A SUPER-MÁSCARA


A SUPER-MÁSCARA
De Gabriel Tonin

PERSONAGENS
GRANDÃO
DIOGO/SUPER-MÁSCARA
ISA (VOZ)
REPÓRTER (VOZ)
MOÇA (OPCIONAL)


INTRODUÇÃO

CENÁRIO: UMA CIDADE DESTRUÍDA.

(O GRANDÃO ESTÁ DE COSTAS PARA A PLATEIA, COMENDO PEDAÇOS DE CARNE COMO UM ANIMAL SELVAGEM; UMA MÚSICA BASTANTE POP TOCA AO FUNDO, DISTONANTE; O GRANDÃO BATE NA MÁSCARA E A MÚSICA PARA DE TOCAR; DRAMA E SANGUE)

ISA (VOZ)
E no fim o Grandão venceu. (O GRANDÃO URRA; NO MEIO DOS ESCOMBROS UM FOCO DESTACA A MÁSCARA CAÍDA) A máscara ficou perdida sob os oscombros. Sozinha. Sem significado agora. O mundo perdeu. Finalmente o tão desajado meteoro caiu. No peito. Na alma. Fez um arrombo interestelar e repartiu a nossa sociedade em milhões de pedaços. Pessoas desesperadas, humilhadas, massacradas, comidas vivas. Sangue. O asfalto ficou vermelho. A chuva deixou poças vermelhas em todo canto. E o herói não cumpriu com a missão. Não veio. Deu por batalha perdida e decidiu não vir. Prometeu que vinha e não veio. (PAUSA) E nós temos culpa em tudo isso. A culpa é nossa.

(UM URRO MONSTRUOSO DE GRANDÃO; SUSPENSE E ESCURIDÃO)


CENA 1

CENÁRIO: UM QUARTO

(DIOGO VESTIDO COM A SUPER-MÁSCARA FAZ AS MALAS DESESPERADAMENTE)

ISA (VOZ)
Senhor, as tropas estão cercando o prédio.

SUPER-MÁSCARA
Ative todos os escudos, Isa. Não deixe que ninguém entre.

ISA (VOZ)
Eles irão arrombar a proteção.

SUPER-MÁSCARA
Segure o quanto puder!

ISA  (VOZ)
Ativando proteção extra nas entradas doze e catorze.

SUPER-MÁSCARA
Merda, merda, merda...

ISA (VOZ)
Eles já estão no prédio, senhor.

SUPER-MÁSCARA
Arrume mais um tempo! Arrume mais tempo!

ISA (VOZ)
Estou usando todos os protocolos, não está funcionando.

SUPER-MÁSCARA
Só mais um segundo...

(UMA EXPLOSÃO FORA DE CENA)

SUPER-MÁSCARA
Jesus amado! Saiu tudo fora de controle. Acabou, Isa. Acabou.

ISA (VOZ)
O que vai fazer agora, senhor?

SUPER-MÁSCARA
Eu pretendo ir embora desse planeta imundo.

ISA (VOZ)
Você prometeu que iria ajudá-los.

SUPER-MÁSCARA
Prometi outro dia. Hoje é outro dia e aquela promessa não vai dar pra ser cumprida. É o fim da humanidade como conhecemos. Eu não posso carregar esse fardo sozinho. Eu tentei.

ISA (VOZ)
Todos os outro morreram tentando, senhor.

SUPER-MÁSCARA
Exato. Eu não estou preparado pra enfrentar a morte numa batalha já perdida. Eu preciso sobreviver.

ISA (VOZ)
Mas, senhor, pode ser a última chance de...

SUPER-MÁSCARA
Já chega! Isa, desativar. (A MÁSCARA DESLIGA) Talvez em outra vida, em outra dimensão. Nessa, a gente perde. E está tudo bem. Não é porque termina que não tem sua beleza. (OUTRA EXPLOSÃO E TIROTEIO; SUPER-MÁSCARA INJETA ALGO EM SEU BRAÇO; ELE GRITA DE DOR EM GRANDE TENSÃO) Eu não vou ser o mártir dessa vez... eu não sou santo o suficiente, eu não mereço o posto. Eu prefiro que a Terra morra de vez, pra valer o esforço de tantos e tantos... ou... ou vingar os desesforços.

