ELAS QUE ME AMAVAM SEM MOTIVOS

ELAS QUE ME AMAVAM SEM MOTIVOS
De Gabriel Tonin

PERSONAGENS
Toninho
Camila
Naty
Thaís
Doutor
Mãe (SOMBRA)

CENÁRIO: UM JARDIM DE UM HOSPITAL.


CENA 1

(TONINHO APARECE COM ROUPA DE PACIENTE, SE SENTA E ACENDE UM CIGARRO)

TONINHO
E aconteceu que de um dia pro outro tudo mudou. Você está bem, saudável, e de repente quase morre. É a vida, quando não morre realmente. O peso que a família carrega por um parente doente é meio que obrigatório, sou muito grato por todos, é bem ruim sentir o peso dessa obrigação que você joga nas costas das pessoas. Mas... essa história é sobre mulheres que não deviam ter obrigação nenhuma comigo, principalmente porque eu não sou exatamente o cara que poderia oferecer algo em troca. Eu... costumo dizer, brincando, que se anjos são reais, essas que me amaram sem motivos e esperando nada em troca são anjos de verdade, com asa e tudo. E eu descobri... que só uma mulher é capaz de fazer isso.

(AS TRÊS, THAÍS, CAMILA E NATY ENTRAM EM FOCOS SEPARADOS; ELAS CANTAM)

AS TRÊS
Mas eu não estava interessada
Em nenhuma companhia
Não existe a fantasia
Sobrenatural
Porque toda essa paixão
É coisa pura e feminina
Revolucionar o mundo
É instinto natural
Revolucionar o mundo
É instinto natural...

TONINHO
Eu nunca fui de poder retribuir o amor de uma mulher. Na verdade, eu não aprendi a retribuir amor nenhum. Muita gente me chama de ingrato, por isso, e eu tenho que concordar. Muita gente que esteve do meu lado nos dias difíceis, não teve o retorno do meu amor além de palavras digitadas no celular.

AS TRÊS
Garoto pobre e estudante
Um meninão bobinho
Bonito de natureza
E um tanto normal
Garotas chegam à noite
Pra não ficar sozinho
Não sei se é tudo de verdade
Se isso é real...

Revolucionar o mundo
É instinto natural...

TONINHO
E sem se conhecerem entre si, sem serem enfermeiras ou algo do tipo, cada uma das três fez plantão nos meus momentos longos no hospital. Hoje eu – um pouco doido depois de tanta intervenção médica de remédios e trauma – , talvez nem sei se elas eram pessoas reais. Se elas eram mulheres de verdade, ou se eram sombras de fantasmas, anjos divinos, o espírito da minha mãe... um reflexo do feminino que existe em mim. (PAUSA) Não isso não. Eu acho que eu não faria tudo isso que elas fizeram por um “conhecido”. Homem não faz. Homem nenhum faz esse tipo de coisa. Isso é coisa de mulher, de mulher de verdade... (PAUSA) Ou de deusas... que saíam de dentro da tomada, de tanto remédio na cabeça.

THAÍS
Ele está brincando com a poesia da loucura.

CAMILA
Ou a loucura da poesia.

NATY
Ou sendo um homem. Fantasiando a gente.

AS TRÊS
Nós três somos de verdade, você sabe disso.

THAÍS
A gente se conheceu na gravação do filme, lembra?

CAMILA
A gente teve o mesmo mestre, eu me formei um pouco antes de você. A gente se conheceu num bar.

NATY
Uma amiga muito querida nos apresentou. E... eu tenho que confessar uma coisa. Você não é um cara especial. Eu sou essa pessoa de... amar as pessoas, tentar amar as pessoas.

CAMILA
Eu também.

THAÍS
Eu também. Pra caralho, se você quer saber.

CAMILA
Pra caralho não, pra buceta!  

THAÍS
Pra buceta!

(ELAS RIEM)

NATY
Então, Antônio, não precisava se sentir tão especial à ponto de nos escrever esse texto todo.

THAÍS
Eu acho que esse é o amor básico que a gente tem que dar pra todo mundo.

CAMILA
É mesmo. Você não é o amado diferentão não, rapaz. Você só é... um cara legal. Talvez.

NATY
É, talvez.

THAÍS
Talvez. E eu achei que valia a pena.

NATY
Eu também achei.

CAMILA
Eu também.

