CIRANDA, FLORES E SOCÃO NA BOCA


CIRANDA, FLORES E SOCÃO NA BOCA
De Gabriel Tonin

(TEATRO DE RUA PARA CINCO OU MAIS ARTISTAS)


CENA ÚNICA

ARTISTA
Respeitável público de todas as cores, idades e gêneros! Peço a atenção de vossas senhorias para uma importante intervenção artística aqui no centro dessa cidade maravilhosa! Chamo todos para um evento de grande reflexão, treta ao vivo e também com um delicioso e nada careta entretenimento com lição de moral!

(TODOS CANTAM E DANÇAM EM FESTA; É UMA CIRANDA MISTURADO COM BRIGA)

TODOS
Cheguei (Quem é gay?)
E agora o bicho vai pegar (É bicha!)
Uma música fofa eu vou cantar (Hummm...)
Na sua cara eu vou jogar-ah-ah (Ah!)
Te arrebentar-ah-ah (Uh!)

Se não tem amor na vida
Aqui você não é bem vinda
Se não tem amor na vida
Aqui você não é bem vinda!

E vai ter socão bem na sua cara!

(A BRIGA TEM UMA VENCEDORA COM UM SOCO DECISIVO EM UM CARA)

TODOS
Uh!

CORONEL
Parou, parou! Parou a palhaçada! O que tá acontecendo nesse dia bonito aqui nessa praça maravilhosa?

ARTISTA 1
Ele falou pra ela ali que lugar de mulher é na cozinha!

TODOS
Oh!

ARTISTA 2
 E ela deu um socão no meio da fuça dele!

ELA
Aqui a gente resolve as coisas assim mesmo, coronel! No soco e ciranda!

ELE
(ATORDOADO) Vence aquele que ficar de pé. Mas ela tava certa, doutor. Mulher pode fazer o que quiser sim. Agora eu vejo. (SORRI SEM UM DENTE E DESMAIA DE NOVO)

ELA
Eu não volto pra cozinha, nem o gay pro armário e nem o negro pra senzala!

TODOS
Êêêê!

ELA
É na força do braço que a gente molda essa sociedade!

TODOS
Êêêê!

ARTISTA 
E na força da poesia também!

(ELES FAZEM CIRANDA EM VOLTA DO CORONEL)

TODOS
Ninguém é obrigado a nada
Ciranda esquerdopata
Todo mundo aprende
Com um socão na sua cara!

Ninguém é obrigado a nada
Ciranda esquerdopata
Todo mundo aprende
Com um socão na sua cara!

CORONEL
Mas precisa ter essas dancinhas e esse florido colorido? Vai no socão direto, pô! Já resolve de uma vez. Chega dessa palhaçada de teatro, isso que irrita!

ARTISTA 
Ô, seu coronel, a gente é gente boa! Ninguém aqui briga com ninguém se não for fazendo colorido e em clima de festa!

TODOS
Êêêê!!!

ARTISTA 
É tudo de brincadeira!

ARTISTA 
Isso que a gente faz é festa pra resolver nossos problemas.

ARTISTA 
É festa na treta, e treta na festa!

ARTISTA 
É tipo carnaval!

CORONEL
Mas não podia ir direto pro socão na boca? Já resolve com o soco e pronto! Não fica parando a vida das pessoas pra fazer festinha na rua assim. As pessoas tão indo trabalhar, vocês ficam enchendo o saco aqui...

ARTISTA
E que graça teria dar um socão na boca sem mensagem de amor antes, coronel?

TODOS
Oh!

ARTISTA
(APAIXONADO) Poetas!

ARTISTA
A gente resolve as coisas é no soco, mas pra ninguém sair falando por aí que somos monstros, a gente faz essa festa de brincadeira pra ficar um pouco mais paz e amor.

ARTISTA
E também pra nossa consciência ficar limpa, leve e solta!

CORONEL
Essa frescura toda é uma completa... viadagem!

TODOS
Oh!

GAY
Eeeepa! Parece muito mais uma frescura masculina heteronormativa e branca, isso sim.

CORONEL
Oras, não se ofenda, gay! Foi modo de dizer, porque vocês homossexuais são mais... frágeis, sensíveis.

GAY
Meu querido, frágil? Não tem nada mais sensível ou frágil que a masculinidade de um homem comum!

ARTISTA
Repare!

(ALGUÉM SURGE COM UMA CAIXA DE PAPELÃO ESCRITO: “CUIDADO, MASCULINIDADE FRÁGIL”; TODOS SE DIVIDEM EM CARREGAR A CAIXA, EQUILIBRANDO NUMA BRINCADEIRA DE QUASE CAIR)

TODOS
Ôôôô! Ôôôô!

ARTISTA
Todos os homens são machistas!

CORONEL
(GRITA FORA DE SI) NÃÃÃÃO!!! NEM TODOS!!! NÃO GENERALIZA!

GAY
Quer sair no soco comigo, coronel? Vamo lá, queridinho. Vem ver a frescura de viado, vem.

CORONEL
O que vocês estão fazendo aqui é subverter as nossas criancinhas! Se for pra dar socão na cara do outro não precisa fazer dancinha e nem flores coloridas e nem lição de moral barata!

ARTISTA 1
Eu já acho que antes de dar um socão a gente tem que ganhar primeiro é na batalha musical!

CORONEL
Mas é a minha opinião!