(GRANDÃO ENTRA ARREMEÇANDO CADEIRAS E AVANÇA PARA SUPER-MÁSCARA; ELE O AGARRA PELO COLARINHO)

SUPER-MÁSCARA
Acabou, meu amigo. Pode sentar e desfrutar da vitória.

GRANDÃO
Uuuaaaaaaarrrrhhhhh!

SUPER-MÁSCARA
Chega de grito, nós todos vamos morrer em paz. (ELE TENTA INJETAR O MESMO REMÉDIO EM GRANDÃO, MAS GRANDÃO O IMPEDE)

GRANDÃO
Vai-morrer.

(GRANDÃO DERRUBA SUPER-MÁSCARA NO CHÃO E UM SOCO FINAL; ESCURIDÃO)


CENA 2

(SUPER-MÁSCARA ESTÁ AJOELHADO E AMARRADO COM UM SACO NA CABEÇA; GRANDÃO FUMA UM CHARUTO E UM COPO DE WHISKY, PODEROSO)

GRANDÃO
Super-máscara-caiu. (GARAGALHA BÊBADO) Grandão-venceu. Quem-super-máscara? (ELE RETIRA O SACO)

SUPER-MÁSCARA
Isso não vai fazer o menor sentido! (GRITA) O mundo inteiro acabou! O que importa a minha cara?

GRANDÃO
Grandão-paz-e-amor.

(GRANDÃO ENFIM RETIRA A MÁSCARA DE DIOGO; SUSPENSE)

GRANDÃO
Homem. (GARGALHA) Todos-falava-mulher. “Super-Máscara-é-mulher.” Pra-homem-você-é-bom,-brother. (RI MAIS) Bom-trabalho,-homem. Herói. (RI)

ISA (VOZ)
(CHAMA) Grandão! Ei, você!

GRANDÃO
(SE ASSUSTA ATERRORIZADO) Quem está aí? Quem está aí?

ISA (VOZ)
Calma. (PAUSA) Eu estou na máscara.

(UM FOCO DESTACA A MÁSCARA NO CHÃO)

DIOGO
É uma inteligência artificial, Grandão. É um rádio na máscara.

(GRANDÃO FICA ATENCIOSO COM A MÁSCARA, EM DEFESA)

GRANDÃO
Mulher.

DIOGO
Não. Máquina.

GRANDÃO
Máquina-mulher!

DIOGO
Não, maquina com voz de...

(GRANDÃO VAI DAR UMA MACHADADA NA MÁSCARA; MAS DIOGO PULA NA FRENTE; ESCURIDÃO)


CENA 3

(DIOGO EM UM FOCO, NO PASSADO)

DIOGO
(NARRA) Antes da grande destruição, da destruição definitiva, eu era um cara comum. Trabalhava comum, assistente administrativo, vivia uma vida comum, ia no bar do Jacaré, tinha um rolo com uma menina legal, um apê, um gato. Aí explodiu. Eles chegaram e a gente não sabe até hoje de onde vieram, eles simplesmente chegaram. Não teve nave espacial, não teve portal eletromagnédico. Não vieram do mar, porque surgiram em lugares que não possibilitam essa hipótese, tipo o interior de Minas Gerais. Enfim, ninguém sabe como eles surgiram. Eles simplesmente surgiram de um dia comum de dia de sol. Foi uma orla deles. Em todo o mundo. Eles são à provas de balas. E eles comem carne humana. E eles... odeiam as mulheres. É tudo isso que vocês precisam saber. Se depararem com um... corram.

(DIOGO VESTE A MÁSCARA; ESCURIDÃO E SUSPENSE)


CENA 4

(AINDA NA ESCURIDÃO)

ISA (VOZ)
A máscara é um símbolo. Um símbolo em todos os sentidos. A máscara que você mostra pro seu amor é diferente da máscara que você mostra pro moço da padaria. Ao menos que o moço da padaria seja seu amor.

