VELHA
LIBERDADE LIBERDADE NOVA
(recorte
e atualização do texto "Liberdade, Liberdade" de Millôr Fernandes e
Flávio Rangel; adaptação e cenas adicionais por Gabriel Tonin)
PARA TRÊS
OU MAIS ATORES
INTRODUÇÃO
(Ainda
com as luzes da platéia acesas, ouvem-se os primeiros acordes do Hino da
Proclamação da República. Uma festa invade o teatro agora com a versão em samba
de Dudu Nobre)
CORO
Liberdade!, Liberdade!
Abre as asas sobre nós
E que a voz da igualdade
Seja sempre a nossa voz
Liberdade!, Liberdade!
Abre as asas sobre nós
E que a voz da igualdade
Seja sempre a nossa voz
Vem, vem reviver comigo amor
O centenário em poesia
Nesta pátria mãe querida
O império decadente, muito rico incoerente
Era fidalguia e por isso que surgem
Surgem os tamborins, vem emoção
A bateria vem, no pique da canção
E a nobreza enfeita o luxo do salão, vem viver
Vem viver o sonho que sonhei
Ao longe faz-se ouvir
Tem verde e branco por aí
Brilhando na Sapucaí e da guerra
Da guerra nunca mais
Esqueceremos do patrono, o duque imortal
A imigração floriu, de cultura o Brasil
A música encanta, e o povo canta assim e da
princesa
Pra Isabel a heroína, que assinou a lei divina
Negro dançou, comemorou, o fim da sina
Na noite quinze e reluzente
Com a bravura, finalmente
O Marechal que proclamou foi presidente
Liberdade!, Liberdade!
Abre as asas sobre nós
E que a voz da igualdade
Seja sempre a nossa voz,
(já no
palco, os atores se acomodam)
CORO
Sou
apenas um homem de teatro. Sempre fui e sempre serei um homem de teatro. Quem é
capaz de dedicar toda a vida à humanidade e à paixão existentes nestes metros
de tablado, esse é um homem de teatro. Nós achamos que é preciso cantar! Gritar!
Falar!
ATRIZ
A
tristeza que a gente tem,
Qualquer
dia vai se acabar,
Todos vão
sorrir,
Voltou a
esperança
É o povo
que dança
Contente
da vida,
Feliz a
cantar.
CORO
Voltaire:
VOLTAIRE
Não
concordo com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte vosso
direito de dizê-las!
CORO
Mme.
Roland, guilhotinada pela Revolução Francesa:
MME.
ROLAND
Liberdade,
liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome!
CORO
Abraão
Lincoln:
LINCOLN
Pode-se
enganar algumas pessoas todo o tempo; pode-se enganar todas as pessoas
algum tempo;
mas não se pode enganar todas as pessoas todo o tempo!
CORO
Napoleão
Bonaparte:
NAPOLEÃO
A França
precisa mais de mim do que eu da França!
CORO
José
Mujica:
MUJICA
Eu não
sou pobre, eu sou sóbrio, de bagagem leve. Vivo com apenas o suficiente para
que as coisas não roubem minha liberdade.
CORO
Karl
Marx:
MARX
"Trabalhadores
do mundo, uni-vos!
CORO
Carl
Jung:
JUNG
Aquilo a
que você resiste, persiste.
CORO
Karl Popper:
POPPER
Por mais paradoxal que seja, defender a tolerância exige não tolerar a intolerância.
CORO
Carl
Sagan:
SAGAN
O que é
mais assustador? A idéia de extraterrestres em mundos estranhos,
ou a
idéia de que, em todo este imenso universo, nós estamos sozinhos?
CORO
Simone de
Beauvoir:
BEAUVOIR
Querer
ser livre é também querer livres os outros.
CORO
Malcolm
X:
MALCOLM
X:
Não se pode separar paz de liberdade porque ninguém consegue estar em
paz a menos que tenha sua liberdade.
CORO
Anne
Frank:
ANNE
Apesar de
tudo eu ainda creio na bondade humana!
ANNE FRANK
PAI
Abençoado
sejais, Oh, Senhor Nosso Deus, por nos terdes preservado a vida, permitindo-nos
assim comemorar esta festa de alegria. Graças vos damos, Oh Deus Nosso Senhor,
porque em vossa infinita misericórdia quiseste salvar-nos uma vez mais. Anne,
pode conversar com Peter. Mas quando bater nove horas, vá dormir.
ANNE
Sim,
papai. (se aproxima de Peter) Peter, sabe o que a Sara Van Duan disse? Que eu
não devia vir no teu quarto; que no tempo dela as moças não andavam atrás dos
rapazes. (pausa) Você gosta de minha irmã, não é? Você gostou dela assim que a
conheceu. De
mim, não.
PETER
Não sei.
ANNE
Não faz
mal. Ela tem bom gênio, é alegre, é bonita. Eu não.
PETER
Ora, não
é isso.
ANNE
Sei muito
bem. Sei que não sou bonita e nunca serei.
PETER
Eu acho
você bonita.
ANNE
Mentira.
PETTER
Você
mudou; não é como antes.
ANNE
Como?
PETTER
Você
está... não sei... mais quieta.
ANNE
Acho que
quando sair daqui você nem vai mais pensar em mim.
PETER
Isso é
bobagem.
ANNE
Quando
você voltar para junto de seus amigos, dirá: não sei que graça achei naquela
bobinha.
PETER
Não tenho
amigos.
ANNE
Ora,
Peter, todo mundo tem.
PETER
Menos eu.
ANNE
Pensei
que eu fosse sua amiga.
PETER
Você é
diferente; se todos fossem iguais a você...
ANNE
Peter,
você já beijou alguma menina?
PETER
Uma vez.
ANNE
Era
bonita?
PETER
Não sei.
Foi numa festa. Foi naqueles jogos de prendas.
ANNE
Ah, então
não vale, não é?
PETER
Acho que
não.
ANNE
Já me
beijaram duas vezes. Uma vez foi um homem que eu não conhecia; eu tinha caído
na neve, estava chorando e ele me levantou do chão. Outra vez, um amigo de
papai me beijou a mão. Também não vale, não é?
PETER
Também
não.
ANNE
Eu também
acho; minha irmã jamais beijaria alguém se não fosse noiva dele. E sei que
mamãe também nunca beijou outro homem além de papai. Mas eu não sei... está
tudo tão mudado. Você não acha? É tão difícil a gente saber o que tem de fazer
quando o mundo inteiro está caindo aos pedaços... ninguém sabe como será o dia
de amanhã... Diz!
PETER
Depende
muito da pessoa. (o relógio bate nove horas) Não sei, mas acho que quando duas
pessoas...
ANNE
Nove
horas. Tenho de ir.
PETER
É.
ANNE
Boa noite.
PETER
Boa
noite. Não deixe de vir amanhã.
ANNE
Não.
Acho... acho que vou trazer meu diário. Escrevi uma porção de coisas sobre
você.