ARTISTA 1
E é a minha opinião também!

CORONEL
E como a gente resolve isso?

TODOS
Socão na boca e música bonitinha!

(ELES CANTAM E DANÇAM AO REDOR DO CORONEL; O ARTISTA 1 E O CORONEL FICAM AO CENTRO SE PREPARANDO PARA LUTAR)

TODOS
Está em qualquer poesia
Um murro que você dá no outro
Pode ser uma chave de pescoço
Ou então vem com uma rasteira
E tem karaokê ou capoeira
Depende da manifestação
Pode ser uma briga de irmão
Um soco que vem do coração
A gente tira as diferenças
Na paz, no amor e no socão
Está em qualquer poesia
A luta de todo dia
Está em qualquer poesia
A luta de todo dia!

(O CORONEL SACA UMA ARMA; TODOS SE ASSUSTAM)

CORONEL
Acabou a palhaçada, tá ok? Se querem brigar então vamo fazer a coisa à direita! Sem música gostosinha!

(O CORONEL TOMA UM MURRO NA CARA E CAI DESMAIADO; ALGUÉM ESCONDE A ARMA)

ARTISTA 
Murro de esquerda!

ARTISTA
Aqui é treta de paz e amor, tá ligado?

(A MOÇA SURGE)

MOÇA
Esperem, esperem! O que é isso? O que vocês estão fazendo?

CORONEL
(ACORDA TONTO) Oh, querida, eu aprendi a minha lição. Rodas de ciranda e flores com soco funciona sim. (DESMAIA DE NOVO)

MOÇA
Machucaram o coitado!

ARTISTA
Isso é uma manifestação artística!

ARTISTA
E briga de rua ao mesmo tempo!

ARTISTA
Pra resolver as nossas diferenças!

MOÇA
E vocês resolvem as diferenças no grito, com violência?

ARTISTA
No grito não! É no soco mesmo!

ARTISTA
Tem que chegar na voadora!

ARTISTA
O cara sacou uma arma, fia! Você queria que eu desse um abraço nele?

ARTISTA
Colocar uma flor no bico da pistola?

ARTISTA
Nós somos pela paz e pelo amor, porém há um momento de dançar um funk da hora, há um momento de textão no Facebook, e há um momento que só um socão mesmo resolve, na poesia disso tudo.

MOÇA
Eu sou contra qualquer tipo de violência! Em qualquer ocasião.

ARTISTA
O que?

MOÇA
Em nenhum contexto, razão ou circunstância eu acredito que a violência resolve alguma coisa!

TODOS
Oh!

ARTISTA
Nenhum, nenhum?

ARTISTA 1
Mas nós somos seres violentos, minha querida! É o nosso instinto.

ARTISTA 2
Ei, eu não acredito nisso não. Eu acho que estamos em evolução pra não sermos violentos!

ARTISTA 1
Você está errado.

ARTISTA 2
Você é que está. Eu brigo, mas eu brigo pra acabar com a briga.

(O ARTISTA 1 DÁ UM MURRO NO ARTISTA 2; O ARTISTA 1 VENCE A DISCUSSÃO)

ARTISTA 1
Pois bem. Como eu disse, o ser humano é um ser violento por instinto!

ARTISTA 2
(ATORDOADO) Ele tem razão.

MOÇA
Falem por vocês! Eu não sou nenhum pouco violenta não, não tenho dentro de mim. Eu não gosto de brigas e nem de violência! E acho uma hipocrisia quem faz violência pra combater a violência.

TODOS
Oh!

MOÇA
E eu não vou bater em nenhum de vocês não pra defender o que eu acredito.

ARTISTA
Mas então vai apanhar! (AVANÇA NA MOÇA, ALGUÉM IMPEDE)

MOÇA
Se eu apanhar pra mim não vai fazer diferença nenhuma. Eu apanho, mas não mudo de opinião.

TODOS
Oh!

ARTISTA
Ela está subvertendo nossos princípios! Sua... progressista!

MOÇA
Como resolveríamos esse entrave? Se eu for contra a violência, como resolveríamos essa situação sem soco?

TODOS
Oh! Sem soco?

ARTISTA
Nem um tapinha?

ARTISTA
Nada, nada, nada?

ARTISTA
Um tapinha nem dói, vai!

ARTISTA
Não existe solução para nossos problemas se não for chegando na voadora bem no meio do peito da pessoa. É verdade!

TODOS
Éééé!

MOÇA
Pois eu acho que existe sim.

ARTISTA
E eu acho que não existe não!

MOÇA
Existe sim!

ARTISTA
Não existe não!

MOÇA
(GRITA BRAVA) EXISTE SIM, CARA...MBA!

TODOS
Uh!

MOÇA
Eu... é... desculpa...

ARTISTA
Viu, só? Sem grito, sem violência não dá pra resolver nada. Como é que você quer resolver uma diferença se o outro não está disposto a pensar igual você?

MOÇA
Eu...

ARTISTAS
Socão na boca. É na dor a solução, na força do braço que a melhor ideia vence.

TODOS
Éééé!

ARTISTA
Guerra pra terminar a guerra!

TODOS
Éééé!

MOÇA
Não, isso está errado!

ARTISTA
Vamo sair no soco pra ver quem ganha, ué.

MOÇA
Não. Eu não acredito nisso. Mesmo se eu perdesse eu não mudaria minha opinião!

ARTISTA
Então eu venci!

