VELHA LIBERDADE LIBERDADE NOVA

VELHA LIBERDADE LIBERDADE NOVA

(recorte e atualização do texto "Liberdade, Liberdade" de Millôr Fernandes e Flávio Rangel; adaptação e cenas adicionais por Gabriel Tonin)

PARA TRÊS OU MAIS ATORES


INTRODUÇÃO

(Ainda com as luzes da platéia acesas, ouvem-se os primeiros acordes do Hino da Proclamação da República. Uma festa invade o teatro agora com a versão em samba de Dudu Nobre)

CORO
Liberdade!, Liberdade!
Abre as asas sobre nós
E que a voz da igualdade
Seja sempre a nossa voz

Liberdade!, Liberdade!
Abre as asas sobre nós
E que a voz da igualdade
Seja sempre a nossa voz

Vem, vem reviver comigo amor
O centenário em poesia
Nesta pátria mãe querida
O império decadente, muito rico incoerente
Era fidalguia e por isso que surgem
Surgem os tamborins, vem emoção
A bateria vem, no pique da canção
E a nobreza enfeita o luxo do salão, vem viver
Vem viver o sonho que sonhei
Ao longe faz-se ouvir
Tem verde e branco por aí
Brilhando na Sapucaí e da guerra
Da guerra nunca mais
Esqueceremos do patrono, o duque imortal
A imigração floriu, de cultura o Brasil
A música encanta, e o povo canta assim e da princesa
Pra Isabel a heroína, que assinou a lei divina
Negro dançou, comemorou, o fim da sina
Na noite quinze e reluzente
Com a bravura, finalmente
O Marechal que proclamou foi presidente

Liberdade!, Liberdade!
Abre as asas sobre nós
E que a voz da igualdade
Seja sempre a nossa voz,

(já no palco, os atores se acomodam)

CORO
Sou apenas um homem de teatro. Sempre fui e sempre serei um homem de teatro. Quem é capaz de dedicar toda a vida à humanidade e à paixão existentes nestes metros de tablado, esse é um homem de teatro. Nós achamos que é preciso cantar! Gritar! Falar!

ATRIZ 
A tristeza que a gente tem,
Qualquer dia vai se acabar,
Todos vão sorrir,
Voltou a esperança
É o povo que dança
Contente da vida,
Feliz a cantar.

CORO
Voltaire:

VOLTAIRE
Não concordo com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte vosso direito de dizê-las!

CORO
Mme. Roland, guilhotinada pela Revolução Francesa:

MME. ROLAND
Liberdade, liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome!

CORO
Abraão Lincoln:

LINCOLN
Pode-se enganar algumas pessoas todo o tempo; pode-se enganar todas as pessoas
algum tempo; mas não se pode enganar todas as pessoas todo o tempo!

CORO
Napoleão Bonaparte:

NAPOLEÃO
A França precisa mais de mim do que eu da França!

CORO
José Mujica:

MUJICA
Eu não sou pobre, eu sou sóbrio, de bagagem leve. Vivo com apenas o suficiente para que as coisas não roubem minha liberdade.

CORO
Karl Marx:

MARX
"Trabalhadores do mundo, uni-vos!

CORO
Carl Jung:

JUNG
Aquilo a que você resiste, persiste.

CORO
Karl Popper:

POPPER
Por mais paradoxal que seja, defender a tolerância exige não tolerar a intolerância.

CORO
Carl Sagan:

SAGAN
O que é mais assustador? A idéia de extraterrestres em mundos estranhos,
ou a idéia de que, em todo este imenso universo, nós estamos sozinhos?

CORO
Simone de Beauvoir:

BEAUVOIR
Querer ser livre é também querer livres os outros.

CORO
Malcolm X:

MALCOLM X:
Não se pode separar paz de liberdade porque ninguém consegue estar em paz a menos que tenha sua liberdade.
CORO
Anne Frank:

ANNE
Apesar de tudo eu ainda creio na bondade humana!


ANNE FRANK

PAI
Abençoado sejais, Oh, Senhor Nosso Deus, por nos terdes preservado a vida, permitindo-nos assim comemorar esta festa de alegria. Graças vos damos, Oh Deus Nosso Senhor, porque em vossa infinita misericórdia quiseste salvar-nos uma vez mais. Anne, pode conversar com Peter. Mas quando bater nove horas, vá dormir.

ANNE
Sim, papai. (se aproxima de Peter) Peter, sabe o que a Sara Van Duan disse? Que eu não devia vir no teu quarto; que no tempo dela as moças não andavam atrás dos rapazes. (pausa) Você gosta de minha irmã, não é? Você gostou dela assim que a conheceu. De
mim, não.

PETER
Não sei.

ANNE
Não faz mal. Ela tem bom gênio, é alegre, é bonita. Eu não.

PETER
Ora, não é isso.

ANNE
Sei muito bem. Sei que não sou bonita e nunca serei.

PETER
Eu acho você bonita.

ANNE
Mentira.

PETTER
Você mudou; não é como antes.

ANNE
Como?

PETTER
Você está... não sei... mais quieta.

ANNE
Acho que quando sair daqui você nem vai mais pensar em mim.

PETER
Isso é bobagem.

ANNE
Quando você voltar para junto de seus amigos, dirá: não sei que graça achei naquela bobinha.

PETER
Não tenho amigos.

ANNE
Ora, Peter, todo mundo tem.

PETER
Menos eu.

ANNE
Pensei que eu fosse sua amiga.

PETER
Você é diferente; se todos fossem iguais a você...

ANNE
Peter, você já beijou alguma menina?

PETER
Uma vez.

ANNE
Era bonita?

PETER
Não sei. Foi numa festa. Foi naqueles jogos de prendas.

ANNE
Ah, então não vale, não é?

PETER
Acho que não.

ANNE
Já me beijaram duas vezes. Uma vez foi um homem que eu não conhecia; eu tinha caído na neve, estava chorando e ele me levantou do chão. Outra vez, um amigo de papai me beijou a mão. Também não vale, não é?

PETER
Também não.

ANNE
Eu também acho; minha irmã jamais beijaria alguém se não fosse noiva dele. E sei que mamãe também nunca beijou outro homem além de papai. Mas eu não sei... está tudo tão mudado. Você não acha? É tão difícil a gente saber o que tem de fazer quando o mundo inteiro está caindo aos pedaços... ninguém sabe como será o dia de amanhã... Diz!

PETER
Depende muito da pessoa. (o relógio bate nove horas) Não sei, mas acho que quando duas pessoas...

ANNE
Nove horas. Tenho de ir.

PETER
É.

ANNE
Boa noite.

PETER
Boa noite. Não deixe de vir amanhã.