PETER
Bem ou
mal?
ANNE
Você vai
ver. Eu... eu antes não ligava muito para você.
PETER
Você
mudou a meu respeito, como eu mudei com você?
ANNE
Eu...
você vai ver.
(eles se
olham um instante e se beijam; soldados invadem a cena e causam terror; Anne e
Peter se abraçam enquanto os soldados violentam os outros atores)
SOLDADO
Alguns
dias depois, os nazistas descobriram o refúgio da família Frank; foram presos,
e Anne foi assassinada no campo de concentração de Belsen. Seu diário foi
encontrado. Terminava assim:
ANNE
Não somos
os únicos que sofrem; ora um povo, ora outro...
PETER
(chorando)
Isso não me consola.
ANNE
Eu sei
como é difícil se acreditar em alguma coisa, quando há tanta gente ruim; mas
acho que o mundo está passando por uma fase. Passará; daqui a séculos, talvez,
mas passará. Apesar de tudo, ainda acredito na bondade humana.
(música dramática)
SÓCRATES
MELETOS
Sócrates
é um mau ateniense e corrompe a juventude!
SÓCRATES
Que os
quinhentos juízes do povo de Atenas ouçam a minha defesa! A pena de morte pende
sobre minha cabeça! Meletos me acusa de corromper a juventude; mas eu afirmo
que Meletos mente.
JUIZ
Fazeis
então a sua auto defesa, Sócrates.
(silêncio)
SÓCRATES
Respondei
ao acusado, Meletos, como manda a lei: preocupai-vos muito com a educação da
juventude?
MELETOS
Claro.
SÓCRATES
Dizei
então aos juízes quem aprimora a juventude.
MELETOS
As leis
aprimoram a juventude.
SÓCRATES
Eu quero
saber quem lida com as leis.
MELETOS
Os
juízes.
SÓCRATES
Portanto,
os juízes deste tribunal aprimoram a juventude?
MELETOS
Sem
dúvida.
SÓCRATES
Todos
eles, ou uns sim e outros não?
MELETOS
Todos
eles.
SÓCRATES
Oh,
graças a Deus. Então temos muitos aprimoradores e educadores da juventude. E a
audiência aqui presente – é composta de pessoas que aprimoram a juventude?
MELETOS
Sim.
SÓCRATES
E os
senadores?
MELETOS
Os
senadores dão excelente exemplo à juventude.
SÓCRATES
E os
membros da Assembléia? Ou quem sabe esta se compõe de corruptores da juventude?
MELETOS
Eles
instruem e melhoram a juventude.
SÓCRATES
Então
todos os atenienses aprimoram a juventude e o único corruptor sou eu?
MELETOS
Exatamente.
SÓCRATES
Desejo
agora fazer uma pergunta sobre cavalos. É possível que só um homem trate mal os
cavalos e todos os outros os tratem bem? A verdade não é exatamente o
contrário? Só um homem – o treinador – está capacitado a tratar bem dos
cavalos?
MELETOS
Eu não...
SÓCRATES
Não é
certo? A juventude não seria muito feliz se tivesse um único corruptor e todos
os outros cidadãos como aprimoradores?
MELETOS
Não é
exatamente...
SÓCRATES
Ora,
segundo vós, eu corrompo os jovens porque lhes ensino a desrespeitar os deuses
do Estado e crer em novas divindades espirituais.
MELETOS
Pus toda
a ênfase nessa acusação.
SÓCRATES
E no
entanto afirmais que eu sou um ateu completo e um instrutor de ateísmo?
MELETOS
Um ateu
completo!
SÓCRATES
(Dirigindo-se
ao público) Não posso deixar de pensar, homens de Atenas, que Meletos é
atrevido e impudente e irresponsável e cheio de bravatas juvenis. Pois me vê
culpado por acreditar em deuses e me vê culpado por ser ateu. Como posso
acreditar em semideuses e não acreditar em deuses? Como posso não acreditar nos
homens e acreditar nos feitos humanos? Conheceis alguém que acredite em
cavalaria e não acredite em cavalos? Ou num flautista sem flauta? Pode um homem
acreditar em forças espirituais e divinas sem acreditar em deuses? (Pausa.
Dirige-se a Meletos) – Respondei, Meletos, é a vós que pergunto.
MELETOS
(pensa) Não
pode.
SÓCRATES
(para a
platéia) Senhores, já fui muito longe para me defender das acusações de
Meletos. Não estou aqui para falar em meu benefício, mas no vosso. Se tivésseis
a sabedoria de esperar mais um pouco, vosso desejo de me extinguir seria
satisfeito pela própria natureza. Tenho setenta e dois anos – sou bem velho
como vedes – e não muito distante do fim. Se me matardes agora, porém, todos os
detratores de Atenas se apressarão em gritar que matastes Sócrates, um sábio.
Pois sempre que quiserem vos atacar, eles me chamarão de sábio, mesmo que não o
achem. Serei condenado não por corruptor mas pela inveja e perfídia dos
ambiciosos, que têm provocado a morte de tantos varões íntegros e pelos séculos
afora provocarão a morte de muitos mais. Não podeis me ferir, porque não podeis
me atingir. Podeis apenas matar-me, exilar-me, ou cassar meus direitos
políticos. Mas eu não sou o primeiro; e não há perigo que eu seja o último.
(música
dramática)
CORO
É golpe!
MULHERES
A
revolução vira do feminino!
(somente
as mulheres ficam em cena)
MULHERES
"Presenciei tudo isso
Dentro da minha família
Mulher com olho roxo espancada todo dia
Eu tinha cinco anos, mas já entendia
Que mulher apanha se não fizer comida
Mulher oprimida, sem voz, obediente
Quando eu crescer eu vou ser diferente
VALERIE
SOLANAS
Eu
cresci..."
(música
"100% Feminista" Karol Comka e Mc Carol)
VALERIE
SOLANAS
VALERIE
Valerie
Jean Solanas foi uma feminista radical e escritora estadunidense. Ela escreveu
o livro SCUM Manifesto onde propõe a criação de uma sociedade dirigida pelas mulheres,
livre do controle masculino, na qual homens seriam aniquilados e extintos para
que as mulheres pudessem viver em harmonia e igualdade.
(Andy
Warhol entra em cena sob bajulos dos seus funcionários)
VALERIE
Warhol! Canalha!
Eu estou esperando há horas feito uma idiota!
WARHOL
Desculpe,
querida Valerie, estive ocupado. Não posso te atender todo momento que achar
que precisa falar comigo.
VALERIE
Onde está
meu roteiro? Quero meu roteiro de volta!
WARHOL
Flor, dá
pra você gritar mais baixo? Tem gente trabalhando aqui. Todo dia isso?
VALERIE
Você
falou que ia fazer meu filme, Warhol! Você me prometeu que ia ler o meu
roteiro. Onde ele está? Quero ele de volta.
WARHOL
Devo ter
deixado... bem, não sei exatamente onde foi que coloquei.
