CARL, KARL E CARLA


CARL, KARL & CARLA
Texto de Gabriel Tonin

PERSONAGENS
Carla
Carl
Karl
Jéssica
Tia Nenê
Soldado 1/Homem
Soldado 2/Homem
Repórter (voz)
Houston (voz)


1º ATO

CENÁRIO: UM LABORATÓRIO; UMA MÁQUINA BARULHENTA E BRILHANTE.

INTRODUÇÃO

(CARLA E JÉSSICA ESTÃO NO MEIO DE UM EXPERIMENTO COMPLICADO E IMPORTANTE; CARLA É A CIENTISTA PRINCIPAL E JÉSSICA É A ASSISTENTE UM TANTO DESASTRADA; O PALCO TODO BRILHA COM MUITO BARULHO)

CARLA
Digite o código junto com a data agora, Jéssica!

(JÉSSICA OBEDECE)

CARLA
Puxe aquela alavanca! Puxe!

(TIA NENÊ ENTRA QUEBRANDO O CLIMA DE SUSPENSE)

TIA NENÊ
Mas que birosca que está acontecendo aqui, Carla?

CARLA
Tia, agora não é um bom momento!

TIA NENÊ
Você vai explodir a casa, Carla! O que é isso?

CARLA
Não vou explodir nada, tia, eu juro! Agora vai lá pra cima, por favor!

TIA NENÊ
Acaba logo com isso! Tô vendo um vídeo que tá ensinando uma receita de escondidinho de mandioca. Vocês vão comer também, né? (SAI)

JÉSSICA
Huummm...

CARLA
Tá bom, tia, tá bom. Jéssica, tem certeza que colocou a data certinha?

(JÉSSICA ACENA COM A CABEÇA; CARLA VAI CONFERIR NO PAINEL; A MÁQUINA FAZ MAIS BARULHO E PARECE QUE VAI EXPLODIR)

CARLA
É agora, Jé. Vai dar tudo certo. (ELAS DÃO AS MÃOS; GRANDE TENSÃO)

TIA NENÊ
(DE FORA) Carlaaaaaaa!

(UMA EXPLOSÃO E ESCURIDÃO)

TODOS
Tem tempo, pô
Cada um na sua hora, pô
Cada um com a sua cor
Cada um com seu sabor
Sem tempo, irmão
Do pó que veio, vai voltar pó, pô
Pra muita discussão em teoria
A gente quer enxergar essa alegria
Sabedoria e realidade
Ciência e fantasia
Coisa de verdade
Coisa que chora
Coisa da hora
E a gente quer saber
A gente quer saber, pô
Agora!


CENA 1

(CARL SAI DE DENTRO DA MÁQUINA DO TEMPO, CONFUSO; ELE É UM MENINO COM ROUPAS DOS ANOS QUARENTA/CINQUENTA)

CARLA
Ah, meu deus do céu! É você! É você mesmo! Conseguimos, Jéssica! Conseguimos!

CARL
Que lugar é esse? Vocês são alienígenas! Eu fui abduzido! Eu sabia que era possível a existência de seres inteligentes em outros planetas!

CARLA
Não, não, isso aqui foi viagem no tempo, rapaz!

CARL
Não é possível! Viagem no tempo? Não é fisicamente possível.

CARLA
Não no seu tempo, mas a gente acabou de trazer Carl Sagan do passado de volta à vida.

CARL
Se tudo isso que estão dizendo é verdade, a quebra no tempo e espaço pode causar uma grande confusão. Se eu não estou mais na minha linha de tempo, tudo pode mudar e...

CARLA
Meu querido, deixa eu te explicar o nosso plano, nós temos todos os seus livros.

CARL
Eu... nunca escrevi nada... ainda...

CARLA
Exatamente. Mas ia escrever quando crescesse! E nós já temos todos eles. E com você aqui, antes de escrever eles! Pensa comigo, você aqui, com toda sua inteligência que viria a ter pra escrever essas obras, e se tornar um dos cientistas mais renomados da face da Terra,...

CARL
O que? Eu sou um dos cientistas mais renomados da face da Terra?

CARLA
... você poderá ler os seus próprios escritos e compreender os próprios pensamentos do passado e ter mais tempo ainda pra ajudar a humanidade, pois você ainda é só um menino! Esse é o plano! A gente está te dando mais tempo!

CARL
Algo nisso não está certo...

CARLA
Jéssica, pega os livros dele. (JÉSSICA VAI PEGAR OS LIVROS NUM ARMÁRIO) Nós temos todos. Do “Cosmos” ao “Contato”. Eu amo. “Contato” virou um filme muito famoso com a Jodi Foster. Você participou da produção do filme.

CARL
Puxa, que legal!

CARLA
E “Cosmos” virou uma série de TV que você mesmo apresentou...

CARL
Jura?

CARLA
Depois fizeram um remake até, que era apresentado pelo... (JÉSSICA RETORNA SEM OS LIVROS) Jéssica, pega os livros dele pra ele ver as obras primas que ele fez!

(JÉSSICA FAZ CARA DE DESESPERO NA NEGATIVA)

CARLA
O que foi?

(ELES ENTENDEM)

CARL
Esses livros não existem. Eu nunca escrevi eles. Ainda.

CARLA
Não, não é possível. Não! (VAI CONFERIR)

CARL
As leis da física e do tempo e espaço já estavam até que bem estabelecidas no meu tempo, eu fui numa feira muito legal com os meus pais em trinta e nove, o mundo científico é uma loucura. Talvez você tenha pulado alguma parte dessas explicações nos meus livros, se é que eu escrevi sobre isso de tempo e espaço.

CARLA
Pior que escreveu. É claro! Se a gente tirou você da linha do tempo, você sumiu e não escreveu livro nenhum.

CARL
Ainda.

(CARLA TEM OUTRA IDEIA MAGNÍFICA NO DESESPERO, IMPROVISANDO DECIDIDA)

CARLA
Melhor ainda então! Com a tecnologia que a gente alcançou, você vai poder escrever os seus livros com mais facilidade, com mais informações já disponíveis.

CARL
Sim, obviamente que algum outro cientista tomou o meu lugar na história.

CARLA
Pega o meu notebook, Jéssica. Quero mostrar algumas coisas pra ele.

(JÉSSICA ATERRORIZADA NA NEGATIVA)

CARLA
O que foi dessa vez? Vai dizer que não existe notebook mais?

CARL
Talvez minhas pesquisas tenham ajudado a criar esse tal de notebook de alguma forma.

CARLA
Não, isso não foi você não, isso foi o...

(JÉSSICA MOSTRA O NOTEBOOK)

CARLA
Ufa! O que foi, então? (ELA LÊ A NOTÍCIA) “Quando enfim o homem pisará na Lua?” O que?!

CARL
Acredito que vai demorar um bocado pra gente conseguir fazer uma viagem pelo espaço assim. Mesmo com a Lua tão próxima.

CARLA
Mas o homem chegou na Lua! Nós fomos até a Lua! Foi em sessenta e nove! Tem umas teorias conspiratórias que dizem que os soviéticos conseguiram até antes! Pesquisa aí, Jéssica: Telescópio Hubble.

(JÉSSICA PESQUISA E FAZ A NEGATIVA DESESPERADA)

CARLA
Ah, não! Isso sim é preocupante. O Telescópio Hubble não existir é uma tragédia pra ciência!

CARL
Talvez nessas duas coisas eu tenha tido alguma participação.

(SILÊNCIO)

CARL
Você mudou toda a história, Srta. Carla.

CARLA
Mas...

CARL
Eu ainda nem terminei o colégio.

(OUTRO SILÊNCIO)

CARLA
Então me explica essa, nós montamos essa máquina do tempo estudando os seus livros e de vários outros cientistas magníficos, é claro. Como poderia isso acontecer se nós nunca lemos os seus livros, se seus livros nunca existiram?

(SILÊNCIO)

CARL
Olha, uma boa pergunta. Mas eu não sou o mestre da ciência como vocês acham. Eu sou só um jovem rapaz norte americano.

(SILÊNCIO)

CARL
Mexer com o tempo... era óbvio que ia dar coisa errada.