ANNE
Não. Acho... acho que vou trazer meu diário. Escrevi uma porção de coisas sobre você.

PETER
Bem ou mal?

ANNE
Você vai ver. Eu... eu antes não ligava muito para você.

PETER
Você mudou a meu respeito, como eu mudei com você?

ANNE
Eu... você vai ver.

(eles se olham um instante e se beijam; soldados invadem a cena e causam terror; Anne e Peter se abraçam enquanto os soldados violentam os outros atores)

SOLDADO
Alguns dias depois, os nazistas descobriram o refúgio da família Frank; foram presos, e Anne foi assassinada no campo de concentração de Belsen. Seu diário foi encontrado. Terminava assim:

ANNE
Não somos os únicos que sofrem; ora um povo, ora outro...

PETER
(chorando) Isso não me consola.

ANNE
Eu sei como é difícil se acreditar em alguma coisa, quando há tanta gente ruim; mas acho que o mundo está passando por uma fase. Passará; daqui a séculos, talvez, mas passará. Apesar de tudo, ainda acredito na bondade humana.

(música dramática)


SÓCRATES

MELETOS
Sócrates é um mau ateniense e corrompe a juventude!

SÓCRATES
Que os quinhentos juízes do povo de Atenas ouçam a minha defesa! A pena de morte pende sobre minha cabeça! Meletos me acusa de corromper a juventude; mas eu afirmo que Meletos mente.

JUIZ
Fazeis então a sua auto defesa, Sócrates.

(silêncio)

SÓCRATES
Respondei ao acusado, Meletos, como manda a lei: preocupai-vos muito com a educação da juventude?

MELETOS
Claro.

SÓCRATES
Dizei então aos juízes quem aprimora a juventude.

MELETOS
As leis aprimoram a juventude.

SÓCRATES
Eu quero saber quem lida com as leis.

MELETOS
Os juízes.

SÓCRATES
Portanto, os juízes deste tribunal aprimoram a juventude?

MELETOS
Sem dúvida.

SÓCRATES
Todos eles, ou uns sim e outros não?

MELETOS
Todos eles.

SÓCRATES
Oh, graças a Deus. Então temos muitos aprimoradores e educadores da juventude. E a audiência aqui presente – é composta de pessoas que aprimoram a juventude?

MELETOS
Sim.

SÓCRATES
E os senadores?

MELETOS
Os senadores dão excelente exemplo à juventude.

SÓCRATES
E os membros da Assembléia? Ou quem sabe esta se compõe de corruptores da juventude?

MELETOS
Eles instruem e melhoram a juventude.

SÓCRATES
Então todos os atenienses aprimoram a juventude e o único corruptor sou eu?

MELETOS
Exatamente.

SÓCRATES
Desejo agora fazer uma pergunta sobre cavalos. É possível que só um homem trate mal os cavalos e todos os outros os tratem bem? A verdade não é exatamente o contrário? Só um homem – o treinador – está capacitado a tratar bem dos cavalos?

MELETOS
Eu não...

SÓCRATES
Não é certo? A juventude não seria muito feliz se tivesse um único corruptor e todos os outros cidadãos como aprimoradores?

MELETOS
Não é exatamente...

SÓCRATES
Ora, segundo vós, eu corrompo os jovens porque lhes ensino a desrespeitar os deuses do Estado e crer em novas divindades espirituais.

MELETOS
Pus toda a ênfase nessa acusação.

SÓCRATES
E no entanto afirmais que eu sou um ateu completo e um instrutor de ateísmo?

MELETOS
Um ateu completo!

SÓCRATES
(Dirigindo-se ao público) Não posso deixar de pensar, homens de Atenas, que Meletos é atrevido e impudente e irresponsável e cheio de bravatas juvenis. Pois me vê culpado por acreditar em deuses e me vê culpado por ser ateu. Como posso acreditar em semideuses e não acreditar em deuses? Como posso não acreditar nos homens e acreditar nos feitos humanos? Conheceis alguém que acredite em cavalaria e não acredite em cavalos? Ou num flautista sem flauta? Pode um homem acreditar em forças espirituais e divinas sem acreditar em deuses? (Pausa. Dirige-se a Meletos) – Respondei, Meletos, é a vós que pergunto.

MELETOS
(pensa) Não pode.

SÓCRATES
(para a platéia) Senhores, já fui muito longe para me defender das acusações de Meletos. Não estou aqui para falar em meu benefício, mas no vosso. Se tivésseis a sabedoria de esperar mais um pouco, vosso desejo de me extinguir seria satisfeito pela própria natureza. Tenho setenta e dois anos – sou bem velho como vedes – e não muito distante do fim. Se me matardes agora, porém, todos os detratores de Atenas se apressarão em gritar que matastes Sócrates, um sábio. Pois sempre que quiserem vos atacar, eles me chamarão de sábio, mesmo que não o achem. Serei condenado não por corruptor mas pela inveja e perfídia dos ambiciosos, que têm provocado a morte de tantos varões íntegros e pelos séculos afora provocarão a morte de muitos mais. Não podeis me ferir, porque não podeis me atingir. Podeis apenas matar-me, exilar-me, ou cassar meus direitos políticos. Mas eu não sou o primeiro; e não há perigo que eu seja o último.

(música dramática)

CORO
É golpe!

MULHERES
A revolução vira do feminino!

(somente as mulheres ficam em cena)

MULHERES
"Presenciei tudo isso
Dentro da minha família
Mulher com olho roxo espancada todo dia
Eu tinha cinco anos, mas já entendia
Que mulher apanha se não fizer comida
Mulher oprimida, sem voz, obediente
Quando eu crescer eu vou ser diferente

VALERIE SOLANAS
Eu cresci..."

(música "100% Feminista" Karol Comka e Mc Carol)


VALERIE SOLANAS

VALERIE
Valerie Jean Solanas foi uma feminista radical e escritora estadunidense. Ela escreveu o livro SCUM Manifesto onde propõe a criação de uma sociedade dirigida pelas mulheres, livre do controle masculino, na qual homens seriam aniquilados e extintos para que as mulheres pudessem viver em harmonia e igualdade.

(Andy Warhol entra em cena sob bajulos dos seus funcionários)

VALERIE
Warhol! Canalha! Eu estou esperando há horas feito uma idiota!

WARHOL
Desculpe, querida Valerie, estive ocupado. Não posso te atender todo momento que achar que precisa falar comigo.

VALERIE
Onde está meu roteiro? Quero meu roteiro de volta!

WARHOL
Flor, dá pra você gritar mais baixo? Tem gente trabalhando aqui. Todo dia isso?

VALERIE
Você falou que ia fazer meu filme, Warhol! Você me prometeu que ia ler o meu roteiro. Onde ele está? Quero ele de volta.

