CONTOS
DE TERROR-POP DA ESCOLA
De Gabriel Tonin
PERSONAGENS
Soninha
Júlio
Chico
CENÁRIO: Uma sala de aula abandonada, com carteiras
amontoadas.
INTRODUÇÃO
(os três entram com lanternas, tentando não fazer
barulho)
OS TRÊS
Numa
sexta-feira madrugada
Que
à meia-noite se encontrava
E
dentro da escola passeava
No
escuro do terror que ela assombrava
Olhando
a lousa fria sem professora
Fantasma
no banheiro das meninas
Histórias
da nossa escola que até arrepia
São
três contos dessa nossa cantoria
Primeiro
é o menino da biblioteca
Depois
tem a famosa do banheiro
Por
último a formatura da esquisita
Cultura
de terror-pop até o fim
Porque
a coisa então vai ficar feia
Se
a coisa tá boa, tá preta
Tudo
branco, senhor, viemos por terror
O
capeta a unha arrumou.
SONINHA
Boa noite, boa tarde, bom dia...
JÚLIO E CHICO
Boa madrugada!
SONINHA
... mais uma vez, queridos telespectadores de idades
inferiores...
JÚLIO E CHICO
Os mais adolescentes também!
SONINHA
E das lenda urbana, com sangue de porco, crianças
malvadas e fantasma no espelho de novo!
JÚLIO
Ah, não, fantasma no espelho de novo! Toda vez tem
fantasma no espelho! Espelho é uma coisa muito... aterrorizadora.
SONINHA
Deve ser porque talvez os fantasmas da vida real
realmente costumam aparecer nos espelhos, por isso tanta história com espelho.
JÚLIO
Fantasmas da vida real?
CHICO
Você vai ficar enchendo a cabeça dele de novo,
Soninha! Pra mim, muita coisa pode acontecer frente à um espelho. Ilusão de
ótica, por exemplo.
SONINHA
Ou realidades paralelas! Ou espíritos de criancinhas
malvadas!
JÚLIO
Ai, não, espíritos de criancinha malvadas é demais
pra mim! Eu vou embora!
(cadeiras despencam no chão, assustando os três)
JÚLIO
Ai, meu deus do céu, é uma criancinha malvada! É a
prova que vocês queriam! Vamo embora daqui!
CHICO
Eu não vi nada. As cadeiras estavam mal
equilibradas, óbvio.
SONINHA
Eu não descarto nenhuma possibilidade.
CENA
1: O assassinato do menino da biblioteca
SONINHA
A
vovó deu um rolê nas estrelas!
CHICO
Essa história do menino da biblioteca é verídica!
Porém ninguém nunca tirou uma foto do corpo morto do menino, todo
ensanguentado.
JÚLIO
Tudo porque ele tinha ido pegar um livro mal falado
sobre bruxaria e inclusão social! E aí morreu.
CHICO
Foi morto.
SONINHA
O assassino do menino da biblioteca, um outro aluno
mais velho do terceiro ano, era contra discussões de inclusão social, revolta
estudantil, e também bruxaria, é claro.
CHICO
Isso foi o que disseram.
JÚLIO
Eu não duvido! Tem gente de vários tipos nesse mundo.
SONINHA
Ele achava que o Lorde das Trevas estava certo em
dividir os mestiços dos de puro sangue!
CHICO
Calma, calma, calma! Esse negócio de que ele era
nazista é fofoca. O que na verdade todo mundo sabe dos fatos é que o menino do
terceiro ano entrou na biblioteca e tirou a vida do outro menino sem mais nem
menos, com um canivete. Só isso que é a verdade. Ele nunca falou os motivos
verdadeiros do crime.
SONINHA
Tem uma outra parte dos acontecimentos que todo
mundo prefere deixar em segredo. Uma outra versão dos motivos do assassino.
CHICO
Não! Não precisa falar dessa versão! É muito...
pesada. Pode dar o maior B.O., do jeito que tá.
SONINHA
Ora, ninguém é ignorante aqui, Chico! Tem algum
ignorante aqui? Claro que não tem nenhum ignorante! Ignorantes não vão ao
teatro!
CHICO
Acho que é muito pesado pro horário.
JÚLIO
Pesado é o menino morto na biblioteca por si só. O
que poderia deixar mais pesado do que uma história de assassinato na escola? E
com canivete ainda! Numa biblioteca!
CHICO
Todo mundo tá acostumado com a violência já.
