TONINHO & NENÊ GRACINHA - ALMA DE VIRA-LATA
Texto de Gabriel Tonin
PERSONAGENS
Toninho
Nenê Gracinha (cachorrinha)
Seu Mundão
Marla
Rádio (voz)
Homem (voz)
Ramon
Tobias (cachorrinho)
Pequena (cachorra grande e idosa)
TEATRO DE BONECOS
CENÁRIO: Uma casinha, com quarto, sala e cozinha.
introdução
(TONINHO ACORDA JÁ COM NENÊ GRACINHA JUNTO NA CAMA;
AMBOS SE ESPREGUIÇAM; TONINHO ATRAVESSA A SALA E VAI DIRETO PRA COZINHA COM
NENÊ GRACINHA O TEMPO INTEIRO DO SEU LADO; TONINHO BEBE UM COPO DE ÁGUA E
REABASTECE O COMEDOURO DE RAÇÃO; NENÊ GRACINHA NEM LIGA PRA COMIDA NO POTINHO;
TONINHO ENTÃO SENTA-SE PRA TOMAR CAFÉ; NENÊ GRACINHA SE APÓIA NO SEU COLO,
TONINHO A EMPURRA; TONINHO DESISTE E FAZ UM PÃO INTEIRO COM MARGARINA PRA NENÊ;
ELA VAI PRA SALA CONTENTE E BRINCA COM O PÃO; TONINHO PREPARA A MESA, FAZ O PÃO
COM MARGARINA, COLOCA CHOCOLATE NO LEITE E QUANDO VAI COMEÇAR A COMER NENÊ
GRACINHA JÁ ESTÁ DE VOLTA APOIADA EM SEU COLO; TONINHO ENFIM DIVIDE O PRÓPRIO
PÃO AOS POUCOS, ATÉ MOLHANDO UM POUQUINHO DE LEITE ÀS VEZES; ESCURIDÃO)
cena
1
(O ROSTO DE TONINHO SE DESTACA NA ESCURIDÃO)
TONINHO
Na primeira noite, eu coloquei a mão na cabeça e
falei assim: “acho que foi uma má ideia adotar uma criatura agora. Eu não sei
nem cuidar de mim, senhor!” Ela deu trabalho. Cocô pra todo lado, xixi... Foi
uma lição de vida de limpeza diária que baixou em mim, uma reprogramação mental.
E eu tive que aprender fazendo, ué, era a primeira vez que eu morava sozinho.
Sozinho, sozinho, sem amigos, nada de república, sem família. Aí ela apareceu.
Num post de grupo de barganha no Facebook.
(NENÊ GRACINHA SURGE CORRENDO E BRINCA ENTRE AS
PERNAS DE TONINHO)
NENÊ GRACINHA
Ah, essas pernas, seu danado! Onde que você tava,
pernas? Que saudade que eu tava, cara! Você demorou, mas que bom que já passou!
Perna delícia!
TONINHO
Ai, tá machucando, Nenê!
NENÊ GRACINHA
Latido! Latido!
TONINHO
Au, au, é?
NENÊ GRACINHA
Latido sim. Eu te amo, você me ama. Toma essa!
TONINHO
Ai, pára de morder, Nenê! Parou.
NENÊ GRACINHA
Rouf...
TONINHO
Rouf, é? Não tô brincando, eu tô aqui contando a
história pra essa gente.
(NENÊ VÊ O PÚBLICO E CORRE SE ESCONDER ENTRE AS
PERNAS DE TONINHO)
TONINHO
Nenê sempre foi muito desconfiada das pessoas. Até
das crianças. Nunca gostou nem de criança, acredita? Mas não que queria morder,
não isso, nunca mordeu ninguém. Ela tinha era medo. Era uma cagona, isso sim.
NENÊ GRACINHA
Peça estranha... com gente esquisita...
TONINHO
Ai, eu acho isso tudo tão legal! Transformar a
realidade em fantasia!
NENÊ GRACINHA
E vice e versa. Latido!
TONINHO
E-vice-e-versa!
(UMA MÚSICA INICIA E TODOS OS PERSONAGENS ENTRAM EM
CENA; ELE CANTAM)
TODOS
O
dramalhão aqui
No
fim se despedir
Pois
vai acontecer
Não
tem o que fazer
E
as almas vêm e vão
Até
dentro de um cão
Quem
pode desvaler
Quem
é você?
Já
faz
Tempo
que eu me acostumei
Com
a mágica da ilusão.
(TODOS SAEM CORRENDO; MENOS TONINHO E NENÊ GRACINHA)
cena
2
NENÊ GRACINHA
Achei... revelador. Latido!
TONINHO
Revelador. Achei revelador.
NENÊ GRACINHA
Foi o que eu disse. Pulga safada, venha aqui!
TONINHO
Às vezes eu sinto que tem alguém dentro de você,
Nenê.
NENÊ GRACINHA
(DEBOCHADA, BRINCANDO) Tem alguém dentro de mim? Oh,
latido! Será que sim, será que não? Toninho, seu danado, venha aqui!
TONINHO
Não pula, pára!
NENÊ GRACINHA
Ó, que eu te pego! Latido!
TONINHO
Parou!
(OS DOIS SE ENCARAM POR UM MOMENTO EM SILÊNCIO; NENÊ
BALANÇA O RABINHO BRINCANDO)
TONINHO
Assim. Nesses momentos. Que a gente se olha fundo. Tem
alguém aí. Não tem?
NENÊ GRACINHA
Olha meu rabo! Venha aqui rabo!(BOCEJA E VAI SAIR)
Vou fazer xixi.
TONINHO
(PARA A PLATEIA) Quando a gente olha no olho. Quem
tem cachorro e vive sozinho sabe do que eu tô falando. Falam que os únicos
animais racionais que existem somos nós, humanos. Mas isso é uma mentira. Eu me
comunico com a Nenê o tempo inteiro. Às vezes até por telepatia! Ela é bastante
teimosa, não que ela me obedeça, que eu a controle, ela é livre, mas que a
gente se conversa, isso sim. Eu sei que a gente conversa. Quem tem cachorro
sabe do que eu tô falando, não sabe? É uma comunicação de um jeito... um jeito
que... eu não sei explicar.
(NENÊ VOLTA)
NENÊ GRACINHA
Mijei. Olha o ossinho ali!
(SILÊNCIO; NENÊ BRINCA COM O OSSINHO)
TONINHO
São formas de pensamentos do universo! É isso. Tenho
que deixar mais poético pra soar mais poderoso. Formas de pensamentos do
universo! Nós somos diversas formas de pensamentos, desde um inseto, uma
bactéria, até uma baleia, um elefante! Ou das coisas que a gente não enxerga.
Das coisas que a gente ainda não descobriu!
NENÊ GRACINHA
Olha, a Marla vem chegando! Latido! Latido!
TONINHO
O que foi, Nenê? O que tem lá?
NENÊ GRACINHA
Marla, querida! Não vai entrar?
TONINHO
O cachorro de vocês também faz isso? Conversa com o
nada. Deve ser alguma forma de comunicação com o exterior... ou com... o
interior, também, sei lá!
NENÊ GRACINHA
Aaaah, vai entrar sim, a danada!
(MARLA ENTRA BRILHANTE; ELA É UM FANTASMA)
NENÊ GRACINHA
Arrasa na entrada, rainha! Até o chão, vai! Minha
deusa. Rainha dona disso tudo! Vai! Latido, latido!
TONINHO
O que você tá vendo aí, hein, Nenê?
MARLA
Disfarça, Nenê! Olha o seu humano aí.
(NENÊ GRACINHA VAI CORRENDO BRINCAR COM TONINHO)
TONINHO
Sem morder, sem morder.
NENÊ GRACINHA
Seu delícia! Você é delícia, venha aqui...! Latido!
TONINHO
Ai, não morde, Nenê!
NENÊ GRACINHA
Sinta-se em casa, Marla. Volte quando quiser.
Toninho delícia! Dá essa mão aqui!
TONINHO
Nenê! Parou!
MARLA
Eu estou em casa, Nenê Gracinha.
(MARLA ATRAVESSA A CASA ENQUANTO TONINHO BRINCA COM
NENÊ; CLIMA DE SUSPENSE; ESCURIDÃO)
cena
3
(TONINHO APARECE SOZINHO
EM UM FOCO FECHADO)
TONINHO
Na primeira noite, eu
coloquei a mão na cabeça e falei assim: “acho que foi uma má ideia adotar uma
criatura agora. Eu não sei nem cuidar de mim, senhor!”. Ela deu trabalho. Cocô
pra todo lado, xixi... (SILÊNCIO) Nas semanas seguintes o pensamento foi
mudando. Esse ser é parte da minha vida agora. Esse ser depende de mim pra
desvirar as latas, pra comer almofada, destruir tapete, pra dormir junto.