TONINHO
Eu tenho vergonha um pouco, porque eu não sei as razões. Talvez por ser homem eu não consigo entender os motivos. Se eu fosse rico, bonito, se eu pudesse retribuir de alguma forma – e vocês sabiam que eu era o cara que não podia retribuir muito - , eu até entenderia a preocupação, o carinho. Que eu tento dar de volta, eu tento, mas eu faço isso... com medo. (PAUSA) Sem dúvida é porque eu sou homem que eu não consigo entender, que eu não consigo responder o amor...

CAMILA
Acho isso também.

NATY
Cara, a gente não tava esperando nada em troca. Eu não tava esperando nada em troca pelo menos.

THAÍS
Eu também não.

TONINHO
É aí que tá! Quem são vocês? De onde vieram? De que planeta são?

(SILÊNCIO)

AS TRÊS
Garoto pobre e estudante
Um meninão bobinho
Bonito de natureza
E um tanto normal
Garotas chegam à noite
Pra não ficar sozinho

TONINHO
Não sei se é tudo de verdade
Se isso é real...
Não sei se é tudo de verdade
Se isso é real...


CENA 2

(TONINHO SENTA-SE NOVAMENTE NO JARDIM E ACENDE UM CIGARRO)

TONINHO
Eu tive um câncer no nariz e garganta. Não consegui parar de fumar até hoje. E sobrevivi. Tô vivendo escrevendo aqui. Foram longos meses de tratamento e recuperação, e decaída com quase morte, e recuperação de novo. E cada uma delas, sem que eu pudesse esperar – coisa que eu na verdade esperava de uns familiares específicos, claro - , cada uma delas fez um esforço danado pra me salvar.

(CAMILA ENTRA E ENTREGA DOIS MAÇOS DE CIGARRO PRA ELE)

CAMILA
Eu nem acredito que você me convenceu de fazer isso.

TONINHO
Ai, Ca! Eu preciso fumar! Eu não consigo ficar sem fumar! Eu prefiro morrer!

CAMILA
Você tá com câncer, Antônio. Você pode morrer.

TONINHO
Eu sei. Desculpa.

(SILÊNCIO)

CAMILA
Dá um cigarro pra mim também. Tente fumar menos, pelo menos.

TONINHO
Eu vou tentar.

(O DOUTOR ENTRA; CAMILA E TONINHO APAGAM E ESCONDEM O CIGARRO E DISFARÇAM DESCARADAMENTE)

DOUTOR
Bom dia.

CAMILA
Bom dia!

DOUTOR
Antônio, eu vou fingir que eu não vi.

TONINHO
Desculpa, doutor. Eu sou um viciado.

DOUTOR
Tá bom. Seguinte...

TONINHO
Hora da metadona. (SE LEVANTA PRA SAIR)

DOUTOR
Não. Não é isso. A gente vai mudar o remédio à partir de hoje, você fica com a morfina ainda, mas a metadona sai.

(EXAGERADAMENTE CÔMICO, TONINHO TEM UM SURTO)

TONINHO
Doutor! Pelo amor de deus! O senhor sabe que a metadona é o único momento que eu tenho de prazer aqui nessa porra de hospital, doutor. Pelo amor de deus, não tira a metadona!

DOUTOR
A gente tem que começar a tirar algumas medicações, Antônio, pra você ir se recuperando. Por exemplo, o seu prazer pelo cigarro não é um foco muito exemplar nessa altura do campeonato. Aí então vamo lá pra gente tomar a morfina, vamo.

CAMILA
Venha, Tô.

(TONINHO SURTA; ELE CHUTA ALGUMA COISA)

TONINHO
Você não pode fazer isso comigo, doutor! Eu preciso da metadona! Eu tenho dor ainda, doutor! Eu vou morrer se você cortar a porra da metadona, buceta!

DOUTOR
Você não vai morrer. A morfina vai te ajudar.

TONINHO
A morfina não faz efeito nenhum mais! Puta que o pariu!

DOUTOR
Calma, cara...

TONINHO
Calma é o caralho! Calma é o caralho! Eu vou morrer, eu vou morrer...

DOUTOR
Eu vou chamar o enfermeiro...

(O DOUTOR VAI SAIR; CAMILA O PUXA DE CANTO, SEM QUE TONINHO PERCEBA; TONINHO ALUCINA DE FUNDO, DESESPERADO)

CAMILA
Olha, eu sei que você entende muito mais do que eu sobre isso, sobre essa dependência. Mas... se eu puder fazer alguma coisa...

DOUTOR
Eu não entendi direito...

CAMILA
Se eu puder fazer qualquer coisa, qualquer coisa que você quiser... pra você dar o remédio pra ele mais uma vez...