JÚLIO
Qual é a outra versão da história, Soninha?
SONINHA
Dizem que o menino que morreu tinha um segredo. Um
segredo que ele não contava pra quase ninguém. Poucos sabiam.
JÚLIO
Que segredo era esse?
CHICO
Cuidado como você vai falar...
JÚLIO
Fala!
SONINHA
Algumas pessoas diziam que o menino da biblioteca
não era exatamente um menino.
(sons de terror e suspense; eles encaram a plateia
assustados)
JÚLIO
Se não era menino era o quê? Demônio? Alienígena?
CHICO
Não, ele era um ser humano normal mesmo. Na verdade,
o que é ser normal, né?
SONINHA
O que acontece é que ele era um menino que tinha
nascido menina. Falei!
(sons de terror e suspense; Soninha e Chico encaram
a plateia assustados; Julinho pela primeira vez não tem medo)
JÚLIO
Não sei qual o horror nisso. Horror é o menino morto
na biblioteca. O que uma coisa tem a ver com a outra?
SONINHA
É horrível. Uma tragédia assustadora. Ele foi morto
por causa disso, Júlio. Porque era um menino que tinha nascido menina.
JÚLIO
Oh, meu deus do céu! Que história horrorosa! Mataram
ele por causa da roupa que ele vestia?
SONINHA
Por causa do nome que ele mudou.
CHICO
É, mas isso aí é fofoca, né, gente. Pode ter sido
por causa do livro de bruxaria mesmo, talvez, quem sabe? Ou por qualquer outro
motivo que ninguém nunca inventou uma versão ainda.
JÚLIO
A verdade verdadeira só o assassino poderia nos
dizer.
CHICO
Nada pode garantir que as motivações do crime foram
porque o menino era... ahn... é... brr... um menino diferente.
SONINHA
Eu aposto. Pra mim, sabendo do que acontece por aí
no mundo inteiro com pessoas que são iguais ao menino da biblioteca, eu acho
que a motivação foi de: preconceito de gênero!
JÚLIO
Nossa, que corajosa você!
CHICO
Tem um monte de possibilidades, pode ter sido porque
ele era vegetariano, por exemplo! E o assassino um vegetofóbico.
JÚLIO
Não! Não existe um vegetofóbico!
SONINHA
Pode ser e pode não ser, Chico. Pode ser um monte de
coisa. Mas no mundo hoje é muito provável que seja por esse motivo mesmo. E por
isso a importância de se colocar em discussão, essa é uma conversa que não pode
ser censurada nunca mais!
JÚLIO
O menino da biblioteca morreu porque a gente ainda
não merece o sobrenatural maravilhoso que existia dentro dele.
SONINHA E CHICO
É verdade.
(clima triste; eles fazem uma pequena real homenagem
com flores e velas para o menino da biblioteca; uma aparição fantasmagórica não
assustadora mostra um menino atrás dos três em projeção com arco-íris; os três
nem percebem)
OS TRÊS
Então
meu deus
Criou
a luz
Depois
criou você pequeno
Te
amou, morreu na cruz
E
mesmo com as diferenças
Ele
assim te aceitou
O
seu amor
O
seu amor... hey, oh!
JÚLIO
Não te salvou! (chora)
SONINHA
Calma, Julinho. Calma.
JÚLIO
Era história de terror ou história de fazer chorar?
CHICO
É terror na tragédia da vida real.
JÚLIO
O sobrenatural dói menos. Vamos voltar a falar de
fantasmas! Pelo amor de tudo o que é mais sagrado!
CENA
2: A loira do banheiro
SONINHA
História de número dois! A mais famosa dos contos de
terror das escolas do Brasil!
OS TRÊS
A loira do banheiro!
(Soninha veste uma peruca loira)
OS TRÊS
Ela
chamava Estela
Era
bonita arrumada
Com
um shortinho azul
Falavam
que não presta
A loira
se enforcou
Depois
fizeram festa
JÚLIO E CHICO (SONINHA)
Diz
que a Estela era chata
Menina
empoderada
Não
aguentou o tranco de tanto ser condenada
Diz
que a Estela era chata
Menina
empoderada
Não
aguentou o tranco de tanto ser condenada
Diz
que a Estela era chata (A coisa tá feia!)
Menina
empoderada (Que medo, que treta!)
Não
aguentou o tranco de tanto ser condenada! (Quem não for filho de deus tá na
unha do capeta!)