(SILÊNCIO MELANCÓLICO; JÉSSICA SENTE QUE É O SEU MOMENTO DISNEY)

CARLA
Lá vem...

JÉSSICA
Nossa ciência evolui assim
Mesmo com o tempo quebrado
O homem não pisou na Lua enfim
Talvez foi bom ter mudado

Não dá
O leite derramado
Não adianta chorar
Outro mundo vai começar...

CARLA
Ela se expressa cantando.

JÉSSICA
Agora é a hora
De a razão ser firme
Porque isso não é um filme
Começou uma nova história

Agora
O tempo foi embora
E se mudou a história
Tem que recomeçar agora!

CARLA
A parte grandiosa...

JÉSSICA
Não adianta mais correr
Foi genial pensar assim
Mas um erro de uma vez não pode colocar um fim
Nem pra você e nem pra mim!

CARLA
E o refrão de novo...

JÉSSICA
Agora é a hora
De a razão ser firme
Porque isso não é um filme
Começou uma nova história

Agora
O tempo foi embora
E se mudou a história
Tem que recomeçar agora!

CARLA
E... fim.

CARL
Uau! Bravo! Que show magnífico!

CARLA
Você tem razão, Jéssica. A gente não deve parar com o plano por causa de um errinho bobo. O plano deve continuar! (JÉSSICA ENTRA EM DESESPERO TENTANDO IMPEDIR CARLA DE APERTAR OUTROS BOTÕES) Já que estamos no inferno, vamos abraçar o capeta.

CARL
O que está fazendo?

CARLA
O plano não era trazer só você. Tinha mais duas pessoas em nossos planos.

(CARLA FINALMENTE APERTA O ÚLTIMO BOTÃO E A MÁQUINA BRILHA COM MUITO BARULHO)

CARL
Você ficou maluca? Vai trazer mais duas pessoas? Quem?

(BARULHO E ESCURIDÃO)


CENA 2

(KARL SURGE TAMBÉM MENINO, COM VESTIMENTAS DO INÍCIO DO SÉCULO XIX; A MÁQUINA DESAPARECEU; AS ROUPAS DE TODOS MUDARAM)

CARLA
A máquina! O que aconteceu com a máquina!

CARL
Você mudou tudo de novo.

JÉSSICA
Você não entendeu nada da mensagem da minha música. Você nunca ouve o que eu falo! (SAI BRAVA)

CARLA
Nossa, calma...

KARL
Oi. O que está acontecendo?

CARL
Quem é esse?

CARLA
Karl.

CARL
Sim?

CARLA
Não. Esse aí também se chama Karl.

KARL
Como sabe meu nome?

CARLA
Mas é Karl com K.

CARL
Sim, Karl Marx!

CARLA
O próprio, em pessoa!

CARL
Confesso que as intenções do seu plano eram boas, menina, mas mexer com o tempo sempre vai dar cagada.

KARL
Eu morri?

CARLA
Não. Nós somos do futuro. A gente trouxe você pro futuro.

CARL
Eu não sou tão do futuro como ela.

CARLA
Mas a minha máquina... o que aconteceu com a minha máquina?

CARL
Você mudou toda a história, garota. Você não entendeu?

CARLA
Mas o que Karl Marx tem a ver com uma máquina de viagem no tempo? Seria mais provável que ela sumisse quando eu trouxesse você, que era um cientista, não ele. O que ele tem a ver?

CARL
Cada segundo acontecido no passado reflete no presente. Em algum momento, a não existência de Karl Marx fez com que máquinas do tempo não pudessem ser criadas.

KARL
Alguém pode me explicar o que está acontecendo aqui?

CARLA
Mas se não existe máquina do tempo, como é que vocês dois estão aqui?

(SILÊNCIO; TODOS FICAM PENSATIVOS; ELES OLHAM PRA PLATEIA DESCONFIADOS; TIA NENÊ ENTRA COM PREOCUPAÇÃO; JÉSSICA ENTRA JUNTO, BRAVA)

TIA NENÊ
Está quase na hora da verificação semanal, meninas. Venham. Quem são esses dois meninos? O que é isso, Carla? Esconda esses garotos agora! Eles estão chegando!

CARLA
Quem tá chegando, Tia?

TIA NENÊ
Quem? Quem? O exército, Carla. Verificação semanal sanitária.

CARLA
Verificação semanal sanitária?

TIA NENÊ
Esconda esses meninos agora! Eles já estão vindo! Você vai ter que ter uma boa desculpa pra vocês duas aqui embaixo sozinhas com esses moleques!

(JÉSSICA ESCONDE OS MENINOS NUM ARMÁRIO; OS SOLDADOS ARROMBAM A PORTA DE ENTRADA)

SOLDADO 1
Oi, seres femininos. Estamos aqui em nome da verificação semanal sanitária.

TIA NENÊ
Sim, senhor. Estamos prontas.

(O SOLDADO 2 SURGE COM TRÊS CAPACETES E COLOCA UM EM CADA UMA DAS TRÊS)

CARLA
Mas... o que é isso?

SOLDADO 2
Ora, garota inferior, já se esqueceu do procedimento? Talvez algo muito errado esteja acontecendo nessa cabecinha.

TIA NENÊ
Não, não, não. Não tem nada de errado acontecendo não, uma pequena falha de memória boba. Né, Carla?

SOLDADO 1
A falha de memória pode causar surtos. Todos nós sabemos que não podemos admitir pessoas doentes circulando por aí.

TIA NENÊ
Podem fazer a verificação. Vai ver que está tudo bem.

(O SOLDADO 2 LIGA OS CAPACETES E AS TRÊS ENTRAM EM UM TRANSE ESTRANHO; OS CAPACETES DE TIA NENÊ E JÉSSICA APONTAM A COR VERDE, O DE CARLA OSCILA ENTRE VERDE E VERMELHO E POR FIM FICA AMARELO)

SOLDADO 1
Parece que o nosso preconceito estava certo. O preconceito quase sempre está certo. Sua neta está com algum problema.

TIA NENÊ
Ela é minha sobrinha.

SOLDADO 2
E os pais dessas meninas?

TIA NENÊ
Faleceram há muito tempo...

CARLA
O que diabos é isso tudo? Que coisa é essa de vocês invadirem a casa dos outros assim e colocar a gente num experimento suspeito e ficar fazendo perguntas sobre a nossa vida?

(SILÊNCIO)

TIA NENÊ
(BAIXINHO) Cale essa boca se não eu vou arrancar os seus dentes, Carla!

SOLDADO 1
Hum. Vejam só. Uma questionadora. Por isso deu amarelo.

SOLDADO 2
E ainda uma questionadora mulher!

SOLDADOS
Hummm...

TIA NENÊ
Tenham misericórdia, é a idade jovem!

(SILÊNCIO)

SOLDADO 1
Como somos homens de bem, te daremos outra chance. Se o problema se agravar, obviamente que semana que vem o capacete mostre a cor vermelha, de perigo eminente. E aí todos sabemos como funciona.

TIA NENÊ
Por favor... misericórdia...

SOLDADO 1
Por hora, uma advertência, mulher. É seu dia de sorte.

SOLDADO 2
Tenham um bom dia, seres femininos.

(OS SOLDADOS SAEM)

CARLA
O que foi isso, tia?

TIA NENÊ
Eu que pergunto “o que foi isso”? Você teve a pachorra de enfrentar os soldados, Carla? Você ficou biruta da cabeça? Você quer destruir a nossa família que já é desestruturada e anormal aos olhos deles?

(JÉSSICA TIRA OS MENINOS DO ESCONDERIJO E MOSTRA KARL PRA CARLA; CARLA ENTENDE)

CARLA
Os nazistas venceram a guerra.

CARL
O mundo mudou, menina. Se você tivesse trazido uma borboleta do passado, você poderia ter evitado até mesmo um furacão. Ou causado um.

TIA NENÊ
Agora eu quero uma explicação pra esses dois garotos aqui embaixo com vocês!

CARLA
Tia, longa história. Eu vou tentar resolver tudo isso, eu tenho que dar um jeito, tem que ter um jeito...

TIA NENÊ
Quem são vocês, moleques? Qual o nome de vocês?

CARL
Carl.

KARL
Karl.