MOÇA
Tá bom. Você venceu. Parabéns.

ARTISTA
Então isso quer dizer que agora você concorda com a gente.

MOÇA
De jeito nenhum! Eu ainda acho que não precisa de violência e não vou mudar a minha opinião.

ARTISTA
Mas isso está errado!

MOÇA
Eu acho que está certo.

ARTISTA
A maluca aí acha que ciranda e flores vai resolver alguma coisa nesse Brasil, gente. Às vezes só um murrão na boca mesmo, moça. Não é pessoal? É ou não é? É real isso, é fato.

MOÇA
Não acredito nisso.

ARTISTA
Quando a polícia parar essa apresentação aqui, entrega uma flor pra ele pra ver se ele deixa continuar! Canta uma musiquinha pra ver.

ARTISTA
Tem que pegar no pedaço de pau mesmo! Ué, eles vem com cecetete!

MOÇA
Eu acho que violência não resolve nada e pronto e acabou!

(ALGUÉM DÁ UM MURRO NA CARA DELA)

TODOS
Oh!

ARTISTA
Você perdeu!

ARTISTA
Na força das ideias, a ideia de que não é necessário violência, acaba de perder no soco!

MOÇA
Eu não mudo de opinião. Vocês podem me bater, me matar, mas eu nunca vou revidar e nunca vou acreditar que vocês estão resolvendo alguma coisa. A minha ideia continua viva.

ARTISTA
Mas você perdeu. Se perdeu tem que aceitar. Entenda!

MOÇA
Não. Não entendo, não aceito.

ARTISTA
Afrontosa!

ARTISTA
Quem você pensa que é?

ARTISTA
Tá bom, garota! E como a gente vai resolver esse conflito agora? Hein? Hein?

(COM UM FUNDO MUSICAL ROMÂNTICO, A MOÇA DISTRIBUI FLORES E CANTA)

MOÇA
Ciranda bonitinha
Vamos todos cirandar
Ninguém volta pra cozinha
Nem a guerra vai voltar

Por isso, meu querido
Não precisa vir no grito
Diga um verso bem bonito
Pro amigo, diz agora!

(A MOÇA COLOCA DOIS ARTISTAS EM CONFRONTO)

ELA
É... o que é pra eu fazer?

TODOS
Soco na boca!

MOÇA
Não! Diz um verso bonito. Fala pra ele.

(TODOS RIEM E DEBOCHAM)

MOÇA
Calma! Calma! Vamos refletir. Qual é a treta de vocês?

ELA
Ele acha que todo político é bandido!

ELE
E ela acha que nem tudo é batata do mesmo saco, que tem político que faz certo! Eu não acho.

ELA
Mas eu acho!

MOÇA
E como a gente resolve essa discussão?

(OS DOIS ARTISTAS VÃO COMEÇAR A BRIGAR)

TODOS
Aê!

MOÇA
Não! Não assim!

ELA
Então como, garota?

MOÇA
Diz uma poesia pra ele.

ELA
Poesia?

ARTISTA
Ai, que vergonha!

MOÇA
Vai. Qualquer poesia.

ELA
Batatinha quando nasce
Espalha a rama pelo chão...

(SILÊNCIO)

ELE
Não tô sentindo nada. Nada mudou. Ainda tô com raiva. Tudo corrupto!

MOÇA
Tem que vir do coração!

ELA
No meu coração só vem a vontade de dar um murrão na cara dele mesmo.

ELE
Pode vir, pode vir! Eu acabo com a sua raça!

ELA
Racista!

ELE
Politicamente correta!

ELA
Sou mesmo!

ELE
Eu vou acabar com você!

ELA
Nem todo político é bandido! Essa é a verdade! Tem gente boa!

ELE 
É tudo farinha do mesmo saco, sua burra!

(ELES COMEÇAM A BRIGAR; OS OUTROS AO REDOR FAZEM FESTA)

TODOS
Briga! Briga! Briga!

MOÇA
Parem! Parem com isso!

(A MOÇA SEPARA A BRIGA)

ARTISTA
Não tem outro jeito de resolver, moça.

MOÇA
Isso está errado. Tem que ter! Tem que ter!

ARTISTA
Mas a coisa... é que não tem mesmo.

(SILÊNCIO GERAL; TODOS REFLETEM ENVERGONHADOS; ELES CANTAM MELANCÓLICOS)

TODOS
Não, não tem
A guerra é justa à quem convém
Pra bater
De frente com alguém
Você pode até aprender.

ANCIÃO
Mocinha! É no choque das estrelas que surgem os mundos! Se não fosse o caos, nada disso existiria!

MOÇA
Eu não queria. Eu acho que poderia ter um outro jeito.

ANCIÃO
Tem. Mas tem hora que não tem.

MOÇA
Então quer dizer que todo mundo aqui é violento de natureza?

(OS ARTISTAS OLHAM PARA A PLATEIA)

MOÇA
Quer dizer que ninguém consegue resolver as coisas no diálogo? No mínimo de civilidade?

ARTISTA
Os caras não conseguem nem tomar um pé na bunda que eles já matam as namoradas aqui nesse Brasil. É esse o mundo que vivemos, infelizmente.

ELA
E se pra sobreviver eu tenho que revidar, olha, minha querida, eu morro, mas eu mato um antes!

MOÇA
Mas é aí que morre todo mundo!

ELA
E vou morrer só eu?