(SILÊNCIO; O MÉDICO ENTENDE A MENSAGEM)

DOUTOR
Olha, moça, ele precisa passar por essa abstinência, ele não vai ficar tomando a metadona a vida inteira. E ela vicia mesmo.

CAMILA
Eu sei. Eu não quero saber disso. Eu tô te implorando pra você dar o remédio pra ele uma última vez. Você sabe que ele fica contando as horas pra hora desse remédio, né?

DOUTOR
É exatamente por isso que é preciso cortar.

CAMILA
Qualquer coisa. Eu faço qualquer coisa que você quiser. Pode pedir. Como um homem. Pode pedir como um homem normal. Sem frescura. Qualquer coisa.

(SILÊNCIO; O DOUTOR ESTÁ CONSTRANGIDO)

DOUTOR
Moça, me desculpa, eu não posso fazer isso. (ELE SAI)

CAMILA
Ele é gay.

(ENQUANTO TONINHO CONTINUA NUM SURTO AO FUNDO, THAÍS E NATY ENTRAM E ELAS CANTAM)

AS TRÊS
A Madona toda poderosa
Dona dessa porra porque homem é bundão
Que princesa, minha buceta!
A carta na manga ainda é culpa do machão!

CAMILA
(PEGA TONINHO) Chega de surto! Levanta a cabeça! Bola pra frente que a ideia é você sair daqui vivo!

TONINHO
Eu não vou aguentar... eu preciso da metadona... você não sabe como é...

CAMILA
Você é melhor que isso! Você vai passar por isso! Amanhã eu vou vir aqui e vou trazer uma salada de frutas e açaí. Açaí que eu sei que você gosta de açaí.

(SILÊNCIO; TONINHO VAI SE ACALMANDO)

TONINHO
Por que?

CAMILA
Por que o quê?

TONINHO
Por que você tá fazendo isso?

(SILÊNCIO)

AS TRÊS
Amor de consolação
Não sei de onde vem toda essa preocupação
É só um cara, um bobalhão
Talvez seja coisa que DEUS nos deu de missão.

(ESCURIDÃO)


CENA 3

(TONINHO SENTA-SE, PEGA O MAÇO DE CIGARRO E FICA PENSATIVO; NUM SEGUNDO ELE AMASSA O MAÇO DE CIGARRO INTEIRO E JOGA LONGE; NO SEGUNDO SEGUINTE ELE SE ARREPENDE)

TONINHO
Oh, não...

(NATY ENTRA TODA EMPOLGADA)

NATY
Toninho! Aaaah! Seu lindo! Tá forte! Olha, eu trouxe um livro novo, coloquei crédito no celular, tá aqui o papelzinho, e trouxe... (SUSPENSE) Sorvete!

TONINHO
Obrigado, Naty! Você chegou no momento certo. Eu acabei de jogar meu maço de cigarro fora.

NATY
Aaaah! Que lindo! Sim! Você vai conseguir, você vai ver.

TONINHO
Vou ler o livro inteiro hoje.

NATY
Calma. Tudo é passageiro. Você é um ator incrível, um escritor incrível, todo mundo te admira muito e...

TONINHO
Que nada...

NATY
... a médica acabou de me dizer que você vai ter alta.

TONINHO
O que?

NATY
Mas! A radioterapia vai começar e você vai ter que vir aqui todo dia.

TONINHO
Trinta e três dias seguidos. Como eu vou fazer pra vir todo dia lá da casa da minha vó?

NATY
Você vai ficar em casa. Você vai dormir na sala. Tem uma TV enorme, Netflix, internet.

TONINHO
Mas... é um mês inteiro. Eu vou atrapalhar a rotina de vocês.

NATY
Não vai, meu neném já tá sabendo disso.

TONINHO
Mas ele concorda só porque você pede.

NATY
Ué, se ele me ama ele tem que entender que eu amo um monte de gente. E minha casa tá sempre lotada de amigos.

TONINHO
É um mês inteiro.

NATY
Tá combinado.

(SILÊNCIO)

TONINHO
Naty. Você já tem o amor da sua vida.

NATY
O que tem?

TONINHO
Por que você tá fazendo isso?

NATY
Não tô entendendo...

TONINHO
Você já tem o homem com quem dividir o seu amor. Eu não posso estar... infiltrado nessa relação.

(SILÊNCIO; NATY SE LEVANTA PRA SAIR)

NATY
Eu não sei o que você quis dizer, realmente. Nós somos amigos.