TIA NENÊ
Ah, os dois chamam K/Carl?

KARL
É, só que o meu é com K.

CARL
E o meu é com C.

(SILÊNCIO)

TIA NENÊ
Carla, se você aprontou dessa vez uma coisa muito grande, eu vou esfolar a sua cara no ralo do banheiro, você ouviu? Desapareça com esses moleques!

(TIA NENÊ SAI)

CARLA
Nós precisamos de um plano novo! A gente tem que...

JÉSSICA
(GRITA BRAVA; UM BREVE SILÊNCIO DE ATENÇÃO)

CARL
Ela vai cantar.

KARL
Por que?

JÉSSICA
A gente já vive outra realidade
Agora é essa, tática desonestidade
Não existe mais livros
Não tem plano B
O mundo mudou, sem livros, sem máquina
Não quero mais isso
Não tem o que fazer.

CARLA
Você está dizendo que está aceitando que os nazistas venceram, Jéssica? Que não vai nem tentar fazer alguma coisa? Nós estamos com as duas cabeças aqui do nosso lado, Jéssica. Carl e Karl. Lembra? Eles são a solução.

JÉSSICA
Se mesmo num mundo que eles existem
Tem gente que fala que a Terra é quadrada
Se mesmo num mundo que eles existem
Tem gente que fala: “explode a quebrada”!

CARLA
Mas a gente tem que tentar...

(SILÊNCIO)

CARL
Você teve boas intenções, Srta. Carla. Eu vejo bem as boas intenções. Mas cada tempo tem seu tempo. E como disse nosso amigo Karl Marx, “O caminho do inferno está pavimentado de boas intenções”.

KARL
Eu não tô entendendo balhufas! Eu não lembro de ter dito isso.

JÉSSICA
(PARA KARL) A história da sociedade
No seu tempo e até hoje
É a história da luta de classes
Fosse do jeito que fosse.

O rico e o pobre
Em guerra real
As revoluções são o trem
O que faz se mexer
As coisas só mudam se o pobre perceber...

Se o bicho da seda tecer para sempre
Pra ligar as duas pontas
E continuasse lagarta, sem evolução
Sem construção
O exemplo de um assalariado
Operário
Proletário em perfeição
Sem vida, sem emancipação.

KARL
Uau. Você é boa.

CARLA
Essa é mais ou menos a mensagem que você deixou pro mundo, Sr. Karl Marx. Você escancarou as injustiças sociais entre o trabalhador e o coronel, o patrão. E isso causou grandes coisas no mundo! Grandes mesmo. Também grandes problemas, claro, os ricos te odiavam. Os pobres também odiavam, mas por manipulação - muito bem planejada, diga-se de passagem - dos poderosos desse planeta. E veja, sem você, a ideia de um maluco genocida venceu. Peço desculpas, senhores, eu errei. Eu achei que trazendo vocês jovens para o presente, vocês teriam mais tempo ainda de fazer mais, de descobrirem e brigarem mais! Você pela ciência e você pela justiça da vida em comunidade! Mas... deu tudo errado.

JÉSSICA
(ÓBVIO) Ah!

(SILÊNCIO; CARLA REFLETE ANDANDO DE UM LADO PRO OUTRO)

CARL
Eu não sei como poderia ajudar. Tentar criar uma outra máquina do tempo?

CARLA
Não existem mais livros. Minha memória não conseguiria nos detalhes. Como eu posso lembrar de ter lido um livro que não existiu ou que foi proibido pelos nazistas?

CARL
Mistérios, menina, mistérios do universo.

KARL
Talvez a gente devia nos armar como eles. Ir pra luta! Bater de frente mesmo!

(CARLA TEM UMA IDEIA)

CARLA
Eu tive uma ideia. Agora é o presente. O presente é o que a gente tem. A gente vai ter que começar do zero. Temos uma vantagem de ter duas cabeças que mudaram o mundo aqui com a gente, em suas versões mais jovens, mas aqui estamos.

CARL
E temos também uma menina que criou a máquina do tempo, oras!

JÉSSICA
(PIGARREIA)

CARL
Duas meninas!

KARL
Veja que engraçado. Carl, Karl e Carla.

JÉSSICA
E Jéssica!

KARL
Ah, claro! E Jéssica também.

(TIA NENÊ APARECE)

TIA NENÊ
A janta tá pronta. Venham jantar. Vocês dois podem vir também, né?

KARL
Agradecido.

CARL
Obrigado, senhora.

TIA NENÊ
Senhora é o escambau. Vamo logo.

(TODOS SAEM; ESCURIDÃO)


CENA 3

(TODOS ESTÃO SENTADOS EM VOLTA DE UMA MESA E COMEM NUM SILÊNCIO CONSTRANGEDOR)

TIA NENÊ
Então tá, você trouxe esses moleques do passado. Entendi. Essa parte eu entendi. Duas figuras famosas... importantes... um tanto odiadas... temidas... E isso mudou toda realidade.

CARLA
E só eu e a Jéssica lembra das outras versões, não sei porquê isso. Eu lembro do filme ‘Contato’. Você não lembra, Jéssica? (JÉSSICA ACENA QUE SIM) Como poderia esquecer? Filmaço! Tem aquela cena do espelho que...

TIA NENÊ
Carla! Como pode um alemão e um americano falarem português?

CARLA
Ah, tia. A ciência é... muito maluca. Eu não sei responder essa pergunta, mas eu juro que também queria saber de tudo.

CARL
É verdade. Não faz sentido a gente falando português.

KARL
Eu sei falar português! Quem diria!

JÉSSICA
Talvez o teatro.

(SILÊNCIO CONSTRANGEDOR, ELES OLHAM PRA PLATEIA CURIOSOS E MALICIOSOS; RETORNAM PARA A CENA E TODOS COMEM UM PEDAÇO DO ESCONDIDINHO EM SILÊNCIO)

TIA NENÊ
Vocês vão poder ficar lá embaixo, ouviram? Vocês dois não podem subir! Por nada, em nenhum momento! Façam xixi num balde. Talvez eu deixe vocês subirem pra fazer o número dois. Talvez! Agora vão.

(TODOS VÃO SAIR)

TIA NENÊ
Vocês duas não. Senta.

(CARL E KARL SAEM)

TIA NENÊ
A realidade agora é outra. Se informem como é que funciona as coisas. A gente ainda tem internet. É bastante limitada, mas as regras gerais têm. Não faça mais burrada, Carla.

CARLA
Você também lembra da outra realidade...

TIA NENÊ
Não faça mais burrada, Carla! Eu tô falando sério. Ou eu vou entregar você pros soldados. O mundo mudou agora.

CARLA
Não vou fazer mais nenhuma cagada, tia.

TIA NENÊ
E você, Jéssica... (SILÊNCIO) Podem ir agora.

(AS MENINAS SAEM; TIA NENÊ FICA EM SILÊNCIO POR UM INSTANTE, PENSATIVA; ELA FAZ UM ACENO PARA O PÚBLICO E SAI; ESCURIDÃO)


CENA 4

(QUANDO AS LUZES SE ACENDEM; TIA NENÊ, CARLA E JÉSSICA ESTÃO PASSANDO PELA VERIFICAÇÃO SEMANAL SANITÁRIA; ELAS TREMEM EM TRANSE; O CAPACETE DE CARLA OCILA NOVAMENTE, MAS FICA VERDE)

SOLDADO 1
Hum. Parece que de lá pra cá você entendeu o mundo que vive.

TIA NENÊ
Eu disse, coisas da idade.

SOLDADO 2
Às vezes a gente precisa cortar o mal pela raiz.

SOLDADO 1
Essa daí é muda?

TIA NENÊ
Fala pouco.

SOLDADO 2
Hummm... uma deficiente...

CARLA
Ela se expressa melhor cantando.

(OS SOLDADOS RIEM)

SOLDADO 2
Ficaria muito agraciado de ouvir uma expressão cantada da...?

CARLA
Jéssica.

SOLDADO 2
Jéssica.

SOLDADO 1
Uma música subversiva poderia influenciar nossas crianças, por exemplo.

SOLDADO 2
Exatamente! Tem muita gente hoje em dia tentando subverter as juventudes nos porões por aí com essa coisa que chamam de arte.