VALERIE
(Depois
de uma pausa) Você perdeu. Você perdeu o meu roteiro?
WARHOL
Valerie,
a verdade é que não há mulheres que se dão bem nesse ramo. Você poderia tentar
ser uma atriz. Ou quem sabe uma modelo.
FUNCIONÁRIA
Valerie
modelo? Precisaria perder uns quilinhos, né? (ri)
WARHOL
Não
existem roteiristas mulheres, Valerie. O mundo real é esse. Com licença...
VALERIE
E por que
não? Eu escrevi aquele roteiro! Eu escrevi! Você viu que era bom e preferiu
ignorar por conta desse seu orgulho masculino de merda, Warhol! Essa é a
verdade! Ou você está pretendendo me plagiar, Warhol? Você vai roubar a minha
ideia, não é, seu canalha?!
WARHOL
Mulheres
não possuem ciência para a arte, meu amor, não sou eu quem estou dizendo isso,
é a biologia, é a história do mundo. Eu não preciso roubar sua ideia, Valerie,
eu jamais assumiria aquilo que você acha ser o roteiro de um filme. Ninguém vai
fazer o seu filme, Valerie.
VALERIE
Você é
uma bicha, Warhol! Quero meu roteiro de volta! Aquela era a única cópia!
WARHOL
Eu não me
lembro onde deixei. Talvez no café... não. Vou ver se acho e qualquer coisa a
gente liga. Anne!
FUNCIONÁRIA
Venha,
Valerie, a gente tá atolado de trabalho aqui! (puxa Valerie para fora de cena)
VALERIE
Eu mato
você, Warhol! Eu juro que mato você! Quero meu roteiro de volta! (sai)
WARHOL
Ela não é
maravilhosa?
(a cena
se transforma em uma reunião entre as mulheres; há apenas um homem)
VALERIE
Aquele
canalha do Warhol é um exemplo de como os homens são as desgraças desse mundo!
Você já viu uma mulher começando uma guerra?
MULHERES
Não.
VALERIE
Alguém já
viu uma mulher fazendo merda na política? A maioria dessas merdas do sistema
estão na merda porque são os homens que cagam todas elas! Merdinha por
merdinha, não tem uma que não seja fruto da mão masculina! Eles nem limpar a
bunda direito conseguem! Tem uma estatística disso, é sério! Eu não tô
inventando isso! Tudo! Tudo que tem de ruim nesse mundo é culpa desses canalhas
que querem manter a gente numa escravidão desde sempre, desde a história de
Eva! A culpa sempre foi colocada na gente, mas são eles! Eles são os canalhas
em todas as épocas da história humana! E ainda jogam a culpa e o maior trabalho
e a escravidão sexual tudo em cima da mulher! Warhol é um exemplo de que nem o
homem viado salva nessa bosta de sistema! Você! (para o homem) Diga para todas
qual o seu direito de estar aqui?
HOMEM
Eu sou um
bosta. Todos nós somos bostas. Eu estou aqui para servir.
VALERIE
Exatamente.
Quando nós tomarmos as rédeas desse jogo não vai mais existir puta nenhuma pra
dar luz pra esses filhos da puta.
(volta
para o estúdio de Warhol)
VALERIE
Warhol!
FUNCIONÁRIA
Agora
não, Valerie, ele está ocupado.
WARHOL
O que
você quer, Valerie? Eu não consegui achar seu texto ainda...
(Valerie
retira uma arma de um saco de pão e atira em Warhol; música de suspense)
VALERIE
Devemos
tomar cuidado pra não confundir a reação do oprimido, com a real violência do
opressor, por mais radical que essa reação seja.
FUNCIONÁRIA
Vadia
radical!
WARHOL
Sabe o
que é melhor de tudo, Valerie? No final você será sempre lembrada por causa do
meu nome. Você sempre será associada pela morte de Andy Warhol, um homem.
CLARISSA
(Depois
de uma pausa) Nããããão!
(clima
tragicômico)
MARCO
ANTÔNIO E DR. GUILLOTIN
ATRIZ
Liberdade, liberdade
Abre as asas sobre nós
Nas lutas, nas tempestades
Dá que ouçamos tua voz
CORO
Liberdade!
Independência!
A tirania
está morta!
Proclamai-o
pelas ruas!
César
está morto!
MARCO
ANTÔNIO
Prestai-me
atenção! Eu vim para enterrar César, não para elogiá-lo. O mal que os homens
fazem vive depois deles. O bem é quase sempre enterrado com seus ossos. Seja
assim com César. O nobre Brutus vos disse que César era ambicioso. Se isto é
verdade, era um defeito grave. E gravemente César o pagou. Aqui – com permissão
de Brutus e do resto –, Pois Brutus é um homem honrado, como eles todos são,
todos homens honrados – Eu venho falar no funeral de César. Ele foi meu amigo,
fiel e justo;
Mas
Brutus diz que era ambicioso – e Brutus é um homem honrado. Trouxe para Roma
uma multidão de cativos, cujos resgates encheram nosso tesouro. Isto em César
parecia ambicioso? Sempre que os pobres choravam, César se lastimava; a ambição
deveria ser de matéria mais dura. Mas Brutus diz que era ambicioso, – e Brutus
é um homem honrado. Eu não falo para desaprovar do que Brutus falou; Estou aqui
para falar do que sei. Todos vós o amastes, e não sem motivo; Que motivo vos
impede agora de chorar por ele? Ó justiça! Fostes morar com os animais
selvagens Pois os homens perderam o raciocínio! Ainda ontem a palavra de César
podia enfrentar o mundo; Mas agora aí jaz
E ninguém
tão humilde que o reverencie. Se tendes lágrimas, preparai-vos agora para derramá-las.
Todos vós conheceis este manto (mostra o manto); eu me lembro da primeira vez
em que César o usou. Olhai: por aqui penetrou a adaga de Cássio;
Vede o
rasgão que fez o invejoso Casca. Por aqui passou o punhal do bem amado Brutus. E
ao retirar seu aço maldito notai que o sangue de César o seguiu como correndo à
porta, a fim de convencer-se de que era Brutus mesmo quem batia de modo tão
cruel. Pois Brutus, como o sabeis, era o anjo de César. Julgai, ó Deuses, como
César o amava. Este foi o golpe mais cruel de todos, pois quando o nobre César
viu-o apunhalando, a ingratidão, mais forte que a mão dos traidores, o derrotou
completamente; aí seu poderoso coração partiu-se e escondendo o rosto neste
manto,
o grande
César caiu aos pés da estátua de Pompeu que escorria sangue o tempo todo.
Oh, que
queda foi aquela, camaradas! Eu, vós, nós todos caímos nesse instante
Enquanto
a traição sangrenta crescia sobre nós. Eu não vim aqui para acirrar paixões;
apenas
falo reto e vos digo somente o que todos sabeis; Mas fosse eu Brutus – e Brutus
Antônio, e haveria aqui um Antônio capaz de sacudir as almas, colocando uma
língua em cada ferida de César, para erguer em revolta as pedras de Roma! Pois
este era um César! Como ele, que outro haverá?