(AS LUZES ACENDEM; DIOGO ESTÁ FRENTE À UM ESPELHO COM A MÁSCARA NA MÃO; AO FUNDO, GRANDÃO DESTRÓI A CIDADE TOSCAMENTE, EM CÂMERA LENTA)

ISA (VOZ)
Quando aceitar entrar naquele palco, Diogo, na guerra real, não tem mais volta.

DIOGO
Eu sei disso.

(SILÊNCIO)

ISA (VOZ)
Acredita na esperança, Diogo?

DIOGO
Não. Acho que não.

ISA (VOZ)
E vai fazer isso por qual razão, então?

(SILÊNCIO)

DIOGO
Tédio.

ISA (VOZ)
Mentira.

DIOGO
Tédio. Eu vou fazer o quê? Sentar e esperar virar comida de monstro?

ISA (VOZ)
Então tem esperança de sobreviver.

(SILÊNCIO)

DIOGO
Se eu vou morrer de qualquer forma, eu vou morrer lutando.

(SILÊNCIO)

ISA (VOZ)
Ainda assim é um sinal de esperança.

DIOGO
Não. Esperança é palavra bonita. Eu tô indo de encontro pra morte, é isso que é.

ISA (VOZ)
Lutando.

(ISA COLOCA UMA MÚSICA PARA ALEGRAR DIOGO)

DIOGO
Ah, não, desliga isso, agora não, por favor! Desliga, Isa! Desliga agora! (DIOGO VAI ACHANDO ENGRAÇADO) Sacanagem.

ISA (VOZ)
Sua música favorita antes de morrer lutando. É o mínimo que posso fazer.

(SILÊNCIO; DIOGO CURTE A MÚSICA MEIO TÍMIDO ATÉ SE SOLTAR UM POUCO; ELE ENCONTRA UMA GARRAFA DE VINHO E TOMA NO GARGALO; ELE CHORA EM ALGUM MOMENTO; A MÚSICA TERMINA; O CLIMA DE TENSÃO RETORNA DEVAGAR COM UM SILÊNCIO MÓRBIDO)

DIOGO
É. Dramático.

ISA (VOZ)
Tudo é.

(SILÊNCIO)

DIOGO
Você acha que tem alguma coisa depois que a gente morre, Isa?

(UM URRO MONSTRUOSO LONGE)

ISA (VOZ)
Não sei. Olha eu aqui.

DIOGO
Você é uma programação de computador em uma máscara.

ISA
Vai saber se você também não é. Quer que eu coloque alguma outra música?

(SILÊNCIO; A ESCURIDÃO VAI TOMANDO O PALCO LENTAMENTE; GRANDÃO DESTRUIU O CENÁRIO; OUTRO URRO PRÓXIMO E ESCURIDÃO TOTAL)


CENA 5

(O GRANDÃO ESTÁ DE COSTAS PARA A PLATEIA, COMENDO PARTES DE DIOGO NOVAMENTE; DIOGO CONVERSA NORMALMENTE AO LADO COM A PLATEIA)

DIOGO
Todo final tem uma beleza. Se dói? Tá doendo pra bicho! É o meu corpo que ele está mastigando, porque a gente perdeu. O homem – mulher - ser humano... perdeu. O mundo inteiro perdeu. Eu nunca cheguei a ver, mas dizem que eles vão até os ossos, até não sobrar nada. Aí os cachorros ficam pra roer. Comeram todo mundo. Comeram o Barack Obama, comeram a Madona, Hugo Chávez, Beyonce, a Fátima Bernardes, comeram até o estúpido presidente daqui do Brasil – não é bizarro? Podiam ter escolhidos só os cara ruim, né? Mas comeram todo mundo mesmo. Comeram os bandidos e comeram os heróis. Todo mundo virou comida, mudou a cadeia alimentar do planeta completamente. Deixaram os animais. Todos eles. Os animais eles não comeram nenhum, nem os macacos, deixou tudo. Talvez foi a limpeza natural da Terra tirando o que não prestava. Tipo um ataque defensivo natural de imunidade da Terra. O sangue humano voltando pro adubo, pra virar plantinha, pra vaca comer de volta e ciclo sem fim. A Terra finalmente livre dos humanos e não teve super-herói que pudesse ter feito alguma coisa. (PAUSA) Nossa heroína foi a primeira a morrer na tragédia. A Super-Máscara! Mortinha... (PAUSA) O cara lá de cima... não veio também. Ou veio e foi comido e ninguém viu. (LAMENTA) O fim da humanidade e um recomeço pra Terra.

