pra mim e pra aquele cara?

ANTÔNIO
Eu tô falando porque era uma profissão pra mim. E eu... perdi.

MAURO
E eu tô falando que tem coisa entre o céu e a Terra que a gente nem imagina. Você ainda é cantor, garoto! Cantou a introdução da peça aí!

ANTÔNIO
É. Tem essas pessoas aí. (APONTA A PLATEIA)

MAURO
Eu quando canto, eu tô cantando pra mim, pelo mundo. Toda música no chuveiro, pra mim, é um momento meu num palco do Rock’in Rio!

(MAURO VAI ATÉ O MICROFONE)

MAURO
Cê diz que quer revolução
Já sabe, irmão
Quem não quer salvar o mundão?
Cê diz que quer revolução
Já sabe, irmão
Tem que cantar com o coração!

Mas quando vem com essa depressão
Me tira dessa, paga a conta já

Porque sabe que aqui
É legal
É legal
É o Bar do Mau!

Você diz que quer uma solução
Me ajuda, irmão
Começa então a planejar
E quer a minha contribuição?
Acorda, irmão
Tudo o que eu tenho é esse bar

Mas se você tá pensando em destruição
Me tira dessa, paga a conta já

Porque sabe que aqui
É legal
O que eu vendo aqui
É legal
Nessa cidade aqui
Bar do Mau!

(VERSÃO DA MÚSICA “REVOLUTION” DOS BEATLES)


CENA 2

(MAURO RETORNA PARA O BALCÃO)

ANTÔNIO
Você é foda, Mauro! Eu sou seu fã, velho! Um bagulho cheio de paródia e cheio de mensagem de cachaceiro inteligente! Pra mim, nessa noite, você foi meu Belchior.

MAURO
Não exagera, não exagera. Exagera só no alcóol que é minha sobrevivência, tenho filho pra alimentar.

ANTÔNIO
Pode por mais uma dose. Em brinde ao show!

(SILÊNCIO)

ANTÔNIO
Já pensou que você alimenta seus filhos matando os outros, Mauro? Por isso que chama Bar do Mau. (RI TONTO)

MAURO
Eu salvo as pessoas aqui, garoto! Eu ajudo elas a ver deus, igual você mesmo disse. Mais do que muita igreja ainda.

ANTÔNIO
Exatamente, porque elas viram alcoólatras e morrem logo. Vão pro céu ver deus.

MAURO
Eu não sou dono do vício de ninguém. Meu estabelecimento é um negócio comercial. Bebe quem quer.

ANTÔNIO
Claro. Bar do Mau, antro de suicídios.

MAURO
Companheiro, o que você tá querendo com essas insinua...?

ANTÔNIO
Quero nada não. Vou cantar mais uma música.

(ELE VAI ATÉ O PALCO; DENISE ENTRA BEM VESTIDA, RICA, CHARMOSA; ANTÔNIO FICA COM VERGONHA, MAS CONTINUA INDO ATÉ O MICROFONE)

MAURO
Vai, bonitão! Escolhe uma canção com o coração pra fazer sua versão.

DENISE
Boa noite. Me vê uma dose de Martine.

MAURO
Num segundo, moça.

(DENISE SE POSICIONA PARA ASSISTIR ANTÔNIO)

ANTÔNIO
Ô, Mauro! Cê tirou as músicas do Belchior da lista?

MAURO
Antro de suicídios.

(A MÚSICA INICIA SEM ANTÔNIO ESCOLHER; ELE CANTA NERVOSO COM A PRESENÇA DE DENISE; ELA ASSISTE CONCENTRADA E INTERESSADA)

ANTÔNIO
Amor, meu bem
Bem aqui
Não me deixe ir
Você aqui completou
Cheio de amor

Amor, meu bem
Aqui está
Tudo o que sonhei
Amestrado eu estou
Para sempre, amor

Amor, meu bem
Vem cantar
Mostre o coração
Pra isso que eu nasci
Para essa canção

Amor, meu bem
Aqui está
Tudo o que sonhar
Amestrado eu estou
Para sempre, amor

Amor, meu bem
É você
Diga que eu também
Amestrado eu estou
Para sempre, amor

Amor, meu bem
Aqui está
Tudo o que sonhei
Amestrado eu estou
Para sempre, amor.

(VERSÃO DA MÚSICA “LOVE ME, TENDER” DE ELVIS PRESLEY)
  
(SILÊNCIO; ANTÔNIO DESCE DO PALCO E VOLTA PARA O BALCÃO TÍMIDO)

MAURO
Que vergonha. Na frente das pessoas...