TONINHO
Sim, sim, claro! Mas... esse negócio de homem.

NATY
É você que tem ciúmes dele, não ele de você. Ele sabe. A questão é que você quer ser o número um de alguém, né? Não é? Eu sei que é. Todo mundo tá buscando o número um na vida. E eu já tenho meu número um, isso é verdade, e pra falar a verdade, você não é nem o número dois.

TONINHO
Eu queria mesmo saber porquê que você se importa comigo se eu não tenho nada pra oferecer.

NATY
Porque esse negócio de amar as pessoas pensando em ganhar algo em troca é coisa de homem. Por isso.

(SILÊNCIO; NATY SENTA-SE NOVAMENTE)

NATY
Eu amo você.

TONINHO
Eu também amo você.

NATY
A gente tá te esperando em casa.

(ELA DÁ UM BEIJO NO ROSTO DELE E SAI)

TONINHO
Eu tenho ciúmes real dos namorados das minhas amigas. Na verdade eu não me dou muito bem com o sexo masculino. E elas... que me amavam sem motivos. Estiveram aqui o tempo todo mesmo com a minha... ingratidão. Insuficiência. (PAUSA) Eu acho que todo homem quer ter uma mulher pertencente só pra si mesmo. E isso é uma merda, porque isso não é amor, isso é aquele negócio que falam de posse. Possessão. Talvez uma coisa instintiva ainda, do sexo masculino pra com o sexo feminino. (SILÊNCIO; ELE RETIRA UM CIGARRO DO BOLSO E ACENDE) E olha que eu sou gay. Eu sou completamente gay, eu sinto atração sexual somente pelo sexo masculino. Essa informação muda tudo, não muda? Tenho um sonho de conseguir ser bissexual, mas não, sou só gay mesmo, mesmo não “parecendo gay”. Odeio isso, mas é o que é. (PAUSA) E o amor... amor eu sinto só por mulheres. Eu me apaixono por mulheres porque mulheres sabem amar sem querer nada em troca... 

(TONINHO TEM UM ATAQUE REPENTINO; SANGUE JORRA DO SEU NARIZ E ELE AFOGA COM O PRÓPRIO SANGUE; OS OUTROS PERSONAGENS FAZEM O RESGATE DRAMÁTICO; TONINHO ESTÁ MORRENDO; ESCURIDÃO)


CENA 4

(TONINHO ESTÁ NUMA MACA, ENTUBADO; THAÍS ESTÁ SENTADA AO LADO DELE E CANTA BAIXINHO)

THAÍS
Sou você, irmão de cinema e coração
Meu bebê, eu vejo em você uma linda visão...

(A SOMBRA DA MÃE APARECE AO FUNDO)

THAÍS
(BAIXINHO E CALMA) Tô, eu acho que é a sua mãe. Ela veio te ver. Ali, ó. Ela ama você. Eu sinto isso. Eu amo você também e você vai sobreviver pra escrever uma peça pra mim.

(A SOMBRA VAI EMBORA)

THAÍS
Ela foi embora. (ELA LIMPA A BABA DE TONINHO) Quando você acordar eu vou estar aqui do seu ladinho. (ELA FALA BAIXINHO NO OUVIDO DELE) Todo mundo aqui te ama muito...

(TONINHO ACORDA NUM SUSTO, DESESPERADO, AFOGADO)

THAÍS
Tô! Tô! Calma, calma! Eu tô aqui! (CHAMA) Um médico? Alguém?

(O DOUTOR ENTRA CORRENDO E TIRA O TUBO)

DOUTOR
Tá tudo bem? Consegue respirar?

TONINHO
Tá ruim...

DOUTOR
É a traqueostomia. A gente teve que furar a garganta.

TONINHO
Ah, de novo não!

DOUTOR
Eu vou chamar as enfermeiras e elas vão te dar um calmante.

THAÍS
Olha, você tá vivo! É um milagre, Tô! Você é um milagre! A gente vai pra praia, logo que você sair daqui, só nós dois. E a gente vai fazer vários filmes juntos e essa viagem toda é nossa! É nossa!

TONINHO
Eu...

THAÍS
O quê? Não precisa falar...

TONINHO
Queria ter morrido.

(SILÊNCIO)

THAÍS
Mas não morreu e não vai morrer porque eu não vou deixar!

TONINHO
Um dia... eu vou ter que... passar... por tudo isso... de novo.