SOLDADO 1
Se expresse, menina. Vamos ouvir.

(JÉSSICA, UM TANTO ASSUSTADA, SE ABRE)

JÉSSICA
Diante da vastidão
Do tempo e da imensidão
Pra mim é um prazer imenso
Dividir esse momento e espaço com você

Diante da vastidão
Do tempo e da ciente verdadeira
Do universo instante, gente, momento
Somos poeiras das estrelas.

(SILÊNCIO)

SOLDADO 2
Nossa, achei bonito. Achei bonito, de verdade.

TIA NENÊ
Sim, ela é muito boa menina.

SOLDADO 1
Mais uma, por favor, mais uma.

TIA NENÊ
Chega disso, meus senhores, por favor...

SOLDADO 1
Eu insisto.

SOLDADO 2
Eu quero ouvir de novo também.

(SILÊNCIO; JÉSSICA SE SENTE PODEROSA E AFRONTA)

JÉSSICA
O trabalhador só
Só se sente à vontade
Na hora de descançar só
Seu trabalho
Não é voluntário
É obrigatório, é imposto, ó
Escravidão no braço
De nossa gente...
Os trabalhadores não!
Os trabalhadores não têm nada!
Os trabalhadores não têm nada a perder...!
Em uma revolução.

CARLA
(PRA SI) A não ser suas correntes. Karl Marx.

(SILÊNCIO; SUSPENSE)

TIA NENÊ
Misericórdia...

(OS SOLDADOS RIEM E APLAUDEM)

SOLDADO 1
E não é que a voz da menina é boa?

SOLDADO 2
Eu gostei do timbre, do ritmo. Que lindo isso!

(AS TRÊS SE ALIVIAM)

SOLDADO 1
Se acostume que você vai cantar bastante ainda, garota.

SOLDADO 2
Sem dúvida nenhuma vai cantar pra caramba! Pode até ficar famosa!

TIA NENÊ
(PARA O PÚBLICO) Homens não sabem fazer interpretação básica.

SOLDADO 1
Aí é que você se engana, vovó. A gente entendeu muito bem. Ela vai cantar bastante é na cadeia. E vocês vão juntos como cúmplices, possíveis perigos à sociedade! Segura essas duas!

(SOLDADO 1 ALGEMA TIA NENÊ E SOLDADO 2 SEGURA CARLA E JÉSSICA)

CARLA
Não! Me larga!

SOLDADO 1
Vocês acham que todo soldado é idiota? Nem todos, tá ok? Esse tipo de arte não é permitido. Não vai de acordo ao nosso sistema.

TIA NENÊ
Foi só uma musiquinha.

CARLA
Não foi nada demais! Você que tá de birra com a gente!

TIA NENÊ
Carla, a boca!

SOLDADO 1
Uma música horrível! Um desperdício de tempo com ideologias!

SOLDADO 2
Você acredita que eu achei que a gente tinha gostado da música?

SOLDADO 1
A letra da música, imbecil. A letra! Totalmente subversiva.

SOLDADO 2
Ah, tá. Nem prestei atenção... tava focado do timbre da voz...

(KARL E CARL APARECEM SEGURANDO OBJETOS ESTRANHOS)

KARL
É que a letra da música é minha!

(KARL E CARL ACERTAM OS SOLDADOS COM RAIOS, QUE CAEM NO CHÃO DESMAIADOS)

TIA NENÊ
Ai, meu deus do céu! Vocês mataram os dois moço!

CARL
Eles só ficarão paralisados por um tempo. Temos que amarrá-los.

TIA NENÊ
Essas armas de sabre de luz dentro da minha casa!

CARLA
Isso foi ideia minha, tia. Não sem a ajuda dele, claro. (APONTA CARL) A gente precisava se preparar.

TIA NENÊ
Se preparar? Se preparar pro quê?

CARLA
Pra consertar as coisas! Você não vê como as coisas estão erradas, tia? Todo mundo num único padrão, arte censurada...

KARL
Uma única religião.

CARL
Ciência ignorada.

JÉSSICA
Mulher calada...

CARLA
A gente precisa consertar uma coisa que eu fiz. E eu vou brigar até conseguir arrumar o meu erro!

(TIA NENÊ VÊ JOVENS ESPERANÇOSOS EM POSE DE GUERRA E SENTE PENA)

TIA NENÊ
(CARINHOSA; DESESPERADA) Minhas filhas, não se muda o mundo assim. Não tem como de repente você desistir das coisas como são e querer mudar de um dia pro outro.

CARLA
Mas a gente tem que tentar, tia!

TIA NENÊ
E você tentou uma vez e só piorou! Você não percebe? O que você acha que vai acontecer agora que vocês paralizaram dois soldados? Que todo o governo vai cair por causa de dois soldados? Que o mundo vai virar uma maravilha de um dia pro outro? Vocês são jovens ainda, vão ver que é necessário paciência até na luta. Resiliência, é a palavra.

(SILÊNCIO)

TIA NENÊ
Amarrem logo esses dois infelizes antes que eles acordem. (ELA SAI)

(ELES AMARRAM OS DOIS SOLDADOS EM DUAS CADEIRAS, UM DE COSTAS PRO OUTRO)

CARLA
Isso é tudo culpa minha! Eu achei que... eu achei que pudesse ajudar... quando eu consegui encontrar o segredo da máquina do tempo, muito tempo antes de conseguir construir, eu pensei “quem eu traria de volta? No meio de tantos gênios, quem valeria a pena?”. E na hora me veio vocês dois. Eu só queria... fazer alguma coisa... pra ajudar...

JÉSSICA
Nessa história não são os meninos
Que são os protagonistas
Você aqui que é a cientista
Você aqui que é comunista
Pode ser que nessa história
É você que ensina eles
E eles melhoram depois...

(CARLA TEM OUTRA BRILHANTE IDEIA E SAI DE CENA CORRENDO; OS OUTROS A SEGUEM)

FIM DO 1º ATO


2º ATO

CENA 5

(UM PRESÍDIO; UM FOCO DESTACA APENAS CARLA AMARRADA; SOLDADO 1 ESTÁ INTERROGANDO-A)

SOLDADO 1
Você então está me dizendo que trouxe aqueles garotos do passado?

CARLA
Sim.

SOLDADO 1
Com uma máquina do tempo?

CARLA
Sim.

SOLDADO 1
E onde está essa máquina do tempo?

CARLA
Quando eu trouxe um deles pro presente, uma coisa aconteceu no passado pela falta dele, que eu não poderia mais ter criado a máquina, exatamente pela falta dos livros que vocês impedem que a população tenha acesso, principalmente nós mulheres.

SOLDADO 1
Entendo.

(SILÊNCIO)

SOLDADO 1
E se você pudesse ter acesso a essas informações restritas poderia criar outra?

CARLA
Sim, poderia. É que eu não consigo lembrar de tudo.

SOLDADO 1
Hum...

(SILÊNCIO)

SOLDADO 1
Por isso você se entregou e entregou sua família e amigos.

CARLA
Sim. Por isso eu me entreguei.

(SILÊNCIO)

SOLDADO 1
Você realmente é uma jovem mulher que acredita que pode criar uma máquina do tempo?

CARLA
Sim, eu posso.

SOLDADO 1
É pro meu TCC. E isso é bom pra você. Pelo menos, você vai sobreviver. (VAI SAIR)

CARLA
Só pra você saber. Sabe aquele menino? O Karl com K. Foi o movimento que seguia ele, que destruiu vocês. Vocês só estão aqui agora, porque eu fiz essa burrada de tirar ele da história.

(SOLDADO 1 SE APROXIMA AMEAÇADORAMENTE DE CARLA)

SOLDADO 1
Pois é agora que eu vou fazer seu amiguinho sofrer mais ainda.

CARLA
Não, por favor, não!

(OS PORTÕES SE FECHAM; ESCURIDÃO)


CENA 6

(OS DOIS SOLDADOS ESTÃO SOZINHOS, NUMA HORA DE DESCANSO; AO FUNDO OUVEM-SE GRITOS DOS PRESOS)

SOLDADO 1
A maluca realmente acredita que aqueles meninos vieram do passado numa máquina do tempo. E que aquele Karl com K foi um dos responsáveis direto de termos perdido a guerra. Veja que absurdo! Veja que doutrinação juvenil!