ANTÔNIO
Cala a boca e coloca mais uma dose.

DENISE
Eu gostei. Da música. Da sua versão.

ANTÔNIO
Obrigado.

MAURO
Ele era cantor profissional. Perdeu a voz num acidente.

DENISE
Pareceu uma cantada de bar. Mas você foi bem.

(SILÊNCIO CONSTRANGEDOR)

DENISE
Porque eu sou mulher e você é homem. Você cantou uma música de amor pra mim, porque está bêbado, solitário, envelhecendo. Apesar da criatividade e, confesso, do charme disso tudo, eu não estou interessada.

(SILÊNCIO)

ANTÔNIO
Eu cantei pensando em outra pessoa.

DENISE
Não. Eu vi.

MAURO
Eu vi também.

DENISE
Não se preocupe. Você foi charmoso. Só não estou interessada. Não posso corresponder. Minha música, por exemplo, não seria essa, não seria desse tipo.

MAURO
Você tem uma autoestima boa, né, moça?

DENISE
É Denise.

ANTÔNIO
Tá se apresentando por quê se não aceitou minha música?

MAURO
Confessou que a música era uma investida. Burro pra caralho.

DENISE
Eu tô me apresentando porque eu estou sendo educada. Vocês homens não conseguem enxergar uma mulher além do interesse em algo mais. É por isso que eu nem me comovo mais e por isso que eu já quis deixar claro logo de início.

MAURO
Desculpa. Eu realmente sou solitário...

DENISE
E eu não estou interessada. Mas podemos trocar papo de bar. Bar do Mau, achei sensacional o nome.

MAURO
É que eu chamo Mauro.

DENISE
Supus. Por isso é com U. Entendi. Genial. Confesso que parei pra tomar umasinha só por causa do nome. E olha só. Não tem um lugar onde a gente vá nessa cidade, ou em qualquer cidade, que não tem um homem fazendo gracinha num palquinho, sabe.

MAURO
Minha filha, eu sei do que você tá falando!

DENISE
Sabe não, você é parte do problema também. Me vê mais uma dose.

ANTÔNIO
Me desculpa, moça. Denise! Eu não quis parecer grosseiro. Nem todo homem tá querendo transar com você toda hora, viu.

DENISE
(RI DEBOCHANDO) Vocês são muito engraçados.

ANTÔNIO
O que?

DENISE
Vocês homens. Eu tenho que confessar que eu me divirto um pouco.

ANTÔNIO
Eu me divirto com vocês mulheres também!

DENISE
(GARGALHA) Sei bem como você se diverte. Eu sei muito bem, conheço bem o seu tipo.

ANTÔNIO
Escuta aqui. Qual o seu problema?

DENISE
Meu problema? Não tenho problema nenhum. Eu só quis cortar o romance da sua música porque eu entendi o recado. Só isso mesmo.

MAURO
A mina não tá afim, bonitão.

ANTÔNIO
E quem disse que eu tô afim? Eu só cantei uma música, tá bom? É karaokê. Muito empoderada, você! Muito!

(TENSÃO)

DENISE
Esse bar é só pra homens?

MAURO
Não, não. Pode vir mulher que é bom sim.

ANTÔNIO
Você é uma péssima pessoa, sabia? Essa ironia... Eu não estava cantando pra você, tá bom?

MAURO
Tava sim.

DENISE
Você cantou bem. Eu falei que eu gostei. Moço...

ANTÔNIO
Antônio.

DENISE
Antônio, me entenda, eu só preciso começar as coisas desse jeito, cortando na raiz, porque é sempre a mesma coisa. O cara vai lá, faz um showzinho e depois espera que eu abra as pernas no fim da noite. A única coisa que eu fiz, foi acabar com essa ideia. Calma.

ANTÔNIO
Mas eu não tava cantando pra você! Você se acha demais!

MAURO
Tava sim, todo mundo viu. Você cantou pra ela sim.

DENISE
Podemos mudar de assunto se vocês preferirem...

ANTÔNIO
Não, eu vou embora... (SE LEVANTA)

DENISE
Espera! Eu vou cantar uma música. Fica pra ouvir.

ANTÔNIO
E pra quê eu ficaria? O que eu ganho com isso?

DENISE
Ah, claro, né? Tá vendo? Era disso que eu tava falando... (VAI INDO ATÉ O PALCO) Vocês sempre querem algo em troca. Mas eu tenho os meus problemas também, eu tenho os meus desejos, eu tenho a minha versão da música. Fica.