Acordar junto, almoçar junto, jantar junto. A ração que eu coloco pra ela no
potinho ela só come se eu acrescentar o que eu for comer, e não adianta
insistir, ela não come. Tem personalidade. Ao mesmo tempo que eu vejo uma
certa... burrice animal, uma ignorância, eu vejo também inteligência, consciência.
Mas até aí tudo bem, né, burrice animal a gente vê em seres humanos também.
(MARLA APARECE ATRÁS DE
TONINHO NUM SUSTO; ELE NÃO A VÊ)
MARLA
E inteligência também,
consciência também.
TONINHO
Eu... ainda tenho
esperança no ser humano. Mas eu confesso que é mais fácil viver com um
cachorro. Principalmente quando você vive um isolamento total desses depois de
tudo o que aconteceu no mundo.
(A PALAVRA ISOLAMENTO
CAUSA TREMOR NO PALCO; NENÊ GRACINHA APARECE CORRENDO E PULA NO COLO DE
TONINHO; MARLA DESAPARECE)
NENÊ GRACINHA
Ele tá vindo! Ele tá
vindo! Latido, latido!
TONINHO
Calma, Nenê. Ele só veio
receber o aluguel.
NENÊ GRACINHA
Latido! Latido! Latido!
TONINHO
(PARA O PÚBLICO) O mundo
mudou. Não vou dizer solidão e tédio, mas... bom, eu já disse... É sempre essa
mesma rotina. Eu e ela, ela e eu. E de vez em quando o Seu Mundão.
NENÊ GRACINHA
Não deixa ele entrar!
(SEU MUNDÃO DERRUBA UMA PORTA)
cena
4
(SEU MUNDÃO ANDA PELA CASA; SUA CASA)
SEU MUNDÃO
Boa noite, rapaz. Cadela.
TONINHO
É Nenê Gracinha.
SEU MUNDÃO
Você tem álcool em gel? É que eu vim lá de fora e,
você sabe... (TOSSE FALSO)
TONINHO
Sim, eu tenho!
NENÊ GRACINHA
Latido!
TONINHO
Fica quieta, Nenê! (ENTREGA O ÁLCOOL)
SEU MUNDÃO
Obrigado. Vai saber como funciona a maldade na
cabeça dessas criaturas minúsculas, não é mesmo?
TONINHO
Pois é, vai saber. Veio buscar o aluguel, né?
SEU MUNDÃO
Sabe que não?
TONINHO
Que não o que?
NENÊ GRACINHA
Latido!
SEU MUNDÃO
Não vim buscar o aluguel. Vim te dar uma notícia não
muito feliz, Sr. Antônio. Você terá que deixar o imóvel.
TONINHO
O que? Mas eu sempre paguei tudo certinho, Seu
Mundão! Aqui é o meu cantinho, eu tenho uma história aqui dentro!
SEU MUNDÃO
Infelizmente, trago essa notícia. Sinto muito. Você
poderia me servir algo alcóolico para beber?
(SILÊNCIO)
NENÊ GRACINHA
Humano pilantra.
TONINHO
Seu Mundão, eu e minha cachorra não temos pra onde
ir. Sou só eu e ela nesse mundo, mesmo antes disso tudo acontecer! Eu não tenho
pra onde ir.
SEU MUNDÃO
Sem álcool?
TONINHO
Só o em gel mesmo.
(SILÊNCIO)
SEU MUNDÃO
Duas semanas.
TONINHO
Mas, Seu Mundão!
SEU MUNDÃO
Uma! Uma semana! Uma semana pra sair da minha
residência. (VAI SAIR)
NENÊ GRACINHA
Latido, latido, latido! Latido!
SEU MUNDÃO
Manda essa cadela calar a boca!
TONINHO
Nenê!
SEU MUNDÃO
Pinte antes de sair. Até logo.
(UM CLIMA DE SUSPENSE; TONINHO FICA PARALIZADO
ENQUANTO NENÊ BALANÇA O RABO SENTADA OLHANDO)
NENÊ GRACINHA
Vamo brincar agora?
(TONINHO OLHA PRA SUA CASA, PASSA PELOS TRÊS
AMBIENTES, NUM CLIMA TRISTE; NENÊ GRACINHA O SEGUE CURIOSA)
NENÊ GRACINHA
Você vai se esconder que eu sei. Esconde agora que
eu tô vendo, vai. Não tem coragem, né?
(NENÊ PULA EM TONINHO BRINCANDO; TONINHO A EMPURRA
COM UM POUCO DE VIOLÊNCIA)
TONINHO
Chega, Nenê!
(NENÊ ENTENDE E SE ESCONDE EMBAIXO DE ALGUM MÓVEL)
TONINHO
Desculpe. Desculpe, eu... o que a gente vai fazer
agora, Nenê?
(SILÊNCIO)
NENÊ GRACINHA
Vamo brincar? Quer? Eu brinco se você quiser. Não?
Olha esse meu rabo, danado!
(SILÊNCIO; TONINHO ESTÁ ARRASADO, ELE ARRUMA A PORTA
EM SILÊNCIO; DRAMA; ESCURIDÃO)
cena
5
(AINDA NO ESCURO, O RÁDIO NOTICIA)
RÁDIO
O Pentágono acaba de divulgar imagens de objetos não
identificados que estão agora oficialmente considerados legítimos e reais. Eles
estão assumindo publicamente que esses objetos não são do planeta Terra!
(O SOL NASCE DEVAGAR; TONINHO ESTÁ DORMINDO DEITADO
NO SOFÁ AO LADO DE NENÊ)
RÁDIO
São imagens realmente impressionantes. Quem ainda
tiver acesso a internet pode encontrar com facilidade. Na TV aberta, não irão
dar muita atenção. Confie na sua rádio preferida, essa é a Rádio Jovem Místico
FM! E aqui você só ouve a verdade.
(UMA MÚSICA MÍSTICA TOCA; TONINHO ACORDA, NENÊ
TAMBÉM; AMBOS SE ESPREGUIÇAM AO MESMO TEMPO)
NENÊ GRACINHA
O que está acontecendo? Ficou claro de novo. Eu
sempre sei que isso acontece. Curioso.
(TONINHO SAI PRO BANHEIRO)
NENÊ GRACINHA
Onde você vai, hein? Olha só esse sol batendo aqui,
meu deus! Ô, maravilha! (BOCEJA NUM FOCO DO SOL)
(UMA DESCARGA)
NENÊ GRACINHA
Xixi, né? Ai, que quentinho bom desse sol. Que
demora é essa, Antônio? Acho que não é xixi. Olha o ossinho! Ah, tá muito
longe. (DEITA NO FOCO) Eu moraria nessa luz desse sol. Num vai voltar não,
Toninho?
(UM BARULHO NO BANHEIRO; SUSPENSE)
NENÊ GRACINHA
Toninho, tá tudo bem aí? Toninho? Rouf? Ah, um
segundinho sol, vou ver se é xixi ou cocô. (NENÊ VAI SAIR)
RÁDIO
E voltamos aqui na rádio Jovem Místico FM. E o
assunto escolhido para conversarmos com o público hoje será: a morte dos
solitários e pra onde vão os seus cães que ficam.
(NENÊ ESTÁ QUASE SAINDO NO SUSPENSE, QUANDO TONINHO
ENTRA E DESLIGA O RÁDIO)
TONINHO
Dei uma escorregada no banheiro. Piso torto.
NENÊ GRACINHA
Xixi ou cocô? Eu vou morder a sua mão.
TONINHO
Ai, para!
NENÊ GRACINHA
Bom dia!
(TONINHO SE ABAIXA PARA DAR UM ABRAÇO EM NENÊ; ELA
NÃO SE CONTÉM E FICA PULANDO PRA TODO LADO)
NENÊ GRACINHA
Abaixou, danado! Agora que eu te pego nesse pescoço
gostoso! Venha, venha! Ah, coçando a orelha é sacanagem. Barriga, barriga! (ELA
SE DEITA DE BARRIGA PRA CIMA)
TONINHO
Pra onde a gente vai agora, Nenê?
