MICROUNICELULAR (2013)

MICROUNICELULAR

Personagens
Rodolfo, 24 anos, beleza exótica e forte.
Ramiro, 48 anos, magro, velho, débil.
Alana, 19 anos, pequena e bonitinha.

(a luz acende e Ramiro está com uma arma apontada para a cabeça de Alana; Rodolfo, desesperado, chora por baixo de um capuz; antes de um tiro, a luz se apaga)

CENA I

RODOLFO
(fuma encostado em um muro) Os sons lá de longe chegam até aqui. Demoram um pouco mais do que a iluminação, mas sempre chegam. (um raio) Enquanto for possível ouvir aquele específico barulho de sirene da ambulância que ajuda na remoção de uma vítima de um acidente duas quadras acima de sua casa, e você puder relatar que esse barulho existe, partículas estarão rebatendo em seus ouvidos. (um trovão) Nove Mississipi. Enquanto for possível distinguir cada pixel e cada cor utilizada, e cada detalhezinho daquela música preferida, daquele violino no fundo, cada som que um estranho estiver fazendo ao longe e esse som chegar à audição, partículas estarão quebrando sob nossa pele e sob nossos tímpanos e íris. (ele abre um guarda-chuva) Quando de repente você abre os olhos e os ouvidos para si mesmo, quando a máscara diária começa a ser usada intencionalmente, quando o olhar para um broto que nasce num muro frio não for de ignorante, a coisa começa a ficar mais clara. E passado e futuro se chocam transformando o presente em algo não existente. E aí você começa a prever coisas, a desmascarar mentiras de terceiros, desmascarar próprias mentiras, descobrir um puta de um segredo que você jamais pode imaginar que existia. Uma magia real na palma da mão. Tá, ok, muitas palestras e cursos de autoajuda já disseram por aí que o segredo está na palma da mão, que bastamos ser positivos para que tudo dê certo, que deus está no comando, que somos importantes e individuais e blá, blá, blá. Por partes, existe uma lógica em tudo isso. (com um desdém camuflado) E digo uma lógica pautada em estudos universitários. (pausa; nega com a cabeça) Mas tenho dito somente com base nas imagens que me pegam nos sonhos. E dos sinais que vejo pelo dia. Nas coisas que consigo prever e ver, e que nenhum outro ao meu lado enxerga; ou pelo menos diz que enxerga. Eu nunca digo pra ninguém quando acerto alguma conspiração diária, na maioria das vezes, então é difícil encontrar os entendidos nesse mundo muito louco. (pausa; ainda não chove) As pessoas inventaram mentiras absurdas para se confortarem. Vivem num conforto mentiroso que na maioria das vezes não trás conforto bosta nenhuma. Um conforto que traz angústia. (imita) “Ora, se pensarmos muito sobre isso ficamos loucos! Estou confortável com as coisas que imagino e não penso em mudar minha vida por causa de uma teoria besta. De que adianta saber?”. (olha impaciente para o céu) Cara, depois de pensar tanto só pude descobrir uma coisa: Deus existe. E ele existe pra caralho. Só que ele não é nada disso que falam por aí. (não chove; Rodolfo fecha o guarda-chuva indiferente e vai sair; antes, acrescenta) Por via das dúvidas, eu descobri isso sozinho. (sai)

CENA II

(Alana entra seguida por Rodolfo)

ALANA
Bom. É aqui.

RODOLFO
(um tanto romântico) Ah, já?

ALANA
Pois é. Moro nesse prédio bonito. (o prédio é feio)

RODOLFO
Bom,...

ALANA
Eu tenho que ir. Amanhã acordo cedo.

RODOLFO
(ri) Acorda cedo? O que faz de manhã, menina?

ALANA
Acordo cedo, oras. Não gosto de perder tempo dormindo.

RODOLFO
(com charme) Não vai nem me convidar para entrar? Pra tomar um café?