(RELUTANTE, ANTÔNIO SE SENTA; UM FOCO DESTACA DENISE GRANDIOSA E ELA CANTA PERFEITAMENTE À CAPELA)

DENISE
Senhor, me compre um carro do ano
Meus amigos já andam, eu preciso, eu sou um humano
Trabalhei a vida toda, sem ajuda de ninguém
Senhor, me compre uma Mercedes-Benz

Senhor, me ajuda, quero um novo celular
Apostei na Megasena, cê precisa me ajudar
Não me importo se demora
Hoje eu conto, um, dois, três
Senhor, me compre uma Mercedes-Benz

Senhor, me compre uma noitada na cidade
Acredito no senhor, eu confio de verdade
Prove que me ama, e pague essa rodada
Senhor, me compre uma noitada na cidade

Senhor, me compre um carro do ano
Meus amigos já andam, eu preciso, eu sou um humano
Trabalhei a vida toda, sem ajuda de ninguém
Senhor, me compre uma Mercedes-Benz.

(VERSÃO DA MÚSICA “MERCEDES-BENZ” DE JANIS JOPLIN; ANTÔNIO E MAURO APLAUDEM DENISE)

ANTÔNIO
Então esse é o seu tipo.

DENISE
Tipo? Esse qual?

ANTÔNIO
A interesseira. Que quer carro, dinheiro, fortuna...

DENISE
É de você que eu tô pedindo?

MAURO
Tish!

(SILÊNCIO CONSTRANGEDOR)

DENISE
Na música era entre eu e deus, cara. E é tudo uma brincadeira, é uma ironia, karaokê. Relaxa aí, brother.

(SILÊNCIO)

ANTÔNIO
Eu descantaria aquela música agora.

DENISE
Oi?

ANTÔNIO
Eu descantaria aquela música agora. Você é uma pessoa má.

DENISE
Claro. Porque eu sou uma mulher que fala como um homem fala. Eu entrei no Bar do Mau exatamente por isso, meu querido! Porque eu sou má!

ANTÔNIO
Eu não tô conseguindo lembrar a parte que eu fui grosseiro com você, Denise. Peço desculpas... (VAI SE LEVANTANDO)

DENISE
Não, você não entendeu. O problema não é você não, são vocês.

MAURO
Eu? O que que eu fiz?

(DENISE COMEÇA A CANTAR AINDA NO BALCÃO)

DENISE
Todo dia eu, ando pela rua
Todo mundo fica “hey, baby, sou sua”
Isso sempre foi assim
Todo mundo olha pra mim
Rapazes e idosos
“Amorzin’”

Venha cá, tome esse chá
Calminha, é caipirinha!

Faço parte desse show
Tô cantando aqui pra mim
Você não me importa
É a fêmea que vence!

Eu sou a Rainha Leão
Você é a hiena
Aqui não tem mais hora
Ai, que pena!
Você é tão pequeninin’
Parece um garotin’
Batendo punheta
Em cena

Chega mais, tome esse chá
Calminha, é chá de buceta!

Faço parte desse show
Tô cantando aqui pra mim
Você não me importa
É a fêmea que vence!

Não dá, eu nasci pra falar
Porque, nem tudo é sobre você!
Vocês homens, são uma vergonha
Dá pra alguém me oferecer uma maconha?

Hein? Quem vai oferecer a maconha?

MAURO
Não vai dar.

ANTÔNIO
Vocês não eram assim
Com tanto mimimi
Isso já tá ficando chato
Ai, de mim!
Não precisa ser tão assim
Cê entrou, eu nem tava afim
Isso é o extremo feminista

Escuta essa, você não é meu tipo
A peça a minha
Eu sou o protagonista!

Faço parte desse show...

DENISE
Com paródias porque é incompetente.

ANTÔNIO
Tô cantando aqui pra mim

DENISE
Cheguei, nem tinha plateia.

ANTÔNIO
Você não me importa

DENISE
Quem que é o chorão aqui?

ANTÔNIO
É o macho que vence!

DENISE
Que vence de vencido!

MAURO
Já deu!
Agora já chegou
Parou
O tempo acabou
Já chega, paguem as contas
E vão pra um quarto e façam suas coisas!

DENISE E ANTÔNIO
Faço parte desse show
Tô cantando aqui pra mim
Você não me importa...

MAURO
Tô fechando a porta!

DENISE E ANTÔNIO
É a fêmea/macho que vence!

MAURO
Tô fechando mesmo!