WARHOL
Devo ter deixado... bem, não sei exatamente onde foi que coloquei.

VALERIE
(Depois de uma pausa) Você perdeu. Você perdeu o meu roteiro?

WARHOL
Valerie, a verdade é que não há mulheres que se dão bem nesse ramo. Você poderia tentar ser uma atriz. Ou quem sabe uma modelo.

FUNCIONÁRIA
Valerie modelo? Precisaria perder uns quilinhos, né? (ri)

WARHOL
Não existem roteiristas mulheres, Valerie. O mundo real é esse. Com licença...

VALERIE
E por que não? Eu escrevi aquele roteiro! Eu escrevi! Você viu que era bom e preferiu ignorar por conta desse seu orgulho masculino de merda, Warhol! Essa é a verdade! Ou você está pretendendo me plagiar, Warhol? Você vai roubar a minha ideia, não é, seu canalha?!

WARHOL
Mulheres não possuem ciência para a arte, meu amor, não sou eu quem estou dizendo isso, é a biologia, é a história do mundo. Eu não preciso roubar sua ideia, Valerie, eu jamais assumiria aquilo que você acha ser o roteiro de um filme. Ninguém vai fazer o seu filme, Valerie.

VALERIE
Você é uma bicha, Warhol! Quero meu roteiro de volta! Aquela era a única cópia!

WARHOL
Eu não me lembro onde deixei. Talvez no café... não. Vou ver se acho e qualquer coisa a gente liga. Anne!

FUNCIONÁRIA
Venha, Valerie, a gente tá atolado de trabalho aqui! (puxa Valerie para fora de cena)

VALERIE
Eu mato você, Warhol! Eu juro que mato você! Quero meu roteiro de volta! (sai)

WARHOL
Ela não é maravilhosa?

(a cena se transforma em uma reunião entre as mulheres; há apenas um homem)

VALERIE
Aquele canalha do Warhol é um exemplo de como os homens são as desgraças desse mundo! Você já viu uma mulher começando uma guerra?

MULHERES
Não.

VALERIE
Alguém já viu uma mulher fazendo merda na política? A maioria dessas merdas do sistema estão na merda porque são os homens que cagam todas elas! Merdinha por merdinha, não tem uma que não seja fruto da mão masculina! Eles nem limpar a bunda direito conseguem! Tem uma estatística disso, é sério! Eu não tô inventando isso! Tudo! Tudo que tem de ruim nesse mundo é culpa desses canalhas que querem manter a gente numa escravidão desde sempre, desde a história de Eva! A culpa sempre foi colocada na gente, mas são eles! Eles são os canalhas em todas as épocas da história humana! E ainda jogam a culpa e o maior trabalho e a escravidão sexual tudo em cima da mulher! Warhol é um exemplo de que nem o homem viado salva nessa bosta de sistema! Você! (para o homem) Diga para todas qual o seu direito de estar aqui?

HOMEM
Eu sou um bosta. Todos nós somos bostas. Eu estou aqui para servir.

VALERIE
Exatamente. Quando nós tomarmos as rédeas desse jogo não vai mais existir puta nenhuma pra dar luz pra esses filhos da puta.

(volta para o estúdio de Warhol)
VALERIE
Warhol!

FUNCIONÁRIA
Agora não, Valerie, ele está ocupado.

WARHOL
O que você quer, Valerie? Eu não consegui achar seu texto ainda...

(Valerie retira uma arma de um saco de pão e atira em Warhol; música de suspense)

VALERIE
Devemos tomar cuidado pra não confundir a reação do oprimido, com a real violência do opressor, por mais radical que essa reação seja.

FUNCIONÁRIA
Vadia radical!

WARHOL
Sabe o que é melhor de tudo, Valerie? No final você será sempre lembrada por causa do meu nome. Você sempre será associada pela morte de Andy Warhol, um homem.

CLARISSA
(Depois de uma pausa) Nããããão!

(clima tragicômico)


MARCO ANTÔNIO E DR. GUILLOTIN

ATRIZ
Liberdade, liberdade
Abre as asas sobre nós
Nas lutas, nas tempestades
Dá que ouçamos tua voz

CORO
Liberdade! Independência!
A tirania está morta!
Proclamai-o pelas ruas!
César está morto!

MARCO ANTÔNIO
Prestai-me atenção! Eu vim para enterrar César, não para elogiá-lo. O mal que os homens fazem vive depois deles. O bem é quase sempre enterrado com seus ossos. Seja assim com César. O nobre Brutus vos disse que César era ambicioso. Se isto é verdade, era um defeito grave. E gravemente César o pagou. Aqui – com permissão de Brutus e do resto –, Pois Brutus é um homem honrado, como eles todos são, todos homens honrados – Eu venho falar no funeral de César. Ele foi meu amigo, fiel e justo;
Mas Brutus diz que era ambicioso – e Brutus é um homem honrado. Trouxe para Roma uma multidão de cativos, cujos resgates encheram nosso tesouro. Isto em César parecia ambicioso? Sempre que os pobres choravam, César se lastimava; a ambição deveria ser de matéria mais dura. Mas Brutus diz que era ambicioso, – e Brutus é um homem honrado. Eu não falo para desaprovar do que Brutus falou; Estou aqui para falar do que sei. Todos vós o amastes, e não sem motivo; Que motivo vos impede agora de chorar por ele? Ó justiça! Fostes morar com os animais selvagens Pois os homens perderam o raciocínio! Ainda ontem a palavra de César podia enfrentar o mundo; Mas agora aí jaz
E ninguém tão humilde que o reverencie. Se tendes lágrimas, preparai-vos agora para derramá-las. Todos vós conheceis este manto (mostra o manto); eu me lembro da primeira vez em que César o usou. Olhai: por aqui penetrou a adaga de Cássio;
Vede o rasgão que fez o invejoso Casca. Por aqui passou o punhal do bem amado Brutus. E ao retirar seu aço maldito notai que o sangue de César o seguiu como correndo à porta, a fim de convencer-se de que era Brutus mesmo quem batia de modo tão cruel. Pois Brutus, como o sabeis, era o anjo de César. Julgai, ó Deuses, como César o amava. Este foi o golpe mais cruel de todos, pois quando o nobre César viu-o apunhalando, a ingratidão, mais forte que a mão dos traidores, o derrotou completamente; aí seu poderoso coração partiu-se e escondendo o rosto neste manto,
o grande César caiu aos pés da estátua de Pompeu que escorria sangue o tempo todo.
Oh, que queda foi aquela, camaradas! Eu, vós, nós todos caímos nesse instante
Enquanto a traição sangrenta crescia sobre nós. Eu não vim aqui para acirrar paixões;
apenas falo reto e vos digo somente o que todos sabeis; Mas fosse eu Brutus – e Brutus Antônio, e haveria aqui um Antônio capaz de sacudir as almas, colocando uma língua em cada ferida de César, para erguer em revolta as pedras de Roma! Pois este era um César! Como ele, que outro haverá?