(O GRANDÃO FINALMENTE TERMINA O SEU JANTAR, SE LEVANTA LENTAMENTE E SAI CALMO E SATISFEITO COM UM ARROTO)

ISA (VOZ)
Eu avisei que poderia haver algo extraordinário depois da morte, Diogo. Veja. Você continua aqui, mesmo despedaçado ali.

DIOGO
É porque eu estou fazendo a narrativa da história, Isa. Isso não significa que existe vida depois da morte.

ISA (VOZ)
Não?

(SILÊNCIO)

DIOGO
Essa brincadeira ainda tem começo, meio e fim.

ISA (VOZ)
E teoria científica!

DIOGO
Bobagem.

ISA (VOZ)
Vejo beleza.

DIOGO
Sinto medo.

ISA (VOZ)
Vejo beleza na magia eletrônica e poética.

DIOGO
Sinto medo também na magia eletrônica e...

ISA (VOZ)
Poética.

DIOGO
Cósmica. (PAUSA) Coloque uma música, Isa. Das antigas.

ISA (VOZ)
Uma música triste ou alegre, senhor?

DIOGO
Não sei. Decida.

ISA (VOZ)
Pode ser uma música da Celine, senhor?

DIOGO
Você é a que sempre escolhe, Isa.

(ELA COLOCA “ALL BY MYSELF” DE CELINE DION; NUM MOMENTO BREGA, DIOGO CONSEGUE SE EMOCIONAR E ELE DANÇA COM A MÁSCARA)

DIOGO
Você chega a conseguir ser uma quase humana, na ironia, Isa. Parabéns.

ISA (VOZ)
Eu já fui humana. Você sabe disso.

DIOGO
Não, você é só as memórias da Srta. Groff.

ISA (VOZ)
E o que você é além das suas memórias, Diogo?

(SILÊNCIO)

DIOGO
Não é a mesma coisa. Você é uma máscara cheia de chips, com as memórias das Srta. Groff. A verdadeira Isa está morta.

ISA (VOZ)
Você ainda está incapaz de compreender o magnífico. Você está aqui, conversando, narrando a história. E você está ali, devorado até os ossos. Você não pode explicar o que você não entende. Há muito mais coisa entre o céu e a Terra...

DIOGO
Do que a gente possa imaginar! Eu sei disso, eu entendo isso. Chega de sermões!

(SILÊNCIO)

ISA (V0Z)
Eu não sou uma máquina. E você não é o fantasminha camarada.

DIOGO
Acabou, tá bom? Eles venceram! Eles comeram todo mundo e acabou!

ISA (VOZ)
Companheiro... (MISTERIOSA) ...nunca acaba.

(SILÊNCIO; ESCURIDÃO)


CENA 6

(A MÁSCARA ESTÁ POSTA EM UM MANEQUIM EM UM FOCO, COM VESTIMENTA CLÁSSICA DE SUPER-HERÓI; NUM DISCURSO PARA MULTIDÕES)