CHE
GUEVARA
Sonha e
serás livre de espírito... luta e serás livre na vida.
CORO
Che!
Companheiros e companheiras! A caça aos rebeldes comunistas terroristas
comedores de criancinhas, feminazis abortistas e gayzistas pós-modernistas começou
ontem sim, meu filho! Pode acreditar!
DR.
GUILLOTIN
O calo
está por aqui! (faz sinal cortando o pescoço e todos o acompanham)
Apresento-lhes, a guilhotina.
(enquanto
à frente Dr. Guillotin dá o exemplo da guilhotina, ao fundo os outros atores morrem
de outras formas, como exemplo, crucificado na cruz, cadeira elétrica e injeção
na veia)
DR.
GUILLOTIN
“Com o
aparelho que modestamente apresento a esta Assembléia, humanizamos o processo
da morte. O mecanismo se abre automaticamente. A lâmina cai como um raio. A
cabeça salta, o sangue jorra; era uma vez um homem. Criminoso e carrasco se
beneficiam ambos com o processo. E acabamos também com o odioso privilégio de
só os nobres serem decapitados. A pena de morte será igual para todos;
democrática.”
CORO
Polícia
Federal: A Lei é Para Todos sim! Pode acreditar!
DR.
GUILLOTIN
Segundo
Noel Rosa, fonte histórica para o caso, Monsieur Guillotin também foi...
democratizado.
ATOR
A
verdade, meu amor, mora num poço...
É Pilatos
lá na Bíblia quem nos diz.
ATRIZ
E também
faleceu por ter pescoço
O infeliz
autor da guilhotina de Paris.
ATOR
Enfim, em
épocas difíceis é assim mesmo; só não corre perigo quem não tem pescoço.
CORO
Desobediência
civil! Queremos pão, queremos pão, queremos pão... Morte ao Rei! Viva a
República!
ATRIZ
Todo
poder ao carrasco!
ATOR
Mata o
vagabundo!
ATRIZ
Ditadura
militar já!
BOLSONARO
“O filho
começa a ficar assim, meio gayzinho, leva um couro e muda o comportamento dele.”
CORO
Não
acabou! Tem que acabar!
Eu quero
o fim da polícia militar!
ATOR
A
Revolução é mais que um crime; é um erro político! Desce o cacete nesses
vagabundos, porra! Mito! Quem procura osso é cachorro!
(uma
atriz dá um tapa no rosto desse ator; ele chora feito um bebê)
ATOR
Eu tenho
os meus direitos! Seus violentos!
(uma
briga generalizada se inicia; alguém surge com coxinhas e pão com mortadela e
eles se servem conforme preferência, voltando pra um clima de festa)
ATRIZ
A
Revolução Francesa foi um grande avanço na História; deixou a primeira
Declaração dos Direitos do Homem, com itens fundamentais da nossa vida civil de
hoje:
ATOR
Liberdade
individual;
ATRIZ
Julgamento
por júri;
ATRIZ
Direito
de voto.
ATOR
Abolição
da escravatura;
ATRIZ
Direito
de voto;
ATOR
Soberania
da Nação;
ATOR
Controle
do imposto pelo povo.
ATRIZ
Direito
de voto.
(silêncio)
LIBERDADE
Mas
afinal, o que é a liberdade? Apesar de tudo o que já se disse e de tudo o que
dissemos sobre a liberdade, muitos dos senhores ainda estão naturalmente
convencidos que a liberdade não existe, que é uma figura mitológica criada pela
pura imaginação do homem. Mas eu lhes garanto que a liberdade existe. Não só
existe, como é feita de concreto e cobre e tem cem metros de altura. A
liberdade foi doada aos americanos pelos franceses em 1866 porque naquela época
os franceses estavam cheios de liberdades e os americanos não tinham nenhuma.
Recebendo a liberdade dos franceses, os americanos a colocaram na ilha de
Liberty Island, na entrada do porto de Nova York. Esta é a verdade
indiscutível. Até agora a liberdade não penetrou no território americano. Quando
Bernard Shaw esteve nos Estados Unidos foi convidado a visitar a liberdade, mas
recusou-se afirmando que seu gosto pela ironia não ia tão longe. Aquelas coisas
pontudascolocadas na cabeça da liberdade ninguém sabe o que sejam. Parecem
previsão de defesa antiaérea. Coroa de louros certamente não é. Antigamente era
costume coroar-se heróis e deuses com coroas de louros. Mas quando a liberdade
foi doada aos Estados Unidos, nós os brasileiros já tínhamos desmoralizado o
louro, usando-o para dar gosto no feijão. A confecção da monumental efígie
custou à França trezentos mil dólares. Quando a liberdade chegou aos Estados
Unidos, foi-lhe feito um pedestal que, sendo americano, custou muito mais do
que o principal: quatrocentos e cinqüenta mil dólares. Assim, a liberdade põe
em cheque a afirmativa de alguns amigos nossos, que dizem de boca cheia e frase
importada, que o “Preço da Liberdade é a Eterna Vigilância”. Não é. Como
acabamos de demonstrar, o preço da liberdade é de setecentos e cinqüenta mil
dólares. Isso há mais de dois séculos atrás. Porque atualmente o Fundo
Monetário Internacional calcula o preço da nossa liberdade mais ou menos em
treze milhões de dólares. De qualquer forma, quem é os Estados Unidos hoje na
fila do pão, não é mesmo, meus amigos? Vai falar de liberdade o país que diz
lutar contra o terrorismo, mas que foi o único do mundo a usar a bomba atômica?
Twice!
CORO
Duas
vezes!
ABRAHAM LINCOLN
“Há
oitenta e sete anos atrás nossos pais fundaram neste continente uma Nação nova,
baseada na liberdade e dedicada ao princípio de que todos os homens nascem
iguais. Agora estamos empenhados numa grande Guerra Civil para verificar se uma
tal Nação – ou qualquer outra assim concebida – poderá perdurar. Estamos
reunidos num grande campo de batalha desta guerra. Viemos para consagrar um
recanto do mesmo como o último lugar de repouso para aqueles que deram a vida a
fim de que essa Nação pudesse sobreviver. O mundo não notará nem se lembrará
por muito tempo do que dizemos aqui; mas jamais poderá se esquecer do que eles
aqui fizeram. Quanto a nós, os vivos, cabe dedicarmo-nos à obra inacabada que
os que aqui lutaram já levaram tão longe. Decidamos aqui que esses mortos não
morreram em vão; que esta Nação, sob a proteção de Deus, renascerá para a
liberdade, e que o governo do Povo, pelo Povo e para o Povo não desaparecerá da
face da terra.”
CORO
Glory,
glory, halleluiah,
His truth
is marching on.
ATRIZ
Ê, eu
achei uma beleza esse discurso do Lincoln.