CHE GUEVARA
Sonha e serás livre de espírito... luta e serás livre na vida.

CORO
Che! Companheiros e companheiras! A caça aos rebeldes comunistas terroristas comedores de criancinhas, feminazis abortistas e gayzistas pós-modernistas começou ontem sim, meu filho! Pode acreditar!

DR. GUILLOTIN
O calo está por aqui! (faz sinal cortando o pescoço e todos o acompanham) Apresento-lhes, a guilhotina.

(enquanto à frente Dr. Guillotin dá o exemplo da guilhotina, ao fundo os outros atores morrem de outras formas, como exemplo, crucificado na cruz, cadeira elétrica e injeção na veia)

DR. GUILLOTIN
“Com o aparelho que modestamente apresento a esta Assembléia, humanizamos o processo da morte. O mecanismo se abre automaticamente. A lâmina cai como um raio. A cabeça salta, o sangue jorra; era uma vez um homem. Criminoso e carrasco se beneficiam ambos com o processo. E acabamos também com o odioso privilégio de só os nobres serem decapitados. A pena de morte será igual para todos; democrática.”

CORO
Polícia Federal: A Lei é Para Todos sim! Pode acreditar!

DR. GUILLOTIN
Segundo Noel Rosa, fonte histórica para o caso, Monsieur Guillotin também foi...
democratizado.

ATOR
A verdade, meu amor, mora num poço...
É Pilatos lá na Bíblia quem nos diz.

ATRIZ
E também faleceu por ter pescoço
O infeliz autor da guilhotina de Paris.

ATOR
Enfim, em épocas difíceis é assim mesmo; só não corre perigo quem não tem pescoço.

CORO
Desobediência civil! Queremos pão, queremos pão, queremos pão... Morte ao Rei! Viva a República!

ATRIZ
Todo poder ao carrasco!

ATOR
Mata o vagabundo!

ATRIZ
Ditadura militar já!

BOLSONARO
“O filho começa a ficar assim, meio gayzinho, leva um couro e muda o comportamento dele.”

CORO
Não acabou! Tem que acabar!
Eu quero o fim da polícia militar!

ATOR
A Revolução é mais que um crime; é um erro político! Desce o cacete nesses vagabundos, porra! Mito! Quem procura osso é cachorro!

(uma atriz dá um tapa no rosto desse ator; ele chora feito um bebê)

ATOR
Eu tenho os meus direitos! Seus violentos!

(uma briga generalizada se inicia; alguém surge com coxinhas e pão com mortadela e eles se servem conforme preferência, voltando pra um clima de festa)

ATRIZ
A Revolução Francesa foi um grande avanço na História; deixou a primeira Declaração dos Direitos do Homem, com itens fundamentais da nossa vida civil de hoje:

ATOR
Liberdade individual;

ATRIZ
Julgamento por júri;

ATRIZ
Direito de voto.

ATOR
Abolição da escravatura;

ATRIZ
Direito de voto;

ATOR
Soberania da Nação;

ATOR
Controle do imposto pelo povo.

ATRIZ
Direito de voto.


(silêncio)

LIBERDADE
Mas afinal, o que é a liberdade? Apesar de tudo o que já se disse e de tudo o que dissemos sobre a liberdade, muitos dos senhores ainda estão naturalmente convencidos que a liberdade não existe, que é uma figura mitológica criada pela pura imaginação do homem. Mas eu lhes garanto que a liberdade existe. Não só existe, como é feita de concreto e cobre e tem cem metros de altura. A liberdade foi doada aos americanos pelos franceses em 1866 porque naquela época os franceses estavam cheios de liberdades e os americanos não tinham nenhuma. Recebendo a liberdade dos franceses, os americanos a colocaram na ilha de Liberty Island, na entrada do porto de Nova York. Esta é a verdade indiscutível. Até agora a liberdade não penetrou no território americano. Quando Bernard Shaw esteve nos Estados Unidos foi convidado a visitar a liberdade, mas recusou-se afirmando que seu gosto pela ironia não ia tão longe. Aquelas coisas pontudascolocadas na cabeça da liberdade ninguém sabe o que sejam. Parecem previsão de defesa antiaérea. Coroa de louros certamente não é. Antigamente era costume coroar-se heróis e deuses com coroas de louros. Mas quando a liberdade foi doada aos Estados Unidos, nós os brasileiros já tínhamos desmoralizado o louro, usando-o para dar gosto no feijão. A confecção da monumental efígie custou à França trezentos mil dólares. Quando a liberdade chegou aos Estados Unidos, foi-lhe feito um pedestal que, sendo americano, custou muito mais do que o principal: quatrocentos e cinqüenta mil dólares. Assim, a liberdade põe em cheque a afirmativa de alguns amigos nossos, que dizem de boca cheia e frase importada, que o “Preço da Liberdade é a Eterna Vigilância”. Não é. Como acabamos de demonstrar, o preço da liberdade é de setecentos e cinqüenta mil dólares. Isso há mais de dois séculos atrás. Porque atualmente o Fundo Monetário Internacional calcula o preço da nossa liberdade mais ou menos em treze milhões de dólares. De qualquer forma, quem é os Estados Unidos hoje na fila do pão, não é mesmo, meus amigos? Vai falar de liberdade o país que diz lutar contra o terrorismo, mas que foi o único do mundo a usar a bomba atômica? Twice!

CORO
Duas vezes!

ABRAHAM LINCOLN
“Há oitenta e sete anos atrás nossos pais fundaram neste continente uma Nação nova, baseada na liberdade e dedicada ao princípio de que todos os homens nascem iguais. Agora estamos empenhados numa grande Guerra Civil para verificar se uma tal Nação – ou qualquer outra assim concebida – poderá perdurar. Estamos reunidos num grande campo de batalha desta guerra. Viemos para consagrar um recanto do mesmo como o último lugar de repouso para aqueles que deram a vida a fim de que essa Nação pudesse sobreviver. O mundo não notará nem se lembrará por muito tempo do que dizemos aqui; mas jamais poderá se esquecer do que eles aqui fizeram. Quanto a nós, os vivos, cabe dedicarmo-nos à obra inacabada que os que aqui lutaram já levaram tão longe. Decidamos aqui que esses mortos não morreram em vão; que esta Nação, sob a proteção de Deus, renascerá para a liberdade, e que o governo do Povo, pelo Povo e para o Povo não desaparecerá da face da terra.”

CORO
Glory, glory, halleluiah,
His truth is marching on.