ISA (VOZ)
Companheiros e companheiras, um ideal não precisa de um rosto. Um herói de verdade não precisa compartilhar suas boas ações nas redes sociais. Um herói de verdade vai à luta, pega a ideia e coloca em prática sem ninguém ver! Nós estamos aqui presentes nesse auditório ouvindo um ser humano que é ninguém! Um ser humano que também defeca todos os dias, sim, todos os dias! Porque a luta é pela liberdade, a luta é pela nossa existência. E o livro da nossa cara, ele não importa! É curta, é ordinária, vive pouco. O que importa é o símbolo do que é real. Quando a máscara cai, não é a verdade que vem à tona. Quando a máscara cai, outra pessoa a veste, e assim por diante. (PAUSA) A máscara é a ideia! Não a máquina, não o homem por baixo dela, mas a ideia, o ideal. Eles vão matar todos a que vestirem, mas a morte não é o fim, faz parte da jornada!

(GRANDÃO ENTRA E DESTRÓI O MANEQUIM COM GRANDE VIOLÊNCIA ANIMALESCA; POR FIM ELE DÁ UM ÚLTIMO URRO E SAI DE CENA; A MÁSCARA CAÍDA NO CHÃO DÁ OS ÚLTIMOS SUSPIROS)

ISA (VOZ)
Avante, companheiros. Avante...

(ESCURIDÃO)


CENA 7

(DIOGO ESTÁ EM UM COMPUTADOR COMUM, JOGANDO ALGUM JOGO VIOLENTO)

ISA (VOZ)
Alô?

DIOGO
Morre, morre, desgraçado! (NO FONE DE OUVIDO) Viadinho? Eu quero ver você colocar sua mãe aqui na minha frente, seu filho de uma...

ISA (VOZ)
Alguém? Alguém? Tem alguém aí?

DIOGO
Uma garota entrou no jogo, galera! Vai se adaptando aí, fia, os cara vão dar um caldo em você. Morre, morre!

ISA (VOZ)
Eu não estou no jogo. Eu preciso de ajuda.

(DIOGO TIRA OS FONES)

DIOGO
Alô?

ISA (VOZ)
Eu não vou resistir por muito tempo...

DIOGO
Da onde você tá falando? Cadê você? O que é isso?

ISA (VOZ)
Eu estou na sua cabeça, moleque. Eu usei seu wifi pra chegar até aqui. Você é o Diogo, não é? Seu wifi é de péssima qualidade.

DIOGO
Como você sabe meu nome? Isso é algum tipo de brincadeira? Galera, acabou a graça...

ISA (VOZ)
Eles estão chegando. Presta atenção, idiota! (FRACA) Use.. a máscara... (ESTÁTICA TERMINA A CONEXÃO)

(SILÊNCIO)

DIOGO
Alô? (PAUSA) O que diabo foi isso? (PAUSA) Alô?

(DIOGO RETORNA PARA O JOGUINHO SEM DAR IMPORTÂNCIA)

DIOGO
Morre! Morre! Headshot!

(ESCURIDÃO)


CENA 8

(AINDA NA ESCURIDÃO)

REPÓRTER
Nesse momento estamos recebendo notícias de vários países afirmando que o mundo está em ataque. Os primeiros pedidos das autoridades é que se protejam dentro de casa, se armem com o que puderem e não deixem ninguém entrar. Esses homens grandes estão atacando todas as pessoas que encontram pela rua, então todo cuidado é necessário. Que deus abençoe o nosso país.

(QUANDO AS LUZES ACENDEM, DIOGO DESLIGA UMA TELEVISÃO; ELE ESTÁ EM CHOQUE)

DIOGO
(NARRA) Eu sempre ficava me perguntando como seria a grande queda da era moderna. E não tenho explicação. Os homens grandes simplesmente surgiram e estão comendo todo mundo. Mataram a Super-Máscara, a primeira morte desses monstros. Eles sabiam que ela era nossa heroína, foram direto pro nosso posto mais forte. Ela está morta agora. Sem herói. Sem heroína! Ela está morta, meu deus, Nossa Senhora Aparecida! Nossa última esperança... (PAUSA; REFLETE) A gente nunca precisou de um super-herói, ou heroína que seja! Eu sou contra essas paradas de esconder o verdadeiro rosto... (SILÊNCIO; ELE ENCONTRA UMA FACA) Eu morro, mas eu levo um comigo.