NENÊ GRACINHA
Os ETs estão chegando! Sim, na perninha, na
perninha!
TONINHO
Eu queria uma mudança na vida... mas não esse tipo
de mudança. Não agora, não sozinho.
NENÊ GRACINHA
Você tem eu, você é deus e eu sou deus. E somos todos
deus! Latido, latido!
TONINHO
(PARA O PÚBLICO) As coisas mudaram muito. Morreu
muita gente. Ficou pouca gente, mas ainda ficou bastante gente, mesmo sendo
muito abaixo do que era. A Nenê só conheceu o mundo lá fora quando era filhote.
Depois ficou proibido sair sem necessidade. Um pane no sistema transformou o
mundo de um dia pro outro. Eu mesmo só saio pra ir até o mercadinho, ninguém
mais sai pra fazer nada. Digo, os que sobraram. E não tem mais internet pra
todo mundo, só os mais ricos conseguem. A gente solitária voltou pro tempo das
rádios. É onde ainda dá pra se conectar com a pirataria da verdade.
NENÊ GRACINHA
Latido, latido!
TONINHO
Sim, vamo comer alguma coisa, Nenê.
NENÊ GRACINHA
Comer? Não brinca com coisa séria! Você falou comer?
Latido, latido!
TONINHO
Au-au pra você também. Calma.
(SENTA-SE NA COZINHA PRA TOMAR CAFÉ E LIGA O RÁDIO
DE NOVO)
RÁDIO
... liga aqui pra gente que a gente libera pra você
falar. O que você prefere? Morrer antes ou depois de quem você ama? Temos aqui
uma ligação. Alô...?
HOMEM
Eu prefiro morrer depois! Não quero morrer não!
Quanto mais depois, melhor! Eu acho que ninguém, nem nada, devia morr...
(O RÁDIO É ABAFADO POR UM CLIMA DE TENSÃO; TONINHO E
NENÊ DIVIDEM O MESMO PÃO; ESCURIDÃO)
cena
6
(É MADRUGADA; A LUZ DA LUA ENTRA POR ALGUMA JANELA,
MAS TODAS AS LUZES ESTÃO APAGADAS; TONINHO E NENÊ GRACINHA DORMEM NA CAMA;
MARLA APARECE CAMUFLADA EM ALGUM CANTO; UMA LUZ BRILHA SOMENTE SEU ROSTO)
MARLA
Olha
pra essa história de fantasma
Veja
bem se é o bastante
Que
possa te entreter
Com
a desculpa pro animal
Mas
como vão saber
O
que pensam de você
É
pura invenção individual
Indi-vidu-al...
(TONINHO ACORDA ASSUSTADO E ACENDE A LUZ; MARLA
DESAPARECE)
NENÊ GRACINHA
Ai, que foi?
TONINHO
Você ouviu isso?
NENÊ GRACINHA
Ah, cara, era só a Marla, deita aí, tá frio...
TONINHO
Uma música... alguém cantando.
NENÊ GRACINHA
Racionaliza, vai.
TONINHO
Deve ter passado na janela.
NENÊ GRACINHA
Isso. Desse jeitinho.
TONINHO
Podia jurar que tinha uma mulher cantando.
NENÊ GRACINHA
Jura! Pode jurar que é coisa bruta, física,
parceiro! Agora deita aí, vai. Rouf!
(TONINHO APAGA A LUZ E VOLTA PRA CAMA; NO MESMO
INSTANTE MARLA APARECE CAMUFLADA EM OUTRO LUGAR)
MARLA
Essa casa... eu morei aqui... a gente morou aqui...
já faz alguns séculos, mas... não, não séculos... horas. Dias... (SILÊNCIO)
Essa casa... ela é minha.
(MARLA GRITA; UM CURTO CIRCUITO PISCA TODAS AS LUZES
DA CASA EM TERROR; O RÁDIO LIGA; TONINHO ACORDA DESESPERADO; NENÊ FICA OLHANDO
A REAÇÃO DE TONINHO)
RÁDIO
Só aqui na Jovem Místico...
TONINHO
O que é isso? O que tá acontecendo?
NENÊ GRACINHA
O que? Vamo brincar?
RÁDIO
Temos o orgulho e a honra de afirmar que só
noticiamos coisas reais...
TONINHO
O que tá acontecendo?
MARLA
A casa! Essa casa tem pertencimento!
TONINHO
Santo anjo, deve ser alguma interferência na
eletricidade... (DESLIGA O RÁDIO)
NENÊ GRACINHA
Marla, você virou Poltergeist, querida? Eu vou
resolver. Você sabe que não adianta gritar que ele não ouve.
MARLA
Ninguém mais poderá pisar nesse lugar! Vocês serão
isolados como forma de proteção!
TONINHO
O que tá acontecendo com a luz?
NENÊ GRACINHA
(PARA MARLA) Latido! Latido, latido, latido! Latido!
TONINHO
O que foi, Nenê?
MARLA
Para de latir! Cadela chata, viu...
(AS LUZES PARAM DE PISCAR; MARLA DESISTE DA
INTERVENÇÃO SOBRENATURAL)
NENÊ GRACINHA
Então chega! Vai embora que a gente tava dormindo.
MARLA
Não é hora de dormir, seus imbecis. Vocês tem a
eternidade inteira pra dormir e vão dormir justo agora?
TONINHO
O que tem ali, Nenê?
NENÊ GRACINHA
Deixa eu conversar aqui, querido. Olha, Marla, não é
com essa rebeldia que você vai conseguir fazer essa comunicação, entende? Rouf.
TONINHO
O que você tá olhando ali, Nenê?
MARLA
Vocês vão precisar lutar.
NENÊ GRACINHA
Mas são três e dezenove da madrugada, Marla. Amanhã
cedo o Antônio vai se virar, prometo. O sol sempre volta, não sei porquê. Rouf.
(MARLA DESAPARECE; NENÊ GRACINHA VOLTA PRA CAMA)
NENÊ GRACINHA
Vem, vem deitar, Toninho. Tava tão quentinho. Eu
tava sonhando com o Tobias. Quem é Tobias? Vem, Toninho, vem.
(TONINHO APAGA A LUZ DO QUARTO SEM ENTENDER NADA E
SE DEITA; NENÊ SE ACONCHEGA; UMA LUZ DESTACA O ROSTO DE TONINHO)
TONINHO
Vai
entender
As
coisas do céu
E
da TV
Vai
saber
Não
vi, mas senti
Será
que eu sonhei?
(ESCURIDÃO)
cena
7
(O SOL NASCE; NENÊ GRACINHA ACORDA SOZINHA E VAI
BEBER ÁGUA; ELA VOLTA ATÉ TONINHO E O OBSERVA DORMINDO UM POUCO; ELA VAI ATÉ O
FOCO DO SOL E SE ESPREGUIÇA TRANQUILA)
NENÊ GRACINHA
Não vai acordar não, peste?
(ELA SOBE NA CAMA E FICA OLHANDO PARA TONINHO)
NENÊ GRACINHA
Acorda, ô. Ficou claro de novo. Eu sempre acerto
essa. (SILÊNCIO) Rouf. (ELA LAMBE A CARA DE TONINHO; NADA; ELA MORDE A MÃO DE
TONINHO) Vai, cara, o que tá acontecendo com você? Virou vagabundo pra dormir
até tarde?
(TONINHO NÃO ACORDA; CLIMA DE TENSÃO)
NENÊ GRACINHA
Ai, quero fazer xixi. Abre a porta lá, poxa! Vou
fazer no banheiro mesmo.
(ELA SAI; EM CLIMA DE SUSPENSE UM FOCO DESTACA
TONINHO IMÓVEL NA CAMA; PARECE NÃO RESPIRAR; ALGUÉM BATE NA PORTA; TONINHO SE
LEVANTA QUEBRANDO O SUSPENSE)
TONINHO
Quem será?
(NENÊ GRACINHA ENTRA CORRENDO)
NENÊ GRACINHA
Latido, latido! Cortei o xixi no meio, bicho!
Latido!
TONINHO
Chiu! Fica quieta.
(BATEM NA PORTA DE NOVO)
TONINHO
Quem é?
RAMON
(FORA) Toninho? Sou eu! Abre a porta! Tá uma loucura
aqui fora...
TONINHO
É o Ramon.
(TONINHO VAI ATÉ A PORTA)
TONINHO
Eu tô sem nada também, Ramon. Não tem mais nada.
RAMON
(FORA) Abre, deixa eu entrar, por favor.
