CRISE
DE (R)EXISTÊNCIA
De Gabriel Tonin
PERSONAGENS:
DADO, 29 anos
MARCEL, 29 anos
FÁTIMA, 49 anos
IRENE, 72 anos
JOÃO, 49 anos
REPÓRTER, voz
SIMONE, 22 anos
UMA CASA COMUM CLASSE MÉDIA BRANCA.
CENA
1
(QUANDO AS LUZES ACENDEM DADO ESTÁ AOS PRANTOS, COM
PROBLEMAS PRA RESPIRAR, NUMA TÍPICA CRISE DE PÂNICO; FÁTIMA, IRENE E JOÃO
TENTAM ACALMÁ-LO; MARCEL DEBOCHA EM UM CANTO)
MARCEL
Tem que aceitar, vai ter que aceitar...
DADO
Vai tomar no meio do seu cu, seu filho da puta!
FÁTIMA
Calma, calma, pelo amor de deus! (PARA MARCEL) Vai
embora, Marcel, pelo amor de deus!
IRENE
Dá logo o remédio pra ele.
JOÃO
Onde tá?
DADO
Eu já tomei, já tomei um monte!
FÁTIMA
Filho, calma...
DADO
Ai, mãe... tá doendo...
FÁTIMA
Calma, bebê... Respira fundo. Não é lá grande coisa,
não fique assim.
DADO
Você não entende... vocês todos ajudaram nessa
merda!
IRENE
Eu não, eu não tenho mais idade, não coloque a culpa
em mim.
MARCEL
Tem que aceitar, bicho. Deixa de drama. Ele não vai
matar você.
(DADO AVANÇA VIOLENTAMENTE EM MARCEL; OS OUTROS O
IMPEDE; GRITARIA)
MARCEL
Tá vendo? Depois a gente que é violento.
DADO
Você é burro, Marcel! Burro! Ignorante!
MARCEL
Pode chorar à vontade. Já foi. Acabou.
FÁTIMA
Cala a boca, Marcel!
MARCEL
Ué. Ele tá com esse drama aí.
IRENE
Vai pra lá, Marcel. Vai!
DADO
Eu não consigo entender como a gente nasceu junto,
cara, não é possível. O que aconteceu com você?
MARCEL
O que aconteceu comigo? O que aconteceu com você?!
Se enxerga. A família inteira tá contra você, fio. Só você que tá se achando no
direito de ficar aí se fazendo de vítima. Acabou a farra, drogadinho.
(DADO VAI TENTAR BATER EM MARCEL DE NOVO; OS OUTROS
O IMPEDEM)
FÁTIMA
Para! Chega!
DADO
Mãe, fala pra ele ir encher o saco pra lá!
MARCEL
Eu ainda tenho o direito de frequentar a sala da
minha casa. É ou não é uma democracia?
FÁTIMA
Aqui não é democracia porra nenhuma! Eu que mando.
Vai pro quarto, Marcel!
JOÃO
Vá dar uma volta, vai! Você fica provocando.
MARCEL
Ah, vá, vocês ficam pagando terapia pro bonito
continuar fazendo essa cena aí.
IRENE
Chega! Já ganhou! Ganhou, Marcel! Tá feliz? Ganhou e
perdeu, Eduardo. Tem que aceitar perder também. Chega! Acabou! Vocês brigaram o
ano inteirinho por causa dessa besteira e agora acabou e eu quero um pouco de
paz nessa casa. Tem como? Eu logo morro e vocês ficam livres de mim, mas chega!
Por favor! Tá bom? Tá bom?
(IRENE SAI PRA COZINHA)
MARCEL
Você ouviu a vó.
JOÃO
Para de provocar, porra! Vai pra lá.
(MARCEL OBEDECE DEBOCHANDO; ELE SAI)
DADO
A culpa é sua, mãe.
JOÃO
Ah, meu deus do céu.
DADO
Sua também. Vocês fingem que não ligam ou não ligam
mesmo?
FÁTIMA
Ai, Marcel, tenho mais o que me preocupar... Eu
também tô cansada, filho...
JOÃO
Vou na padaria.
(JOÃO SAI; FÁTIMA PEGA AS MÃOS DE DADO)
FÁTIMA
Vale a pena ficar trazendo essa briga aqui em casa,
filho? Esses caras não estão nem aí pra você, Dado. Nem pro seu irmão.