SOLDADO 2
E o outro garoto?

SOLDADO 1
Um cientista, ela disse. Se era pra trazer um cientista de volta por que não trouxeram... por exemplo... como é mesmo o nome daquele cara que fazia mágica com luz?

SOLDADO 2
Sei lá. Jovens são todos malucos.

SOLDADO 1
E pra você ver, nem mesmo as mulheres conseguem reconhecer a importância feminina na história. Porque se fosse assim, por que ela não trouxe do passado nenhuma mulher cientista ou então alguma revolucionária?

SOLDADO 2
Porque não existem!

(ELES GARGALHAM)

SOLDADO 1
Exatamente, elas não existem.

(SILÊNCIO)

SOLDADO 2
Mas que aquela outra canta bem, isso é verdade. Pena que está alienada.

SOLDADO 1
Ah, esse tédio militarista... Tive uma ideia! Traga aquela lá. A cantora muda. Vamos fazer um showzinho VIP. A gente merece. E traga algumas bebidas! 

(SOLDADO 2 SAI)

SOLDADO 1
(PARA O PÚBLICO) Não é que não gostamos de coisinhas de teatro, ou musiquinha lacradora, a gente também sente as coisas, sente a música. Nazistas também possuem sentimentos e interesse na ciência e na arte, se querem saber. Eu mesmo, gosto de poesias. Escrevo poesias. Mas minhas poesias são permitidas, todas passam facilmente pela seleção, nunca tive uma só poesia proibida! Vou ler uma pra vocês. (ELE TIRA UM PAPELZINHO DO BOLSO) “Ah, o amor. O amor entre a enfermeira e o soldado. Que comecem os jogos, que joguem-se os dados. Mas que tem que haver controle populacional, castração química e separação de raças, isso é verdade!” Fim. Esse é só um esboço que escrevi hoje de manhã quando eu tava no banheiro cagan...

(SOLDADO 2 VOLTA COM JÉSSICA ALGEMADA E AMORDAÇADA)

SOLDADO 2
Mas você canta bonito demais, ô! Que raiva!

SOLDADO 1
Pra que colocou mordaça nessa aí, ela nunca fala nada.

SOLDADO 2
Ela fica me encantando com seus cânticos satânicos. Prefiro sobreviver, não quero ser influenciado sentimentalmente.

SOLDADO 1
Você nem sabe fazer interpretação das letras.

SOLDADO 2
Por isso mesmo. Ela consegue fazer eu concordar e me apaixonar por canções que são proibidas! Eu prefiro sobreviver à lei!

SOLDADO 1
Certíssimo, Soldado Dois. Você está certíssimo. Tire a mordaça dela.

JÉSSICA
(AFRONTA) Pode bater
Pode matar...

SOLDADO 1
É pra cantar, não pra falar! Agora vai falar, é isso?

JÉSSICA
“Não morre quem lutou
Não morre um ideal
Arranca a folha, vem a flor
Arranca a flor, vem o pinhão...”

SOLDADO 1
Cale-se! Heresia!

SOLDADO 2
Heresia!

SOLDADO 1
Ideologia!

SOLDADO 2
Ideologia!

SOLDADO 1
Essa daí você roubou a autoria de qual homem?

JÉSSICA
Denoir de Oliveira. Sobre Zumbi dos Palmares.

SOLDADO 2
Nunca ouvi falar. O cara era um zumbi?

SOLDADO 1
Artista que não alcança o sucesso não precisa existir. Se é que esse cara realmente existiu, né? Mas enfim. Queremos ouvir você cantar. Mas queremos música de qualidade, música boa. Cultura de verdade, se é que me entende, não essas coisas brasilianas de playboyzinho alienado. Canta essa daqui. (ELE ENTREGA O PAPELZINHO COM A POESIA) Dá pra fazer uma canção com essa?

JÉSSICA
(DESISTE E CANTA MEIO ESQUISITO, SEM VONTADE, SEM RITMO)
“Ah, o amor...
O amor entre a enfermeira e o soldado
Que comecem os jogos, que joguem-se os dados
Mas que tem que haver controle populacional Castração química e separação de raças
Isso é verdade!”

(SILÊNCIO)

SOLDADO 1
Que droga de má vontade foi essa? Você estragou a minha obra!

SOLDADO 2
Meu deus, menina, você perdeu aquele talento que tinha dentro de você.

JÉSSICA
(CANTA BONITO; AFRONTOSA)
É porque é mentira
Coisa de mentira expira
Expirra o som e morre nas ondas
Não tem arte de brinquedo
Mesmo que isso tudo aqui não seja a realidade
Que seja teatro!
Escrito, criado, autoral
O artista sabe bem lidar com o medo
E também com a verdade
O sentimento real
Não tem arte de brinquedo
Não tem arte do mal...

SOLDADO 1
Bonito. Mas você está errada.

SOLDADO 2
Eu nem consigo prestar atenção na letra quando é bonito de ouvir. Que foi que ela disse?

SOLDADO 1
Nós transformamos o mundo num único ideal. É a lei. E a lei é a lei! Leve-a de volta, Soldado Dois, me cansei. Espere! Me responde uma coisa antes... (ELE AGUARDA O NOME DELA)

JÉSSICA
Jéssica.

SOLDADO 1
Jéssica. Vocês com todo esse surpreso empoderamento que não víamos há tempos, diz uma coisa pra mim: não pensaram em nenhuma mulher pra trazer do passado? Não tinha realmente nenhuma cientista ou revolucionária que pensaram em trazer de volta? Desculpe, é pro meu TCC sobre a inferioridade feminina perante o homem.

(SILÊNCIO; JÉSSICA ABAIXA A CABEÇA)

SOLDADO 1
Sim. Foi o que eu pensava. Tire ela daqui!

(JÉSSICA COMEÇA A CANTAROLAR BAIXINHO)

SOLDADO 1
Hum... parece que teremos uma resposta verdadeira.

JÉSSICA
O homem que conta a história
Só o branco, só de um tipo
Mas chove mulher cheio de vitória
Escondida, desacreditada
Omitida, preta, assassinada...
O homem que contou a história
Até mesmo a história dessa peça
E por mais que a lei da realidade nos impeça
A gente esteve aqui o tempo todo
Só esqueceram da liberdade...

SOLDADO 2
E dos créditos autorais.

(SOLDADO 1 DÁ UM TAPA NA CABEÇA DO SOLDADO 2)

SOLDADO 2
Eu prestei atenção na letra dessa vez. Eu entendi. (ELE ESTÁ UM TANTO EMOCIONADO)

SOLDADO 1
Não tem nada pra entender! Leve ela de volta pra cela! Agora!

JÉSSICA
(BAIXINHO PARA SOLDADO 2) A gente tinha uma terceira pessoa pra trazer.

SOLDADO 2
Jura? Quem?

SOLDADO 1
Eu falei agora!

(SOLDADO 2 SAI LEVANDO JÉSSICA)


CENA 7

(UM FOCO DESTACA TIA NENÊ AMARRADA, CAÍDA EM UM CANTO, MACHUCADA)

TIA NENÊ
Minhas sobrinhas trouxeram gênios do passado. Criaram uma máquina e tudo. Filhas das minhas irmãs. Elas são primas, a Carla e a Jéssica. Minhas duas irmãs morreram de jeito diferente. Uma morreu por causa de um vírus num laboratório e a outra morreu com um tiro de bala de borracha que acertou bem na boca dela, quebrou o pescoço, a mandíbula. Gostava de ir nessas manifestações políticas. E a outra gostava de biologia. Duas tragédias. E sobrou pra mim. (SE LEMBRA) Ah, estou confundindo, isso foi na outra realidade, antes de elas trazerem aqueles meninos. Na realidade atual, com o nazismo vencendo a guerra, não houve tentativa comunista, não houve mulheres na política, na ciência. Morreram também porque... minhas irmãs foram as únicas da família consideradas perigosas à lei, pelo afrontamento. Tá escrito na sentença. Afrontamento. A lei é a lei. Foram pra cadeira elétrica.(SILÊNCIO) Veja que curioso. Nas duas realidades era pra essas meninas ficarem comigo. (SILÊNCIO) Como eu sei das duas realidades? Oras, não estamos aqui pra fazer palestra de ciência.