ATOR
Gostou?
ATRIZ
É. Mas eu
queria dizer uma coisa, a você e a todos – e quem avisa amigo é; se o governo continuar
permitindo que certos parlamentares falem em eleições; se o governo continuar deixando
que certos jornais façam restrições à sua política financeira; se continuar
deixando que alguns políticos mantenham suas candidaturas; se continuar
permitindo que algumas pessoas pensem pela própria cabeça, mesmo os idiotas; se
continuar deixando que os juízes do Supremo Tribunal Federal concedam
habeas-corpus a três por dois; e se continuar permitindo espetáculos como este,
com tudo que a gente já disse e ainda vai dizer – nós vamos acabar caindo numa
democracia!
PRETO PIO E ZUMBI DOS PALMARES
CORO
O nosso som não tem idade, não tem raça
E não tem cor
Mas a sociedade pra gente não dá valor
Só querem nos criticar pensam que somos animais
Se existia o lado ruim hoje não existe mais
Porque o funkeiro de hoje em dia caiu na real
Essa história de porrada isso é coisa banal
Agora pare e pense, se liga na responsa
Se ontem foi a tempestade hoje vira abonança
É som de preto, de favelado
Mas quando toca ninguém fica parado
(música
“Som de Preto” de Amilcka e
Chocolate; o clima muda para um drama)
ATOR
Naquele
tempo,
num lugar
todo enfeitado,
nós
ficava amuntuado
pra
esperá os compradô...
No mesmo
dia
Em que
levaram minha preta,
Me botaro
nas grilheta
Que é pra
mode eu não fugi...
LUÍS GAMA
“Todo
escravo que matar seu senhor, seja em que circunstância for, mata em legítima
defesa!”
ATOR
Gritando
essa frase, o poeta e advogado Luís Gama deu início à amarga batalha literária
pela libertação do negro no Brasil.
CORO
O Exôdo
de Capivari.
ATOR
Preto
Pio, um escravo rebelde daqui das terras de Capivari fugiu e é tudo culpa desse
crioulo essa onda abolicionista que tem afetado o nosso país.
ATRIZ
Levou
junto as minhas empregadas. Eu tratava aquelas meninas como se fossem da
família.
ATOR
Ouvi
dizer que ele matou um soldado na Serra de Cubatão.
ATRIZ
O que?
Crioulo afrontoso!
ATOR
Foi
morto. Graças à Deus conseguiram abater.
ATRIZ
A
autópsia revelou que o crioulo passou seus últimos três dias de vida sem se
alimentar.
ATOR
O Clube
Militar chegou a enviar uma carta ao Imperador recusando-se a continuar caçando
escravos, tudo por causa de pena de escravo. Nem nos militares se dá pra
confiar mais hoje em dia.
ATRIZ
Eu tenho
dó, por isso que eu adoto. Adotava, né? Dava três refeição pra essas pestes e
cama ainda. Essa história toda e nem funcionário a gente pode ter mais. Deus
não disse que foi feito pra gente usufruir do serviço?
ATRIZ
A
odisséia de Preto Pio aconteceu apenas um ano antes da Abolição da Escravidão
no Brasil.
ATOR
Abolição
em teoria, né?
ATRIZ
Alguns
escravos conseguiram sentir o gosto pela liberdade. Organizaram-se em
quilombos, o mais famoso dos quais o de Palmares, foi brutalmente destruído
pelo bandeirante Domingos Jorge Velho. Seu líder era o negro Zumbi:
ZUMBI
Não morre
quem lutou
Não morre
um ideal
Arranca a
folha, vem a flor,
Arranca a
flor, vem o pinhão...
Enquanto
ele viveu
Justiça
distribuiu
E a
Liberdade
era fácil
de alcançar...
Não morre
quem lutou
Não morre
um ideal
Arranca a
folha, vem a flor,
Arranca a
flor, vem o pinhão...
CORO
O poder
se assentava sobre a fome. A subnutrição constante trazia
diminuição
da estatura, deformações esqueléticas, dentição podre, insuficiência tiroidiana,
velhice prematura, preguiça, anemia e tuberculose.
ATOR
O absurdo
é que depois de tudo isso, mesmo depois da virada do milênio e do bum da
ciência nos últimos anos muitos brazileiros e cidadãos do mundo inteiro vivem
ainda em regime escravidão e de semi-escravatura.
CORO
O poder
se assenta sobra a fome. E a subnutrição constante traz diminuição da estatura,
deformações esqueléticas, dentição podre, insuficiência tiroidiana, velhice
prematura, preguiça, anemia e tuberculose.
ATRIZ
Direito
de voto.
JOSEPH BRODSKY E EDDIE SLOVIK
BRODSKY
Julgamento
de um poeta
INVESTIGADOR
Qual é
seu nome?
BRODSKY
Joseph
Brodsky.
INVESTIGADOR
Qual é
sua ocupação?
BRODSKY
Escrevo
poemas. Traduzo. Suponho que...
INVESTIGADOR
Não
interessa o que o senhor supõe. Fique em pé respeitosamente. Não se encoste na
parede. Olhe para a corte. Responda com respeito. O senhor tem um trabalho
regular?
BRODSKY
Pensei
que fosse um trabalho regular.
INVESTIGADOR
Dê uma
resposta precisa.
BRODSKY
Eu
escrevia poemas: julguei que seriam publicados. Supus...
INVESTIGADOR
Não
interessa o que o senhor supõe. Responda porque não trabalhava.
BRODSKY
Eu
trabalhava; eu escrevia poemas.
INVESTIGADOR
Isso não
interessa. Queremos saber a que instituição o senhor estava ligado.
BRODSKY
Tinha
contratos com uma editora.
INVESTIGADOR
Há quanto
tempo o senhor trabalha?
BRODSKY
Tenho
trabalhado arduamente.
INVESTIGADOR
Ora,
arduamente! Responda certo.
BRODSKY
Cinco
anos.
INVESTIGADOR
Onde o
senhor trabalhou?
BRODSKY
Numa
fábrica, em expedições geológicas...
INVESTIGADOR
Quanto
tempo trabalhou na fábrica?
BRODSKY
Um ano.
INVESTIGADOR
E qual é
seu trabalho real?
BRODSKY
Eu sou um
poeta. E tradutor de poesia.
INVESTIGADOR
Quem
reconheceu o senhor como poeta e lhe deu um lugar entre eles?
BRODSKY
Ninguém.
E quem me deu um lugar entre a raça humana?
INVESTIGADOR
O senhor
aprendeu isso?
BRODSKY
O quê?
INVESTIGADOR
A ser
poeta? Não tentou ir para uma Universidade onde as pessoas são ensinadas, onde
aprendem?
BRODSKY
Não
pensei que isso pudesse ser ensinado.
INVESTIGADOR
Então
como...?
BRODSKY
Eu pensei
que... Por vontade de Deus...
INVESTIGADOR
É
possível ao senhor viver do dinheiro que ganha?