CHICO
Só vale lembrar que existem diversas versões da
história da loira do banheiro.
SONINHA
São milhares de universos paralelos e liberdade
artística no tamanho desse universo!
JÚLIO
A nossa versão desse acontecimento verídico
aconteceu porque Estela era muito poderosa e livre pra esse mundo.
SONINHA
(interpreta) “Eu na verdade fiz uma decisão na minha
vida, eu decidi virar um poltergheist no banheiro das meninas pra assombrar
todas aquelas outras meninas julgadoras, que me chamavam de loira burra e
vários outros nomes e que não possuem sororidade umas com as outras. Eu me
enforquei no banheiro por vingança!”.
JÚLIO
O que é soromidade?
CHICO
É igual fraternidade, só que fraternidade é pra
irmãos e sororidade é entre irmãs.
JÚLIO
Ah, entendi. Isso não parece ser tão assustador. Tira
essa peruca agora, vai. Essa história nem dá medo.
SONINHA
“Você não acha assustador, garoto? É porque você
ainda não viu quando nós todas andamos juntas. Não é só no banheiro que eu faço
aparições, não, eu posso aparecer em qualquer lugar na escola. Na sua casa, no
seu banheiro.” (ri malvada)
JÚLIO
Para de fazer essa voz, você tá começando a me
assustar, Soninha.
CHICO
É a Soninha vestindo uma peruca loira, Júlio! Não
tem como isso dar medo. É comédia! Deixa de ser medroso!
SONINHA
“Não é mais a Soninha que está aqui, meu querido.
Isso não é uma encenação. Nós poltergheists podemos possuir o corpo dos vivo
tudo! A Soninha é uma menina muito fraca, mas não a julgo.”
JÚLIO
Não! É mentira! Para com isso, não tem graça
nenhuma!
SONINHA
(voz com efeito demoníaco) “Do que você tá com medo,
querido? Dos poderes de uma mulher loira e inteligente e morta?”
CHICO
Credo, Soninha, chega disso, já deu. Muito
convincente, parabéns, mas chega.
SONINHA
“Chega, é? Você quer que eu pare de agir estranho?
Só com um exorcista, meu caro Chico!”
JÚLIO
Um exorcista? Ah, não! Exorcista não! Dá muito medo!
Eu fiquei uma semana sem dormir!
CHICO
É história de exorcista que você quer? Então toma!
(eles exorcisam Soninha brincando)
JÚLIO E CHICO
A
coisa tá feia
Que
medo que treta
Quem
não for filho de deus
Tá
na unha do capeta
CHICO
Sai desse corpo que não te pertence!
(Soninha volta ao normal)
SONINHA
Nossa, credo. O que aconteceu?
JÚLIO
Como assim? Vocês estão me zoando, né?
SONINHA
Eu não tô entendendo. O que foi que aconteceu,
gente?
CHICO
Ah, já chega de brincadeira, Soninha. O Júlio tá acreditando,
ó. Tá tremendo de verdade, Júlio? É teatro, cara, calma.
JÚLIO
Todo mundo aqui viu que não era a Soninha! Dava pra
ver no olho. A loira do banheiro possuiu o seu corpo, Soninha.
SONINHA
Sem o meu consetimento? Oras, mas quem é ela pra
falar de sororidade se ela nem pediu minha autorização pra entrar no meu corpo?
CHICO
Todo mundo sabe que é brincadeira, Soninha, fala pra
ele.
SONINHA
Não! Eu não tava fingindo não! Eu não sei o que
aconteceu! Eu juro pela minha mãe morta atrás da porta! Mas acho que dessa vez
a gente comprovou a existência de fenômenos paranormais teatrais.
CHICO
Tá bom. Ela tá querendo te assustar, Júlio.
JÚLIO
Conseguiu. Nem precisava de tanto. Eu já me cagava
até com fantasma de lençol, lembra?
(silêncio)
SONINHA
(ri) É claro que é brincadeira, menino!
CHICO
Para de ser bobo, Júlio. Essas coisas não acontecem
assim.
SONINHA
Mas não duvido que possa acontecer coisas assim, possessão
sabe-se lá do quê, essas coisas.
JÚLIO
Sei. Você fala isso só porque você sabe que você é
boa atriz!
SONINHA
Obrigada pelo elogio!
CHICO
Gente, e a outra história?