(TONINHO ABRE A PORTA; RAMON ENTRA COMO SE SAÍSSE DE
UMA TEMPESTADE; NENÊ ADORA RAMON)
NENÊ GRACINHA
Ramon, seu danado! Eu sabia que você existia! Onde
você tava, hein? Latido, latido, latido!
RAMON
Oi, Nenê! Que saudade também! Ai, sem morder.
NENÊ GRACINHA
Eu arregaço essa mão, quer ver?
TONINHO
O que você tá fazendo aqui, Ramon? Se alguém vê você
andando por aí...
(RAMON VAI TENTAR DAR UM ABRAÇO EM TONINHO; TONINHO
SE AFASTA)
TONINHO
Tem álcool em gel, ali ó.
RAMON
Eu... tava ficando maluco, eu precisava... precisava
conversar com alguém.
TONINHO
Já falei pra você arrumar um cachorro.
RAMON
Não é a mesma coisa.
TONINHO
Não mesmo. É bem melhor.
(SILÊNCIO)
RAMON
Por favor, eu só tô pedindo um pouco de...
companhia...
TONINHO
Não pode. Você sabe. Você tem que ficar lá na sua
casa agora, cara.
RAMON
Você aceita essa merda toda assim com tanta
facilidade, né?
NENÊ GRACINHA
Olha o palavrão!
TONINHO
Tem como não aceitar? Não adiantou de nada fazer a
linha rebelde revolucionário. Eu me cansei, eu estou bem aqui com a Nenê.
NENÊ GRACINHA
Eu! O que?
RAMON
Eu fui despejado. O resto das minhas coisas que deu
pra empacotar tão ali fora.
(SILÊNCIO)
TONINHO
Eu não posso te receber. É contra as leis se
aglomerar.
RAMON
E eu vou pra onde? Eu vou pra onde, Antônio? A gente
era uma família.
TONINHO
O mundo mudou. O mundo realmente gira, o mundo
realmente dá voltas. E é redondo. Eu te falava, eu falava pra você. Num falava?
Num falei? Eu avisei. (PAUSA) Eu tenho que sobreviver porque eu tenho alguém
que depende de mim. Eu não posso arriscar ir contra às leis agora.
RAMON
Quem te viu, quem te vê.
TONINHO
Adaptação, cara. Eu tenho alguém que depende de mim.
RAMON
Quem? A sua cadela? Você ama tanto essa cadela,
acima de todo mundo. Ela não é seu filho, bicho. Acorda.
TONINHO
Você não entende.
RAMON
Eu sou sua família!
TONINHO
Foi. Num outro tempo.
RAMON
Esse isolamento todo mudou mesmo as pessoas. Não
entendo você demorar pra abrir a porta, não entendo você relutar em me deixar
ficar aqui uns dias. Eu sou um ser humano e você tá aí dando preferência pra
sua cadela.
TONINHO
A gente já teve a nossa chance. Eu aceitei com
satisfação esse isolamento todo, se você quer saber. Eu sempre achei que tive
dias muito mais felizes quando não via ninguém!
(SILÊNCIO)
RAMON
Credo.
NENÊ GRACINHA
Credo mesmo. Essa foi pesada, cara.
RAMON
Você vai me jogar naquela loucura lá fora? Sozinho?
TONINHO
Pra mim, você faz parte dessa loucura lá fora.
NENÊ GRACINHA
Rouf.
(SILÊNCIO; RAMON DECIDE IR EMBORA; ELE PÁRA NA
PORTA)
RAMON
É... esse é o novo mundão... ninguém aprendeu nada,
nem com a solidão.
TONINHO
Eu não troco a solidão por nada nesse mundo.
NENÊ GRACINHA
Latido!
TONINHO
Com a Nenê, claro.
(RAMON SAI; TONINHO DISFARÇA O SOFRIMENTO)
NENÊ GRACINHA
Bom, pelo menos não somos os únicos despejados, não
é mesmo? Todo mundo despejado! Como que a gente vai fazer será? Rouf.
TONINHO
Pelo menos não somos os únicos despejados.
NENÊ GRACINHA
Foi o que eu disse.
TONINHO
Estão colocando todo mundo na rua.
NENÊ GRACINHA
Como que a gente vai fazer será?
TONINHO
(CALMA FORÇADA) Temos ainda cinco dias, não é tão
desesperador assim. Já passei por tempos piores.
NENÊ GRACINHA
O tempo é um bagulho louco, igual esse meu rabo!
(CORRE ATRÁS DO RABO) Só não morre, hein, Antônio! Ouviu? Ouvi dizer que o
lugar pra onde mandam os cães de quem morre é horrível.
TONINHO
Eu nunca vou deixar você, Nenê. A gente vai pra onde
for e eu vou te proteger pra sempre.
NENÊ GRACINHA
E nem você e nem eu e nem ninguém morre nunca,
nunquinha e para sempre. Fim.
(TONINHO ABRAÇA NENÊ GRACINHA E ELA DEITA EM SEU
OMBRO; ESCURIDÃO)
cena
8
(AINDA NO ESCURO; UM CLIMA DE TERROR)
MARLA
(FORA) Quatro dias.
(TONINHO ACENDE A LUZ DO QUARTO; O CLIMA DESAPARECE)
TONINHO
Quatro dias. O que a gente vai fazer, Nenê?
NENÊ GRACINHA
Ué, e você pergunta pra mim? Volta pra cama, volta.
TONINHO
Pedir ajuda. Pedir ajuda pra alguém. (SILÊNCIO)
Quem?
NENÊ GRACINHA
Ai, que preguicinha desse drama canino todo...
(MARLA APARECE NO GRITO, TONINHO A VÊ PELA PRIMEIRA
VEZ)
MARLA
Quatro dias! Essa residência tem pertencimento!
(DESAPARECE)
TONINHO
(ATERRORIZADO) Aaaah! Caramba, caramba! Santo anjo
do senhor! O que foi isso? Eu tive uma experiência sobrenatural, eu tive uma
experiência sobrenatural... Foi real... não foi? Não foi, Nenê?
NENÊ GRACINHA
O que? A Marla fazendo a cena de terror? Típico.
TONINHO
E agora? Pra quem eu conto? O que muda? (SILÊNCIO) O
que muda saber que... essas coisas bizarras existem?
NENÊ GRACINHA
Bizarro? Você já se viu pelado no espelho, meu
filho? Rouf.
TONINHO
Quem era aquela mulher? Eu não tava sonhando, tava?
(SILÊNCIO)
NENÊ GRACINHA
Isso, racionaliza, dá uma resposta mais plausível,
nas possibilidades.
TONINHO
Meu cérebro. O cérebro da gente pode enganar a
gente, o tempo todo. Ou... não, não pode ser um fantasma do tipo fantasma que
todo mundo conhece! Isso não é ciência, isso é superstição! (PAUSA) Eu
alucinei. Foi isso que aconteceu.
NENÊ GRACINHA
Marla. O nome dela é Marla. E ela é sempre assim bem
dramática, bem atriz de hora do horror mesmo, arrasa!
TONINHO
Mas mesmo numa alucinação...
NENÊ GRACINHA
Vai, rapaz! Vai que você consegue!
TONINHO
Mesmo numa alucinação pode existir coisas que a
gente não entende. Coisas que nosso cérebro está conversando com a gente, e
nosso cérebro conectado com todo o universo e...
NENÊ GRACINHA
Você se perde um pouco nas suas teorias, mas tá
valendo, é por aí.
TONINHO
A ciência nunca afirma saber de toda a verdade
absoluta.
NENÊ GRACINHA
Entendi. Estamos filosofando.
TONINHO
(PARA O PÚBLICO) O que muda na vida depois que você
tem uma experiência que você não consegue explicar? Não muda nada. Se você for
contar pra alguém, essa pessoa também tem uma história. Sua experiência pessoal
é irrelevante se não for o pentágono afirmando uma verdade. (PAUSA) O
sobrenatural é até bastante natural, se for pensar bem. Todo mundo tem uma
história esquisita pra contar, não tem?
NENÊ GRACINHA
Tá bonito, tá gostoso, mas cansei. Vamo comer alguma
coisa? Latido! Vem, vem, vamo!
TONINHO
O que foi que minha suposta alucinação disse mesmo?
NENÊ GRACINHA
(IMITA) Alimente e brinque com sua cadelaaa!
