MANUAL
DE COMO SOBREVIVER NO INÍCIO DO SÉCULO XXI
De Gabriel Tonin
PARA TRÊS ARTISTAS.
CENA
1
TODOS
Manual de como sobreviver no início do século XXI,
cena um. Não use drogas.
(OS TRÊS FUMAM, BEBEM E SE DROGAM)
TODOS
A Madona
já fumou maconha
Até
a minha mãe que hoje é da Congregação
A verdade
é que a vergonha
É a
hipocrisia e uma má educação
ARTISTA 1
Todo mundo sabe, é óbvio. Todo mundo precisa de uma
fuga. Eu invejo profundamente aquela pessoa que consegue ver DEUS so-bri-a-mente.
TODOS
Essa
fuga é a questão
O bicho
ser-humano quer ação, se aventurar
E a
cachola, o coração
Todo
mundo sabe sobre a dita depressão
ARTISTA 2
Todo mundo chega num momento da vida que não sabe o
que fazer, que fica perdidaço. Tem gente que consegue colocar a fé numa coisa e
simplesmente fim. Essa pessoa merece um prêmio por não se incomodar com a falta
de respostas da existência.
TODOS
É pior
que um dramalhão
Essa
juventude tá querendo procurar
Um
motivo, uma razão
De
existir num mundo cheio
Em
meio a solidão
ARTISTA 3
Eu também invejo a pessoa que não se droga pra
conseguir se divertir. Acho o cúmulo esses vermes que ficam enchendo a cara de
cachaça legalmente por aí. Le-gal-men-te.
TODOS
Isso
que é uma bosta, irmão
Quem
que foi que decidiu então essa puta questão?
Não
funciona, nem quando deus tentou
Quem
escolhe o que pode e o que não pode?
Não,
senhor?
A liberdade de expressão e de escolhas deveria ser
inquestionável, desde que a sua expressão e escolha não afete a expressão e a
escolha de um outro ser humano.
ARTISTA 1
Porém, pra se viver no início do século XXI...
ARTISTA 2
É melhor que você só use as drogas que o governo
deixa.
ARTISTA 3
Se você não quiser virar um criminoso por comer uns
cogumelos – que nascem nas-bos-tas-das-va-cas.
TODOS
Cena 2.
CENA
2
TODOS
Tente viver a vida, mas não muito.
ARTISTA 1
Reforma da previdência.
ARTISTA 2
(INTERROMPE) Cena três, não fale de política.
ARTISTA 1
Não! Tem que falar. O momento desse momento é agora.
A gente tem que falar sim sobre o que é o trabalho e a vida, e de quanto tudo
isso é desigualmente dividido. Ainda que se a gente soubesse que faltam
recursos, até tudo bem, mas o foda é saber que tem gente com vários hectares de
terras e mais terras enquanto tem gente que não tem direito de um centímetro.
Um-centímetro.
ARTISTA 2
Esse seu discurso todo é exatamente o que não
deveria ser feito no início do século XXI. Tá perigoso, cê sabe.
ARTISTA 3
Talvez no início lá no início do século XXI até tava
dando pra poder discutir isso. Mas hoje, final da segunda década e início da
terceira, eu acho que eu tenho medo de morrer sim.
ARTISTA 1
Exagero! Não tá tão assim.
ARTISTA 3
Você não acha que não pode sair alguém daqui hoje e
sair falando que a gente tá fazendo balbúrdia, divulgando um manual que faz
panfletagem pras drogas, na primeira cena? Eu tenho medo de morrer.
ARTISTA 2
Mas ué, todo mundo morre também, né?
ARTISTA 3
Por isso que eu estou aqui.
ARTISTA 1
Façam o que eu digo, não briguem por política se
você quer sobreviver no início do século XXI, mas não é isso que eu faço.
ARTISTA 2
Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço,
claro.
ARTISTA 3
Isso significa que logo você morre. Mas...
TODOS
Todo mundo morre, ué.
Vamo
falar de corrupção
Não
sobra um, meu irmão
Vamo
falar de corrupção
Não
sobra um.
Cena três:
ARTISTA 2
Agora de verdade...
CENA
3
TODOS
Não seja LGBTTQI+.
ARTISTA 1
Sigla horrível.
ARTISTA 2
Inclusão, meu bem.
ARTISTA 3
A gente ainda tá falando de política, vocês sabem
disso, né?
ARTISTA 1
A grande questão é que tava até que calmo com todo
mundo no armário. Quando o armário explodiu geral, o rebate foi momentâneo.
ARTISTA 2
A resposta do macho reprimido para essa liberdade
sexual, e a feminilidade toda, foi a violência. Então quanto mais livres, e
quanto mais feminilidade, mais violência.
ARTISTA 3
É o combate da pós-verdade. Depois que se descobriu
que vivemos num aglomerado de estrelas, tudo ficou muito aberto nas
possibilidades de respostas para a existência. E aí, os conservadores querem
conservar as respostas já prontas, era óbvio que isso ia acontecer. Abriu o
armário, veio a onda pra tentar fechar.