DENISE
É a fêmea...

ANTÔNIO
O macho...

DENISE E ANTÔNIO
...que vence!

(PARÓDIA DA MÚSICA “TAKE ME OR LEAVE ME” DO MUSICAL RENT; QUANDO A MÚSICA TERMINA OS DOIS FICAM SE ENFRENTANDO NA DEFENSIVA POR UM TEMPO EM SILÊNCIO)


CENA 3

MAURO
O que diabo de cena musicada foi essa no meu bar? Isso aqui não é a Broadway. Paguem logo a conta de vocês e chega por hoje?

ANTÔNIO
Pelo visto você é cantora profissional também. Eu era.

DENISE
E o que aconteceu?

ANTÔNIO
Sofri um acidente. Tive que furar a garganta.

DENISE
Entendi.

(SILÊNCIO)

DENISE
Eu também sofri um acidente. Mas não esse tipo de acidente.

ANTÔNIO
Que tipo de acidente.

(SILÊNCIO; DENISE RETORNA DEVAGAR PARA O BALCÃO)

DENISE
É complicado. Coloca mais uma dose, Mauro.

MAURO
Última da noite. (PARA O BÊBADO) Você aí, vai acordando! Vai acordando! O cara não vai acordar, cacete. Última da noite pra vocês, ouviu? Muita putaria pra depois se comerem no fim da noite.

DENISE
Não vai rolar.

ANTÔNIO
Não vai rolar de maneira nenhuma.

DENISE
E isso está sob minha decisão. Não vai rolar porque eu não quero.

ANTÔNIO
Você que pensa isso. Eu também não quero.

DENISE
Você sabe da verdade, querido.

ANTÔNIO
Você está errada.

DENISE
Tá bom, amor, tá bom.

(AMBOS SENTAM-SE NO BAR E FICAM UM TEMPO EM SILÊNCIO)

ANTÔNIO
Que tipo de acidente?

DENISE
Viu, depois disso tudo podemos ter uma conversa que não precise de você dando em cima de mim. Vê como minha vida é dura. Eu tenho que fazer esse drama todo pra você se importar com meus problemas e não com a minha bunda.

ANTÔNIO
Eu não sou esse tipo de cara.

DENISE
Todos os caras que são esse tipo de cara falam que não são esse tipo de cara.

ANTÔNIO
Eu... mas eu não sou.

DENISE
Tá.

(SILÊNCIO)

DENISE
Meu acidente eu já expliquei.

ANTÔNIO
Explicou?

DENISE
O nome do meu acidente é patriarcado.

ANTÔNIO
Você não consegue mesmo sair desse assunto, né? Que coisa!

DENISE
Você chora porque perdeu a voz. Eu choro pelo que eu perco.

ANTÔNIO
Hoje em dia nem é tão mais assim...

DENISE
Você não pode dizer isso porque não é na sua pele. Entenda, Antônio qualquer, eu preciso fazer escudos o tempo todo. Enxergou o meu escudo? Conseguiu enxergar o meu escudo? Não tinha jeito mais claro de mostrar a minha defesa. Eu entrei num “bar de homens” e é isso que eu tenho que ser. Essa mulher má, que você disse. Porque é a minha defesa pessoal.

MAURO
Desculpe interromper, mas pode entrar mulher...

DENISE
Pode entrar, mas não entra! Entra se for pra servir de entretenimento pra vocês. Esse espaço todo aqui, a sociedade inteira é baseada no que vocês homens querem.

ANTÔNIO
Eu cansei de ficar discutindo política. Quanto ficou, Mauro?

DENISE
“Eu não sou esse tipo de cara”.

ANTÔNIO
E eu não sou mesmo! Eu sou romântico. Eu vi uma mulher e cantei uma música romântica. E você veio com as pedradas.

DENISE
É calo, amigo. Calo.

(SILÊNCIO)

ANTÔNIO
Quanto ficou?

MAURO
Vinte e quatro.

ANTÔNIO
Vinte e quatro? Então tá, né?

(OS DOIS RIEM DOS NÚMEROS)

DENISE
Meu deus do céu. Como eu tenho ranço de vocês, vocês nem imaginam. O número vinte e quatro, por estar ligado à homossexualidade sei lá porquê, faz vocês rirem. Isso é... patético.

ANTÔNIO
É uma brincadeira. Vocês problematizam tudo. Chato. Tá chato, já. Tô indo, Mauro.

DENISE
Tá muito chato faz tempo. É o bar do mal.