ATRIZ
Ê, eu achei uma beleza esse discurso do Lincoln.

ATOR
Gostou?

ATRIZ
É. Mas eu queria dizer uma coisa, a você e a todos – e quem avisa amigo é; se o governo continuar permitindo que certos parlamentares falem em eleições; se o governo continuar deixando que certos jornais façam restrições à sua política financeira; se continuar deixando que alguns políticos mantenham suas candidaturas; se continuar permitindo que algumas pessoas pensem pela própria cabeça, mesmo os idiotas; se continuar deixando que os juízes do Supremo Tribunal Federal concedam habeas-corpus a três por dois; e se continuar permitindo espetáculos como este, com tudo que a gente já disse e ainda vai dizer – nós vamos acabar caindo numa democracia!


PRETO PIO E ZUMBI DOS PALMARES

CORO
O nosso som não tem idade, não tem raça
E não tem cor
Mas a sociedade pra gente não dá valor
Só querem nos criticar pensam que somos animais
Se existia o lado ruim hoje não existe mais
Porque o funkeiro de hoje em dia caiu na real
Essa história de porrada isso é coisa banal
Agora pare e pense, se liga na responsa
Se ontem foi a tempestade hoje vira abonança

É som de preto, de favelado
Mas quando toca ninguém fica parado

(música “Som de Preto” de Amilcka e Chocolate; o clima muda para um drama)

ATOR
Naquele tempo,
num lugar todo enfeitado,
nós ficava amuntuado
pra esperá os compradô...
No mesmo dia
Em que levaram minha preta,
Me botaro nas grilheta
Que é pra mode eu não fugi...

LUÍS GAMA
“Todo escravo que matar seu senhor, seja em que circunstância for, mata em legítima defesa!”

ATOR
Gritando essa frase, o poeta e advogado Luís Gama deu início à amarga batalha literária pela libertação do negro no Brasil.

CORO
O Exôdo de Capivari.

ATOR
Preto Pio, um escravo rebelde daqui das terras de Capivari fugiu e é tudo culpa desse crioulo essa onda abolicionista que tem afetado o nosso país.

ATRIZ
Levou junto as minhas empregadas. Eu tratava aquelas meninas como se fossem da família.

ATOR
Ouvi dizer que ele matou um soldado na Serra de Cubatão.

ATRIZ
O que? Crioulo afrontoso!

ATOR
Foi morto. Graças à Deus conseguiram abater.

ATRIZ
A autópsia revelou que o crioulo passou seus últimos três dias de vida sem se alimentar.

ATOR
O Clube Militar chegou a enviar uma carta ao Imperador recusando-se a continuar caçando escravos, tudo por causa de pena de escravo. Nem nos militares se dá pra confiar mais hoje em dia.

ATRIZ
Eu tenho dó, por isso que eu adoto. Adotava, né? Dava três refeição pra essas pestes e cama ainda. Essa história toda e nem funcionário a gente pode ter mais. Deus não disse que foi feito pra gente usufruir do serviço?

ATRIZ
A odisséia de Preto Pio aconteceu apenas um ano antes da Abolição da Escravidão no Brasil.

ATOR
Abolição em teoria, né?

ATRIZ
Alguns escravos conseguiram sentir o gosto pela liberdade. Organizaram-se em quilombos, o mais famoso dos quais o de Palmares, foi brutalmente destruído pelo bandeirante Domingos Jorge Velho. Seu líder era o negro Zumbi:

ZUMBI
Não morre quem lutou
Não morre um ideal
Arranca a folha, vem a flor,
Arranca a flor, vem o pinhão...
Enquanto ele viveu
Justiça distribuiu
E a Liberdade
era fácil de alcançar...

Não morre quem lutou
Não morre um ideal
Arranca a folha, vem a flor,
Arranca a flor, vem o pinhão...

CORO
O poder se assentava sobre a fome. A subnutrição constante trazia
diminuição da estatura, deformações esqueléticas, dentição podre, insuficiência tiroidiana, velhice prematura, preguiça, anemia e tuberculose.

ATOR
O absurdo é que depois de tudo isso, mesmo depois da virada do milênio e do bum da ciência nos últimos anos muitos brazileiros e cidadãos do mundo inteiro vivem ainda em regime escravidão e de semi-escravatura.

CORO
O poder se assenta sobra a fome. E a subnutrição constante traz diminuição da estatura, deformações esqueléticas, dentição podre, insuficiência tiroidiana, velhice prematura, preguiça, anemia e tuberculose.

ATRIZ
Direito de voto.


JOSEPH BRODSKY E EDDIE SLOVIK

BRODSKY
Julgamento de um poeta

INVESTIGADOR
Qual é seu nome?

BRODSKY
Joseph Brodsky.

INVESTIGADOR
Qual é sua ocupação?

BRODSKY
Escrevo poemas. Traduzo. Suponho que...

INVESTIGADOR
Não interessa o que o senhor supõe. Fique em pé respeitosamente. Não se encoste na parede. Olhe para a corte. Responda com respeito. O senhor tem um trabalho regular?

BRODSKY
Pensei que fosse um trabalho regular.

INVESTIGADOR
Dê uma resposta precisa.

BRODSKY
Eu escrevia poemas: julguei que seriam publicados. Supus...

INVESTIGADOR
Não interessa o que o senhor supõe. Responda porque não trabalhava.

BRODSKY
Eu trabalhava; eu escrevia poemas.

INVESTIGADOR
Isso não interessa. Queremos saber a que instituição o senhor estava ligado.

BRODSKY
Tinha contratos com uma editora.

INVESTIGADOR
Há quanto tempo o senhor trabalha?

BRODSKY
Tenho trabalhado arduamente.

INVESTIGADOR
Ora, arduamente! Responda certo.

BRODSKY
Cinco anos.

INVESTIGADOR
Onde o senhor trabalhou?

BRODSKY
Numa fábrica, em expedições geológicas...

INVESTIGADOR
Quanto tempo trabalhou na fábrica?

BRODSKY
Um ano.

INVESTIGADOR
E qual é seu trabalho real?

BRODSKY
Eu sou um poeta. E tradutor de poesia.

INVESTIGADOR
Quem reconheceu o senhor como poeta e lhe deu um lugar entre eles?

BRODSKY
Ninguém. E quem me deu um lugar entre a raça humana?

INVESTIGADOR
O senhor aprendeu isso?

BRODSKY
O quê?

INVESTIGADOR
A ser poeta? Não tentou ir para uma Universidade onde as pessoas são ensinadas, onde aprendem?

BRODSKY
Não pensei que isso pudesse ser ensinado.

INVESTIGADOR
Então como...?

BRODSKY
Eu pensei que... Por vontade de Deus...