MOÇA
É tão difícil. Vocês não acham difícil? A gente normalizar a treta, a gente fazer música falando de briga e violência? Isso... é horrível.

TODOS
Guerra, planeta da guerra, Terra
Guerra, planeta da Terra, água, guerra
Azul soco na boca...

(SILÊNCIO; TODOS ESTÃO PENSATIVOS; ELES AGORA DECLAMAM SEM MÚSICA, SÉRIOS)

TODOS
A legítima defesa!
É claro que se você estiver numa situação de perigo
Num confronto com um inimigo
Que você se defenda
Que você use o braço
E também a razão e o coração
Que você seja de aço
Pra se defender numa ocasião
O que não pode é romantizar o socão na cara
Que toda reação tenha que ser violenta
Que a violência vire tara
Às vezes por histórias que o povo inventa
Às vezes pra impôr uma ideia rara.
É mesmo um paradigma:
Pra ser contra a intolerância, é preciso ser intolerante à intolerância.

JORGE DA FISCALIZAÇÃO
Parou, parou, parou! Eu sou o Jorge da Fiscalização e esse grupo de teatro não tem autorização pra fazer esse espetáculo subersivo e violento!

ARTISTA
Violência é cultura nacional, tá ok?

JORGE DA FISCALIZAÇÃO
Acabou o espetáculo. Vai. Todo mundo circulando, todo mundo pra casa. Vamo trabaiá, povo! Vamo trabaiá!

ARTISTA
Jorge da Fiscalização, a gente precisa dar um final. Já tava acabando.

MOÇA
Tá quase acabando, moço, tá no final já.

JORGE DA FISCALIZAÇÃO
Não. Sem autorização, sem mamata pra artista vagabundo!

MOÇA
Mas...

JORGE
Nem más e nem boas. Acabou, tá ok?

(A MOÇA DÁ UM MURRO NA CARA DE JORGE)

MOÇA
Eu quero um final feliz!

TODOS
Oh!

MOÇA
(EXPLODE MANIFESTANTE) E a liberdade de expressão?!

TODOS
Éééé!

MOÇA
Somos à favor da paz e do amor sim! Mas se você tá vindo pra acabar com a nossa paz e com o nosso amor, bom, eu tenho que confessar...

TODOS
Eu morro, mas levo um comigo!
Eu morro, mas levo um comigo!
Socorro, se estamos em perigo!
Se o seu inimigo deu um soco na sua boca

Eu vou dar um socão na boca dele!
Eu vou dar um socão na boca dele!
Você quer o direito de tirar o meu direito
Eu vou dar um socão na sua boca!

Eu vou dar um socão na sua boca!
Você quer se armar
E a gente quer se amar
Mas se cê vir bater
Cê também vai apanhar
Você começa a guerra
E a gente termina ela!

Você começa a guerra
E a gente termina ela!

(OS ATORES FINALIZAM COM POSE DE LUTA; ELES AGRADECEM)

FIM






A DEPRESSÃO DE VERÃO DE UM PADRE


A DEPRESSÃO DE VERÃO DE UM PADRE

De Gabriel Tonin, inspirado na história da morte de Jorge Lafond.

PERSONAGENS
VERA
PADRE
PRODUTORES
ENFERMEIROS

CENÁRIO: O QUARTO DE UM PADRE, O CAMARIM DE UM PROGRAMA DE TELEVISÃO E UM LEITO DE HOSPITAL.


CENA 1

UM FOCO APRESENTA O PADRE, COM UMA VELA, EM TOM FÚNEBRE EM SEU QUARTO. O ÁUDIO DA GRAVAÇÃO DO PROGRAMA PODE ESTAR COMO FUNDO, E LOGO SE TRANSFORMA EM UMA MÚSICA INTRODUTIVA MELODRAMÁTICA. O PADRE ESTÁ MAGRO, FRACO, COM UMA BÍBLIA NA MÃO. ELE SE SENTA EM UMA CADEIRA E CONVERSA COM O PÚBLICO.

PADRE
Essa história não é a minha. Por um tempo eu achei que fosse, que essa história fosse sobre a minha pessoa, sobre quem a minha figura representa. Mas hoje eu sei que o protagonista nunca fui eu. (pausa) Deus deve sempre estar no centro dos nossos pensamentos. O amor de Jesus, o amor do pai que entregou seu filho por nós. O pai de toda criação que pede o bem, as coisas boas, o carinho, a compaixão. É desse amor que a gente não pode esquecer nunca. E mesmo se acontecer de um dia esquecer, no outro dia lembra de não esquecer de novo. Nós somos fracos, meus amados. (pausa) Tudo aquilo que a gente semeia, vai ser aquilo que a gente vai colher, todo mundo sabe disso. E deus é justo. A gente aprende colhendo as nossas próprias sementes ruins. (pausa) A gente aprende. Ô, se aprende!

OUTRO FOCO APRESENTA VERA, TRAVESTI, NEGRA, SEM ROUPA DE SHOW, UM POUCO MULHER, UM POUCO HOMEM. ELA CANTA PARA O PADRE, COM LEVE IRONIA.

VERA
E ainda se vier noites traiçoeiras
Se a cruz pesada for, Cristo estará contigo
O mundo pode até fazer você chorar
Mas deus te quer sorrindo.

(TRECHO DA MÚSICA “NOITES TRAIÇOEIRAS”)

PADRE
Mais uma noite, Vera?