ANTÔNIO
Foi um desprazer conhecer a senhorita, Denise.

DENISE
Foi um prazer ver a sua mediocridade cênica e você com a voz fraca.

(SILÊNCIO; NUM MOMENTO DE SURTO, ANTÔNIO JOGA O COPO NA PAREDE; DENISE SE DIVERTE)

MAURO
Pirou, maluco?

ANTÔNIO
(GRITA) Você é louca! Você é do mal! O que você quer?

DENISE
Eu tava só esperando o soquinho na parede. (GARGALHA) Copo quebrado. Dramático... Próximo passo você vai bater em mim, não vai?

ANTÔNIO
Você tem problemas, menina.

DENISE
Vocês são previsíveis.

MAURO
Vinte e nove. O copo custa cinco.

(SILÊNCIO; ANTÔNIO PAGA A DIFERENÇA)

DENISE
O medo de vocês homens é de serem humilhados por uma mulher. O nosso medo é de morrer porque vocês são fracos, perdem fácil a cabeça.

ANTÔNIO
Você está procurando alguém pra te matar. Eu não vou fazer isso com você. Tome cuidado, Denise, tem muitos por aí que não deixaria barato.

DENISE
Você já quebrou o copo, querido. Já fez a ceninha.

ANTÔNIO
Mas eu nunca... eu nunca iria bater em uma mulher.

DENISE
Nem se eu te pedisse?

(SILÊNCIO; ANTÔNIO FICA OLHANDO PARA DENISE NUMA MISTURA DE CONFUSÃO E TERROR)

ANTÔNIO
Quem é você? É Denise do quê? O quê que você quer, porra?

DENISE
(FORTE) Eu vivo pra derrubar máscara de macho. Eu derrubei a sua máscara de cantor romântico em menos de dez minutos.

ANTÔNIO
Você é um monstro.

DENISE
A cada uma mulher que mata o companheiro ou ex-companheiro, são trezentas mulheres. A balança de monstruosidade vai demorar demais da conta pra chegar na metade.

ANTÔNIO
Valeu, Mauro. Desculpa qualquer coisa.

MAURO
Falou.

(ANTÔNIO VAI SAIR, DENISE O SEGURA PELO BRAÇO)

ANTÔNIO
Você ficou maluca? Tira a mão de mim!

DENISE
Eu sou maluca. Você ainda não viu nada.

ANTÔNIO
Você vai bater em mim? Bate. Pode bater. Eu não vou revidar.

DENISE
Eu não. E você? Você vai bater em mim? Pode bater. Mas eu revido sim.

(SILÊNCIO; DENISE AINDA ESTÁ SEGURANDO O BRAÇO DELE)

ANTÔNIO
Dá pra soltar meu braço, por favor?

(DENISE BEIJA A BOCA DE ANTÔNIO À FORÇA)

ANTÔNIO
O que... o que é isso? (EMPURRA ELA) O que você tá fazendo?

DENISE
Você é gay.

ANTÔNIO
O que? Eu não sou gay.

DENISE
É sim. Não tem pegada, então. Machinho do pau pequeno, aposto.

(DENISE APALPA O PAU DE ANTÔNIO; ANTÔNIO A SEGURA COM VIOLÊNCIA E A EMPURRA NA MESA DO BÊBADO DESMAIADO, QUE ACORDA SEM ENTENDER)

ANTÔNIO
(GRITA) Maluca! Você é maluca!

DENISE
(ENCENA) Você me jogou no chão. Eu que sou a maluca? O que você quer?

ANTÔNIO
O que eu quero? O que eu quero? O que VOCÊ quer?

BÊBADO
O que tá acontecendo aqui, hein?

ANTÔNIO
Essa maluca pegou no meu pau!

DENISE
Você tá louco! Por que eu pegaria no seu pau?

ANTÔNIO
O que...? O Mauro viu. Você viu, Mauro, não viu?

MAURO
Eu não vi nada não.

(SILÊNCIO)

BÊBADO
O cara aí tá incomodando você, moça?

DENISE
Ele é louco. Eu vim aqui tomar meu drink, cantar uma música...

ANTÔNIO
Você é louca! Você tá se fazendo de louca!

BÊBADO
Não grita com ela não, parceiro. Tá com algum problema vamo resolver isso comigo.

MAURO
Vão lá fora, pelo amor de deus...

ANTÔNIO
Ela... ela... foi ela que... ela que... (PAUSA) Tô indo nessa.

DENISE
Eu só te tratei como vocês tratam a gente o tempo inteiro.