TONINHO
Essa residência tem pertencimento. Foi isso que ela
disse. Entendi agora. Meu cérebro está me lembrando que eu não tenho nada, que
essa casa não é minha, que eu tenho que pagar por ela. Seu Mundão tem o direito
da terra que é dele.
NENÊ GRACINHA
Latido, latido! Que burro! Nosso xixi tá empregnado
nessa casa, cabeçudo.
TONINHO
Quatro dias, Nenê. Vamo aproveitar os quatro dias
que nos restam como solitários com cães e residência fixa.
NENÊ GRACINHA
Pra mim é tempo suficiente! Vai dar pra brincar um
montão!
TONINHO
Sem morder, sem morder!
NENÊ GRACINHA
Rouf.
TONINHO
(FALSA CALMA) Quem nunca precisou dormir uns dias
numa rodoviária, não é mesmo? Não tem nada que possa ser tão ruim.
NENÊ GRACINHA
Poxa, bicho, essa foi pesada, hein... Vem, vamo
voltar a dormir pra esquecer um pouco da existência, vem.
TONINHO
Vamo dormir pra esquecer um pouco que a gente existe.
NENÊ GRACINHA
Foi o que eu disse.
(TONINHO APAGA A LUZ DO QUARTO; ESCURIDÃO)
cena
9
(NENÊ GRACINHA ESTÁ SONHANDO QUE VOA; TOBIAS TAMBÉM
APARECE VOANDO)
NENÊ GRACINHA
Ei, Tobias! Eu esqueci de te perguntar aquele dia,
mas quem é você?
TOBIAS
Poxa, Nenê! Eu sou o Tobias.
NENÊ GRACINHA
Mentira!
TOBIAS
Tô falando. Tamo junto nessa faz tempo, menina.
NENÊ GRACINHA
Verdade... Curioso, né?
TOBIAS
Acho super curioso.
NENÊ GRACINHA
Vou te cheirar.
TOBIAS
Vou te cheirar também.
(ELES CHEIRAM O BUMBUM UM DO OUTRO; BRINCANDO)
NENÊ GRACINHA
Ah, sim! Agora eu lembrei quem é você, Tobias, seu
danado!
TOBIAS
Ah, Nenê, eu nunca me esqueço do cheiro do seu...
(PEQUENA ENTRA COM BASTANTE DIFICULDADE, BEM IDOSA)
NENÊ GRACINHA
Pequena! Você por aqui! Latido, latido, latido!
PEQUENA
Rouf.
TOBIAS
Outra fêmea? Quem é você?
PEQUENA
Quem sou eu? Quem é você?!
TOBIAS
Eu sou Tobias.
(ELES CHEIRAM O BUMBUM UM DO OUTRO)
PEQUENA
Ah, tá. Lembrei sua descendência.
NENÊ GRACINHA
O que tá rolando?
PEQUENA
Eu sei lá. Eu que pergunto.
TOBIAS
Tô sabendo também não.
NENÊ GRACINHA
Latido, latido!
PEQUENA
Latido, latido!
TOBIAS
Rouf.
(SILÊNCIO)
NENÊ GRACINHA
Onde está o Toninho? Onde será que ele se meteu?
TOBIAS
Ah, você conhece o Toninho?
NENÊ GRACINHA
Quem não conhece o Toninho? Ele é meu dono.
PEQUENA
É o Antônio?
NENÊ GRACINHA
Esse mesmo. Bem bizarro ele pelado.
TOBIAS
Ele também foi seu dono?
NENÊ GRACINHA
Ele É meu dono.
PEQUENA
Ele também foi meu dono.
TOBIAS
Puxa!
NENÊ GRACINHA
Puxa!
PEQUENA
Rouf.
TOBIAS
É por isso essa reunião. Somos os cachorros que o
Toninho foi dono.
NENÊ GRACINHA
Ah, sim! E vocês são fantasmas! Igual a Marla!
Entendi a história, gente!
PEQUENA
Sim, eu vivi bastante e depois morri. Longa história
curta. Toninho e eu vivemos quando ele era quase adolescente, aqui nessa casa
mesmo. Aí a mãe dele morreu e ele foi embora, não sei pra onde, nunca mais o
vi. Eu fiquei na mesma casa, só que com uma tia dele. Depois de um tempo ele
voltou, só que mais velho, já um homem adulto. E depois disso eu morri.
NENÊ GRACINHA
Puxa vida, curta e longa história.
TOBIAS
Eu não morri ainda.
NENÊ GRACINHA
O que? Como assim? Você só pode ter morrido. É óbvio
que você é um fantasma, é a resposta mais plausível pra tudo isso.
TOBIAS
Não, não, eu tô bem vivinho. Eu não morri ainda não.
Só que agora eu tenho outro dono. Toninho foi embora, não sei pra onde.
NENÊ GRACINHA
Ele... ele te abandonou?
TOBIAS
Eu não sei bem o que aconteceu. Um dia a gente
morava junto, mas não nessa casa, e depois no outro dia... bom, eu moro num
sítio agora. A gente deve estar compartilhando um sonho, eu não sou um fantasma
não, ô.
NENÊ GRACINHA
Curioso. Muito curioso.
PEQUENA
Tudo nesse universo é muito curioso, antes, durante
e depois. Há mais coisa entre o céu e a Terra que nós cães jamais iremos
entender.
NENÊ GRACINHA
Será que Toninho também vai me abandonar?
TOBIAS
Tudo pode acontecer. Mas eu amo o Maurício agora.
NENÊ GRACINHA
Quem é Maurício?
TOBIAS
É meu dono atual, dono do sítio onde eu moro.
NENÊ GRACINHA
Pelo menos o Toninho não te deixou sozinho no
mundão.
TOBIAS
Pelo menos. Mas acho que ele foi um pouco... cruel
sim. Nem se despediu direito. Como se nós cães, como se a gente fosse...
dispensável...
(SILÊNCIO)
PEQUENA
Sabe, Nenê, eu acho que não tem chances do Antônio te
abandonar não.
NENÊ GRACINHA
Por que acha isso?
PEQUENA
Porque Toninho lembra de Tobias. Ele teve os motivos
que teve e errou com o Tobias. Você significa pra ele o conserto de um erro.
Ele nunca mais vai abandonar você, tenho certeza.
NENÊ GRACINHA
E se surgir um motivo pra ele errar de novo?
PEQUENA
Acho que dessa vez ele quer acertar. Eu morri pouco
antes de ele te adotar. Isso significa que eu conheci o Antônio antes e depois
do Tobias, Tobias está no meio da minha história com Toninho. Ele não vai te
abandonar nunca.
TOBIAS
Ainda assim ele pode morrer.
(SILÊNCIO)
TOBIAS
Ué, tudo morre.
NENÊ GRACINHA
Mas não devia.
TOBIAS
Não, não devia mesmo.
(UM BARULHO E LUZ FORTE INVADE O PALCO)
NENÊ GRACINHA
O que está acontecendo?
PEQUENA
O sol. Está amanhecendo...
TOBIAS
Até logo, Nenê. Prazer em te conhecer, dona...
(ESPERA PELO NOME DA PEQUENA)
PEQUENA
Pequena.
TOBIAS
Pequena? Mas você é grande, é maior que nós dois
juntos.
PEQUENA
Quando eu era filhote eu era pequena e no fim o nome
ficou e eu cresci.
TOBIAS
Entendi.
NENÊ GRACINHA
Latido, latido!
TOBIAS
Latido, latido!
PEQUENA
Rouf.
(ESCURIDÃO)
cena
10
(NENÊ E TONINHO ACORDAM JUNTOS)
TONINHO
Ah, mais um dia. Ou menos um. Temos três dias agora,
Nenê.
NENÊ GRACINHA
Eu sonhei com alguma coisa que eu lembro. Ah, não
lembro.
(OS DOIS SE ESPREGUIÇAM JUNTOS)
TONINHO
Sonhei com a minha mãe. Mas ela não tinha rosto.
Esquisito. Acho que a memória da gente vai esquecendo das coisas...
NENÊ GRACINHA
Rouf.
TONINHO
Calma, já vou abrir pra você fazer xixi.
NENÊ GRACINHA
Eu lembrei! Tinha o Tobias. E a Pequena também. Oh!
Você abandonou o Tobias. Latido!
TONINHO
Que foi?
NENÊ GRACINHA
Agora eu lembro, agora eu lembro! Você abandonou o
Tobias, Antônio! Como pôde? Como pôde fazer isso com um irmão de alma? (ELA
ROSNA PARA TONINHO)
TONINHO
Eita, o que é isso, Nenê? Pirou?