SOLDADO 2
Dá pra calar a boca aí, ô, vovó?

TIA NENÊ
Eu sou tia. Tia...

(SILÊNCIO; ESCURIDÃO)


CENA 8

(CARL E KARL ESTÃO AMARRADOS SENTADOS UM DE COSTAS PRO OUTRO)

CARL
Na minha realidade, as pessoas odeiam você bastante.

KARL
Jura? O que eu fiz de tão mau?

CARL
Falou sobre as injustiças sociais. De gente rica e gente pobre. O povo rico conseguiu fazer até o povo trabalhador te odiar, mesmo você defendendo eles.

KARL
Nossa.

CARL
Mas tinha seguidores fiéis ainda. Você criou todo um movimento grandioso. Eu não diria que sou comunista, mas eu aprendi coisas com você.

KARL
É mesmo? Como o quê?

CARL
Eu acredito que... o governo tem a responsabilidade de cuidar das pessoas. Eu não estou falando de caridade, mas de tornar as pessoas auto-suficientes, capazes de se cuidar. Há países que são perfeitamente capazes de fazer isso. Os Estados Unidos, de onde eu vim é um país extremamente rico, perfeitamente capaz de fazer isso, mas escolhe não fazer. Escolhe ter moradores de rua. Somos o 19º no mundo em mortalidade infantil. 18 outros países salvam as vidas de seus, melhores do que nós. Como? É que eles simplesmente gastam mais dinheiro com isso. Eles se preocupam com seus filhos mais do que nós nos preocupamos com os nossos. Eu acho que isso é uma vergonha. Os EUA têm uma vasta riqueza. Você me ajudou a refletir como seria possível e como esse dinheiro, essa riqueza poderia ser usada: para educar, para ajudar, para trazer às pessoas uma sensação de auto-confiança, para melhorar não apenas a felicidade das pessoas nos EUA mas sua posição econômica, para melhorar a coletividade dos EUA com outros países. Nós estamos usando o dinheiro para as coisas erradas. (SILÊNCIO) Foi isso que aprendi com seu movimento.

KARL
Parece que agora nessa linha do tempo foi você quem me ensinou isso.

CARL
Isso é demais de curioso. Talvez seja isso mesmo que tenha acontecido. Quem sabe o novo plano da Carla não dê certo e coloque a gente de volta em nossos tempos?

KARL
Poxa, mas aí eu tenho que ensinar alguma coisa pra você também! Porque no fim agora a minha ideia foi toda sua!

CARL
Ah! Que confusão! Mas... claro... me diz alguma coisa...

(SILÊNCIO)

KARL
Ah. Sei lá, viu. Eu não sei mais de nada...

(ELES RIEM)

KARL
Mas olha, vou te dizer, diante da vastidão e da imensidão do tempo e do espaço, é um imenso prazer pra mim dividir um momento com você, companheiro.

CARL
Poxa, eu digo o mesmo. Também foi um prazer te conhecer pessoalmente, Sr. Karl Marx, mesmo nessa maluquice toda.

(OS DOIS SOLDADOS ENTRAM)

SOLDADO 1
Já começaram a namorar?

SOLDADO 2
Quero ver conseguir fazer um filho!

SOLDADO 1
Vocês aceitaram se entregar porque confiaram em uma garota?

CARL
Eu acho que temos uma chance.

KARL
Eu queria ver você me desamarrar aqui e a gente sair no braço, aí você ia ver! Um de cada vez!

SOLDADO 1
Pois sim. Você é o Karl com K. Sua amiguinha disse que por sua culpa que nós perdemos uma vez, numa outra realidade paralela, como ela diz.

KARL
Eu não lembro de nada disso. Mas eu sei quem vocês são. No meu tempo tinha gente igual vocês assim também.

SOLDADO 2
Assim como?

KARL
Que se acham donos do mundo.

SOLDADO 1
Nós defendemos a lei, a verdade!

KARL
E eu enfrento a sua verdade! Eu enfrento a sua lei!

(SOLDADO 1 DÁ UM CHUTE FORTE EM KARL; TENSÃO)

SOLDADO 1
Sua amiguinha quer conseguir criar outra máquina do tempo e entregou todo mundo porque sabe que só aqui ela teria alguma chance! Vocês pensam que somos idiotas.

CARL
Como ela disse, vocês vão poder ficar com a máquina depois.

SOLDADO 1
Vocês acham que somos idiotas? Se esse moleque voltar ele vai nos destruir!

(KARL GARGALHA ORGULHOSO)

SOLDADO 2
Moleque insuportável!

CARL
Não, calma, olha... existem várias linhas do tempo. As coisas aqui vão continuar como são. Como exemplo, numa linha do tempo nunca existiu máquina do tempo nenhuma. Essa linha do tempo tá existindo, em algum lugar do espaço!

SOLDADO 2
Vocês acham que somos idiotas? Você acha que alguém entendeu o que você quer dizer com essa baboseira científica e nerd?

SOLDADO 1
Histórias em quadrinhos já foram proibidos há muito, muito tempo. Mas... contudo... refletindo muito e conversando com nossos superiores... nós vamos arriscar a montar a máquina. Isso não significa que vamos deixar vocês voltarem.

KARL
Ela não vai montar se não puder fazer a gente voltar.

SOLDADO 1
Ela não precisa saber disso. Vamos.

KARL
Não! Canalha! Se eu pego...

(OS SOLDADOS SAEM)

KARL
Vem no braço, seus covardes!

CARL
Nós precisamos de um plano.

KARL
Sim, precisamos de um plano. Eu quero quebrar a cara daquele cara.

(ESCURIDÃO)


CENA 9

(CARLA E JÉSSICA ESTÃO MONTANDO UMA NOVA MÁQUINA; OS SOLDADOS ESTÃO VIGIANDO)

CARLA
Olha, muitos livros que existiram simplesmente desapareceram...

SOLDADO 1
Eu não quero saber! Eu quero essa máquina pronta agora!

CARLA
Não é assim. Nós levamos toda a nossa infância e adolescência pra construir da outra vez!

SOLDADO 1
Pois então faça o tempo passar mais rápido. Não é você que gosta de brincar com o tempo?

SOLDADO 2
Vejam bem a minha teoria, nós somos dois rapazes jovens, vocês são duas belas moças. Não poderíamos formar um casal? Ou dois casal? Dois Casais.

SOLDADO 1
É contra a lei qualquer relacionamento amoroso entre soldados e cárceres. (JOGA UM VERDE) Ao menos que seja de sentimento recíproco.

CARLA
Jamais eu ficaria com algum de vocês.

JÉSSICA
Jamais!

(SILÊNCIO)

SOLDADO 2
Isso foi... muito constrangedor.

SOLDADO 1
Esse negócio de máquina do tempo é tudo besteira, não é? (VIOLENTO) Falem a verdade!

CARLA
Eu vou conseguir. Se eu pudesse ter a ajuda do Carl... ele foi um dos maiores cientis...

SOLDADO 1
Não, vocês não vão ter contato com eles de novo. Já disse!

CARLA
Mas...

SOLDADO 2
Ah, então eles são seus namoradinhos, é isso? Com eles vocês querem fazer casal, né? Casais.

CARLA
Nem tudo se baseia em romance, soldado dois. Se eu tivesse a ajuda de mais um cientista, de um prodígio cientista, eu conseguiria criar essa máquina mais rápido. Simples, razão.

(SILÊNCIO)

SOLDADO 1
Você precisa do Carl com C?

CARLA
Isso, Carl com C. C de cientista. Mas o Karl com K também seria muito eficiente na mão de obra.

SOLDADO 1
Pois bem. Vamos ver o que poderemos fazer e se vocês serão boazinhas. Agora continuem! Tenho que pensar ainda se vou permitir ou não. Venha, soldado dois. Hora do almoço.

SOLDADO 2
Opa! Foi pra isso que eu me alistei!