BRODSKY
É
possível. Desde que me prenderam sou obrigado a assinar um documento, todos os
dias, declarando que gastam comigo quarenta copeques. Eu ganhava mais do que
isso por dia.
INVESTIGADOR
O senhor
não precisa de ternos, sapatos?
BRODSKY
Eu tenho
um terno. É velho, mas é um bom terno. Não preciso de outro.
INVESTIGADOR
Os
especialistas aprovaram seus poemas?
BRODSKY
Sim, fui
publicado na Antologia dos Poetas Inéditos e fiz leituras de traduções do
polonês.
INVESTIGADOR
Seria
melhor, Brodsky, que explicasse à corte por que não trabalhava no intervalo de
seus trabalhos.
BRODSKY
Eu
trabalhava. Eu escrevia poemas.
INVESTIGADOR
Mas
existem pessoas que trabalham numa fábrica e escrevem poemas ao mesmo tempo. O
que o impediu de fazer isso?
BRODSKY
As
pessoas não são iguais. Mesmo a cor dos olhos, dos cabelos... a expressão do
rosto.
INVESTIGADOR
Isso não
é novidade. Qualquer criança sabe disso. Seria melhor que explicasse qual a sua
contribuição para o movimento comunista.
BRODSKY
A
construção do comunismo não significa somente o trabalho do carpinteiro ou o
cultivo do solo. Significa também o trabalho intelectual, o...
INVESTIGADOR
Não
interessam as palavras pomposas. Responda como pretende organizar suas
atividades de trabalho no futuro.
BRODSKY
Eu queria
escrever poesia e traduzir. Mas se isso contraria a regra geral, arranjarei um
trabalho... e escreverei poesia.
INVESTIGADOR
O senhor
tem algum pedido a fazer à corte?
BRODSKY
Eu
gostaria de saber por que fui preso.
INVESTIGADOR
Isso não
é um pedido; é uma pergunta.
BRODSKY
Então não
tenho nenhum pedido.
INVESTIGADOR
Brodsky
foi condenado a cinco anos de trabalhos forçados, numa fazenda estatal de
Arcangel, na função de carregador de estrume. O poeta tinha vinte e quatro
anos.
SLOVIK
O
julgamento de um soldado.
TENENTE
Soldado
Eddie D. Slovik, nº 36.896.415, Companhia de Infantaria G-109, 28ª Divisão,
Exército dos Estados Unidos da América do Norte. (levanta o braço.) – Praça
Slovik, é acusado de recusar-se a servir aos Estados Unidos usando rifle e
baioneta, tendo desertado para evitar os perigos oriundos do dever de lutar em
combate. Declara-se inocente ou culpado?
SLOVIK
Culpado.
TENENTE
Tem
alguma coisa a alegar em sua defesa?
SLOVIK
Não, eu
fugi; eu não queria lutar.
TENENTE
Você
tinha conhecimento de que milhares de soldados tentam escapar ao serviço com
estratagemas de má conduta, ferimentos autoprovocados ou fingindo insuficiência
mental?
SLOVIK
Ouvi
falar.
TENENTE
Sabia do
tratamento condescendente do Governo para com esses casos?
SLOVIK
Sim.
TENENTE
Você teve
oportunidade de voltar ao campo de batalha?
SLOVIK
O Coronel
ameaçou-me com a Corte Marcial caso eu não voltasse imediatamente. Mas todo
mundo sabe que a 28ª Divisão é o próprio Inferno. Respondi que se me mandassem
de volta eu fugia de novo. Eu não queria lutar.
TENENTE
Conhece o
princípio militar segundo o qual um cidadão fisicamente capaz que não luta pelo
seu país não merece viver?
SLOVIK
Não. Não
conheço.
TENENTE
Segundo
uma testemunha, o soldado Tankey, você se recusou a limpar o rifle.
SLOVIK
Não.
Apenas disse: “Não sei pra que estou limpando esse rifle. Não pretendo usá-lo”.
TENENTE
Sua
decisão foi causada por alguma crença religiosa?
SLOVIK
Não. Eu
não pretendia lutar. Minha vida foi muito dura, foi terrível. Tive que roubar
para comer. Passei boa parte da minha vida na prisão. Se eu fosse convocado no
início da guerra, há um ano e meio, pode ser que eu lutasse. Mas eu estava
preso. Agora que eu tenho uma mulher, um apartamento mobiliado e um Pontiac, eu
não vou lutar. Não disparei meu rifle nem uma vez. A partir de um certo momento
deixei até de carregar munição.
TENENTE
(para a
plateia) – Os superiores do soldado Slovik não recomendam clemência. Para ele e
para os soldados que queiram imitá-lo, a prisão não é um castigo nem uma
ameaça. Ele desafiou diretamente a autoridade do Governo! Se a pena de morte
por deserção jamais foi imposta, este é um caso em que ela é justa, a fim de
manter a disciplina sem a qual nenhum Exército pode enfrentar seus inimigos!
SLOVIK
Os
Estados Unidos da América do Norte enviaram para a Segunda Guerra Mundial
10.110.103 soldados. Desses, uma cifra que se acredita ultrapassar de um milhão
conseguiu escapar ao combate usando os mais variados estratagemas. Aproximadamente quarenta mil desertaram. Desses
desertores, dois mil seiscentos e oitenta e quatro foram levados à Corte
Marcial; quarenta e nove foram condenados à pena de morte...
TENENTE
Eddie
Slovik foi o único executado. (eles encenam) Um pelotão de não menos de oito e
não mais de doze soldados, comandados por um sargento, colocarse-á num lugar
previamente marcado, formado em fila simples ou dupla, encarando o prisioneiro
amarrado a um poste, numa distância não maior de vinte passos. Os membros do
pelotão portarão rifles regulares, os quais serão carregados secretamente pelo
oficial incumbido de executar a sentença. Um dos rifles será carregado com
pólvora seca e não deverá ser identificado. O oficial postar-se-á ao lado do
grupo de tiro e comandará: 1º– Pelotão! 2º– Preparar! 3º– Apontar! 4º
SLOVIK
Vamos,
camaradas, me dêem uma última oportunidade! Me soltem, e me fuzilem enquanto eu
corro pela neve! O governo está precisando de um exemplo; vão me matar porque
eu roubei um pedaço de pão quando tinha doze anos! Camaradas, me ajudem! Me
deixem correr pela neve.
CORO
Fogo!!!
TERROR E MISÉRIA NO III REICH
ATRIZ
Sem de
forma alguma mudar de assunto, mas vocês já notaram que ainda hoje tem gente
fazendo as mesmas coisas que Adolf Hitler fez? Tem gente aqui perto da gente
que defende em certo ponto e que compartilha do mesmo formato de pensamento.
Ainda hoje.
MULHER
Onde está
Klaus? Klaus! Onde é que se meteu esse menino?
MARIDO
Por que
você está tão nervosa? Só porque o menino saiu?