ARTISTA 1
Um equilíbrio da evolução um tanto cruel.
ARTISTA 3
É que estamos vivendo o agora, claro. Mas num
alcance de décadas, eu creio na evolução.
ARTISTA 2
Eu acho que essa questão vai perdurar. Se você quer
sobreviver no século XVIII, XIX, XX e XXI, não seja um LGBTTQI+.
(ELES CANTAM A MÚSICA “ROBOCOP GAY” DOS MAMONAS ASSASSINAS,
LANÇADO DO FINAL DO SÉCULO XIX)
TODOS
Um
tanto quanto másculo
Com
M maiúsculo
Vejam
só os meus músculos
Que
com amor cultivei
Minha
pistola é de plástico
Em
formato cilíndrico
Sempre
me chamam de cínico
Mas
o porquê eu não sei
O
meu bumbum era flácido
Mas
esse assunto é tão místico
Devido
ao ato cirúrgico
Hoje
eu me transformei
O
meu andar é erótico
Com
movimentos atômicos
Sou
uma amante robótico
Com
direito a replay
Um
ser humano fantástico
Com
poderes titânicos
Foi
um moreno simpático
Por
quem me apaixonei
E
hoje estou tão eufórico
Com
mil pedaços biônicos
Ontem
eu era católico
Ai,
hoje eu sou um gay
Abra
sua mente
Gay
também é gente
Baiano
fala oxente
E
come vatapá
Você
pode ser gótico
Ser
punk ou skinhead
Tem
gay que é Muhamed
Tentando
camuflar
Allah
meu bom Allah
Faça
bem a barba
Arranque
seu bigode
Gaúcho
também pode
Não
tem que disfarçar
Faça
uma plástica
Aí
entre na ginástica
Boneca
cibernética
Um
robocop gay
Um
RoboCop Gay, eu sei, eu sei, eu sei, é um Robocop Gay
Ai
como dói!
ARTISTA 1
Século passado...
ARTISTA 2
“Um rapaz delicado e alegre, que canta e requebra é
demais.”
ARTISTA 3
Belchior previu a clássica frase “Agora Pabllo
Vittar foi longe demais.
(ELES RIEM E REPENTINAMENTE FICAM SÉRIOS; ELES SE
BEIJAM NUM BEIJO TRIPLO)
TODOS
Não seja e não fale sobre LGBTTIQ+. Cena 4:
CENA
4
ARTISTA 1
Se você não quer morrer, sendo mulher ou homem ou
que seja, sejam submissos.
ARTISTA 2
Trabalhe quieto e aceite receber pouco.
ARTISTA 3
Trabalhe pra caralho por merreca!
ARTISTA 1
Pra não ficar desempregado.
ARTISTA 2
Pra não ser considerado vagabundo.
ARTISTA 3
E matar seus filhos de fome.
ARTISTA 1
Assuma seus filhos! Acabou a vida pra você,
trabalhador com filhos. Estamos no momento que a mamata acabou pra você. É só
trabalhar mesmo, só isso.
ARTISTA 2
Até o fim da vida.
ARTISTA 3
Seja morrendo jovem ou morrendo velho.
ARTISTA 1
E é claro que o mundo precisa de braço, precisa de
trabalho.
ARTISTA 2
A grande questão...
ARTISTA 3
A porra da enorme questão...
TODOS
É que o peso do mundo não está dividido em braços
iguais e muito menos em contas bancárias justas pelos braços trabalhados.
Dispencados
pelos turnos cansativos
Trabalhados
só com um motivo
Ter
dinheiro pra comprar um pirulito
E também
anti-depressivos
Será
que vai ter um amor
Que
dure toda uma semana?
Será
que quem não faz amor
É os
que crê na terra plana?
É tudo
tão pequenininho
Tudo
é muito curioso
Tempo
curtinho
Eu
sempre me enxergo no outro
Pequenininho
O mundo
é misterioso
E o
trabalhinho
Tem
que ser um mínimo gostoso...
Laiá,
laiá, laiá...
CENA
5
TODOS
Cena cinco. Não nasça mulher.
ARTISTA 1
Como dito anteriormente, tudo que envolve o feminino
incomoda o conservadorismo patriarcal.
ARTISTA 2
Nascer mulher é um risco. Pense bem antes de
escolher.
ARTISTA 3
Mulherada saiu do armário, e veio a onda tentar
fechar ele de novo. Mas a resistência persiste! É resistente o chute na porta
da mulherada!
ARTISTA 1
É resistente de ambos os lados, infelizmente.
ARTISTA 2
O macho comum, sentindo a perda de poder do
patriarcado com a inclusão da mulher nas escolhas da casa, da sociedade, do
próprio corpo, criou um ser estranho, um ser que passou a odiar a mulher
literalmente, mesmo sentindo atração sexual.
ARTISTA 3
Um revide histórico e patético, na luta do
equilíbrio. Não seja esse tipo de macho, mas se você quer sobreviver no início
do século XXI...