THAÍS
É a vida, ninguém falou que ia ser fácil. Quando eu vou conhecer alguém que teve que furar a garganta duas vezes e tá vivinho? Você é o cara mais forte que eu já conheci, Antônio! Eu dou a minha vida por você, cara.

TONINHO
E por quê? Por quê? Meu pai que é meu pai não veio limpar a minha baba e você tá aqui... Quem é você?

(SILÊNCIO)

THAÍS
Uma amiga. Eu sou só uma amiga. 

(SILÊNCIO)

TONINHO
Na verdade... eu morri, né? E você é meu anjo.

THAÍS
(RI) Quem sabe? Quem sabe?

TONINHO
Eu tenho vários anjos. Anjos são mulheres.

THAÍS
Anjos não tem sexo.

TONINHO
Tem sim! Tem sim! Eu tenho certeza que tem! Anjos são mulheres! Minhas tias, minha vó, minha mãe, minhas amigas. Se eu fosse colocar todas elas nessa peça ia ter que ser um pelotão de mulher!

(CAMILA E NATY ENTRAM)

TONINHO
Eu queria saber amar vocês mulheres sexualmente falando também. Acho que é hora de confessar. Eu muito queria. Eu me apaixono por mulheres em cada esquina, mas não consigo ver o sexo. Eu queria ver, eu queria poder ser um cara legal que fosse ficar do lado de vocês a vida inteira, agradecendo com carinho, e com sexo também, ter um filho com uma mulher. Mas...

(SILÊNCIO)

THAÍS
Mas você é você.

CAMILA
Eu não tenho vontade de fazer sexo com você, você é muito playboyzinho.

NATY
A gente te ama além dessas coisas.

TONINHO
Eu sei. Mas eu queria.

THAÍS
Talvez se você fosse um cara que olhasse pra mim pensando em oferecer sexo eu nem me importaria tanto com você. Se eu for contar o quanto de cara que tem por aí...

CAMILA
Nem fale, amiga.

NATY
Eu, como todos sabem, sou muito bem casada.

TONINHO
Eu não sei como retribuir esse carinho de vocês todas, e também das que não puderam vir hoje. Eu não acho que eu mereça...

AS TRÊS
E furado, cheio de curativos
Assustado por vários motivos
E confuso e muito reflexivo
E muitos anti-depressivos

Saber entender o amor no meio de tanta miséria
É coisa que já tem sabor em cheio e canta a primavera
Porque, enquanto a roda vira
O mundo chora o mundo
E quando chega a parte feminina
Tudo muda num segundo

Somos tipo um equilíbrio
Prontas pra voar de novo
“Salvar machinho”
Não, não é por isso, meu ovo!
Equilíbrio
Soltas pra amar de novo
Amar o amigo
É mais natural do que louco...

TONINHO
Vocês são meu equilíbrio
Amo vocês todas um todo
E eu menininho
Fico parecendo um bobo...

(ELES SE ABRAÇAM; ESCURIDÃO)


CENA FINAL

(TONINHO ENTRA, RECUPERADO; ACENDE UM CIGARRO E LIGA UM NOTEBOOK)

TONINHO
Vocês são meu equilíbrio
Amo vocês todas um todo
E eu menininho
Fico parecendo um bobo...

(ELE FECHA O NOTEBOOK)

TONINHO
Mulheres. Eu queria ser uma.

(ESCURIDÃO)

FIM




MANUAL DE COMO SOBREVIVER NO INÍCIO DO SÉCULO XXI


MANUAL DE COMO SOBREVIVER NO INÍCIO DO SÉCULO XXI
De Gabriel Tonin

PARA TRÊS ARTISTAS.

CENA 1

TODOS
Manual de como sobreviver no início do século XXI, cena um. Não use drogas.

(OS TRÊS FUMAM, BEBEM E SE DROGAM)

TODOS
A Madona já fumou maconha
Até a minha mãe que hoje é da Congregação
A verdade é que a vergonha
É a hipocrisia e uma má educação

ARTISTA 1
Todo mundo sabe, é óbvio. Todo mundo precisa de uma fuga. Eu invejo profundamente aquela pessoa que consegue ver DEUS so-bri-a-mente.

TODOS
Essa fuga é a questão
O bicho ser-humano quer ação, se aventurar
E a cachola, o coração
Todo mundo sabe sobre a dita depressão

ARTISTA 2
Todo mundo chega num momento da vida que não sabe o que fazer, que fica perdidaço. Tem gente que consegue colocar a fé numa coisa e simplesmente fim. Essa pessoa merece um prêmio por não se incomodar com a falta de respostas da existência.