MULHER
Eu não
estou nervosa. Você é que está nervoso. Anda tão descontrolado...
MARIDO
Estou o
que sempre fui, mas o que tem isso a ver com a saída do menino?
MULHER
Você sabe
como são as crianças. Ficam ouvindo tudo.
MARIDO
E daí.
Que é que tem?
MULHER
Que é que
tem? E se ele contar? Você sabe que na Juventude Hitlerista eles têm que contar
tudo. O estranho é que ele saiu de mansinho.
MARIDO
Ora, que
bobagem!
MULHER
O que é
que ele teria ouvido da nossa conversa?
MARIDO
Ele não
dirá nada. Ele sabe o que acontece aos que são denunciados.
MULHER
E que é
que tem isso? O filho do vizinho não delatou o próprio pai? Ele ainda não saiu
do campo de concentração.
MARIDO
Deixa
disso. Você está se alarmando à toa.
MULHER
Você
disse que os jornais mentem. Você falou sobre o Quartel General. Não devia ter
falado. Klaus é tão nacionalista.
MARIDO
Mas o que
foi que eu disse, precisamente?
MULHER
Já se esqueceu?
Você falou de certas sujeiras lá dentro.
MARIDO
Bem, isso
não pode ser interpretado como um ataque. Eu disse que nem tudo é limpo lá
dentro. Não, fui até mais moderado, eu disse que nem tudo é completamente limpo
lá dentro. Isso faz diferença. Eu disse: pode ser que nem tudo seja
completamente limpo, lá. O completamente suaviza a palavra limpo. Foi assim que
eu formulei: pode ser. Não quer dizer que seja.
MULHER
Você não
precisa me dar todas essas satisfações.
MARIDO
Eu
gostaria de não ter que dar. Mas sei lá o que você é capaz de transmitir por aí
do que se conversa aqui em casa. Não estou acusando você de nada e nem acho que
o menino é um delator. Mas...
MULHER
Você quer
parar com isso? Você está dizendo que não se pode viver na Alemanha de Hitler.
MARIDO
Eu não
disse isso!
MULHER
Você age
como seu eu fosse a Gestapo! O que me aflige é o que Klaus possa ter ouvido.
MARIDO
A
expressão Alemanha de Hitler não está no meu vocabulário.
MULHER
Essas
afirmações só podem prejudicar um espírito infantil. E o Führer não se cansa de
dizer: “O futuro da Alemanha está na sua juventude”. (silêncio) O meu filho não
é um delator!
MARIDO
Mas é
vingativo.
MULHER
Mas,
agorinha mesmo eu dei vinte centavos a ele. Eu lhe dou tudo que me pede...
MARIDO
Isso é
suborno.
MULHER
Como
suborno?
MARIDO
Se houver
qualquer coisa vão dizer que tentamos suborná-lo para ele não dizer nada.
MULHER
O que
você acha que eles podem fazer contra você?
MARIDO
Oh, tudo!
Não há limite para o que eles possam fazer.
MULHER
Mas não há
nada contra você!
MARIDO
Há sempre
alguma coisa contra todo mundo.
MULHER
Karl, não
perca a coragem. Você deve ser forte, como o Führer sempre...
MARIDO
Não posso
ficar tranqüilo quando...
(o
telefone toca; eles ficam aterrorizados; a Mulher vai até o telefone)
MULHER
Atendo?
MARIDO
Não sei.
Espere.
(eles
aguardam)
MARIDO
Se tocar
de novo, nós atendemos.
(um
silêncio)
MARIDO
(explode)
Isso não é vida!
MULHER
Karl.
MARIDO
Você me
gerou um Judas. Senta à mesa do jantar e ouve. Toma a sopa e ouve. O delator!
MULHER
Você acha
que devemos nos preparar?
MARIDO
Você acha
que eles vêm agora?
MULHER
Tudo é
possível.
MARIDO
Ponho a
Cruz de Ferro?
MULHER
Claro,
claro. E botamos o retrato de Hitler em cima da escrivaninha, não é melhor?
MARIDO
Sim. (ela
começa a executar a ação, quando ele a interrompe) Espere! Se o menino disser
que o retrato não estava aí antes, é uma agravante. Será apontado como
consciência de culpa. (um barulho) Que barulho foi esse? A porta?
MULHER
Não ouvi
nada. (um barulho mais forte)
MARIDO
Ouviu?
MULHER
(aterrorizada)
Karl!
MARIDO
Não vamos
perder a cabeça. Vá lá.
(a Mulher
sai)
MULHER
Onde é
que você se meteu?! Responda, Klaus! (silêncio; ela muda nitidamente de tom e
depois pergunta de novo, mais doce) Onde você andou até agora, meu filhinho?
(silêncio;
a Mulher volta e aos poucos vai recobrando uma expressão de tranqüilidade e
alívio)
MULHER
Ele
disse... que foi comprar chocolate.
(eles se
olham e começam a sorrir; correm um para o outro e se abraçam, aliviados. Aí então
a expressão dos dois começa novamente a mudar e o Marido, afastando-se da
Mulher, pergunta em tom de suspense)
MARIDO
Será
verdade?
(silêncio;
ambos olham para a plateia em terror)
ATOR
Adolf
Hitler: na sua irresistível ascensão, o Partido Nazista empolgou toda a
Alemanha. Em 1933, Adolf Hitler tomou o poder. Os que não se submetiam à Nova
Ordem eram presos, torturados ou tinham que se exilar. Entre os exilados, o
dramaturgo Bertolt Brecht. Assim via ele a vida na Alemanha, nessa cena de sua
peça Terror e Miséria do III Reich.
HITLER
A guerra
será tal que deverá ser conduzida com uma dureza sem precedentes, sem mercê e
sem trégua! Todos os que se opuserem ao nazismo deverão ser liquidados,
instalaremos Tribunais Nazistas e cabeças rolarão! Autorizo os soldados alemães
a quebrar quaisquer leis internacionais! Eu, Adolf Hitler, sou o Führer, o
líder da Nação, Comandante Supremo das Forças Armadas, Chefe do Governo, Chefe
Executivo Supremo, Juiz Supremo e Chefe do Partido!
ATRIZ
E Hitler
aumentava seu poder territorial: Áustria, Tcheco-Eslováquia, Noruega, Letônia,
Estônia,
Lituânia, Bélgica, Noruega, Dinamarca, Holanda, Polônia. E em junho de 1940, a
França.
ATOR
Os
nazistas assassinaram cinco milhões e setecentos mil judeus no maior genocídio
da história.
ANNE
FRANK
Apesar de
tudo, ainda acredito na bondade humana. Stalingrado!
ATOR
Stalingrado!
ATRIZ
Stalingrado!
ATOR
Stalingrado!
ATRIZ
Stalingrado!
CORO
Stalingrado!
ATOR
Stalingrado
foi a mais violenta batalha da guerra. É considerada por todos os historiadores
como “the turning point” – a reviravolta. Hitler dizia:
HITLER
Se eu não
conseguir o petróleo da região de Stalingrado, perderei a guerra.