DADO
Mãe...
FÁTIMA
Eu já tive a sua idade. Você não vai conseguir mudar
o mundo, eu também já tentei e aí vocês chegaram e eu caí na realidade. É a
gente pela gente, ninguém vai mudar nada.
DADO
Eu não perdi a esperança de mudar.
FÁTIMA
Ué, então por que você é o que tá chorando aí,
encolhido, sofrido, enquanto o Marcel tá debochando da sua cara?
(DADO ABRAÇA A MÃE)
FÁTIMA
Se tem esperança aí dentro de você, coloca ela na fé
em deus.
DADO
Tá bom, mãe.
FÁTIMA
Melhorou?
(SILÊNCIO; DADO DÁ COM OS OMBROS)
FÁTIMA
Acabou, Dado. Vamo sossegar agora.
DADO
Você não entende, é agora que vai começar. É por
isso que eu tô assim. Isso tudo reflete na gente também. E se você tivesse um
pouco de noção do que significa o plano desses malucos...
(FÁTIMA DESISTE; SE LEVANTA PRA SAIR)
DADO
Mãe, isso tudo reflete na gente aqui também. Só que
a senhora só vai perceber a hora que bater na sua bunda. E meu medo é que não
dê tempo.
FÁTIMA
Filho, você fala como se fosse um filme! Vai entrar
um, vai sair outro, e a gente vai morrer e vai continuar tudo do mesmo jeito.
DADO
Não. As coisas vão mudando porque as pessoas lutam.
FÁTIMA
Mas essa pessoa tem que ser você, Eduardo? Poxa. Com
tanto milhão de gente, justo você!
(SILÊNCIO)
DADO
Pois é. Acho que justo eu.
(SILÊNCIO)
FÁTIMA
Eu vou ajudar sua vó. Você vai jantar ou vai sair?
DADO
Vou jantar e vou sair.
(FÁTIMA SAI; DADO PEGA O CELULAR E UM FOCO DESTACA A
CENA; ELE VIDRA NO CELULAR POR UM LONGO TEMPO, EM SILÊNCIO, NUMA LONGA
DISCUSSÃO VIA REDE SOCIAL; ESCURIDÃO VAGAROSA)
CENA
2
(AMANHECE; DADO ESTÁ DEITADO NO SOFÁ AINDA NO
CELULAR; FÁTIMA ENTRA DE PIJAMAS)
FÁTIMA
Bom dia, filho.
DADO
Bom dia, mãe.
FÁTIMA
Vou fazer café.
(ELA SAI PRA COZINHA; DADO CONTINUA VIDRADO NA
DISCUSSÃO NO CELULAR; JOÃO ENTRA SE VESTINDO PRA TRABALHAR)
JOÃO
Ficou a noite inteira nisso aí?
DADO
Não.
JOÃO
Café tá pronto?
(JOÃO SAI PRA COZINHA; DADO CONTINUA VIDRADO NO
CELULAR; NUM MOMENTO ELE SAI CORRENDO PRO QUARTO E LOGO VOLTA COM UM LÁPIS DE
OLHO; OLHANDO O REFLEXO PELO CELULAR ELE ESCREVE O NÚMERO 38 NA TESTA; JOÃO
RETORNA APRESSADO, ATRASADO)
JOÃO
Vai sair já cedo?
DADO
Não.
(JOÃO SAI PRO BANHEIRO; DADO TIRA UMA SELFIE COM
SERIEDADE E POSTA; ELE SE SATISFAZ POR UM SEGUNDO E CONTINUA O DABATE ONLINE)
FÁTIMA
(OFF) Café tá pronto.
(JOÃO PASSA CORRENDO DO BANHEIRO PRA COZINHA)
JOÃO
Tô atrasado.
DADO
Não.
(SILÊNCIO; UM GALO CANTA AO FUNDO; O SOL BATE NA
JANELA; DADO CONTINUA NO CELULAR; JOÃO ENTRA TOMANDO O CAFÉ APRESSADO)
JOÃO
Leva o copo lá na cozinha pro tio? Tô atrasadíssimo.
Tchau.
(JOÃO DEIXA O COPO E SAI)
DADO
Não.
CENA
3
(UMA MÚSICA TOCA ALTO NO QUARTO; DADO LIMPA A TESTA
ATÉ TIRAR O 38; MARCEL ENTRA CANTANDO, FAZENDO UMA CENA DE FELICIDADE,
PROVOCANDO DADO)
MARCEL
Olha
que coisa demais
Quem
tá fudido pra caramba?