VERA
Mais uma noite, Padre. Estamos aí, querido.

PADRE
Eu preciso tomar o meu remédio. Pega ali pra mim, na gaveta.

VERA
E a fé, Padre? (PEGA O REMÉDIO)

PADRE
É, minha filha, a fé tem que ser forte, mas nem sempre a gente consegue. Obrigado.

VERA
De nada, Padre.

(ELES FICAM EM SILÊNCIO ENQUANTO O PADRE TOMA O REMÉDIO)

PADRE
Eu atrasei um minuto pra tomar e você apareceu.

VERA
Se quiser eu vou embora, flor. É só pedir pra ir que eu vou, não precisa todo esse drama masculino comigo, querido. Toda grande mulher sabe bem o momento de ir. Homens que atrapalham tudo.

PADRE
Mulher. Sim.

VERA
Ué. Vai discordar ainda, colega? Você está em posição de discordar, Padre? Eu, hein! Não aprendeu nada depois de tudo?

PADRE
Não, não. Tô concordando com você. Como que era? (IMITANDO BRINCANDO) “Eeepa, bicha não, eu sou uma quase...” Fala aí!

VERA
Meu bem, depois de morta eu não sou mais quase ninguém, não. Eu sou inteira! Inteiríssima! Sem comparações agora. Mulher quando eu quero, Padre. Ninguém pode decidir por mim e o medo dos outros não me afeta mais. A vida real não é comédia escrachada não, é tragédia.

(SILÊNCIO)

PADRE
Peço desculpas. Eu estou pagando, acredite.

VERA
É, meu bem, essa nossa aventura que a gente chama de vida parece um dramalhão saído da cabeça de um maluco! É ou não é? É! A justiça restaurativa do universo, ou de deus, não falha nunca, Padre. Olha pra você. Emagreceu, engordou e agora emagreceu de novo! Parece uma sanfona.

PADRE
No final das contas, deus faz certo por linhas tortas, filha. Foi um ensinamento.

(SILÊNCIO)

VERA
Hum. Depende um pouco do ponto de vista, né, Padre. Vamo conversar aqui. Foi um ensinamento pra você, né? Na sua história, a nossa história pode ser o certo por linhas tortas, afinal você ainda tá vivo, né, queridão? Na minha história, a nossa história é a tragédia da minha vida. E calma, Padre, também não precisa se desesperar. Esse tipo de coisa é muito comum na nossa sociedade, Padre. Você não foi uma excessão nesse mundo, não se preocupe. Nós quase nos acostumamos, até. É uma bosta, mas é, ué.

PADRE
Eu me preocupo sim. Eu me preocupo.

VERA
Tarde. Pra mim não importa mais. Agora já foi.

(SILÊNCIO)

PADRE
Quer que eu faça um chá?

VERA
Tem vinho? Prefiro vinho, se vamos beber. Padre toma vinho, né, Padre?

PADRE
Toma. Padre toma.

VERA
Com álcool, Padre?

PADRE
Com álcool. Só um pouquinho.

(O PADRE COLOCA VINHO EM DUAS TAÇAS)

VERA
Eeee, Padre, hein? Vou falar pra você, viu. Esse mundo está realmente perdido nas drogas lícitas.

PADRE
Ah, poxa, verdade, não posso misturar com o remédio. Vou fazer um chá pra mim.

VERA
Ah, Padre, que isso! Um remedinho com um vinhozinho uma vez ou outra não faz mal pra ninguém. Às vezes a gente precisa um pouco de um sossego mais forte, sabe? Ninguém aqui vai te julgar, meu bem. Tem alguém julgando alguém aqui? Não tem! Vamo brindar! Vai, deixa de viadagem!

PADRE
Viado não, eu sou uma quase...

VERA
Sanfona gospel!

(ELES RIEM E BRINDAM. OS DOIS BEBEM O VINHO NUM SILÊNCIO DEMORADO)

VERA
É, Padre, é isso aí. É o que tem pra hoje, meu filho.

PADRE
Calor que dá, né? Uh!

VERA
É verão, Padre. É verão.

PADRE
É.

(SILÊNCIO)

VERA
Você precisa plantar coisa nova nessa vida pra você conseguir colher qualquer coisa mais fartosa do que essa desgraça que você está chamando de vida aqui, trancafiado nesse quarto, Padre. Quando foi a última vez que você tirou o pó, Padre, puta que o pariu, hein! Luz de vela pra mostrar sua depressão é teatrão, né, Padre? Fala a verdade. É drama, né? Vamo combinar?

PADRE
É muito curioso o meu maior erro nessa minha existência ser a exata figura que quer me colocar pra cima. É romântico demais até, você aqui.

VERA
Ui, Padre. Você é bonito, mas eu sou compromissada aqui no céu, se você quer saber. As bichas vão pro céu sim.

PADRE
Não esse tipo de romântico.

VERA
Sei, sei.

PADRE
É lógico que isso aqui é teatro, filha. Mas a dor... a dor não. A dor não é. Mas aí a gente expressa ela com teatro, entende? Todo mundo é assim.

VERA
Depressão é fogo, Padre. Eu sei. Mata até.

PADRE
Muita gente acha que o depressivo tá fazendo um teatro nas crises. E sabe? Eu acho que ele realmente está fazendo um teatro, fazendo um drama.