ALANA
(ri simpática) O que é? Você quer entrar e de repente vai que rola um sexo, é isso?

RODOLFO
Ué, não era essa a intenção do rolê?

ALANA
(ela se ofende de leve) Bom, acho que houve uma divergência nas intensões.

RODOLFO
Aaah!

ALANA
Eu tenho que ir mesmo, bonitão. (dá um beijo no rosto dele) Me liga pela semana.

RODOLFO
(insiste) Não. É sério.

ALANA
(ainda simpática) Eu também tô falando sério. Amanhã eu acordo cedo.

RODOLFO
Só uns beijos.

ALANA
Rapaz, que insistência! Eu mal te conheço. “Só uns beijos”.

RODOLFO
Eu te contei um monte de coisas sobre mim e eu sei um monte de coisas sobre você. Só uns beijos.

ALANA
Sexta-feira. A gente sai. Pode ser?

RODOLFO
(um tanto incomodado) E hoje? Gastei um monte no bar, meu.

ALANA
(acha graça) Aaai! Rodolfo, você é muito bonitinho. Muito fofinho. Mas a gente acabou de se conhecer. Eu te deixei pagar uma cerveja não te mandei flores. (ri)

RODOLFO
(ele fica sério) Pô.

ALANA
É sério. A gente vai se falando. Me liga. Você parece ser gente boa. Além de bonito.

RODOLFO
Pô, meu.

ALANA
Desculpe. Me liga mesmo. Boa noite, gatão.

(Alana começa a sair; Rodolfo, um pouco perturbado desabafa)

RODOLFO
Dá só uma pegadinha no meu pau aqui, então.

(clima; Alana se vira um tanto chocada, um tanto achando graça)

ALANA
O que?

RODOLFO
É. Só uma pegadinha.

ALANA
Uma pegadinha? Do tipo brincadeira, é isso, né?

RODOLFO
Não. Do tipo pega no meu pau mesmo, entende? Lambe. A cabeça.

ALANA
(brava) Dá licença.

(Rodolfo entra na frente de Alana)

RODOLFO
Opa! Calma aí, calma aí.

ALANA
O que é? Você é do tipo “dá ou desce”, é isso?

RODOLFO
Não. Sou do tipo que sente cheiro de buceta excitada.

(Alana tenta sair, Rodolfo a impede)

RODOLFO
Falei calma.

ALANA
Me deixa ir embora. Eu já falei. Por favor.

RODOLFO
Eu não gastei quarenta reais pra não ganhar nada em troca.

ALANA
Você não tá falando sério. Rodolfo. É brincadeira, né?

RODOLFO
Brincadeira você, pô. Noite perdida, é isso? Você acha!

ALANA
Você foi todo gentil...

RODOLFO
(grita alucinado) Era porque eu achava que ia te comer!

(Alana recua alguns passos)

RODOLFO
Eu não vou te estuprar. Não fique nervosa. Uma pegadinha não faz diferença. (pega a mão dela a força)

ALANA
Me larga, seu imbecil! Para, filho da puta!

(Rodolfo dá um tapa forte na cara de Alana)

ALANA
Filho da puta. Seu escroto! (grita) Socorro!

RODOLFO
Não grita! Não grita! Eu mato você antes de alguém chegar aqui.

ALANA
Bosta.

RODOLFO
Quem mandou morar na puta que o pariu?

ALANA
O que você quer?

RODOLFO
Eu só quero sua mão dentro da minha calça.  Eu me contento com pouco. Não costumo ser exigente. Se tivesse me dado um beijo, eu teria ido embora feliz. Mas agora quero um carinho. De leve.

(Alana se aproxima secamente e enfia a mão dentro da calça de Rodolfo)

ALANA
Tá bom assim?

RODOLFO
Não seja fria. Mexa nele. (ela aperta) Não assim, caralho! Mexa direito, porra. (pausa) Nunca pegou num pau, meu?

ALANA
Não à força.