Da
outra vez eu me fudi
Mas
vamo ver quem é que manda!
(DADO FINGE NÃO LIGAR)
MARCEL
Limpou a testinha?
FÁTIMA
(OFF) Marcel! Vai começar?
MARCEL
Eu vi a fotinha que você postou. Você pode ter me
bloqueado, mas eu tenho meus meios.
DADO
Foda-se.
MARCEL
Cof, cof, vou tomar o meu cafezinho ali, porque hoje
é um magnífico dia pra começar a revolução.
DADO
Pode acreditar que vai ter resistência.
MARCEL
(RI) Aceita, bicho. Não era isso que você falava pra
mim da outra vez?
(FÁTIMA ENTRA)
FÁTIMA
Vão começar vocês dois de novo?
DADO
Eu tô quieto, fala pra ele.
FÁTIMA
Marcel, vocês vão começar e vão acordar a vó.
MARCEL
Ih, tá bom. Meu deus... (SAI PRA COZINHA)
FÁTIMA
Vai tomar café?
DADO
Já vou.
FÁTIMA
Não dormiu ainda, né, Eduardo?
DADO
Não.
(FÁTIMA SAI PRO QUARTO; MARCEL VOLTA COM DOIS PÃES E
TOMANDO CAFÉ; ELE SE SENTA E AMBOS FICAM EM SILÊNCIO UM TEMPO LONGO; FÁTIMA
PASSA EM SILÊNCIO DO QUARTO PRA COZINHA; DADO CONTINUA NA INTERNET, ENQUANTO
MARCEL COME OS PÃES; FÁTIMA VAI DA COZINHA PRO BANHEIRO CARREGANDO UM BALDE E
UM RODO; MARCEL TERMINA DE COMER OS PÃES, PEGA O COPO QUE JOÃO DEIXOU E SAI PRA
COZINHA EM SILÊNCIO; DADO CONTINUA NO CELULAR; ELE BOCEJA; ESCURIDÃO)
CENA
3
(OUTRO DIA; GRITARIA; QUANDO AS LUZES ACENDEM MARCEL
E DADO ESTÃO SE PEGANDO NO SOCO; OS OUTROS TENTAM SEPARAR)
FÁTIMA
Chega! Chega! Pelo amor de deus!
IRENE
Vocês querem eu morrer! Para!
DADO
Morfético!
MARCEL
Violento! Não aguenta dois minutos!
DADO
Vocês não vão nos calar!
MARCEL
Ah, mas não é gostoso? No cu dos outros é refresco.
FÁTIMA
Chega!
JOÃO
Segura, Marcel, cacete, segura!
MARCEL
Tá bom, tá bom, parei. Fala pra ele segurar a
raivinha dele aí.
JOÃO
Você fica provocando, bicho!
MARCEL
Ah, é. No cu dos outros é refresco. Vocês tem
memória curta, né?
JOÃO
Mas você não é melhor que ele? Você não é, o
sabichão?
MARCEL
Ele que se acha o sabichão!
IRENE
Não tem nenhum melhor que o outro aqui. Vocês vieram
da mesma barriga da sua mãe! Chega dessa competição! Vocês são homens, adultos!
Arrumem um emprego, vão ler um livro.
DADO
Eu leio, ele que não lê.
MARCEL
Ah, lê sim. Lê fanfic no Facebook.
DADO
Olha quem fala! Venera youtuber.
MARCEL
Você que venera youtuber!
FÁTIMA
Chega! Chega, chega, chega, chega! Porra! Cansei!
(OS PERSONAGENS MECANICAMENTE OLHAM PARA O PÚBLICO
NUM QUEBRA ESTRANHA; ELES APENAS OBSERVAM A PLATEIA POR ALGUM TEMPO)
TODOS
Qual
lado que ele pende?
Qual
verdade que ele sente?
Como
foi que essa gente
Não
se encosta em comunhão?
Qual
lado que é o crente?
Quem
é o combatente?
Como
foi que o presente
Virou
tanta discussão?
Qual
o problema dessa gente?
Defende
quente a correnteza
E
com um misto de tristeza
Foi
virar um pastelão
Qual
lado que ele pende?
Qual
verdade que ele sente?