(SILÊNCIO; ANTÔNIO CONTINUA OLHANDO ASSUSTADO PARA DENISE, QUE SE LEVANTA E VAI ATÉ O PALCO; ELA ESCOLHE DEMORADAMENTE UMA MÚSICA NA LISTA E CANTA UMA CONTINUAÇÃO DA MESMA)

DENISE
Senhor, me ajude na exterminação
Desse macho fracote que precisa de uma mão
Me perdoe eu faço parte, da regeneração
Senhor, me ajude na exterminação

Senhor, desculpe, por fazer o lobo mau
Eu cansei de ser a mocinha com um beijo no final
Considere o que eu faço, meu instinto natural
Senhor, me perdoe, é defesa social.

(O BÊBADO E MAURO APLAUDEM VIGOROSOS; ANTÔNIO SAI UM POUCO ASSUSTADO)

BÊBADO
Aquela bicha reclamou que você apalpou o pau dele, foi?

DENISE
Vocês homens imaginam coisas sexuais com a gente e depois a gente tem que lidar com o drama.

BÊBADO
Você é bem bonitona pra tá aqui essas horas no Bar do Mau.

MAURO
Pode entrar homem e mulher sim...

DENISE
Eu sou bem bonitona, é? Eu faço seu tipo?

BÊBADO
Faz. Faz meu tipo total.

(DENISE SENSUALIZA PARA O BÊBADO QUE RI EXCITADO; NO AUGE DA CENA, DENISE ENFIA UMA FACA NO PESCOÇO DO BÊBADO)

MAURO
Puta que o pariu! Puta que o pariu, moça!

DENISE
É Denise. Sai! Vai! Sai, fecha o bar.

MAURO
Eu vou chamar a polícia...

(DENISE SEGURA MAURO COM A FACA; O BÊBADO MORRE DEVAGAR NO CHÃO)

DENISE
Não vai chamar ninguém. Eu não estou aqui por você, ou por aquele moleque cantor. Eu só estava esperando o momento. Vocês não são todos iguais não. Eu deixo ir embora quem presta um pouquinho, pelo menos. (ELA SOLTA MAURO) Não vai chamar a polícia não. Esse aqui... esse aqui é um que não pode viver mais em sociedade, perdeu a chance que teve.

MAURO
O que... o que ele fez pra senhora?

(SILÊNCIO; DENISE TERMINA DE MATAR O BÊBADO)

DENISE
Não é problema seu. Era problema de uma garotinha e eu vim aqui pra resolver. E está feito.

(SILÊNCIO)

MAURO
Se está feito, está feito. E eu achando que ia ser uma noite com umas musiquinhas, e um pouco de álcool... No fim, todo mundo sabe que isso aqui é lugar de tristeza camuflada em distração.

DENISE
É. É difícil eu concordar com um homem de boteco. Mas é. Você tem razão dessa vez,... homem.

(ESCURIDÃO)


CENA FINAL

(DENISE FINALIZA O ESPETÁCULO CANTANDO, ENQUANTO OS OUTROS HOMENS ESTÃO AJOELHADOS AO SEU LADO)

DENISE
Se houve um tempo de homens bons
Com suavidade na voz
Com palavras bonitas
Se houve um tempo de amor
E servia a canção
E a canção era nobre
Se existiu...
Isso acabou.

Eu tinha um sonho de viver
A esperança existia
Acreditava no perdão
Pensei que deus ajudaria

Eu era jovem, sem temor
E eu amava a cantoria
Então homem fez terror
Perdi o gosto e a alegria

Mas a noite então caiu
E com ela veio a fera
Perdoar me destruiu
E eu lutei como lutei...

Ele morreu porque eu matei
E me encheu de euforia
A garotinha eu salvei
Vinguei com essa melodia.

TODOS
Infelizmente o rei é rei
E a rainha é rainha

DENISE
Pela balança eu me vinguei

TODOS
E nem chegou perto ainda

DENISE
Eu tinha um sonho de viver
Mas a vida foi mais forte
E eu lutei como lutei
A vida me tornou
O rei.

(VERSÃO DA MÚSICA “I DREAMED A DREAM” DO MUSICAL “OS MISERÁVEIS”; SILÊNCIO)

MAURO
Bom, chega de karaokê por hoje. E chega de... sangue. Chega de sangue por hoje, chega. Acabou. Paguem a conta e vamo todo mundo embora!

DENISE
Sou eu quem falo por último essa noite. (PAUSA) Acabou. Fim do show.

(ESCURIDÃO)

FIM





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