INVESTIGADOR
É possível ao senhor viver do dinheiro que ganha?

BRODSKY
É possível. Desde que me prenderam sou obrigado a assinar um documento, todos os dias, declarando que gastam comigo quarenta copeques. Eu ganhava mais do que isso por dia.

INVESTIGADOR
O senhor não precisa de ternos, sapatos?

BRODSKY
Eu tenho um terno. É velho, mas é um bom terno. Não preciso de outro.

INVESTIGADOR
Os especialistas aprovaram seus poemas?

BRODSKY
Sim, fui publicado na Antologia dos Poetas Inéditos e fiz leituras de traduções do polonês.

INVESTIGADOR
Seria melhor, Brodsky, que explicasse à corte por que não trabalhava no intervalo de seus trabalhos.

BRODSKY
Eu trabalhava. Eu escrevia poemas.

INVESTIGADOR
Mas existem pessoas que trabalham numa fábrica e escrevem poemas ao mesmo tempo. O que o impediu de fazer isso?

BRODSKY
As pessoas não são iguais. Mesmo a cor dos olhos, dos cabelos... a expressão do rosto.

INVESTIGADOR
Isso não é novidade. Qualquer criança sabe disso. Seria melhor que explicasse qual a sua contribuição para o movimento comunista.

BRODSKY
A construção do comunismo não significa somente o trabalho do carpinteiro ou o cultivo do solo. Significa também o trabalho intelectual, o...

INVESTIGADOR
Não interessam as palavras pomposas. Responda como pretende organizar suas atividades de trabalho no futuro.

BRODSKY
Eu queria escrever poesia e traduzir. Mas se isso contraria a regra geral, arranjarei um trabalho... e escreverei poesia.

INVESTIGADOR
O senhor tem algum pedido a fazer à corte?

BRODSKY
Eu gostaria de saber por que fui preso.

INVESTIGADOR
Isso não é um pedido; é uma pergunta.

BRODSKY
Então não tenho nenhum pedido.

INVESTIGADOR
Brodsky foi condenado a cinco anos de trabalhos forçados, numa fazenda estatal de Arcangel, na função de carregador de estrume. O poeta tinha vinte e quatro anos.

SLOVIK
O julgamento de um soldado.

TENENTE
Soldado Eddie D. Slovik, nº 36.896.415, Companhia de Infantaria G-109, 28ª Divisão, Exército dos Estados Unidos da América do Norte. (levanta o braço.) – Praça Slovik, é acusado de recusar-se a servir aos Estados Unidos usando rifle e baioneta, tendo desertado para evitar os perigos oriundos do dever de lutar em combate. Declara-se inocente ou culpado?

SLOVIK
Culpado.

TENENTE
Tem alguma coisa a alegar em sua defesa?

SLOVIK
Não, eu fugi; eu não queria lutar.

TENENTE
Você tinha conhecimento de que milhares de soldados tentam escapar ao serviço com estratagemas de má conduta, ferimentos autoprovocados ou fingindo insuficiência mental?

SLOVIK
Ouvi falar.

TENENTE
Sabia do tratamento condescendente do Governo para com esses casos?

SLOVIK
Sim.

TENENTE
Você teve oportunidade de voltar ao campo de batalha?

SLOVIK
O Coronel ameaçou-me com a Corte Marcial caso eu não voltasse imediatamente. Mas todo mundo sabe que a 28ª Divisão é o próprio Inferno. Respondi que se me mandassem de volta eu fugia de novo. Eu não queria lutar.

TENENTE
Conhece o princípio militar segundo o qual um cidadão fisicamente capaz que não luta pelo seu país não merece viver?

SLOVIK
Não. Não conheço.

TENENTE
Segundo uma testemunha, o soldado Tankey, você se recusou a limpar o rifle.

SLOVIK
Não. Apenas disse: “Não sei pra que estou limpando esse rifle. Não pretendo usá-lo”.

TENENTE
Sua decisão foi causada por alguma crença religiosa?

SLOVIK
Não. Eu não pretendia lutar. Minha vida foi muito dura, foi terrível. Tive que roubar para comer. Passei boa parte da minha vida na prisão. Se eu fosse convocado no início da guerra, há um ano e meio, pode ser que eu lutasse. Mas eu estava preso. Agora que eu tenho uma mulher, um apartamento mobiliado e um Pontiac, eu não vou lutar. Não disparei meu rifle nem uma vez. A partir de um certo momento deixei até de carregar munição.

TENENTE
(para a plateia) – Os superiores do soldado Slovik não recomendam clemência. Para ele e para os soldados que queiram imitá-lo, a prisão não é um castigo nem uma ameaça. Ele desafiou diretamente a autoridade do Governo! Se a pena de morte por deserção jamais foi imposta, este é um caso em que ela é justa, a fim de manter a disciplina sem a qual nenhum Exército pode enfrentar seus inimigos!

SLOVIK
Os Estados Unidos da América do Norte enviaram para a Segunda Guerra Mundial 10.110.103 soldados. Desses, uma cifra que se acredita ultrapassar de um milhão conseguiu escapar ao combate usando os mais variados estratagemas.  Aproximadamente quarenta mil desertaram. Desses desertores, dois mil seiscentos e oitenta e quatro foram levados à Corte Marcial; quarenta e nove foram condenados à pena de morte...

TENENTE
Eddie Slovik foi o único executado. (eles encenam) Um pelotão de não menos de oito e não mais de doze soldados, comandados por um sargento, colocarse-á num lugar previamente marcado, formado em fila simples ou dupla, encarando o prisioneiro amarrado a um poste, numa distância não maior de vinte passos. Os membros do pelotão portarão rifles regulares, os quais serão carregados secretamente pelo oficial incumbido de executar a sentença. Um dos rifles será carregado com pólvora seca e não deverá ser identificado. O oficial postar-se-á ao lado do grupo de tiro e comandará: 1º– Pelotão! 2º– Preparar! 3º– Apontar! 4º

SLOVIK
Vamos, camaradas, me dêem uma última oportunidade! Me soltem, e me fuzilem enquanto eu corro pela neve! O governo está precisando de um exemplo; vão me matar porque eu roubei um pedaço de pão quando tinha doze anos! Camaradas, me ajudem! Me deixem correr pela neve.

CORO
Fogo!!!


TERROR E MISÉRIA NO III REICH

ATRIZ
Sem de forma alguma mudar de assunto, mas vocês já notaram que ainda hoje tem gente fazendo as mesmas coisas que Adolf Hitler fez? Tem gente aqui perto da gente que defende em certo ponto e que compartilha do mesmo formato de pensamento. Ainda hoje.

MULHER
Onde está Klaus? Klaus! Onde é que se meteu esse menino?

MARIDO
Por que você está tão nervosa? Só porque o menino saiu?