Como
foi que toda essa gente
Perdeu
o próprio irmão?
DADO E MARCEL
Pra mim é simples. Na vontade dele, eu tava
morto.
(A CENA RETORNA ESTRANHAMENTE; OS DOIS SE PEGAM NO
SOCO E OS OUTROS TENTAM SEPARAR)
IRENE
Vocês querem me matar!
DADO
Viado! Demônio!
MARCEL
Enrustido!
FÁTIMA
Chega!
(ESCURIDÃO)
CENA
4
(QUANDO AS LUZES ACENDEM IRENE ESTÁ SENTADA
TRICOTANDO E ASSISTINDO TELEVISÃO; DEPOIS DE UM TEMPO DADO SAI DO QUARTO)
DADO
Benção, vó.
(DADO BEIJA IRENE E SAI PRA RUA)
IRENE
Não vai voltar tarde!
(IRENE CONTINUA ASSISTINDO TELEVISÃO E TRICOTANDO;
MARCEL ENTRA DA RUA)
MARCEL
Benção, vó.
IRENE
Já voltou cedo?
MARCEL
Vou sair de novo.
IRENE
Não volte tarde.
MARCEL
Vou sair com a Simone. Vou tomar um banho.
IRENE
Use camisinha que se você engravidar essa menina eu
não quero nem saber.
MARCEL
Aposto que se eu engravidasse você ia virar bisa
coruja.
IRENE
Nem pense nisso, Marcel! Eu não tô de brincadeira!
(MARCEL SAI PRO BANHEIRO RINDO; IRENE SE INTERESSA
POR UMA NOTÍCIA NA TV E AUMENTA O SOM)
REPÓRTER
Um torcedor do Corinthians foi assassinado com treze
facadas durante a festa de comemoração do Palmeiras, na baixada Santista esse
fim de semana.
IRENE
Matando por causa de futebol... ô, senhor!
(A CAMPANHIA TOCA; IRENE ABAIXA A TV E VAI ATENDER;
É SIMONE)
IRENE
Oi, Simone, entre, o Marcel tá no banho.
SIMONE
Obrigada.
IRENE
Quer um café?
SIMONE
Obrigada, não precisa não.
IRENE
Marcel! Simone tá aqui!
MARCEL
(OFF) Já vou sair!
IRENE
Anda, anda! Quer tomar um café, menina? Comer um
pão?
SIMONE
Obrigada, não quero não, dona Irene. Acabei de
comer.
IRENE
Tudo bem. Sente que ele demora.
(SIMONE SENTA)
IRENE
E sua mãe?
SIMONE
Tá bem. Tudo bem.
IRENE
Fale que eu mandei um beijão pra ela.
SIMONE
Falo sim.
IRENE
E seu pai?
SIMONE
Eu não tenho, dona Irene.
IRENE
Ah, é verdade! É igual os meninos. A mãe, o tio e os
netos. Tudo igual você, tudo a mesma história.
SIMONE
É, é comum mesmo.
(JOÃO CHEGA DO TRABALHO)
JOÃO
Benção, mãe.
IRENE
Chegou tarde.
JOÃO
Muita coisa pra fazer.
IRENE
Fátima ainda não chegou também.
JOÃO
Foi na academia. Oi, Simone.
SIMONE
Oi.
JOÃO
Marcel! Preciso usar o banheiro! Vai logo!
(JOÃO SAI PRA COZINHA; IRENE SE INTERESSA PELA TV E
AUMENTA O SOM)
REPÓRTER
... o ator, que se considera conservador e cristão,
foi agredido por manifestantes enquanto fazia uma performance no meio da
manifestação da oposição na Paulista...
IRENE
Essa Paulista só acontece desgraça.
SIMONE
Eu gosto de ir lá às vezes, quando eu tenho
dinheiro.
IRENE
E esses artistas...
SIMONE
Sim, esse artista, sim.
(UM BARULHO NO BANHEIRO)
MARCEL
(OFF) Eita, porra!
IRENE
O que foi isso?
MARCEL
(OFF) Queimou o chuveiro de novo!
IRENE
João! Vá no mercado que queimou a resistência de
novo!
(MARCEL ENTRA DE TOALHA)
MARCEL
Oi, Si.
SIMONE
Oi.
MARCEL
Já volto. Cinco minutos.