(OS SOLDADOS SAEM)

CARLA
Pois veja como homens são estúpidos em todas as realidades, Jéssica. (REVELA) A máquina está pronta.

(JÉSSICA CANTA UMA NOTA GRANDIOSA; ESCURIDÃO)


CENA 10

(TIA NENÊ ESTÁ EM UM FOCO; FORTE, EM PÉ)

TIA NENÊ
Há sempre um plano melhor que o outro. Um errinho bobo... sempre pode ser pra melhorar depois. (SILÊNCIO) No fim, eu eduquei essas meninas bem demais até. Devia ter maneirado na educação, na “doutrinação”. Mas vocês vão ver uma mulher pisar na Lua primeiro que o homem, escrevam o que eu tô dizendo.

(SOLDADO 2 APARECE)

SOLDADO 2
Venha, tia. Sua sobrinha disse que precisa do seu apoio moral.

TIA NENÊ
Jura? A Carla é encrenqueira, mas é muito carinhosa.

SOLDADO 2
Gosto quando a outra canta.

TIA NENÊ
Sim, muito talentosa também. As duas são.

SOLDADO 2
Eu queria pedir a mão da sua sobrinha Jéssica em casamento.

TIA NENÊ
Oras, e você já falou com ela sobre isso, rapaz?

SOLDADO 2
Ainda não, é que eu queria...

TIA NENÊ
Pois você tem que lidar essas coisas com ela mesma, jovem. Ela já é crescida, ela quem decide isso.

SOLDADO 2
Se você autorizar tá autorizado. Está na lei.

(SILÊNCIO; TIA NENÊ SE LEMBRA DA LEI)

TIA NENÊ
Ah, sim. Está na lei. Pois bem. Eu tenho quanto tempo pra pensar a proposta, na lei?

SOLDADO 2
Vinte e quatro horas. Vamos.

(OS DOIS SAEM; ESCURIDÃO)


CENA 11

(CARLA E JÉSSICA ESPERAM FRENTE À MAQUINA; OUVEM UM BARULHO E FINGEM TRABALHAR NA CONSTRUÇÃO; TIA NENÊ É EMPURRADA PRA DENTRO DE CENA, SOLDADO 2 ENTRA ATRÁS; TIA E SOBRINHAS SE ABRAÇAM)

CARLA
Desculpe, tia, me desculpe! Eu vou tirar a gente dessa.

TIA NENÊ
Eu sei que vai. Você vai fazer coisas grandiosas, filha. Vocês duas farão coisas grandiosas. Já fizeram, já fazem! Eu não sei como explicar, mas eu sei das coisas. Deus me mostra as coisas de outras realidades e eu confio na sua chance, Carla. Eu confio na sua chance!

SOLDADO 2
Vinte e quatro horas, tia. Vinte e quatro horas.

CARLA
Vinte e quatro horas o quê?

TIA NENÊ
Eu estou pensando positivo, moço. Tenha paciência.

SOLDADO 2
Tá ok. (SAI)

CARLA
Tia, eu disse pra eles que precisava dos meninos aqui pra terminar de construir a máquina mais rápido. Mas a gente já terminou. A máquina está pronta. Quando eles trouxerem os meninos, eu vou mandar eles de volta e tudo vai voltar ao normal.

TIA NENÊ
Não, não. Não faz voltar ao normal não. Tenta fazer ficar melhor. Tenta fazer ficar melhor...

(SILÊNCIO; CARLA REFLETE)

JÉSSICA
Entre as linhas do tempo
Nas redes sociais
E nas realidades
O espaço está no vento
Na eletricidade das cidades
E nas variadas idades
São partículas e são ondas
São minúsculas e são bombas
São partículas e são ondas
São minúsculas e são bombas.

TIA NENÊ
Sim, Jé. Sim. Sim, sim, sim.

(ELAS SE ABRAÇAM; ESCURIDÃO)


CENA 12

(OS SOLDADOS ESTÃO COM CARL E KARL, AINDA AMARRADOS)

SOLDADO 1
Vocês pensam que somos idiotas. Isso é preconceito também, sabia? Nós não somos idiotas. Elas querem a ajuda de vocês pra terminarem de construir a máquina, diz que vai ser mais rápido.

CARL
É verdade, meus conhecimentos científicos, ainda que jovem e de outra época, pode ajudar na...

SOLDADO 1
Isso nunca vai acontecer. Isso-nunca-vai-acontecer. O plano de vocês não vai vingar, não nessa realidade. Nós temos outros planos pra vocês dois. Nós daremos uma chance pra vocês. Vocês estão livres, serão soltos. Queremos ver quanto tempo conseguem viver perante à lei.

KARL
Como assim livres?

SOLDADO 1
Vocês vão pra rua, vão ter a chance de viver a vida de vocês. Perante à lei. Fora desse teatro.

(SOLDADO 2 SOLTA KARL E CARL E ENTREGA UM PACOTINHO COM COISAS BÁSICAS, ROUPA E ESCOVA DE DENTES)

SOLDADO 1
Pronto. Podem ir. A participação de vocês dois acabou por hoje.

(SOLDADO 2 EMPURRA OS DOIS GAROTOS CONFUSOS PRA FORA DO TEATRO)

CARL
Espera, vocês não podem fazer isso!

SOLDADO 2
Sim, podemos.

SOLDADO 1
Perante à lei.

SOLDADO 2
Perante à lei.

(QUASE NA PORTA DO TEATRO, KARL AGARRA O SOLDADO 2 PELO PESCOÇO E UMA BRIGA COMEÇA; SOLDADO 1 VEM AJUDAR, E SEM MUITO ESFORÇO OS SOLDADOS CONSEGUEM COLOCAR KARL E CARL PRA FORA E VOLTAM PARA O PALCO)

SOLDADO 2
Moleque folgado aquele!

SOLDADO 1
Não vão sobreviver dois dias lá fora, na liberdade. Perante à lei.

SOLDADO 2
É... na liberdade...

(ELES RIEM MALÉFICOS)

SOLDADO 1
Acabou a aventura. Chega de balbúrdia por hoje!

(ESCURIDÃO)


CENA 13

(TIA NENÊ DORME EM UM CANTO; JÉSSICA CANTAROLA BAIXINHO; CARLA LÊ UM LIVRO; OS SOLDADOS ENTRAM)

SOLDADO 1
Esse livro é completamente proibido para mulheres, você sabia disso?

CARLA
Ah, é? E por que diabos homens decidiram o que uma mulher pode ou não fazer?

SOLDADO 1
Oras, deus!

CARLA
Claro. Mais claro impossível. Você também foi proibido de ler? Porque devia ler esse aqui mesmo.

SOLDADO 2
Esses livros são tudo coisas do passado, coisas de esquerdista! Só esquerdista lê livros. E lugar de esquerdista é na cadeira elétrica!

SOLDADO 1
Estamos te dando essa incrível oportunidade, Carlinha, simplesmente porque queremos ver a prova da sua tamanha inteligência, como afirmou.

CARLA
Sem os meninos aqui vai demorar mais...

SOLDADO 1
Isso significa que sem a figura masculina você não consegue criar a tal máquina do tempo sozinha? Como eu disse, meu TCC é sobre a inferioridade feminina.

CARLA
Seu TCC é uma grande de uma merda.

SOLDADO 1
Eu estou a cada dia que passa comprovando a teoria, minha flor. Vocês servem pra cantar, pra fazer teatro. Mas não pras coisas essenciais. Pois repare, vocês mesmo, ao invés de trazerem mulheres poderosas do passado, resolveram trazer dois jovens rapazes do sexo masculino. Por que? Será que não tinha nenhuma cientista mulher que pudesse ser tão útil quanto?

CARLA
Sabe, cara, tinha sim. Sempre teve. Na minha realidade teve mais que na sua, já que vocês ganharam. Mas até na minha realidade, os homens tomaram a mulher à força. Como se a espécie humana fosse o sexo masculino, como se a gente fosse o braço direito e não um corpo inteiro. E se você quer saber, a gente tinha uma terceira pessoa pra trazer de volta do passado também. E era uma mulher.

SOLDADO 1
Jura? Essa é nova pra mim.

SOLDADO 2
De qualquer forma, dois homens e uma mulher? Quem venceu? Nós!