(NENÊ CORRE SE ESCONDER EMBAIXO DA CAMA, BRAVA)
NENÊ GRACINHA
Você já abandonou um cachorrinho. Vai me abandonar
também.
TONINHO
Sai daí de baixo! O que é que você tem?
NENÊ GRACINHA
Latido, latido, latido!
TONINHO
Vixi, tá maluquinha essa cadela.
(TONINHO LIGA O RÁDIO; E VAI PREPARAR O CAFÉ)
RÁDIO
... é nesses tempos que temos que mostrar os
culpados. A gente não pode mais fingir que isso não é uma realidade. Os motivos
de desculpa de cada um são válidos para o abandono até, nós entendemos os
problemas sociais. Tem gente que é pobre e vai ter que se mudar pra um lugar
onde não aceita cães, por exemplo. Tem milhares de exemplos e sofrem os cães, e
sofrem as pessoas também. Tem gente que não tem opção, e tem gente que escolhe
as piores opções. De qualquer forma, sim, uma falta de responsabilidade, uma
tragédia social. Tem gente que adota sem planejamento de que o cão pode chegar
até vinte anos - tem histórias de mais de vinte anos que um cachorro já viveu
até. Planejamento. Esse é o problema. Na verdade esse é o problema de tudo, não
é mesmo? Falta de planejamento.
NENÊ GRACINHA
É desculpa, mas não é desculpa.
RÁDIO
Vamos ouvir agora a nossa meditação matinal. Hashtag
paz. (UMA MÚSICA DE MEDITAÇÃO COMEÇA)
TONINHO
Não vai comer não, Nenê?
NENÊ GRACINHA
Humano é bicho ruim. (VAI CONTRARIADA) Dá um
delicioso pão com margarina pra gente comer, e depois joga a gente no lixo.
(NENÊ PEGA O PÃO E SAI COMER EMBAIXO DA CAMA)
NENÊ GRACINHA
Amor não se compra com comida não, Antônio. Amor é
coisa de lealdade. Por isso eu te amo mesmo assim.
(SEU MUNDÃO DERRUBA A PORTA)
SEU MUNDÃO
Bom dia, moradores da minha casa! Oh, digo,
ex-moradores. Como está indo o empacotamento das coisas? Ainda nem começaram!
TONINHO
Nós estamos nos planejando, temos três dias ainda.
SEU MUNDÃO
Três dias passam rápido demais, menino.
NENÊ GRACINHA
Depende como você enxerga o tempo.
SEU MUNDÃO
Comece a empacotar suas coisas, garoto. Nós vamos
demolir isso tudo. E bem exatamente nesse lugar construirei um edifício cheio
de empresários e burocracias e dinheiro!
NENÊ GRACINHA
Que história batida.
SEU MUNDÃO
O prédio mais alto da cidade...
NENÊ GRACINHA
Nossa, jura?
SEU MUNDÃO
E eu estarei com meu escritório, exatamente nesse
lugar, mas há milhões de quilômetros acima de distância. Lá em cima. No mais
alto poder executivo!
NENÊ GRACINHA
Não pode ser tão alto assim. Milhões de quilômetros,
não é possível.
SEU MUNDÃO
Comece o empacotamento logo.
TONINHO
Eu ainda não sei pra onde eu vou. O senhor não tem
nenhuma outra casa disponível?
SEU MUNDÃO
Veja se eu tenho cara de filantrópico! Com sua
licença. Pinte as paredes.
(SEU MUNDÃO SAI; TONINHO COLOCA A PORTA DE VOLTA DO
LUGAR)
TONINHO
Filantrópico? Mas eu pagava aluguel. (PAUSA) Minha
mãe morava aqui. Não é justo. Eu sei que eu fui embora e...
NENÊ GRACINHA
Deixou a Pequena com a sua tia.
TONINHO
Eu era uma criança.
NENÊ GRACINHA
Cresceu e abandonou o Tobias.
TONINHO
Quem decidiu que essa terra é dele? Olha o tamanho
do espaço que eu ocupo, poxa! Quarto, sala, cozinha. Não tem espaço pra todo
mundo? Tem sim! Lógico que tem.
NENÊ GRACINHA
Sim, sim, garoto! É por aí, continua! (SAI DO
ESCONDERIJO) Latido, latido!
TONINHO
Quem decidiu que eu tenho que pagar pra ele? Por que
ele é o dono desse espaço? Cadê o meu espaço, então, se esse não é o meu? Cadê
o meu espaço?
NENÊ GRACINHA
Vai garoto! Tá inspirado!
TONINHO
Eu não vou sair. Ele vai ter que me tirar!
NENÊ GRACINHA
Ah... oh... olha, sem querer desmerecer o plano, mas
dois capangas desmontam esse cenário aqui rapidinho, viu.
TONINHO
Ele me tira fácil daqui.
NENÊ GRACINHA
Foi o que eu disse.
(TONINHO SE SENTA CANSADO)
TONINHO
Eu não sei mais o que fazer, Nenê. Pra onde a gente
vai?
NENÊ GRACINHA
Não me abandona.
(SILÊNCIO; NENÊ COLOCA A CABEÇA NAS PERNAS DE
TONINHO; TONINHO A ABRAÇA)
TONINHO
(FALSO ESPERANÇOSO) A gente vai sair dessa.
NENÊ GRACINHA
(ESPERANÇOSA DE VERDADE) Juntos!
RÁDIO
Essa foi a meditação matinal. Você está ouvindo a
rádio...
(TONINHO DESLIGA O RÁDIO; ESCURIDÃO)
cena
11
(APENAS O ROSTO DE MARLA NA ESCURIDÃO)
MARLA
Eu
sou a razão
Eu
tenho a solução
Essa
é uma história com final feliz
Com
um forte abraço
E
uma alma de um cão
Oh,
meu filho, eu trouxe pra você...
(AS LUZES ACENDEM; TONINHO E NENÊ ESTÃO NA MESMA
POSIÇÃO DO FINAL DA CENA ANTERIOR; PARALISADOS; MARLA JOGA UMA FOLHA DE UM
PAPEL VELHO PARA O ALTO)
MARLA
Essa casa tem pertencimento. E tem cheiro de xixi.
Você fez xixi nessa casa desde que era um bebezinho. Você não lembra, mas morou
aqui três vezes, Antônio, não duas. Você nasceu aqui, eu morei aqui com seu
pai, você viveu aqui seu primeiro ano de vida. Mas logo fomos morar em outro
lugar. Aí voltamos quando você era mais mocinho, acho que tinha uns doze, treze
anos, mas dessa vez sem pai e com três irmãos pequenos e a Pequena. E depois
que... depois você voltou adulto, sabe-se lá porquê. Conseguiu ainda ver os
últimos anos da Pequena, finalizou a história dela, do lado dela, se despediu
devidamente. E uma história sempre recomeça.
TONINHO
Na primeira noite, eu coloquei a mão na cabeça e
falei assim: “acho que foi uma má ideia adotar uma criatura agora. Eu não sei
nem cuidar de mim, senhor!”.
NENÊ GRACINHA
Rabo danado, venha aqui!
MARLA
Antônio!
(TONINHO VÊ O PAPEL CAÍDO; MARLA DESAPARECE)
TONINHO
O que é isso?
NENÊ GRACINHA
Papel. Quer rasgar ele?
TONINHO
Uma escritura.
NENÊ GRACINHA
Nossa, adoro arte e essas coisas! Quando bem
interpretada, claro.
TONINHO
Isso é um testamento. Tá dizendo que essa casa
pertencia à minha mãe. E que agora me pertence.
NENÊ GRACINHA
Esse negócio de pertencimento das coisas é muito
complicado. Pra nós cães a gente faz isso com xixi. Mas você não pode sair
mijando pelo mundo todo, entende?
TONINHO
Esse pedaço de terra é da minha família. Foi da
minha família. Será que foi vendida? Mas a casa me pertence, esse papel está
dizendo, Nenê! Pode ser a nossa salvação!
NENÊ GRACINHA
É só um papel, né? Deixa eu estraçalhar ele, deixa,
só um pouquinho?
TONINHO
Pára de pular! Isso aqui é importante. Quando Seu
Mundão voltar eu vou mostrar isso pra ele. Tem assinaturas e carimbo do
cartório até. Isso vai servir! (PAUSA) Como foi que isso apareceu aqui?
NENÊ GRACINHA
Marla, né?