(ELE DÁ UM BEIJO NA TESTA DELA E SAI PRO QUARTO)
REPÓRTER
Terreiro da umbanda é destruído por traficantes
evangélicos. O grupo é conhecido também por serem divulgadores do terra
planismo.
(SIMONE E IRENE SE OLHAM E SUSPIRAM EM SILÊNCIO; UM
COMERCIAL COMEÇA E IRENE PROCURA OUTRO CANAL; DADO ENTRA APRESSADO)
IRENE
Ué, já?
DADO
Esqueci um negócio.
SIMONE
Oi, Dado.
DADO
Oi.
SIMONE
Tudo bem?
DADO
Você vai me encher agora também?
SIMONE
Eu? Não!
DADO
Não me enche então. (SAI)
SIMONE
Nossa.
IRENE
Se preocupa não, menina, é assim mesmo. Todo santo
dia.
(MARCEL ENTRA)
MARCEL
Pronto. Vamos.
IRENE
Não voltem tarde, vai preocupar a sua mãe e a sua
mãe.
MARCEL
Tá, vó. Tchau.
IRENE
Mande um beijo pra sua mãe, Cibele.
MARCEL
É Simone, vó.
IRENE
Ah, Cibele era a outra, né? Essa é mais bonita
mesmo.
MARCEL
Tchau, vó.
IRENE
Tchau.
(DADO SAI DO QUARTO E TODOS SE ENCONTRAM NA PORTA DE
SAÍDA; CONSTRANGIMENTO GERAL; POR FIM, MARCEL DEIXA DADO SAIR NA FRENTE E ELES
SAEM ATRÁS; IRENE CONTINUA PROCURANDO OUTRO CANAL; ESCOLHE A MISSA E CONTINUA
TRICOTANDO EM SILÊNCIO; UM FOCO DESTACA IRENE POR UM LONGO TEMPO; ESCURIDÃO
VAGAROSA)
CENA
5
(SIMONE ESTÁ EM UM FOCO, NUM PALANQUE, COM UM
MICROFONE DISCURSANDO PRA UMA MULTIDÃO)
SIMONE
Vencer uma vez não significa que a gente vai baixar
a guarda. Muito pelo contrário. É agora que eles vão vir com tudo pra derrubar
tudo que a gente construir de novo. Eles não vão se entregar tão facilmente.
São eles - a gente precisa lembrar disso – que não respeitaram a democracia no
passado, que querem se manter no poder à todo custo! E se todo mundo tem o
direito de ter arma agora, eles sabem que a gente se armou, igual eles! E isso
não vai ficar bem, a gente sabe disso! Mas a gente não vai - a gente não pode
pensar em parar de lutar! Mais do que nunca! Avante, companheiros e
companheiras!
(GRITO DA MULTIDÃO EM APOIO; MARCEL SOBE NO PALANQUE
E A BEIJA; O FOCO DE SIMONE APAGA E OUTRO FOCO DESTACA DADO, EM OUTRO PALANQUE)
DADO
Eles podem ter vencido dessa vez, companheiros! Mas
a verdade prevalecerá e a justiça sempre vence no final, mesmo que alguns
inocentes morram no caminho! Se eles querem guerra, eles vão ter guerra! E a
gente vai terminar com ela, a gente vai acabar com isso tudo! Nós não vamos permitir
que eles destruam as nossas famílias de novo, que eles continuem com a
depravação na cultura, no assistencialimo demagogo, com a corrupção e a mamata!
Agora que todo mundo tem o direito de ter arma, a gente se armou, e a gente
sabe que esses bandidos também se armaram, vejam que hipócritas! E isso não vai
ficar bem, a gente sabe disso. Mas a gente não vai – a gente não pode se quer
pensar em parar de lutar! Mais do que nunca! Avante, companheiros! E também as
companheiras!
(GRITO DA MULTIDÃO EM APOIO; O FOCO DE DADO SE
APAGA; OUTRO FOCO DESTACA FÁTIMA LAVANDO ROUPA ENQUANTO JOÃO TOMA UMA
CERVEJINHA, AMBOS EM SILÊNCIO POR UM LONGO TEMPO; ESCURIDÃO; AINDA NO ESCURO,
IRENE COMEÇA UMA MÚSICA; AS LUZES A DESTACA AOS POUCOS)
IRENE
Saber
Sobre
tudo aquilo que te faz sorrir
Por
quê?
Crise
de existência
Coisa
de menino
De
menino infeliz
Pra
quê?