RODOLFO
É assim, ó. (ele enfia a mão dentro da calça dela)

ALANA
Para! Por favor!

RODOLFO
Fica quieta. Fica quieta! Assim, ó.

(Rodolfo consegue manter a mão em Alana; ela começa um choro contido; em algum segundo a massagem faz ela passar de um choro desconfortável para um leve prazer)



CENA III

(Ramiro entra segurando um guarda-chuva fechado; Rodolfo e Alana estão um com a mão dentro da calça do outro; eles, os três, se olham desconfortáveis; depois de um segundo de um silêncio um tanto cômico:)

RAMIRO
Perdão. Eu só...

ALANA
Me ajuda, moço!

RODOLFO
(fala baixo) Cale a boca. Eu sei onde você mora. Eu te mato antes de esse cara te ajudar. (alto) Amigo, dá pra nos dar uma licença?

RAMIRO
Está tudo bem?

RODOLFO
Ela é minha namorada. Tá bêbada. Estamos nos masturbando.

(silêncio)

RAMIRO
Ela não parece estar gostando.

RODOLFO
(desiste) Vaza daqui, filho da puta. Vaza. Cuida dos teus assuntos. Num tô fazendo maldade com a mina aqui, não.

RAMIRO
Onde você mora, menina?

RODOLFO
Caralho!

ALANA
Aqui em cima.

RAMIRO
Vai embora, então.

RODOLFO
Falei pra vazar, porra! Tu é surdo? Tu não me conhece, coroa. Vai cuidar da tua vida!

RAMIRO
Vai, moça.

(Alana tenta sair e Rodolfo a segura pelo braço)

RODOLFO
Mas que caralho! (tira um canivete de algum lugar) Vaza daqui, bosta! Eu furo você! Eu furo você, caralho! E mato a menina.

(Ramiro não se mexe)

RODOLFO
(grita alucinado) VAZA!

RAMIRO
Dá uma pegadinha aqui no meu pau, otário.

(clima; Alana aproveita e corre)

RODOLFO
O que?

ALANA
Filho da puta. (sai)

RODOLFO
O que você disse, seu bixa?

RAMIRO
Dá uma pegadinha aqui no meu pau, otário. (ele abre o guarda-chuva) Na cabeça.

RODOLFO
(aponta o canivete se aproximando confiante) Coroa, tu me faz perder uma gozada e ainda tira com a minha cara? É bagunça? (vai continuar uma ameaça) Tu não sabe...

RAMIRO
Segura! (joga o guarda chuva aberto para Rodolfo)

RODOLFO
(ele segura por reflexo) O que é isso, porra?

RAMIRO
Um guarda-chuva.

RODOLFO
Tá de sacanagem?

RAMIRO
Não. Eu tô te salvando.

RODOLFO
Da chuva, seu bosta?

RAMIRO
Da vida. Posso ler um trecho da bíblia pra você? Deus tem uma mensagem pra você.

RODOLFO
Ah, enfia essa bosta no...! (avança em Ramiro)

(um clarão forte atinge a ponta do guarda-chuva; Rodolfo é eletrocutado)

(black-out)




CENA IV

(Ramiro está sentado no terraço de um prédio; fuma um cigarro e observa a cidade; um clarão ao longe, ele fecha os olhos e conta; demora)