TONINHO
Nenê, eu vou precisar ir até um cartório, é melhor.
Eu vou antes e vejo o que dá pra fazer. Eu tenho que ir agora, na verdade. Você
vai ter que ficar.
(COMEÇA A SE ARRUMAR)
NENÊ GRACINHA
O que? O que você tá fazendo? Vamo sair? Vamo sair?
TONINHO
Pára de pular! Você não vai!
NENÊ GRACINHA
Vamo! Vamo! Puxa, você vai colocar o tênis! Quanto
tempo! Dá aqui essa meia! Dá aqui!
TONINHO
Pára, Nenê!
(TONINHO VAI SAIR E SEGURA NENÊ PRA DENTRO DA CENA)
NENÊ GRACINHA
Ei, o que é isso?
TONINHO
Fica, fica! (FECHA A PORTA)
NENÊ GRACINHA
Ei! Latido, latido! Onde você vai? Vai me abandonar?
Você vai me abandonar? Ei! Latido! (ELA CHORAMINGA) Volta! Toninho, eu páro de
pular! Antônio! Não me abandona! (SILÊNCIO; NENÊ OLHA PARA A CASA VAZIA) Ele...
ele foi embora. Pra sempre.
(ELA SE ESCONDE EMBAIXO DA CAMA; DRAMA; ESCURIDÃO)
cena
12
(AINDA NA ESCURIDÃO, TODOS CANTAM)
TODOS
Eu
sou a razão
Eu
tenho a solução
Essa
é uma história com final feliz
Com
um forte abraço
E
uma alma de um cão
Oh,
meu filho, eu trouxe pra você...
(AS LUZES SE ACENDEM E TODOS OS PERSONAGENS ESTÃO EM
CENA)
TODOS
Eu
sou a razão
Eu
tenho a solução
Essa
é a história que seu mundo quis
É xixi
e cagaço
E
uma alma de um cão...
NENÊ GRACINHA
Oh,
danado, cadê você?
(TODOS SAEM CORRENDO, MENOS NENÊ, TOBIAS E PEQUENA)
NENÊ GRACINHA
Pois aconteceu de novo, Dona Pequena. O Antônio foi
embora e me deixou.
TOBIAS
Quem faz uma vez, faz sempre.
PEQUENA
Tem certeza, Nenê?
NENÊ GRACINHA
Absoluta! Ele saiu por aquela porta e nunca mais
voltou.
PEQUENA
Pode ter acontecido alguma coisa com ele...
TOBIAS
Pois é, é proibido ficar andando por aí sem motivos
agora, não é? Pode até que ele tenha sido preso. Ou pior, morto.
NENÊ GRACINHA
Credo, Tobias! Eu prefiro... eu preferiria que ele
só tivesse ido embora, então. Tudo bem se ele foi embora, mas tomara que nada
de ruim tenha acontecido com ele.
PEQUENA
Ou ele já volta e você está nervosa à toa.
NENÊ GRACINHA
Não, não, faz muito tempo que ele se foi.
PEQUENA
Depende como você enxerga o tempo, né? O que é o
tempo? Você sabe contar? Horas, dias, anos?
(SILÊNCIO)
NENÊ GRACINHA
Eu não penso sobre isso, só sei que ele se foi. E
demorou tanto que eu até dormi, já que estamos aqui.
TOBIAS
Tá tudo bem, Nenê. A gente nunca fica realmente
sozinho. Quando se sentir sozinha, durma, aí a gente se reencontra.
PEQUENA
Sozinho, ninguém - absolutamente ninguém - nesse
mundo está. Mesmo a alma viralata mais solitária, ela não está sozinha. Nunca.
Sempre estamos nos conectando com as coisas ao nosso redor, mesmo que a pessoa
mais próxima esteja há quilômetros de distância ou que seja um inseto. Eu posso
saber pelo cheiro.
NENÊ GRACINHA
Falando em cheiro... tô sentindo o cheiro dele, tô
sentindo o cheiro do Toninho!
TOBIAS
Memória oufativa. Pode ser saudade.
PEQUENA
Acorda, Nenê!
(ESCURIDÃO)
cena
13
(NENÊ ACORDA EMBAIXO DA CAMA; ELA CORRE ATÉ A PORTA
CHEIRANDO TUDO; TONINHO ENTRA COMO SE SAÍSSE DE UMA TEMPESTADE)
NENÊ GRACINHA
Latido, latido!
TONINHO
Nossa, tá uma loucura lá fora...
NENÊ GRACINHA
Você voltou, seu danado! Venha aqui! Ai, que não vou
segurar o xixi.
TONINHO
Ai, xixi na sala, Nenê?
NENÊ GRACINHA
Não aguentei, tô emocionada. Você voltou! Você não
me abandonou! Você me ama!
TONINHO
Nenê, ótimas notícias! Essa terra... a gente tem
parte nessa terra também, lavrado em cartório e tudo. O Seu Mundão não pode nos
expulsar, Nenê. A gente vai ficar!
NENÊ GRACINHA
Juntos!
(ELES SE ABRAÇAM ALIVIADOS)
TONINHO
Isso sempre acontece comigo, um problema surge e
sabe o que acontece? Ele logo se resolve. É igual magia, não sei explicar, foi
assim a vida toda. Só tem que aprender a ser forte durante os problemas, e não
desistir. Lutar, correr atrás, não morrer. Porque as soluções elas... elas não
caem do céu, não é mesmo?
NENÊ GRACINHA
Foi a Marla que jogou assim pro alto.
TONINHO
As soluções... elas não batem na sua porta, né?
NENÊ GRACINHA
(SENTE UM CHEIRO) Mas os problemas sim. (CORRE ATÉ A
PORTA) Latido, latido!
(ALGUÉM BATE NA PORTA)
TONINHO
Quem será?
NENÊ GRACINHA
Ramon!
TONINHO
Quem é?
RAMON
(FORA) Toninho, sou eu. Por favor, cara, pelo amor
de deus...
TONINHO
Ramon.
NENÊ GRACINHA
Abre logo a porta, Antônio!
(TONINHO ABRE A PORTA, RAMON ENTRA DESESPERADO)
RAMON
Obrigado! Obrigado! Eu já não aguentava mais. Eu vi
você passando...
TONINHO
Onde você tá ficando?
RAMON
Na rua! Na rua, Antônio. Eu tô ficando na rua.
(SILÊNCIO)
RAMON
Eu tô morrendo de fome. Você tava certo. Antes até a
gente conseguia um almoço de graça. Hoje não tem almoço de graça mais. Acabou.
TONINHO
Ah, pois é, né? O mundo não gira, ele capota mesmo.
Eu falava pra você que a gente tava bem e você... ajudou pra que isso tudo
acontecesse!
RAMON
Eu sei, eu sei, não tinha como saber que íamos viver
uma história de apocalipse!
TONINHO
Pra mim sempre esteve muito claro. Os filmes
falavam, a ciência falava, a razão falava, eu falei...!
RAMON
Pois pra mim não foi claro. Eu demorei um pouco pra
conseguir entender, ué. E aí?
TONINHO
E aí que você está colhendo o que plantou. Eu
plantei outra coisa, e eu sinto que mesmo vivendo num mundo com problemas, eu
colho coisas boas. Sempre!
RAMON
Que privilégio. Se eu pudesse voltar no tempo...
TONINHO
Não pode.
NENÊ GRACINHA
O que é o tempo, não é mesmo?
RAMON
Eu preciso de ajuda, Toninho...
TONINHO
Ué, pois é, né? Até ontem você era contra esse
negócio de ajuda, assistencialismo, né?
RAMON
E não era você que era à favor?
NENÊ GRACINHA
Tish...
(SILÊNCIO)
RAMON
Eu só preciso de um canto perto de alguém. Eu não
tenho nada. Dois dias na rua, já vendi minhas coisas por comida, me roubaram...
TONINHO
Dois dias na rua não é nada! Dois dias na rua não é
passar fome, bicho. Você não conhece nada, você precisa abrir essa sua cabeça,
e é por isso que está vivendo isso! Veja, eu também tinha sido despejado, eu
mantenho a calma, eu sei que plantei o certo, e eu, em menos de sete dias,
resolvi o problema.
NENÊ GRACINHA
Foi a Marla que resolveu. Um ser sobrenatural.
TONINHO
Eu descobri que a casa me pertence e que eu nunca
precisarei sair.
RAMON
Por que a casa te pertence?
TONINHO
A casa é da família.
RAMON
Ou seja, da minha família também.