TODOS
É pior que um dramalhão
Essa juventude tá querendo procurar
Um motivo, uma razão
De existir num mundo cheio
Em meio a solidão

ARTISTA 3
Eu também invejo a pessoa que não se droga pra conseguir se divertir. Acho o cúmulo esses vermes que ficam enchendo a cara de cachaça legalmente por aí. Le-gal-men-te.

TODOS
Isso que é uma bosta, irmão
Quem que foi que decidiu então essa puta questão?
Não funciona, nem quando deus tentou
Quem escolhe o que pode e o que não pode?
Não, senhor?

A liberdade de expressão e de escolhas deveria ser inquestionável, desde que a sua expressão e escolha não afete a expressão e a escolha de um outro ser humano.

ARTISTA 1
Porém, pra se viver no início do século XXI...

ARTISTA 2
É melhor que você só use as drogas que o governo deixa.

ARTISTA 3
Se você não quiser virar um criminoso por comer uns cogumelos – que nascem nas-bos-tas-das-va-cas.

TODOS
Cena 2.


CENA 2

TODOS
Tente viver a vida, mas não muito.

ARTISTA 1
Reforma da previdência.

ARTISTA 2
(INTERROMPE) Cena três, não fale de política.

ARTISTA 1
Não! Tem que falar. O momento desse momento é agora. A gente tem que falar sim sobre o que é o trabalho e a vida, e de quanto tudo isso é desigualmente dividido. Ainda que se a gente soubesse que faltam recursos, até tudo bem, mas o foda é saber que tem gente com vários hectares de terras e mais terras enquanto tem gente que não tem direito de um centímetro. Um-centímetro.

ARTISTA 2
Esse seu discurso todo é exatamente o que não deveria ser feito no início do século XXI. Tá perigoso, cê sabe.

ARTISTA 3
Talvez no início lá no início do século XXI até tava dando pra poder discutir isso. Mas hoje, final da segunda década e início da terceira, eu acho que eu tenho medo de morrer sim.

ARTISTA 1
Exagero! Não tá tão assim.

ARTISTA 3
Você não acha que não pode sair alguém daqui hoje e sair falando que a gente tá fazendo balbúrdia, divulgando um manual que faz panfletagem pras drogas, na primeira cena? Eu tenho medo de morrer.

ARTISTA 2
Mas ué, todo mundo morre também, né?

ARTISTA 3
Por isso que eu estou aqui.

ARTISTA 1
Façam o que eu digo, não briguem por política se você quer sobreviver no início do século XXI, mas não é isso que eu faço.

ARTISTA 2
Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço, claro.

ARTISTA 3
Isso significa que logo você morre. Mas...

TODOS
Todo mundo morre, ué.

Vamo falar de corrupção
Não sobra um, meu irmão
Vamo falar de corrupção
Não sobra um.

Cena três:

ARTISTA 2
Agora de verdade...


CENA 3

TODOS
Não seja LGBTTQI+.

ARTISTA 1
Sigla horrível.

ARTISTA 2
Inclusão, meu bem.

ARTISTA 3
A gente ainda tá falando de política, vocês sabem disso, né?

ARTISTA 1
A grande questão é que tava até que calmo com todo mundo no armário. Quando o armário explodiu geral, o rebate foi momentâneo.

ARTISTA 2
A resposta do macho reprimido para essa liberdade sexual, e a feminilidade toda, foi a violência. Então quanto mais livres, e quanto mais feminilidade, mais violência.

ARTISTA 3
É o combate da pós-verdade. Depois que se descobriu que vivemos num aglomerado de estrelas, tudo ficou muito aberto nas possibilidades de respostas para a existência. E aí, os conservadores querem conservar as respostas já prontas, era óbvio que isso ia acontecer. Abriu o armário, veio a onda pra tentar fechar.

ARTISTA 1
Um equilíbrio da evolução um tanto cruel.

ARTISTA 3
É que estamos vivendo o agora, claro. Mas num alcance de décadas, eu creio na evolução.

ARTISTA 2
Eu acho que essa questão vai perdurar. Se você quer sobreviver no século XVIII, XIX, XX e XXI, não seja um LGBTTQI+.