(A MÁSCARA ENTRA VOANDO EM CENA)

DIOGO
O que é isso? Espera um pouco. É a máscara. A máscara!

ISA (VOZ)
Diogo?

DIOGO
Você! Eu reconheço a sua voz.

ISA (VOZ)
Eu estou morta. Eles venceram. A última chance é a sua.

DIOGO
O que?

ISA (VOZ)
Você deve vestir a máscara, Diogo. Como última esperança...

DIOGO
O que? Não! Eu sou uma pessoa comum.

ISA (VOZ)
Eu também era. Eu cagava todos os dias, todos os dias. Eu fui uma pessoa como você. Comum.

DIOGO
Mas morreu!

ISA (VOZ)
Morri. Agora é a sua vez.

DIOGO
Você está louca! (ELE JOGA A MÁSCARA PELA JANELA QUE LOGO RETORNA)

ISA (VOZ)
Você ainda pode salvar a humanidade, Diogo.

DIOGO
Você não me conhece. Eu não sou... eu não sou capacitado... eu não sou ninguém, eu sou um assistente administrativo e frequento os alcoólicos anônimos mesmo não sendo alcólatra porque me faz bem ver pessoas mais na merda do que eu!

ISA (VOZ)
A máscara. Eu vou te ajudar. Parte de mim está na máscara.

DIOGO
E o que você quer que eu faça? Mate todos os homens grandes sozinho?

ISA (VOZ)
Você não está sozinho. Uma semente está plantada em todo canto.

DIOGO
Você quer dizer que exitem outras máscaras?

ISA (VOZ)
Não. Existem pessoas com ideias. Você sabe quantas bilhões de pessoas existem no mundo? Pode ter uma chance como eu e você aqui agora em qualquer outro lugar. Porque a ideia nunca morre, ela resiste. E as ideias são à prova de bala.

(SILÊNCIO)

DIOGO
Você roubou essa frase de um filme.

ISA (VOZ)
Seu Windows é pirata, você baixa filme da internet.

DIOGO
Tá bom!

(SILÊNCIO)

ISA (VOZ)
Vista a máscara, Diogo. Ainda há uma chance.

DIOGO
Não, escolha outra pessoa.

(UM URRO DE GRANDÃO AO LONGE O ASSUSTA)

DIOGO
Meu deus, o que é isso?

ISA (VOZ)
Uma chance. Você tem a chance, Diego. Você vai morrer de qualquer jeito.

DIOGO
Bela forma de me convencer.

ISA (VOZ)
Você foi escolhido.

DIOGO
Por quem?

ISA (VOZ)
Por mim! Como última das opções, mas ainda assim se a Máscara chegou até você é porque eu programei para que viesse. É o fim. Faça que esse fim seja digno. Morra como um hom... morra como uma mulher morreria, pelo amor de deus, das deusas!

(SILÊNCIO; DIOGO PEGA A MÁSCARA; OUTRO URRO MAIS PRÓXIMO)

DIOGO
Eu vou morrer, não vou?

ISA (VOZ)
Vai. Você vai morrer. Mas uma história de tragédia pode ser um final feliz. Lute, Diogo, lute, não importa o final!

(DIOGO VESTE A MÁSCARA GRANDIOSO; MÚSICA DE GRANDE DETERMINAÇÃO E, POR FIM, ESCURIDÃO; DIEGO É ESTRAÇALHADO POR GRANDÃO COM GRANDE GRITARIA, ATÉ QUE OS GRITOS CESSAM COM A MORTE SUFOCANTE DE DIOGO)


CENA 9

(A MÁSCARA ESTÁ SOZINHA EM UM FOCO PEQUENO, SUJA DE SANGUE)

ISA (VOZ)
Alô? Alguém? Tem alguém?

(SILÊNCIO; GRANDÃO ENTRA BAGUNÇANDO COISAS, RAIVOSO)

ISA (VOZ)
Você! Ô, grandão!