(o sinal da escola toca de repente assustando os
três; as luzes piscam e as cadeiras se movem sozinhas para todo o lado)
JÚLIO
É a loira do banheiro se vingando da sua
interpretação errada da história dela, Soninha!
CHICO
Não existe essas coisas! É teatro! Efeitos
especiais!
OS TRÊS
É o terceiro conto de terror da escola!
CENA
3: Carrie, a estranha
JÚLIO
Essa é muito famosa, todo mundo já assistiu!
CHICO
Não tem como contar a terceira história sem falar
sobre efeitos especiais e a magia da literatura virando cinema!
SONINHA
O livro é melhor que o filme.
CHICO
O original é melhor que o remake.
JÚLIO
Eu prefiro aquele que passava no SBT.
CHICO
Querendo ou não querendo a cultura norte americana
fez muito parte da vida de nós aqui da américa do sul. Afinal, se moramos na
América, também somos americanos.
SONINHA
Eu sou muito cultura pop americana, tenho que
confessar!
JÚLIO
Não tem porquê ter vergonha disso, Soninha. Eu te
aceito como você é por dentro.
SONINHA
Eu sou toda cultura pop!
(black-out; quando as luzes retornam Soninha está de
braços dados com Chico, no baile de formatura, sendo aplaudida; trilha sonora
do filme original)
SONINHA
“Obrigada! Obrigada! Vocês não sabem o quanto eu
estou surpresa e feliz em ser a rainha do baile de formatura.”
CHICO
A menina Carrie que todo mundo achava esquisita na
escola, escondia um segredo inimaginável!
JÚLIO
Todo mundo fazia piada da Carrie, todo mundo falava
mal da Carrie! Ai, se soubessem com quem estavam mexendo iam pensar duas vezes.
SONINHA
“A minha mãe não queria que eu viesse, ela é muito
religiosa e ela tem medo”.
JÚLIO
Você incorporou a Carrie também ou tá fazendo cena?
SONINHA
Tô fazendo cena, Julinho.
CHICO
Depois de uma vida inteira trancafiada nos terrores
do armário do pecado com a mãe em casa, suprimindo e escondendo poderes
psíquicos amedrontada, Carrie sofreu seu último bullying na escola no dia do
baile de formatura!
JÚLIO
Uma garota invejosa jogou um balde de sangue de
porco na cabeça da Carrie na hora da coroação como rainha do baile!
(Julinho vai soltar o balde)
SONINHA
Calma, calma! Não é sangue de verdade, né?
CHICO
Claro que não. É sangue de teatro!
SONINHA
Então vai!
CHICO
Agora!
(Júlio solta o balde de sangue em Soninha deixando
ela encharcada)
SONINHA
Ah, meu deus do céu! Para tudo! Para com isso! Para
essa música! Era pra ser sangue de mentira, Júlio! Olha o que você fez!
(Júlio e Chico gargalham de cair no chão)
JÚLIO
É sangue de mentira, é corante.
SONINHA
Mas era pra ser de papel! Sacanagem! E agora?
CHICO
Relaxa, é brincadeira! A tinta sai.
JÚLIO
Essa foi boa!
CHICO
Vocês repararam que a maioria dos horrores da escola
são sobre histórias de bullying e preconceito?
JÚLIO
Tem algo de errado que não tá certo aí. Vocês vão
ver quando acontecer de verdade de vocês zoarem alguém, e aí essa pessoa ter
poderes sobrenaturais de verdade!
(Soninha muito irritada com a brincadeira faz as
cadeiras voarem e os meninos caírem para trás com o poder da mente; as luzes
piscam e Soninha faz alguns objetos levitarem; no auge do terror e música de
suspense, Soninha vai ameaçadoramente até os dois e joga baldes de sangue em
Júlio e Chico também; os três riem e se lambuzam brincando)
SONINHA
Quando vocês falaram que ia ter sangue eu achei que
ia ser sangue de papel!
JÚLIO
Efeitos especiais é muito cultura pop.
CHICO
Tem mais um! (joga o balde com sangue de papel na
plateia; eles se divertem brincando)
OS TRÊS
Coisa
que as criancinhas só aguentava com as chupeta
Mistério
de lá da estrela
Mistério
aqui do planeta
São
três contos desse canto
Pra
ninguém esquecer a letra
SONINHA
A
coisa tá feia
Que
medo, que treta
OS TRÊS
Quem
não for filho de deus
Tá
na unha do capeta!
FIM