(ELES CANTAM A MÚSICA “ROBOCOP GAY” DOS MAMONAS ASSASSINAS, LANÇADO DO FINAL DO SÉCULO XIX)

TODOS
Um tanto quanto másculo
Com M maiúsculo
Vejam só os meus músculos
Que com amor cultivei
Minha pistola é de plástico
Em formato cilíndrico
Sempre me chamam de cínico
Mas o porquê eu não sei
O meu bumbum era flácido
Mas esse assunto é tão místico
Devido ao ato cirúrgico
Hoje eu me transformei
O meu andar é erótico
Com movimentos atômicos
Sou uma amante robótico
Com direito a replay
Um ser humano fantástico
Com poderes titânicos
Foi um moreno simpático
Por quem me apaixonei
E hoje estou tão eufórico
Com mil pedaços biônicos
Ontem eu era católico
Ai, hoje eu sou um gay
Abra sua mente
Gay também é gente
Baiano fala oxente
E come vatapá
Você pode ser gótico
Ser punk ou skinhead
Tem gay que é Muhamed
Tentando camuflar
Allah meu bom Allah
Faça bem a barba
Arranque seu bigode
Gaúcho também pode
Não tem que disfarçar
Faça uma plástica
Aí entre na ginástica
Boneca cibernética
Um robocop gay
Um RoboCop Gay, eu sei, eu sei, eu sei, é um Robocop Gay
Ai como dói!

ARTISTA 1
Século passado...

ARTISTA 2
“Um rapaz delicado e alegre, que canta e requebra é demais.”

ARTISTA 3
Belchior previu a clássica frase “Agora Pabllo Vittar foi longe demais.

(ELES RIEM E REPENTINAMENTE FICAM SÉRIOS; ELES SE BEIJAM NUM BEIJO TRIPLO)

TODOS
Não seja e não fale sobre LGBTTIQ+. Cena 4:


CENA 4

ARTISTA 1
Se você não quer morrer, sendo mulher ou homem ou que seja, sejam submissos.

ARTISTA 2
Trabalhe quieto e aceite receber pouco.

ARTISTA 3
Trabalhe pra caralho por merreca!

ARTISTA 1
Pra não ficar desempregado.

ARTISTA 2
Pra não ser considerado vagabundo.

ARTISTA 3
E matar seus filhos de fome.

ARTISTA 1
Assuma seus filhos! Acabou a vida pra você, trabalhador com filhos. Estamos no momento que a mamata acabou pra você. É só trabalhar mesmo, só isso.

ARTISTA 2
Até o fim da vida.

ARTISTA 3
Seja morrendo jovem ou morrendo velho.

ARTISTA 1
E é claro que o mundo precisa de braço, precisa de trabalho.

ARTISTA 2
A grande questão...

ARTISTA 3
A porra da enorme questão...

TODOS
É que o peso do mundo não está dividido em braços iguais e muito menos em contas bancárias justas pelos braços trabalhados.

Dispencados pelos turnos cansativos
Trabalhados só com um motivo
Ter dinheiro pra comprar um pirulito
E também anti-depressivos

Será que vai ter um amor
Que dure toda uma semana?
Será que quem não faz amor
É os que crê na terra plana?

É tudo tão pequenininho
Tudo é muito curioso
Tempo curtinho
Eu sempre me enxergo no outro

Pequenininho
O mundo é misterioso
E o trabalhinho
Tem que ser um mínimo gostoso...

Laiá, laiá, laiá...


CENA 5

TODOS
Cena cinco. Não nasça mulher.

ARTISTA 1
Como dito anteriormente, tudo que envolve o feminino incomoda o conservadorismo patriarcal.

ARTISTA 2
Nascer mulher é um risco. Pense bem antes de escolher.

ARTISTA 3
Mulherada saiu do armário, e veio a onda tentar fechar ele de novo. Mas a resistência persiste! É resistente o chute na porta da mulherada!

ARTISTA 1
É resistente de ambos os lados, infelizmente.

ARTISTA 2
O macho comum, sentindo a perda de poder do patriarcado com a inclusão da mulher nas escolhas da casa, da sociedade, do próprio corpo, criou um ser estranho, um ser que passou a odiar a mulher literalmente, mesmo sentindo atração sexual.

ARTISTA 3
Um revide histórico e patético, na luta do equilíbrio. Não seja esse tipo de macho, mas se você quer sobreviver no início do século XXI...

(SILÊNCIO)

ARTISTA 1
Não, não seja esse macho nem tentando sobreviver. Morra com dignidade, mas não seja esse macho.

ARTISTA 2
Concordo.

ARTISTA 1
Em hipótese alguma.

ARTISTA 3
Sim. Tem razão. Mas mais fácil mesmo é não nascer mulher.

ARTISTA 1
Sim, sem dúvida.

ARTISTA 2
Não nasça mulher.