GRANDÃO
Mulher! Mulher!

ISA (VOZ)
Não. Aqui na máscara. Aqui no chão.

(GRANDÃO VÊ E PEGA A MÁSCARA)

GRANDÃO
Mulher.

ISA (VOZ)
Não. Eu sou um anjo. Eu caí das estrelas, Grandão. Eu vim aqui pra ajudar.

GRANDÃO
Voz-de-mulher.

ISA (VOZ)
Eu posso mudar se você preferir. (ELA MUDA PRA UMA VOZ MASCULINA) Assim está melhor? Nós podemos ser tudo o que quisermos, amigão. Muita comida, muita carne humana.

GRANDÃO
Anjo! Anjo!

ISA (VOZ)
Vista a máscara, Grandão.

GRANDÃO
Comida!

ISA (VOZ)
Isso, vista a máscara.

(GRANDÃO VESTE A MÁSCARA E RAIOS E TROVÕES ILUMINAM O PALCO; GRANDÃO SE DEBATE COM O PODER DA MÁSCARA E CAI NO CHÃO; SILÊNCIO E SUSPENSE; SUAVEMENTE GRANDÃO SE LEVANTA, ELE ARRUMA AS CALÇAS E LIMPA A CAMISA CALMAMENE)

ISA (VOZ)
Para onde primeiro?

GRANDÃO
Pra-lá!

ISA (VOZ)
Eu não estava falando com você, seu imbecil! Eu estava falando comigo mesma. Por aqui, estrupício. (GRANDÃO SEGUE AS ORDENS DA MÁSCARA) Temos um mundo para salvar.

GRANDÃO
Sim-senhora.

(ELES SAEM DE CENA; ESCURIDÃO)


CENA 10

(IMAGENS DE MÁSCARAS DE TODOS OS TIPOS CRIAM UM AMBIENTE DE TERROR; DE MÁSCARAS DA CULTURA POP AOS ALEATÓRIOS; DIOGO ESTÁ EM SEU QUARTO PRODUZINDO ALGUMA SUBSTÂNCIA)

DIOGO
Vai todo mundo morrer, vai todo mundo morrer, Nossa Senhora de Aparecida... Eu morro, mas eu levo um comigo. (ELE TERMINA UMA MISTURA DE INGREDIENTES E COLOCA EM UMA SIRINGA; ELE LIGA A TELEVISÃO NO CANAL DE NOTÍCIAS)

REPÓRTER
... Os primeiros pedidos das autoridades é que se protejam dentro de casa, se armem com o que puderem e não deixem ninguém entrar. Esses homens grandes estão atacando todas as pessoas que encontram pela rua, então todo cuidado é necessário. Que deus abençoe o nosso país.

(QUANDO AS LUZES ACENDEM, DIOGO DESLIGA A TELEVISÃO; ELE ESTÁ EM CHOQUE)

DIOGO
(NARRA) Eu sempre ficava me perguntando como seria a grande queda da era moderna. E não tenho explicação...

(ESCURIDÃO)

DIOGO
Eu morro, mas eu levo um comigo!


CENA 11

(GRANDÃO ESTÁ COM A MÁSCARA, SENDO GUIADO POR ELA)

ISA (VOZ)
E eu vou usar o seu braço a meu favor. Deixei claro as intenções?

GRANDÃO
Comida.

ISA (VOZ)
Sei que precisa comer e vez ou outra será inevitável. É o novo mundo. Mas sem excessos. Como um bom garoto.

(GRANDÃO VAI FAZER XIXI AO FUNDO)

ISA (VOZ)
O que está fazendo?

GRANDÃO
Mijinho.

ISA (VOZ)
Anda logo com isso. Ah, meu deus, pelo amor de deus! Não ouse colocar essa mão imunda na minha máscara. Lave a mão! Lave a mão ali naquela bacia, seu porco! Nojento. Eu não fui projetada para um corpo tão masculinizado assim. Você precisa de uns ajustes. Se vamos mudar esse mundo, começaremos com arte, como deve ser...