(SILÊNCIO)
TONINHO
Você não pode fazer isso. Sou eu quem vivo aqui.
RAMON
Eu não tenho opção. Eu esperava que você só
aceitasse me ajudar, não que eu tivesse que brigar por um canto. Um canto pra
um irmão. Se a casa era da família eu também tenho o mesmo direito que você de
ficar aqui.
TONINHO
(DESCONVERSA O DRAMA) Bem, é óbvio que eu ia no
final da discussão aceitar ajudar você, Ramon.
RAMON
Ah, ia? Você ia me ajudar, Antônio?
TONINHO
Ia. Dois dias foi o suficiente pra você aprender.
NENÊ GRACINHA
Eita, cara, foi castigo, foi? Cruel.
RAMON
Irmão mais velho sempre quer ser o professor na vida
da gente. Essa casa também é minha, poxa! (FICA FOLGADO)
TONINHO
Calma, aqui nós temos regras! É você que vai ter que
se adaptar com a gente, Ramon, você entendeu? Nós temos uma vida aqui, uma
rotina estabelecida.
RAMON
Pareceu chato. Mas tá tudo bem. Onde eu vou dormir?
TONINHO
No sofá, por hora. Depois a gente vai vendo.
RAMON
Você conseguiu um rádio! Pode ligar um pouco?
TONINHO
Liga, mas não muda de estação.
(RAMON LIGA O RÁDIO)
RÁDIO
... porque no final todos nós achamos e queremos ser
donos de alguém, como se a gente pudesse ensinar e decidir pela vida de alguém.
O que é a propriedade? O filhote de um cão decide ser tirado da sua mãe pra ir
viver com outra família? Por que a vida de um simples inseto tem menos ou mais
valor que a nossa vida? Quem falou que aquela barata que apareceu na sua casa
não tem o direito de estar ali, e é você que é o invasor da sua terra? Quem fez
as escrituras, quem deu o valor pras coisas? Quem fez xixi no mundo inteiro pra
marcar todo o território como pertencimento próprio, quem tem o poder superior
da assinatura? Onde estarão todos os irmãos de alma? Estarão eles dormindo bem,
comendo bem, vivendo bem? Ou ainda haverá miséria? Guerra por espaço?
(SILÊNCIO) Vejam bem, eu acho que até aceitaria se soubesse que é por falta de
espaço, falta de recursos pra suprir a necessidade de todo mundo. Mas todos
sabemos que não é. Não é por falta de espaço, nem por escassez de recursos. Mas
por egoísmo do mundão. E quando eu falo mundão, eu tô falando de todo mundo.
Nós precisamos aprender a compartilhar e não mais competir. Boa noite.
(TONINHO, RAMON E NENÊ ESTÃO PRONTOS PRA DORMIR;
TONINHO APAGA A LUZ; ESCURIDÃO)
cena
14
(O SOL NASCE; RAMON ACORDA PRIMEIRO E VAI PRO
BANHEIRO; SEU MUNDÃO DERRUBA A PORTA)
NENÊ GRACINHA
Que humano mais xucro!
SEU MUNDÃO
Ainda não começou a empacotar as suas coisas,
garoto? Se eu tiver que chamar os meus funcionários eles não vão ter tanto
cuidado na hora de enfiar as suas coisas num saco.
TONINHO
Que bom que o senhor veio antes pra gente conversar.
Bom que a gente resolve isso tudo mais rápido.
SEU MUNDÃO
Eu voltei porque eu tenho pressa. Sábado mesmo tudo
isso vai pra baixo! E logo eu terei o meu escritório nesse exato lugar, mas
quilômetros acima!
TONINHO
Olha, Seu Mundão, eu fui no cartório e...
SEU MUNDÃO
Que papel é esse?
TONINHO
Essa casa. Essa casa pertence à minha mãe, à minha
família. Eu fui no cartório hoje e, com todo respeito, o senhor não tem o
direito de me expulsar daqui, o senhor não pode demolir uma casa que não te
pertence, o senhor não podia nem me cobrar o aluguel.
(SILÊNCIO; AS VEIAS DO PESCOÇO DO SEU MUNDÃO PULAM
ENQUANTO ELE LÊ O TESTAMENTO)
SEU MUNDÃO
Como conseguiu essa escritura?
TONINHO
Eu achei.
NENÊ GRACINHA
Marla, gente, foi a Marla. Ô povinho que não sabe
dar os créditos pras pessoas, viu.
(SILÊNCIO; SEU MUNDÃO PARECE QUE VAI EXPLODIR DE
RAIVA; ELE SE ESCORA EM ALGUM LUGAR PRA NÃO CAIR E VAI EM DIREÇÃO DA PORTA)
SEU MUNDÃO
Pois bem. Parece que o mundo não gira, ele capota,
não é mesmo? Eu sei perceber uma batalha perdida, garoto, essa escritura segue
a lei, e se tem uma coisa que um homem de bem faz é seguir as leis. (PAUSA;
MUDA O TOM, UM TANTO AMEAÇADOR) Contanto, na minha vida, Sr. Antônio, toda vez
que surge um problema... eu sempre – vou até o inferno, se for preciso – pra
encontrar uma solução. (ELE OLHA PARA SEU ESCRITÓRIO LÁ NO ALTO; ELE APONTA
PARA O ESCRITÓRIO E FAZ O SINAL DA CRUZ) Eu ainda terei o meu escritório nesse
exato lugar, só que lá pra cima! Nem que eu tenha que fazer um prédio torto. Passar
bem. (SAI)
(SILÊNCIO; RAMON ENTRA ASSUSTADO)
TONINHO
Nossa, eu achei que ele até que aceitou bem, né?
NENÊ GRACINHA
Pensei que ele fosse rasgar esse papel aí. Vamo
rasgar?
TONINHO
Achei que ele fosse rasgar a escritura, fazer um
escândalo, falar de advogados.
NENÊ GRACINHA
Vamo rasgar, vamo rasgar!
RAMON
Ainda bem que o Seu Mundão não me viu aqui. Eu saí
devendo.
TONINHO
Bom, pelo menos, na pior das hipóteses a gente
ganhou mais tempo.
NENÊ GRACINHA
Tem coisa mais valiosa, meu deus?
TONINHO
Tem coisa mais valiosa do que o tempo?
NENÊ GRACINHA
Foi o que eu disse.
TONINHO
Não tem. Aproveite o tempo, Ramon. Esse é o nosso
final feliz de hoje.
NENÊ GRACINHA
Família reunida, lugar pra tomar um sol, pra fazer
um xixi! Até chuveiro quente tem! A gente é feliz e não sabe, bicho!
RAMON
A gente é feliz e não sabe.
NENÊ GRACINHA
Agora você também!
TONINHO
Oi?
RAMON
A gente é feliz e não sabe.
(SILÊNCIO)
TONINHO
Sim. A gente é.
(TONINHO E RAMON ESPERAM ALGUMA COISA ACONTECER;
NENÊ GRACINHA PULA EM VOLTA DOS DOIS)
NENÊ GRACINHA
E agora a gente vai brincar de esconder e vocês dois
vão esconder e eu vou ver antes onde vocês se esconderam! Vou pegar a sua mão!
Não quer? Olha esse ossinho, joga o ossinho, Ramon! Pulga safada, venha aqui.
Eu ouvi alguém falar comida? Acho que foi memória oufativa. Ai, que fome que
deu. Toninho, comida. Latido, latido! Olha esse meu rabo! Venha aqui, seu rabo
danado!
(NUM CLIMA DE FINAL DE AVENTURA, A CENA TERMINA COM
UM FOCO NO ROSTO DE MARLA SORRINDO)
TODOS
O
dramalhão aqui
No
fim se despedir
Pois
vai acontecer
Não
tem o que fazer
E
as almas vêm e vão
Até
dentro de um cão
Quem
pode desvaler
Quem
é você?
Já
faz
Tempo
que eu me acostumei
Com
a mágica da ilusão.
(ESCURIDÃO)
cena
final
(AMANHECE; NENÊ GRACINHA ACORDA PRIMEIRO; ELA SE
ESPREGUIÇA NO SOL; UM VENTO DERRUBA A ESCRITURA NO CHÃO; NENÊ GRACINHA OLHA
PARA O PAPEL E DEPOIS PARA O PÚBLICO; COM MUITA ANSIEDADE E FÚRIA NENÊ CORRE
DESTRUIR O PAPEL NO CHÃO; ESCURIDÃO)
FIM