Tanta
dependência
E
uma insistência em vencer?
Sei
da esperança
Coisa
de criança
Que
quer se entender
Que
quer se entreter
Cuide
das alianças
Da
família em comunhão
Plante
uma lembrança
E com
deus no coração
Cuide
das alianças
Da
família em comunhão
Plante
uma lembrança
E
com deus no coração.
CENA
6
(OUTRA BRIGA DE DADO E MARCEL; TODA A FAMÍLIA ESTÁ
TENTANDO SEPARAR E SIMONE ESTÁ JUNTO DESSA VEZ)
MARCEL
Vocês não vão nos calar!
DADO
No cu dos outro é refresco, né?
FÁTIMA
Chega! Pelo amor de deus!
MARCEL
Eu vou acabar com a sua raça, fascista!
DADO
Vocês que são fascistas! Não aguentam dois minutos!
SIMONE
Você tava provocando, Dado!
DADO
Ele também me provoca! Você não vive aqui, então
cale essa boquinha!
MARCEL
Não fale assim com ela, seu...!
(IRENE COMEÇA A PASSAR MAL)
JOÃO
Mãe! Mãe!
FÁTIMA
Mãe, senta, senta aqui...
IRENE
Eu tô pedindo... faz tempo...
DADO E MARCEL
Vó...
FÁTIMA
Alguém pega água e o remédio dela!
(JOÃO SAI PRA COZINHA)
FÁTIMA
Calma, mãe, fica calma. Respira.
IRENE
Oxi. Ficou tudo escuro... Melhorou.
(JOÃO RETORNA E ENTREGA A ÁGUA E O REMÉDIO; IRENE
TOMA; SILÊNCIO)
DADO E MARCEL
Vó...
(SILÊNCIO)
JOÃO
Quem vai falar primeiro agora? Hein? Vai, vamo ver.
(JOÃO SAI BATENDO A PORTA)
IRENE
Fala pra ele não bater a porta, Fátima.
FÁTIMA
Vou falar, mãe. Vamo deitar lá no quarto.
(FÁTIMA LEVA IRENE ATÉ O QUARTO, VAGAROSAMENTE;
LONGO SILÊNCIO; MARCEL E DADO SE OLHAM RAIVOSOS E ENVERGONHADOS, UM CULPANDO O
OUTRO SÓ COM O OLHAR; SIMONE SE SENTA CANSADA)
SIMONE
Chega de briga.
DADO
Por hoje. Não tem mais sossego pra mim, não tem mais
sossego pra vocês.
SIMONE
Até você matar sua vó, Dado?
DADO
Se vocês vão sofrer com isso...
(DADO SAI PRA RUA; MARCEL SE SENTA DO LADO DE
SIMONE)
MARCEL
Isso nunca vai parar. E eu faço parte disso. Justo
eu.
SIMONE
Pois é.
(SILÊNCIO; SIMONE PEGA O CELULAR E SE ENTRETE;
MARCEL FAZ O MESMO; ELES FICAM EM SILÊNCIO POR UM LONGO TEMPO, CONFERINDO AS
REDES SOCIAIS; FÁTIMA VAI DO QUARTO PRA COZINHA)
FÁTIMA
Vocês vão matar a vó de vocês de verdade.
(MARCEL E SIMONE CONTINUAM NOS CELULARES POR UM
TEMPO; ELES OLHAM PRA PLATEIA MECANICAMENTE AO MESMO TEMPO; QUEBRA DA CENA
NOVAMENTE)
MARCEL E SIMONE
Qual
lado é o vilão?
Quem
faz conspiração em poesia de teatro?
Quem
toca o vilão?
Em
música inspirado
Em
treta dramática
Sobre
um mundo constipado
Escute
o vilão
Escute
o violão... (UM SOLO DE VIOLÃO)
E
então escolha um lado.
(ESCURIDÃO)
CENA
7
(JOÃO ESTÁ TOMANDO UMA CERVEJINHA E ASSISTINDO
FUTEBOL)
JOÃO
Filha da puta, bicho burro! A bola tava no pé,
caralho! (GRITA PRA COZINHA) Fá, fica pronto ou não fica?
FÁTIMA
Quase! (ENTRA E VAI PRO BANHEIRO) A louça é sua
depois.
JOÃO
Tudo bem.
(IRENE ENTRA)
IRENE
Vai começar a novela.