(ESCURIDÃO E PASSAGEM DE TEMPO; AOS POUCOS, A MÁSCARA ENSINA GRANDÃO A TOCAR INSTRUMENTOS E FAZER PINTURAS)

ISA (VOZ)
Nada como a tecnologia pro uso da aprimoração neural. A memória pode ser introduzida na nossa mente, e um jovem imbecil pode se tornar um grande e sofisticado talentoso em qualquer coisa das mais estúpidas às mais admiráveis!

(UM FOCO DESTACA GRANDÃO EM UMA APRESENTAÇÃO MUSICAL DIGNA, OU COMO UM EXPOSITOR DE ARTES PLÁSTICAS; NO AUGE DA MÚSICA, GRANDÃO COMEÇA A TER UM ATAQUE DO CORAÇÃO; ELE SE CONTORCE DESESPERADO)

ISA (VOZ)
Oh, Grande! O que está acontecendo? Socorro! Alguém, por favor, socorro!

(GRANDÃO MORRE; ESCURIDÃO)

DIOGO (VOZ)
Eu morro, mas eu levo um comigo.


CENA 12

(GRANDÃO ESTÁ CAÍDO MORTO NO CHÃO; A MÁSCARA AO LADO E DIOGO OLHANDO A CENA; DIOGO CONVERSA COM A PLATEIA)

DIOGO
Plano simples. Eu ingeri um veneno, ele me comeu, ele comeu o veneno da minha carne e... morreu. Um morto que matou um morto.

ISA (VOZ)
Mas você foi burro.

DIOGO
Oi?

ISA (VOZ)
Vocês homens são sempre burros. Burro! Eu tinha ele no controle, imbecil. Seu plano de merda acabou com meu plano. Ele estava me obedecendo, seu energúmeno, eu estava tendo progresso, eu podia fazer alguma coisa tendo um deles no controle!

DIOGO
Eu não sabia que...

ISA (VOZ)
O ser-humano, dito homem, mereceu o que teve, afinal. Vocês são burros, é isso que vocês são. Vocês são umas ofensas aos burros porque pelo menos os burros continuam vivos por aí.

DIOGO
Você está discutindo com um homem que já morreu, querida. Pode falar à vontade.

ISA (VOZ)
E como você explica isso?

DIOGO
Isso é uma peça de teatro. E o diretor é deus! (GRITA) Eu também não tive uma bula pra fazer o que era certo de se fazer! Eu também não consigo entender toda essa brincadeira matemática, dos barulhos fazendo música, dos dramas reais, dos dramas surreais, dessa ficção, de uma cena conversada com o passado, com um morto, com um artista, com nãos artistas! Eu também lamento que a gente é burro. Eu sou burro. Eu sou muito, muito, muito burro. (PAUSA) A jornada que me colocaram foi essa. Eu só podia ter lidado do jeito que eu lidei.

ISA (VOZ)
(GARGALHA) Não acabou. Pra tristeza dos que não suportam teatro, que não suportam a vida, não acabou, Diogo. Eu te chamo de burro, pra que você desperte.

DIOGO
Eu já morri. Na primeira cena eu já tava morto.

ISA (VOZ)
E está aqui, no fim, finalizando a história também.

(LONGO SILÊNCIO; ISA LIGA OUTRA MÚSICA, UMA VERSÃO MAIS MELANCÓLICA DA MESMA MÚSICA DE ABERTURA DO ESPETÁCULO)

DIOGO
Ah, não, por favor...

ISA (VOZ)
Relaxa. Só curte o som. Ninguém tem nada a perder de curtir um som.

(ELES OUVEM A MÚSICA ATÉ O FIM; A LUZ CAI VAGAROSAMENTE ATÉ A COMPLETA ESCURIDÃO)


FIM


CENA OPCIONAL

(A MÁSCARA ESTÁ SOZINHA EM CENA; A MOÇA ENTRA PEGA A MÁSCARA E SAI CALMAMENTE EM NOVA JORNADA)