MULHER
Eu não estou nervosa. Você é que está nervoso. Anda tão descontrolado...

MARIDO
Estou o que sempre fui, mas o que tem isso a ver com a saída do menino?

MULHER
Você sabe como são as crianças. Ficam ouvindo tudo.

MARIDO
E daí. Que é que tem?

MULHER
Que é que tem? E se ele contar? Você sabe que na Juventude Hitlerista eles têm que contar tudo. O estranho é que ele saiu de mansinho.

MARIDO
Ora, que bobagem!

MULHER
O que é que ele teria ouvido da nossa conversa?

MARIDO
Ele não dirá nada. Ele sabe o que acontece aos que são denunciados.

MULHER
E que é que tem isso? O filho do vizinho não delatou o próprio pai? Ele ainda não saiu do campo de concentração.

MARIDO
Deixa disso. Você está se alarmando à toa.

MULHER
Você disse que os jornais mentem. Você falou sobre o Quartel General. Não devia ter falado. Klaus é tão nacionalista.

MARIDO
Mas o que foi que eu disse, precisamente?

MULHER
Já se esqueceu? Você falou de certas sujeiras lá dentro.

MARIDO
Bem, isso não pode ser interpretado como um ataque. Eu disse que nem tudo é limpo lá dentro. Não, fui até mais moderado, eu disse que nem tudo é completamente limpo lá dentro. Isso faz diferença. Eu disse: pode ser que nem tudo seja completamente limpo, lá. O completamente suaviza a palavra limpo. Foi assim que eu formulei: pode ser. Não quer dizer que seja.

MULHER
Você não precisa me dar todas essas satisfações.

MARIDO
Eu gostaria de não ter que dar. Mas sei lá o que você é capaz de transmitir por aí do que se conversa aqui em casa. Não estou acusando você de nada e nem acho que o menino é um delator. Mas...

MULHER
Você quer parar com isso? Você está dizendo que não se pode viver na Alemanha de Hitler.

MARIDO
Eu não disse isso!

MULHER
Você age como seu eu fosse a Gestapo! O que me aflige é o que Klaus possa ter ouvido.

MARIDO
A expressão Alemanha de Hitler não está no meu vocabulário.

MULHER
Essas afirmações só podem prejudicar um espírito infantil. E o Führer não se cansa de dizer: “O futuro da Alemanha está na sua juventude”. (silêncio) O meu filho não é um delator!

MARIDO
Mas é vingativo.

MULHER
Mas, agorinha mesmo eu dei vinte centavos a ele. Eu lhe dou tudo que me pede...

MARIDO
Isso é suborno.

MULHER
Como suborno?

MARIDO
Se houver qualquer coisa vão dizer que tentamos suborná-lo para ele não dizer nada.

MULHER
O que você acha que eles podem fazer contra você?

MARIDO
Oh, tudo! Não há limite para o que eles possam fazer.

MULHER
Mas não há nada contra você!

MARIDO
Há sempre alguma coisa contra todo mundo.

MULHER
Karl, não perca a coragem. Você deve ser forte, como o Führer sempre...

MARIDO
Não posso ficar tranqüilo quando...

(o telefone toca; eles ficam aterrorizados; a Mulher vai até o telefone)

MULHER
Atendo?

MARIDO
Não sei. Espere.

(eles aguardam)

MARIDO
Se tocar de novo, nós atendemos.

(um silêncio)

MARIDO
(explode) Isso não é vida!

MULHER
Karl.

MARIDO
Você me gerou um Judas. Senta à mesa do jantar e ouve. Toma a sopa e ouve. O delator!

MULHER
Você acha que devemos nos preparar?

MARIDO
Você acha que eles vêm agora?

MULHER
Tudo é possível.

MARIDO
Ponho a Cruz de Ferro?

MULHER
Claro, claro. E botamos o retrato de Hitler em cima da escrivaninha, não é melhor?

MARIDO
Sim. (ela começa a executar a ação, quando ele a interrompe) Espere! Se o menino disser que o retrato não estava aí antes, é uma agravante. Será apontado como consciência de culpa. (um barulho) Que barulho foi esse? A porta?

MULHER
Não ouvi nada. (um barulho mais forte)

MARIDO
Ouviu?

MULHER
(aterrorizada) Karl!

MARIDO
Não vamos perder a cabeça. Vá lá.

(a Mulher sai)

MULHER
Onde é que você se meteu?! Responda, Klaus! (silêncio; ela muda nitidamente de tom e depois pergunta de novo, mais doce) Onde você andou até agora, meu filhinho?

(silêncio; a Mulher volta e aos poucos vai recobrando uma expressão de tranqüilidade e alívio)

MULHER
Ele disse... que foi comprar chocolate.

(eles se olham e começam a sorrir; correm um para o outro e se abraçam, aliviados. Aí então a expressão dos dois começa novamente a mudar e o Marido, afastando-se da Mulher, pergunta em tom de suspense)

MARIDO
Será verdade?

(silêncio; ambos olham para a plateia em terror)

ATOR
Adolf Hitler: na sua irresistível ascensão, o Partido Nazista empolgou toda a Alemanha. Em 1933, Adolf Hitler tomou o poder. Os que não se submetiam à Nova Ordem eram presos, torturados ou tinham que se exilar. Entre os exilados, o dramaturgo Bertolt Brecht. Assim via ele a vida na Alemanha, nessa cena de sua peça Terror e Miséria do III Reich.

HITLER
A guerra será tal que deverá ser conduzida com uma dureza sem precedentes, sem mercê e sem trégua! Todos os que se opuserem ao nazismo deverão ser liquidados, instalaremos Tribunais Nazistas e cabeças rolarão! Autorizo os soldados alemães a quebrar quaisquer leis internacionais! Eu, Adolf Hitler, sou o Führer, o líder da Nação, Comandante Supremo das Forças Armadas, Chefe do Governo, Chefe Executivo Supremo, Juiz Supremo e Chefe do Partido!

ATRIZ
E Hitler aumentava seu poder territorial: Áustria, Tcheco-Eslováquia, Noruega, Letônia,
Estônia, Lituânia, Bélgica, Noruega, Dinamarca, Holanda, Polônia. E em junho de 1940, a França.

ATOR
Os nazistas assassinaram cinco milhões e setecentos mil judeus no maior genocídio da história.

ANNE FRANK
Apesar de tudo, ainda acredito na bondade humana. Stalingrado!

ATOR
Stalingrado!

ATRIZ
Stalingrado!

ATOR
Stalingrado!

ATRIZ
Stalingrado!

CORO
Stalingrado!