JOÃO
Mãe, já acabou a novela. A senhora assistiu.
IRENE
Ah. É mesmo. Vou fazer um chá.
(IRENE SAI)
JOÃO
Vai, vai, vai, vai - porra!
(FÁTIMA RETORNA E SAI PRA COZINHA EM SILÊNCIO)
JOÃO
Ah, não! Não é possível! Tá de sacanagem comigo,
deus! Pô, Jesus, dá uma força aí, parceiro.
(UM BARULHO NA COZINHA)
FÁTIMA
(OFF) Mãe! Mãe!
(JOÃO CORRE PRA COZINHA; ESCURIDÃO; MÚSICA
DRAMÁTICA)
CENA
8
(DOIS FOCOS DESTACAM MARCEL E DADO SEPARADAMENTE)
MARCEL E DADO
A vida real, ela é um novelão barato e óbvio.
(OUTRO FOCO DESTACA JOÃO CHAVECANDO SIMONE)
JOÃO
Você parece mais madura pra sua idade.
SIMONE
Todo mundo sempre falou isso.
JOÃO
Eu sempre te achei bonitinha também.
SIMONE
Obrigada.
JOÃO
Eu morro de vontade de te dar um beijo também.
SIMONE
Ah... eu...
JOÃO
Eu reparo como você olha... vai ser nosso
segredinho...
(JOÃO CONSEGUE BEIJAR SIMONE, SEGURANDO; ELA RESISTE,
MAS FICA UM TANTO EXCITADA E CEDE, AINDA QUE UM POUCO INCOMODADA; O FOCO SE
APAGA E UM OUTRO FOCO DESTACA FÁTIMA)
FÁTIMA
Eu não coloco a mão no fogo por nenhum dos dois
lados. Eu parei de votar faz tempo, pago a multa, mas não perco meu domingo pra
votar, nem ferrando. É tudo o mesmo saco.
(O FOCO DESTACA MARCEL)
MARCEL
Eu defendo a diversidade. Inclusão e justiça social,
a liberdade das mulheres, democracia, diálogo. Mas com fascista não tem diálogo
não.
(O FOCO DESTACA DADO)
DADO
Eu defendo a liberdade. Eu acredito que a justiça
vai acontecer só quando todos forem livres. Livres pra empreender, livres pra
conseguirem as próprias coisas sem ajuda de governo nenhum.
MARCEL
Livres pra serem homossexuais também, pra serem
putas, pecadores, pra serem ateus e comunistas.
DADO
Livres pra discordarem da homossexualidade também e
de tudo isso que você falou.
MARCEL
Não faz sentido.
DADO
O que não faz sentido é não respeitarem a
diversidade de opiniões.
MARCEL
Você luta pelo direito de ser contra a sexualidade
dos outros enquanto os outros estão lutando pelo direito de ter a sexualidade
respeitada.
DADO
Pode ser gay. Mas não enfiar moralismo goela abaixo
dos outros.
MARCEL
Pode ser livre. Mas não enfiar moralismo sobre o cu
dos outros. No meu mundo, vocês só seriam proibidos de encher o saco da vida
dos outros mesmo.
DADO
São vocês que enchem o saco. Olha essa novela toda,
bicho! Dramalhão barato!
(SILÊNCIO; COM EXCESSÃO DE IRENE, TODOS OS
PERSONAGENS SE DESTACAM EM FOCOS SEPARADOS)
TODOS
Qual
lado que ele pende?
Qual
verdade que ele sente?
Como
foi que essa gente
Não
se encosta em comunhão?
Qual
lado que é o crente?
Quem
é o combatente?
Como
foi que o presente
Virou
tanta discussão?
Qual
o problema dessa gente?
Defende
quente a correnteza
E
com um misto de tristeza
Foi
virar um pastelão
Qual
lado que ele pende?
Qual
verdade que ele sente?
Como
foi que toda essa gente
Perdeu
o próprio irmão?
(IRENE ENTRA EM CENA; TODOS OS OUTROS A OLHAM COM
CURIOSIDADE; ELA VAI ATÉ SEU PRÓPRIO FOCO NO MEIO DOS OUTROS; TODOS ESPERAM A
ÚLTIMA FALA)
IRENE
Não existe vida após a morte. Relaxem.
(ESCURIDÃO)
FIM
Nenhum comentário:
Postar um comentário