ATRIZ
E Stálin
dizia:
STÁLIN
Se eu não
conseguir defender o petróleo da região de Stalingrado, perderei a guerra!
ATOR
Stalingrado
tornou-se para todo o mundo o símbolo da resistência aliada.
CORO
Carlos
Drummond de Andrade:
CARLOS DRUMMOND
Pedra por
pedra reconstruiremos a cidade
Casa e
mais casa se cobrirá o chão.
Rua e
mais rua o trânsito ressurgirá.
Começaremos
pela estação da estrada de ferro
e pela
usina de energia elétrica.
Outros
homens, em outras casas,
continuarão
a mesma certeza.
Sobraram
apenas algumas árvores
com
cicatrizes, como soldados.
A neve
baixou, cobrindo as feridas.
O vento
varreu a dura lembrança.
Mas o
assombro, a fábula
gravam no
ar o fantasma da antiga cidade
que
penetrará o corpo da nova.
Aqui se
chamava
E se
chamará sempre Stalingrado
–
Stalingrado: o tempo responde.
CORO
Por mais
terras que eu percorra
Não
permita Deus que eu morra
Sem que
eu volte para lá
Sem que
leve por divisa
Esse “v”
que simboliza
A vitória
que virá!
ATRIZ
A
Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas proclama a seguinte.
CORO
Declaração
Universal dos Direitos do Homem.
ATRIZ
Todos os
seres humanos nascem iguais e livres em dignidade e direitos, sem distinção de
raça, sexo, cor,
ATOR
idioma,
religião, opinião política ou de qualquer outra índole.
ATRIZ
Todo
indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança de sua pessoa;
ATOR
Ninguém
será submetido à escravidão;
ATRIZ
Ninguém
será submetido a torturas e a tratos cruéis;
ATOR
Ninguém
poderá ser arbitrariamente preso, detido ou desterrado;
ATRIZ
Toda
pessoa tem direito a sair de seu país e a regressar livremente a seu país;
ATOR
Toda
pessoa tem direito à propriedade;
ATRIZ
A
maternidade e a infância têm direito a cuidados especiais;
ATOR
A vontade
do povo é a base da autoridade do poder público;
ATRIZ
E todos
são iguais perante a lei.
MARY
GRIFFITH
“Homossexualidade
é um pecado. Homossexuais estão condenados a passar a eternidade no inferno. Se
quisessem mudar, poderiam ser curados de seus hábitos malignos. Se desviassem
da tentação, poderiam ser normais de novo. Se eles ao menos tentassem e
tentassem de novo em caso de falha. Isso foi o que eu disse ao meu filho,
Bobby, quando descobri que ele era gay. (pausa) Quando ele me disse que era
homossexual, meu mundo caiu. Eu fiz tudo que pude para curá-lo de sua doença.
Há oito meses, meu filho pulou de uma ponte e se matou. Eu me arrependo
amargamente de minha falta de conhecimento sobre gays e lésbicas. Percebo que
tudo o que me ensinaram e disseram era odioso e desumano. Se eu tivesse
investigado além do que me disseram, se eu tivesse simplesmente ouvido meu
filho quando ele abriu o coração para mim… eu não estaria aqui hoje, com vocês,
plenamente arrependida. (pausa) Eu acredito que Deus foi presenteado com o
espírito gentil e amável do Bobby. Perante deus, gentileza e amor é tudo. Eu
não sabia que, cada vez que eu repetia condenação eterna aos gays… cada vez que
eu me referia ao Bobby como doente e pervertido e perigoso às nossas crianças…
sua auto-estima e seu valor próprio estavam sendo destruídos. E finalmente seu
espírito se quebrou alem de qualquer conserto. Não era desejo de Deus que o
Bobby debruçasse sobre o corrimão de um viaduto e pulasse diretamente no
caminho de um caminhão de dezoito rodas que o matou instantaneamente. A morte
do Bobby foi resultado direto da ignorância e do medo de seus pais quanto à
palavra “gay”. (pausa) Ele queria ser escritor. Suas esperanças e seus sonhos
não deveriam ser tomados dele, mas se foram. Há crianças como Bobby presentes
nas suas reuniões. Sem que vocês saibam, elas estarão ouvindo enquanto vocês
ecoam ‘amém’. E isso logo silenciará as preces delas. Suas preces para Deus por
entendimento e aceitação e pelo amor de vocês. Mas o seu ódio e medo e
ignorância da palavra ‘gay’ silenciarão essas preces. Então… Antes de ecoar
‘Amém’ na sua casa e no lugar de adoração, pensem. Pensem e lembrem-se. Uma
criança está ouvindo.”
ATOR
E se a
insensatez humana continua a nos ameaçar com a Terra Arrasada, a Ciência, pela
primeira vez na História, pode nos dar a Terra Prometida.
ATRIZ
A liberdade é viva; a liberdade vence; a liberdade vale. Onde houver um raio de esperança haverá uma hipótese de luta.
CORO
Nenhum
direito a menos!
WINSTON
CHURCHILL
“E agora,
boa noite. Durmam a fim de recobrar forças para o amanhã; pois o amanhã virá. E
brilhará claro e limpo sobre os bravos, os honestos, os de coração sereno,
brilhará sobre todos os que sofrem por esta causa e, mais gloriosamente, sobre
a campa dos heróis. Assim será nossa alvorada. Boa noite."
ATRIZ
E a
última palavra de Hamlet:
HAMLET
“O resto
é silêncio.”
ATOR
A última
palavra de Júlio César:
JÚLIO
CÉSAR
“Até tu,
Brutus?”
ATOR
Jesus
Cristo:
JESUS
“Meu pai,
meu pai,
por que
me abandonaste?”
ATRIZ
Bob
Marley:
BOB
MARLEY
“Dinheiro
não pode comprar a vida.”
ATRIZ
Salvador
Dalí:
SALVADOR
DALÍ
“Onde
estão meus relógios?”
ATOR
Leonardo
da Vinci:
LEONARDO
DA VINCI
“Eu
ofendi a Deus e a humanidade porque meu trabalho não atingiu a qualidade que
deveria”
ATOR
E a
última palavra de Isaac Newton:
ISAAC
NEWTON
“Eu não
sei como eu posso parecer para o mundo, mas para mim mesmo eu pareço ter sido
apenas um garoto brincando à beira-mar, divertindo-se quando encontrava um
seixo mais liso ou uma concha mais bonita do que o normal, enquanto o oceano
imenso da verdade permanece completamente por ser descoberto à minha frente”;
CORO
A
política é a ciência da liberdade!
CORO
Liberdade!,
Liberdade!
Abre as
asas sobre nós
E que a
voz da igualdade
Seja
sempre a nossa voz
Liberdade!,
Liberdade!
Abre as
asas sobre nós
E que a
voz da igualdade
Seja
sempre a nossa voz
(agradecem)
FIM