ATOR
Stalingrado foi a mais violenta batalha da guerra. É considerada por todos os historiadores como “the turning point” – a reviravolta. Hitler dizia:

HITLER
Se eu não conseguir o petróleo da região de Stalingrado, perderei a guerra.

ATRIZ
E Stálin dizia:

STÁLIN
Se eu não conseguir defender o petróleo da região de Stalingrado, perderei a guerra!

ATOR
Stalingrado tornou-se para todo o mundo o símbolo da resistência aliada.

CORO
Carlos Drummond de Andrade:

CARLOS DRUMMOND
Pedra por pedra reconstruiremos a cidade
Casa e mais casa se cobrirá o chão.
Rua e mais rua o trânsito ressurgirá.
Começaremos pela estação da estrada de ferro
e pela usina de energia elétrica.
Outros homens, em outras casas,
continuarão a mesma certeza.
Sobraram apenas algumas árvores
com cicatrizes, como soldados.
A neve baixou, cobrindo as feridas.
O vento varreu a dura lembrança.
Mas o assombro, a fábula
gravam no ar o fantasma da antiga cidade
que penetrará o corpo da nova.
Aqui se chamava
E se chamará sempre Stalingrado
– Stalingrado: o tempo responde.

CORO
Por mais terras que eu percorra
Não permita Deus que eu morra
Sem que eu volte para lá
Sem que leve por divisa
Esse “v” que simboliza
A vitória que virá!

ATRIZ
A Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas proclama a seguinte.

CORO
Declaração Universal dos Direitos do Homem.

ATRIZ
Todos os seres humanos nascem iguais e livres em dignidade e direitos, sem distinção de raça, sexo, cor,

ATOR
idioma, religião, opinião política ou de qualquer outra índole.

ATRIZ
Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança de sua pessoa;

ATOR
Ninguém será submetido à escravidão;

ATRIZ
Ninguém será submetido a torturas e a tratos cruéis;

ATOR
Ninguém poderá ser arbitrariamente preso, detido ou desterrado;

ATRIZ
Toda pessoa tem direito a sair de seu país e a regressar livremente a seu país;

ATOR
Toda pessoa tem direito à propriedade;

ATRIZ
A maternidade e a infância têm direito a cuidados especiais;

ATOR
A vontade do povo é a base da autoridade do poder público;

ATRIZ
E todos são iguais perante a lei.

MARY GRIFFITH
“Homossexualidade é um pecado. Homossexuais estão condenados a passar a eternidade no inferno. Se quisessem mudar, poderiam ser curados de seus hábitos malignos. Se desviassem da tentação, poderiam ser normais de novo. Se eles ao menos tentassem e tentassem de novo em caso de falha. Isso foi o que eu disse ao meu filho, Bobby, quando descobri que ele era gay. (pausa) Quando ele me disse que era homossexual, meu mundo caiu. Eu fiz tudo que pude para curá-lo de sua doença. Há oito meses, meu filho pulou de uma ponte e se matou. Eu me arrependo amargamente de minha falta de conhecimento sobre gays e lésbicas. Percebo que tudo o que me ensinaram e disseram era odioso e desumano. Se eu tivesse investigado além do que me disseram, se eu tivesse simplesmente ouvido meu filho quando ele abriu o coração para mim… eu não estaria aqui hoje, com vocês, plenamente arrependida. (pausa) Eu acredito que Deus foi presenteado com o espírito gentil e amável do Bobby. Perante deus, gentileza e amor é tudo. Eu não sabia que, cada vez que eu repetia condenação eterna aos gays… cada vez que eu me referia ao Bobby como doente e pervertido e perigoso às nossas crianças… sua auto-estima e seu valor próprio estavam sendo destruídos. E finalmente seu espírito se quebrou alem de qualquer conserto. Não era desejo de Deus que o Bobby debruçasse sobre o corrimão de um viaduto e pulasse diretamente no caminho de um caminhão de dezoito rodas que o matou instantaneamente. A morte do Bobby foi resultado direto da ignorância e do medo de seus pais quanto à palavra “gay”. (pausa) Ele queria ser escritor. Suas esperanças e seus sonhos não deveriam ser tomados dele, mas se foram. Há crianças como Bobby presentes nas suas reuniões. Sem que vocês saibam, elas estarão ouvindo enquanto vocês ecoam ‘amém’. E isso logo silenciará as preces delas. Suas preces para Deus por entendimento e aceitação e pelo amor de vocês. Mas o seu ódio e medo e ignorância da palavra ‘gay’ silenciarão essas preces. Então… Antes de ecoar ‘Amém’ na sua casa e no lugar de adoração, pensem. Pensem e lembrem-se. Uma criança está ouvindo.”

ATOR
E se a insensatez humana continua a nos ameaçar com a Terra Arrasada, a Ciência, pela primeira vez na História, pode nos dar a Terra Prometida.

ATRIZ
A liberdade é viva; a liberdade vence; a liberdade vale. Onde houver um raio de esperança haverá uma hipótese de luta.

CORO
Nenhum direito a menos!

WINSTON CHURCHILL
“E agora, boa noite. Durmam a fim de recobrar forças para o amanhã; pois o amanhã virá. E brilhará claro e limpo sobre os bravos, os honestos, os de coração sereno, brilhará sobre todos os que sofrem por esta causa e, mais gloriosamente, sobre a campa dos heróis. Assim será nossa alvorada. Boa noite."

ATRIZ
E a última palavra de Hamlet:

HAMLET
“O resto é silêncio.”

ATOR
A última palavra de Júlio César:

JÚLIO CÉSAR
“Até tu, Brutus?”

ATOR
Jesus Cristo:

JESUS
“Meu pai, meu pai,
por que me abandonaste?”

ATRIZ
Bob Marley:

BOB MARLEY
“Dinheiro não pode comprar a vida.”

ATRIZ
Salvador Dalí:

SALVADOR DALÍ
“Onde estão meus relógios?”

ATOR
Leonardo da Vinci:

LEONARDO DA VINCI
“Eu ofendi a Deus e a humanidade porque meu trabalho não atingiu a qualidade que deveria”

ATOR
E a última palavra de Isaac Newton:

ISAAC NEWTON
“Eu não sei como eu posso parecer para o mundo, mas para mim mesmo eu pareço ter sido apenas um garoto brincando à beira-mar, divertindo-se quando encontrava um seixo mais liso ou uma concha mais bonita do que o normal, enquanto o oceano imenso da verdade permanece completamente por ser descoberto à minha frente”;

CORO
A política é a ciência da liberdade!

CORO
Liberdade!, Liberdade!
Abre as asas sobre nós
E que a voz da igualdade
Seja sempre a nossa voz

Liberdade!, Liberdade!
Abre as asas sobre nós
E que a voz da igualdade
Seja sempre a nossa voz

(agradecem)


FIM