VERA
Jura, Padre? Você tá fazendo uma cena de depressivo, é isso? Sua depressão é marketing?

PADRE
Não, não é isso. É que... essa depressão é um incômodo tão grande que faz a pessoa não medir essas consequências de se fazer uma cena, de fazer um drama, de não ver importância de... de tomar um banho. Ou comer. Pensa que horrível a pessoa não conseguir medir as consequências do dramalhão que faz, mesmo com a vida passando na sua cara? O teatro que muitos acusam os depressivos de fazer é exatamente o sinal, o pedido de socorro, mesmo aquele teatro de ator canastrão que parece estar fingindo ser depressivo. Se alguém está fingindo que dói, é porque dói.

(SILÊNCIO)

VERA
Nossa, Padre, mas esse homem está mesmo afiado pra explicar os próprios sentimentos sem precisar colocar deus e o diabo no meio, hein! Tá de parabéns, caralho!

PADRE
(RI) Desculpe.

VERA
Que “desculpe”! Agradece, bicha! Tem que agradecer as coisas, monamour! Toma mais um remédio!

PADRE
O que?

VERA
Toma, Padre! Dá aqui que eu vou tomar um também! (ELA TOMA)

PADRE
Que isso, Vera? Vamo com calma.

VERA
Calma o escambau! Você tá precisando é encher a cara, Padre. Ficar doidão! Quem não afoga as mágoas não segue adiante, querido. (ELA ENCHE AS TAÇAS)

PADRE
Não é assim, eu tenho que... que...

VERA
Que o quê?

PADRE
Confiar em deus...

VERA
Ah, mas então para com esse remédio de vez agora! Parou, viado! Parou! Se vai colocar deus no meio, vamo jogar agora esse remédio na privada! Ou para ou não faz sentido. Se você precisa tomar o remédio tem que ser pra alívio imediato, caceta! O que você tá fazendo da vida, Padre?

PADRE
É complicado.

VERA
É claro que é complicado, meu amor! Você queria um quadro na Praça é Nossa, meu querido? Isso é pra poucos!

PADRE
As pessoas ainda me julgam por conta do que eu fiz com você, filha. É esse peso que eu carrego. Como eu posso falar do amor de Jesus agora?

(SILÊNCIO)

VERA
Se eu estivesse viva eu não iria te perdoar não, Padre. Depois de morrer a gente não tem mais necessidade de querer ser perfeita, saber perdoar todo mundo. As pessoas te julgam corretamente, com muita justiça, Padre. Você foi bem bosta mesmo. (PAUSA) Agora, bicha, carrega esse carma! É só isso que eu tenho pra te falar. Carrega-esse-carma. Mas já chega dessa situação, Padre. Você não precisa do meu perdão pra seguir em frente nessa sua aventura aqui. Carrega esse carma nas costas, só que pra frente, entendeu? Bora, Viado? Supera!

(O PADRE REFLETE POR UM TEMPO E LOGO BEBE TODO O VINHO DA TAÇA)

PADRE
Escolhas. Só deus pode julgar a gente. (ENCHE A TAÇA MAIS UMA VEZ)

(VERA ENTREGA UM COMPRIMIDO DE REMÉDIO PRO PADRE; ELE TOMA COM UM GOLÃO DE VINHO; ESCURIDÃO)


CENA 2

(AINDA NO ESCURO, O PADRE CANTA)

PADRE
Se acontecer um barulho perto de você
É um anjo chegando para receber
Suas orações e leva-las a Deus

(AS LUZES SE ACENDEM; O PADRE ESTÁ NO CAMARIM, ELE NÃO ESTÁ MAIS DEPRESSIVO)

PADRE
Então abra o coração e comece a louvar
Sinta o gozo do céu, se derrame no altar
Que um anjo já vem com a resposta nas mãos

(VERA SURGE TODA MONTADA PARA O ESPETÁCULO)

VERA
Tem anjos voando neste lugar
No meio do povo em cima do altar
Subindo e descendo em todas as direções

OS DOIS
Não sei se a igreja subiu ou se o céu desceu
Só sei que está cheia de anjos de deus
Porque o próprio deus está aqui.

(TRECHO DA MÚSICA “ANJOS DE DEUS”; ELES SE ENCONTRAM AO CENTRO)

PADRE
A gente vai ter que reviver isso toda noite, Vera?

VERA
Ué, Padre. Carrega o carma, querido.

PADRE
Não foi com a intenção que aconteceu.

VERA
Nunca é, Padre. Mas ninguém tem mais nada pra ensinar pra você, Padre. Você já sabe. É só o drama mesmo que as pessoas precisam ver.

(INICIA-SE UMA MOVIMENTAÇÃO REALISTA DOS BASTIDORES DE UM PROGRAMA DE TELEVISÃO; VERA RETOCA A MAQUIAGEM, COM ALGUNS PRODUTORES FAZENDO FAVORES. O PADRE ESTÁ FAZENDO UMA ORAÇÃO SOZINHO, SE OLHANDO NO ESPELHO)

PRODUTOR 1
Padre, você entra em vinte minutos, ok?

PADRE
Tudo bem, querido.

PRODUTOR 2
Eu sou muito católica também, Padre. Eu adoro o senhor, eu sou muito sua fã.

PADRE
Agradeço, querida. Mas fã só de Jesus.

PRODUTOR 3
Posso retocar a maquiagem, Padre?