CARLA
Sim, uma mulher vale por dez.

(SILÊNCIO)

SOLDADO 1
E quem era essa mulher poderosa do passado que você pretendia trazer pro presente?

CARLA
Obviamente que vocês não a conheceram. Pode ser que nessa realidade ela nem tenha existido.

SOLDADO 1
Nomes! Queremos nomes!

CARLA
Simone.

SOLDADO 1
Ah, sim. Entendo. Inteligente da sua parte.

CARLA
Vocês sabem de quem eu tô falando?

SOLDADO 1
Essa mulher mesquinha, violenta quase começou um movimento depois da segunda guerra. Todos nós conhecemos muito a Simone  de Beauvoir. Ela foi o primeiro exemplo pra sociedade colocada na cadeira elétrica ao vivo na televisão ainda em branco e preto.

(CARLA COMEÇA A RIR)

SOLDADO 2
Tá rindo de quê, maluca?

CARLA
Vocês. Vocês ganham na força, na violência. A gente ainda tá ganhando na honra, no cérebro.

JÉSSICA
No coração também.

CARLA
No coração também!

(SILÊNCIO)

SOLDADO 1
Termine logo essa máquina.

CARLA
Sem a ajuda dos meninos, eu...

(O SOLDADO SEGURA CARLA PELOS CABELOS)

TIA NENÊ
Por favor, tenham misericórdia!

SOLDADO 1
Termina essa máquina! Você consegue! Uma mulher vale por dez. Ou não?

SOLDADO 2
Até porque seus amiguinhos já estão bem longe daqui.

CARLA
O que?

SOLDADO 1
Nós demos a liberdade pra eles. Veja como somos misericordiosos. A participação deles nesse espetáculo acabou! Você vai terminar essa máquina agora ou vocês três vão pra cadeira elétrica.

CARLA
Não, elas não tem nada a ver com isso.

SOLDADO 1
As três! E elas vão primeiro. E você vai assistir.

SOLDADO 2
É... você vai assistir elas fritando... (RI E PÁRA) Até a Jéssica?

SOLDADO 1
Até a Jéssica. Quero essa máquina pronta hoje. Venha, Soldado 2.

(OS DOIS SOLDADOS SAEM)

CARLA
Acabou tudo. Sem os meninos a gente nunca vai conseguir voltar as coisas como eram antes.

TIA NENÊ
Graças à deus! Voltar naquela desgraça de sociedade que a gente vivia?

CARLA
Mas mesmo ruim, era bem melhor que isso, né, tia? Eu acabei com a nossa vida. Eu não criei um furacão do outro lado do mundo, eu fiz o próprio inferno.

TIA NENÊ
(MISTERIOSA) Qual o próximo plano, Carla? Pense.

(CARLA ENTENDE O RECADO DA TIA E BRILHA UMA IDEIA)

CARLA
Sim! O plano! Simone!

TIA NENÊ
Não, chega de tentar trazer mais gente do passado! (TIA NENÊ COMEÇA A APERTAR ALGUNS BOTÕES)

CARLA
O que está fazendo, tia? Vamos trazer a Simone!

TIA NENÊ
Uma data... já sei!

CARLA
Tia Nenê! O que você tá fazendo?

TIA NENÊ
Escutem, iremos nos separar pelo tempo. Mas estaremos juntas nos nossos corações, pra sempre.

CARLA
O que? Do que você tá falando, tia?

(TIA NENÊ EMPURRA JÉSSICA PRA DENTRO DA MÁQUINA E PUXA A ALAVANCA; BARULHO E LUZES LEVAM JÉSSICA EMBORA)

CARLA
Não! O que você fez? O que você está fazendo, tia? Pra onde enviou ela?

TIA NENÊ
Não vai dar tempo de contar todo o plano. (VAI TENTAR EMPURRAR CARLA TAMBÉM)

CARLA
Não! Você enlouqueceu!

TIA NENÊ
Bom, se você quer viver nesse inferno e morrer eletrocutada.

CARLA
Mas e você? Você vai ficar aqui?

TIA NENÊ
Deus tem uma história, minha filha. E ela vai se repetindo, e se repetindo, e se repetindo. Eu tô muito tranquila com esse final, só espero sempre que não tenha muita dor no fim. Mas olha, toda vez têm, viu. Toda vez tem muita dor...

(CARLA COMEÇA A CHORAR)

CARLA
Tia...

(ELAS SE ABRAÇAM)

TIA NENÊ
Agora vai!

CARLA
Não... vai você, eu fico...

TIA NENÊ
De jeito nenhum! Você tem mais inteligência que eu, vai saber o que fazer.

CARLA
Pra onde está me mandando? Deixa eu ver a data...

TIA NENÊ
Você vai pra longe. Não vai ser fácil. Mas você tem que lutar por nós.

CARLA
Pra onde, tia? Pra onde? Pra que época você mandou a Jéssica?

(OS SOLDADOS ENTRAM)

SOLDADO 1
O que está acontecendo aqui?

SOLDADO 2
Cadê a Jéssica?

TIA NENÊ
Você vai descobrir já, já. Adeus, Carla!

SOLDADO 1
Não!

(TIA NENÊ CONSEGUE EMPURRAR CARLA DENTRO DA MÁQUINA E PUXA A ALAVANCA; BARULHOS E LUZES; UM CLARÃO E DEPOIS ESCURIDÃO)

FIM DO 2º ATO


ÚLTIMO ATO

CENA 14

(TIA NENÊ ESTÁ EM UM CANTINHO CONFORTÁVEL DA SUA CASA, ONDE TEM MUITAS PLANTAS, EM UMA CADEIRA DE BALANÇO, LENDO UM LIVRO; NA CAPA DO LIVRO HÁ O BUSTO EM ESCULTURA DE CARLA E SEU NOME GRANDIOSO; A TELEVISÃO ESTÁ LIGADA)

REPÓRTER
No programa de hoje iremos falar sobre a ida do ser humano à lua. No final dos anos sessenta o ser humano finalmente pisou na lua. A astronauta brasileira Jéssica Oliveira dos Santos ficou mundialmente famosa por ser a primeira pessoa a pisar em solo lunar...


CENA 15

(UM FOCO MOSTRA JÉSSICA NA LUA)

JÉSSICA
Nossa ciência evolui assim
Mesmo com o tempo quebrado
O homem não pisou na Lua enfim
E foi muito bom ter mudado...

HOUSTON
Jéssica, o que está vendo?

JÉSSICA
A Terra. Ela é inteira azul. É a coisa mais linda que eu já vi. E ela é bem redonda, não dá nem pra reparar o achatamento dos polos, redondinha, igual uma bola de sinuca... igual deus. (SILÊNCIO) Isso está sendo transmitido pra todo mundo em português, né, Houston?

HOUSTON
Sim, Jéssica. O mundo inteiro está te acompanhando.

JÉSSICA
Essa missão nunca teria dado certo se não fosse pela minha prima Carla. Ah... eu tenho o costume de dizer que a grande pensadora Carla é minha prima, de outras vidas, de outras reencarnações. O que eu quero dizer pro mundo é que a minha filosofia é Carliana, é isso. E a minha tia, que vai nascer ano que vem ainda, obrigada pela oportunidade, tia.

HOUSTON
Jéssica, nós temos um problema?

JÉSSICA
Não, Houston, nós não temos problemas nenhum. Absolutamente problema nenhum.

(O FOCO FECHA EM JÉSSICA OLHANDO A TERRA; FINAL MUSICALMENTE GRANDIOSO; TIA NENÊ CONTINUA BALANÇANDO EM SUA CADEIRA DE BALANÇO, LENDO E OUVINDO, ALIVIADA E ORGULHOSA; ESCURIDÃO)


CENA FINAL

(CARLA APARECE EM UM FOCO, GRANDIOSA, COM VESTIMENTAS UM TANTO INDÍGENA, UM TANTO FUTURISTA; DOIS HOMENS ENTRAM E SE AJOELHAM EM REVERÊNCIA)

TODOS
São partículas e são ondas
São minúsculas e são bombas
São partículas e são ondas
São minúsculas e são bombas.

(ESCURIDÃO)


FIM