(SILÊNCIO)
ARTISTA 1
Não, não seja esse macho nem tentando sobreviver.
Morra com dignidade, mas não seja esse macho.
ARTISTA 2
Concordo.
ARTISTA 1
Em hipótese alguma.
ARTISTA 3
Sim. Tem razão. Mas mais fácil mesmo é não nascer
mulher.
ARTISTA 1
Sim, sem dúvida.
ARTISTA 2
Não nasça mulher.
TODOS
Não
há lugares onde não apareçam
Elas
existem, homens nunca esqueçam
Mesmo
nos dias tristes e felizes
Da
vagina foi que cê nasceu
Se
cê tem uma a mantenha por perto
Mas
se ela quiser se separar
Entenda
que o amor é sobre o respeito
Não
pense só pela sua vontade
Amigas,
femininas
Tão
presentes na minha vida
Amigas,
mesmo eu não sendo gay
E nunca
jamais você será corrompida
Porque
a rainha é melhor que o rei!
Amigas,
femininas
Tão
presentes na minha vida
Amigas,
mesmo eu não sendo gay
E nunca
jamais você será corrompida
Porque
a rainha é melhor que o rei!
CENA
6
TODOS
Cena seis. Tenha pai e mãe presentes e nasça branco!
ARTISTA 1
Essa é definitivamente a parte do manual de
sobrevivência no início do século XXI mais importante. Não seja nada além do
que branco.
ARTISTA 2
E tenha os pais presentes e brancos e bonitos!
ARTISTA 3
Acho que todo mundo já entendeu a ironia disso tudo,
né? Mas é real. É mais provável que você tenha uma vida mais tranquila e leve
se você for branco e se tiver uma família bem estruturada é um bônus muito
ótimo.
ARTISTA 1
Se você for negro, pobre, mulher, lésbica e ainda
nem tiver pai e mãe que te ama... bicha, cê tá ferrada.
ARTISTA 2
Jesus vai voltar uma mulher negra, lésbica e da
periferia. Vocês vão ver.
ARTISTA 3
Às vezes, até já voltou e já morreu de novo...
(SILÊNCIO)
ARTISTA 1
Se você quer sobreviver no início do século XXI não
seja militante e não levante bandeiras e não comente sobre os crimes políticos
aqui do Brasil.
ARTISTA 2
Tente não ser chato com aquele seu tio racista que
deu risada quando viu a notícia de cinco jovens negros metralhados.
ARTISTA 3
Não faça problematizações em encontro de família
nenhum, se você tiver família ainda depois dessa polarização toda, claro.
(SILÊNCIO)
TODOS
O caralho! “Fogo nos racistas” é uma frase não
literal, mas ao mesmo tempo é literal sim! Fogo nos racistas, porra!
Nós
brancos, já somos racistas
Nem
vem tirar o cu da pista
Ganhamos
todo o privilégio
Então
temos contas à pagar!
E mesmo
o branco que é pobre
Você
também é um oprimido
Mas
o negro está num outro ponto de vista
Racistas,
o fogo vai chegar!
Precisa
aprender a equilibrar!
Se
apresse, porque vai demorar...
CENA
7
TODOS
Sem ironia dessa vez. Cena sete: Lute pela
democracia e justiça sempre.
ARTISTA 1
Se fosse pra ser na pegada do que a gente tava
fazendo, a fala seria “Não lute pela democracia e justiça, peça a ditadura”.
Achamos realmente que se você quer sobreviver como gente feliz nesse atual
governo de dois mil e dezenove, é uma forma de sobreviver, ficar calado, não
fazer esse espetáculo com um beijo de três pessoas.
ARTISTA 2
Mas todo mundo morre. Não é? E... por mais duro que
isso seja, é necessário continuar dando chute na porta. Porque eu quero sair,
entendem? Eu quero sair desse armário muito louco e quero saber o que é o mundo
que eles tentam esconder!
ARTISTA 3
A gente não parou um segundo de falar de política.
TODOS
Sobrevivência é falar de política.
O
teatro é espaço de política na mesma proporção que uma prefeitura é
Lá
no cinema, escola, tudo é política, precisa de atenção, só não enxerga quem não
quer
Você
nos fala que nos fazemos de vítima, dá pra te citar uma lista de porquê você é
mané
Porque
o teatro tem a mesma importância, veja toda essa balança, Dionísio é uma
criança, Dionísio é uma mulher!
(OS ARTISTAS AGRADECEM)
ARTISTA 1
Por fim, qual seria então o melhor conselho pra se
viver nesse atual cenário político?
(OS ARTISTAS FOGEM CADA UM PRA UM LADO E A ENCENAÇÃO
SE ENCERRA BRUSCAMENTE; AS LUZES DA CASA SE ACENDEM, MOSTRA-SE UMA CORRERIA DE
BASTIDORES DOS ARTISTAS SE ARRUMANDO PRA IR EMBORA E DESLIGAR OS EQUIPAMENTOS;
ELES SE DESPEDEM DO PÚBLICO E VÃO EMBORA DO TEATRO DESESPERADOS)
FIM
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