PADRE
Ah, menino acho que tá bom, viu. Não precisa. Você acha que precisa?

PRODUTOR 3
Você que sabe, Padre.

PADRE
Pode deixar assim, filho. Obrigado.

PRODUTOR 3
Tô por aqui.

PRODUTOR 2
Padre, falaram pra você dos convidados hoje, né?

PADRE
Não falaram não, filha.

(UM FOCO DESTACA A PARTE DE VERA)

VERA
Deixa que eu mesmo retoco, viado, pode deixar.

PRODUTOR 3
Tá bom.

VERA
Moça! Moça! Você podia pegar um copo de água pra mim, por favor? As que estavam aqui os meninos pegaram tudo. (pausa) Eu só não entendi porque só eu que saí do palco depois do comercial, os outros estão lá ainda, olha lá.

PRODUTOR 1
A gente vai colocar o Padre agora, Jorge.

VERA
E daí?

PRODUTOR 1
Aí pode pegar mal envolver as coisas, né? Você sabe. Daqui a pouco a gente entra com você de novo.

VERA
Envolver que coisas?

PRODUTOR 1
A gente faz televisão pra família, Jorge, você sabe.

VERA
E o que isso tem a ver?

PRODUTOR 1
O Padre representa a outra parte, entendeu? Outro público.

VERA
Eu não entendi não. Eu não entendi nadinha não.

PRODUTOR 1
O povo católico não gosta muito, não entende muito. Relaxa, intervalinho pra tirar um descanso.

VERA
Vocês não querem vincular a imagem de uma travesti com um padre, é isso?

PRODUTOR 2
Não, Vera, o Padre que achou melhor, porque ele vai cantar só uma música também, divulgar o novo CD dele, e aí logo depois você volta.

VERA
Ah, o Padre falou que não queria entrar no palco comigo? Ele falou isso?

PRODUTOR 1
Não, Jorge, pelo amor de deus. Não é isso. Você entendeu errado...

VERA
Então quem fez essa decisão, meu amor? Eu sou cristã também, eu tenho sangue cristão e tenho sangue no candombé e tenho sangue em tudo que esteja vinculado com mensagem de amor, monamour! Quem esse padre pensa que é?

PRODUTOR 1
Jorge, você já vai entrar de volta. Não precisa se estressar com isso. Você sabe como as pessoas são.

PRODUTOR 2
Você é a que mais devia saber como as pessoas lidam com essas coisas, Vera. É assim mesmo.

VERA
É assim mesmo. É. (PAUSA) É assim mesmo.

(FOCO NA PARTE DO PADRE)

PRODUTOR 1
Sua vez, Padre!

PRODUTOR 2
Venha que eu te acompanho, Padre.

PADRE
Tô bonito, querido?

PRODUTOR 3
Tá bonitão sim, Padre. Um galã.

PADRE
Então, vamo lá em nome de Jesus.

(A CENA TERMINA COM VERA SOZINHA ASSISTINDO O PADRE CANTANDO NO PROGRAMA PELA TELEVISÃO DO CAMARIM; ESCURIDÃO)


CENA 3

(QUANDO AS LUZES SE ACENDEM VERA VAI ATÉ O LEITO DO HOSPITAL SEGURANDO UMA VELA)

VERA
Essa história não é a minha. Por um tempo eu achei que fosse, que essa história fosse sobre a minha pessoa, sobre quem a minha figura representa. Mas hoje eu sei que o protagonista nunca fui eu. (PAUSA) A gente vira mártir de uma luta porque é assim que o mundo funciona. A história não é minha, porque ela é universal. O padre cristão matando a bicha preta travesti do coração, é a clássica imagem do Brasil.

(VERA SE DEITA NO LEITO; OS APARELHOS APITAM PARADA CARDÍACA; OS ENFERMEIROS ENTRAM PRA SOCORRER; O PADRE SURGE NUMA APARIÇÃO)

PADRE
Deus ama o pecador, mas repudia o pecado. Você pode se arrepender agora, minha filha.

VERA
Não, aqui não! Não agora, Padre. Não na hora da minha morte.

PADRE
Nós vamos ter que reviver isso pra sempre, querida. Fazemos parte um da história do outro. Chega a ser romântico, não chega?

VERA
Eu só quero... eu quero que você vá tomar no meio do seu cu.

PADRE
Sua raiva não vai te livrar da morte. O pecado consome o corpo. Você precisa pedir o perdão de Jesus, ele morreu pelo seu pecado.

VERA
Não tem pecado! Não tem pecado! O único pecado aqui é o senhor! Monstro!

PADRE
Eu não sou o ruim, minha filha, eu sou um padre, eu sigo os ensinamentos de deus. O que você queria que eu tivesse feito? Padres não podem incentivar o homossexualismo num programa de domingo familiar.

VERA
É homossexualidade que fala, e esse caralho de incentivar homossexualidade não existe! Você não tem moral nenhuma pra falar do amor de Jesus, Padre. Jesus andou com todos os marginais que somos e não com os religiosos feito o senhor.

PADRE
É o que está escrito. “Não se deitarás com outro homem como quem...”

VERA
Pro inferno com esses sermões! Me deixa morrer em paz! Por favor, só agora...

PADRE
Eu não estou aqui, minha querida. Você está em delírio. Você queria poder falar isso tudo na minha cara antes de morrer. Nunca vai fazer isso. Você não vai ver a vingança, querida. E está tudo bem, pode descansar em paz. A justiça deixa que deus faz.