TODOS
Não há lugares onde não apareçam
Elas existem, homens nunca esqueçam
Mesmo nos dias tristes e felizes
Da vagina foi que cê nasceu

Se cê tem uma a mantenha por perto
Mas se ela quiser se separar
Entenda que o amor é sobre o respeito
Não pense só pela sua vontade

Amigas, femininas
Tão presentes na minha vida
Amigas, mesmo eu não sendo gay
E nunca jamais você será corrompida
Porque a rainha é melhor que o rei!

Amigas, femininas
Tão presentes na minha vida
Amigas, mesmo eu não sendo gay
E nunca jamais você será corrompida
Porque a rainha é melhor que o rei!


CENA 6

TODOS
Cena seis. Tenha pai e mãe presentes e nasça branco!

ARTISTA 1
Essa é definitivamente a parte do manual de sobrevivência no início do século XXI mais importante. Não seja nada além do que branco.

ARTISTA 2
E tenha os pais presentes e brancos e bonitos!

ARTISTA 3
Acho que todo mundo já entendeu a ironia disso tudo, né? Mas é real. É mais provável que você tenha uma vida mais tranquila e leve se você for branco e se tiver uma família bem estruturada é um bônus muito ótimo.

ARTISTA 1
Se você for negro, pobre, mulher, lésbica e ainda nem tiver pai e mãe que te ama... bicha, cê tá ferrada.

ARTISTA 2
Jesus vai voltar uma mulher negra, lésbica e da periferia. Vocês vão ver.

ARTISTA 3
Às vezes, até já voltou e já morreu de novo...

(SILÊNCIO)

ARTISTA 1
Se você quer sobreviver no início do século XXI não seja militante e não levante bandeiras e não comente sobre os crimes políticos aqui do Brasil.

ARTISTA 2
Tente não ser chato com aquele seu tio racista que deu risada quando viu a notícia de cinco jovens negros metralhados.

ARTISTA 3
Não faça problematizações em encontro de família nenhum, se você tiver família ainda depois dessa polarização toda, claro.

(SILÊNCIO)

TODOS
O caralho! “Fogo nos racistas” é uma frase não literal, mas ao mesmo tempo é literal sim! Fogo nos racistas, porra!

Nós brancos, já somos racistas
Nem vem tirar o cu da pista
Ganhamos todo o privilégio
Então temos contas à pagar!

E mesmo o branco que é pobre
Você também é um oprimido
Mas o negro está num outro ponto de vista
Racistas, o fogo vai chegar!

Precisa aprender a equilibrar!
Se apresse, porque vai demorar...


CENA 7

TODOS
Sem ironia dessa vez. Cena sete: Lute pela democracia e justiça sempre.

ARTISTA 1
Se fosse pra ser na pegada do que a gente tava fazendo, a fala seria “Não lute pela democracia e justiça, peça a ditadura”. Achamos realmente que se você quer sobreviver como gente feliz nesse atual governo de dois mil e dezenove, é uma forma de sobreviver, ficar calado, não fazer esse espetáculo com um beijo de três pessoas.

ARTISTA 2
Mas todo mundo morre. Não é? E... por mais duro que isso seja, é necessário continuar dando chute na porta. Porque eu quero sair, entendem? Eu quero sair desse armário muito louco e quero saber o que é o mundo que eles tentam esconder!

ARTISTA 3
A gente não parou um segundo de falar de política.

TODOS
Sobrevivência é falar de política.

O teatro é espaço de política na mesma proporção que uma prefeitura é
Lá no cinema, escola, tudo é política, precisa de atenção, só não enxerga quem não quer
Você nos fala que nos fazemos de vítima, dá pra te citar uma lista de porquê você é mané
Porque o teatro tem a mesma importância, veja toda essa balança, Dionísio é uma criança, Dionísio é uma mulher!

(OS ARTISTAS AGRADECEM)

ARTISTA 1
Por fim, qual seria então o melhor conselho pra se viver nesse atual cenário político?

(OS ARTISTAS FOGEM CADA UM PRA UM LADO E A ENCENAÇÃO SE ENCERRA BRUSCAMENTE; AS LUZES DA CASA SE ACENDEM, MOSTRA-SE UMA CORRERIA DE BASTIDORES DOS ARTISTAS SE ARRUMANDO PRA IR EMBORA E DESLIGAR OS EQUIPAMENTOS; ELES SE DESPEDEM DO PÚBLICO E VÃO EMBORA DO TEATRO DESESPERADOS)

FIM