VERA
Deus é justo.

PADRE
Deus é justo. Agora vá. Vá descansar.

VERA
Vou. Eu vou morrer, Padre, e você jamais terá o meu perdão!

PADRE
Talvez eu nunca nem ligue pra isso. Talvez isso tudo seja só história da boca do povo, talvez. Talvez eu morra achando que você morreu por qualquer outro motivo, talvez ninguém nunca nem saiba de nada. Depois de morta, nada mais disso interessa pra ninguém.

VERA
É. (PAUSA) Uma última coisa. Vai tomar no meio do cu de novo, Padre.

PADRE
Pode ir, filha. Pode ir. Seu corpo agora está purificado.

(O PADRE DESAPARECE; A EQUIPE DE ENFERMAGEM PERCEBE QUE VERA MORREU; ELES A COBREM COM UM LENÇOL E SAEM; ESCURIDÃO)


CENA 4

(QUANDO AS LUZES RETORNAM, VERA E O PADRE ESTÃO NO QUARTO AINDA TOMANDO VINHO; O PADRE ESTÁ VISIVELMENTE EMBRIAGADO)

PADRE
Ah, filha. Eu fui o monstro da sua história. Eu sinto muito. Eu sinto muitíssimo... (CHORA DOLORIDO)

VERA
Tá bom, Padre, não vamos cair no dramalhão agora não, vai. A gente nunca vai saber se isso tudo foi real, mas rende uma boa história se você conseguir entender o que tudo isso significa. De um ponto de vista você é o protagonista de uma história interessante também, Padre. Agora você tem que ver o que você vai fazer com tudo isso, flor. Agora é a hora.

PADRE
Eu acho que isso vai me matar, do mesmo jeito que te matou. Eu sinto... eu sinto que eu não vou aguentar a culpa.

VERA
Tenha certeza que as Veras desse planeta estão cagando pra você, Padre. Pra Vera aqui a dor da sua culpa é a justiça sendo feita. Deus é justo mesmo, Padre.

(SILÊNCIO)

PADRE
Me perdoa. Por favor, me perdoa.

VERA
(REFLETE ANTES DE RESPONDER) Não. Eu sou imperfeita. Meu maior pecado é não saber perdoar, Padre. Mas tudo bem. Todo mundo tem seu lado ruim. Eu não vou ter tempo de evoluir nessa questão, bem, porque eu morri. Siga a sua vida agora. (PAUSA) Toma mais um remédio, Padre. Um mata leão da dor.

(EM UM INSTANTE, O PADRE VOLTA À REALIDADE)

PADRE
Não! Isso tudo é uma loucura! Vai embora! Você não vai me assombrar pro resto da vida! Sai! Vai embora!

VERA
Eeeeepa! Grita comigo não, minha querida! Tá pensando que você é quem? O Padre Fábio de Melo?

PADRE
(DESESPERADO) Como que um pecador se livra da culpa de uma coisa que ele não pode voltar atrás, senhor? Como eu faço isso? Me ajuda, Jesus. Eu imploro! Pai! Eu imploro!

VERA
Eu vou responder no nome de Jesus pra você, querido, igual vocês fazem. Pedir desculpas não é o suficiente. Fez merda? Falou merda? O universo faz pagar. Ô, se faz! Você pode seguir sua a vida achando que já pagou sua dívida com a minha morte, Padre, coisa que nunca vai acontecer porque eu já morri, né? Você pode também ficar nesse drama depressivo pra sempre até o dia da sua morte e fim. Ou então dá pra você fazer uma coisinha básica. Uma coisinha muito simples, Padre. Eu acho que isso faria uma enorme diferença nessa história.

PADRE
Que coisinha é essa?

VERA
Lutar pra que ninguém mais faça o que o senhor fez. Pra que nunca mais a bicha travesti morra pela dor da rejeição, seja na faca, na carriola, seja no corpo desfalecido pela dor de dentro, que vem de dentro.

PADRE
Lutar...?

VERA
Padre, não se faça de sonso.

PADRE
A igreja jamais aceitaria que eu me expusesse com esse assunto...

VERA
Pau no cu da igreja, Padre!

PADRE
Não é assim...

VERA
É só isso que poderia dar uma reviravolta feliz nessa história toda, Padre. Um bom final. Que todo mundo aqui visse que agora você aprendeu que não querer entrar no palco com uma pessoa porque ela é travesti não é coisa do deus do amor, não é coisa que Jesus faria. 

(SILÊNCIO)

VERA
Então toma mais um remédio, Padre. Mais um e você dorme. Vai firme. Pode ir.

(O PADRE PEGA O REMÉDIO)

VERA
Os finais felizes que a gente tem são esses mesmo. A morte ou a luta. Pra mim é isso.

(O PADRE REFLETE COM O REMÉDIO NA MÃO; VERA DESAPARECE; COM FUNDO MUSICAL DE CONCLUSÃO, O PADRE REPASSA NA CABEÇA AS OPÇÕES DE FINAIS POSSÍVEIS; POR FIM ELE TERMINA PARA A PLATEIA)

PADRE
A morte? Ou a luta?

(LONGO SILÊNCIO DE REFLEXÃO; O PADRE PARECE QUE VAI FAZER A ESCOLHA FINAL, MAS A ESCURIDÃO TOMA O PALCO)

FIM