RAMIRO
Catorze Mississipi. (ri abobalhado; algo no ar chama a sua curiosidade, ele para e respira) Vai chover. (ri mais) Ai, que delícia. Eu amo isso! É ridículo, mas sim, é verdade. (ele ouve qualquer coisa lá embaixo) O que? O que você disse? (ri) Táxi! Táxi! Siga aquele carro! (gargalha alucinado) Cidade do caralho, eu amo você! Eu me amo! (alguém grita pra ele) Não calo! Não calo, não calo, não calo! Vai dormir você! (baixo) Não tenho tempo pra calar. Oitenta anos é pouca coisa. Não vai dar tempo de quase nada. (suspira e sente a brisa da noite) Ai, ai. Eu amo. Amo sim. (pega um livro de algum lugar, fecha os olhos e o abre escolhendo a página na sorte) Adoro essa parte. É muito premonitório. É bem sobre os dias de hoje. Sempre é sobre os dias de hoje. (recita) “Enquanto os mentirosos sobreviverem por suas mentiras, o coração pobre jamais conseguirá a graça de deus”. Jodí, capítulo nove, versículo treze. “Os mentirosos foram acordados pelo lado negro da terra, para que a demora da evolução fosse imensa. Bem aventurado aquele que recebe a mensagem verdadeira nos seus sonhos mais profundos e não se deixa abater pelo veneno da voz do homem.” Jodí, capítulo nove, versículo catorze. “Mas mesmo que a demora seja imensa, as experiências ruins da terra serão o aprendizado que deus tanto nos estima: a compreensão do sentido da vida”. Jodí, capítulo nove, versículo quinze. (pausa; conversa com as pessoas da cidade/plateia) Quando criança um livro importante nos é apresentado quase à força. Além de todas as outras teorias. E além, também, do que se filtra disso tudo com a hipocrisia do locutor principal. Você acorda vivo numa realidade maluca e as pessoas – não mais inteligentes por terem mais experiência – nos ensinam aquilo que acham correto. Aí você é um bebê e ouve besteiras de pais não preparados. E esses pais não preparados não devem se considerar culpados, oras! São todos vítimas de uma burrice geral. Um cópia do outro. Mas graças a deus, como toda coisa que foi copiada, não existe nada igualzinho ao outro. Então as cópias, assim como creio, vão tentando se entender um pouco mais que a original. Diferente do Xerox; o contrário de um Xerox! De um papel em branco, para uma folha totalmente preenchida da mais perfeita criação. E ocorrendo melhorias nos mais profundos detalhes, aos poucos. Por isso os jovens se cansam da caretice dos pais. Sim, pode existir uma porcentagem que regride, mas enquanto existir uma minoria que progride, estamos pensando. Costumo dizer que sou mais inteligente do que um jovem de vinte anos, por exemplo. Claro, eu tenho mais coisa para contar sobre as experiências da vida que tive. Com vinte e tantos anos a mais que esse jovem, obviamente eu tenho mais coisa na memória, consciente e inconsciente. Porém, é curioso pensar sobre como a agilidade e a descoberta do macro e micro tem influenciado na ciência hoje em dia. E aí com certeza esse cérebro do jovem de vinte anos tende a se adaptar com mais facilidade a esses novos meios. Então eu me pergunto: se fosse possível eu parar na idade que estou, com meus quarenta e oito anos, e eu conseguisse esperar esse jovem de vinte anos chegar na mesma idade que estou, será que o assunto entre esses dois velhos de quarenta e oito anos de épocas diferentes seriam igualmente inteligentes, ou igualmente burros, ou, assim como penso, o mais jovem se sobressairia cem vezes pois suas experiências estão correndo de acordo com o que o planeta tem exigido, e o planeta têm nos exigido e nos mostrado coisas absurdamente incríveis. Hoje temos um celular como coisa comum de dentro do bolso; há duzentos anos, isso era ficção das absurdas. E duzentos anos não é nada. (pausa; um raio; alguns segundos de silêncio e então um trovão) Está longe. Mas chegando. Perdoem-me a brisa forte. O vento bate e quando deus fala é uma coisa de louco. Ah, uma observação: a palavra deus, enquanto eu falar sobre ele, não se remete àquilo que vocês acreditam. Não se remete à alguém. Não se remete à uma história só. Não é o deus que vocês estão tentando achar que eu tô tentando dizer. Não é nada disso. É totalmente o contrário. O contrário, entende? (ele bate na cabeça um tanto maluco) Um puta de um contrário cheio de contradições. E é aí que tá o barato! (pausa débil) Vocês sabiam que a gente viaja no tempo o tempo inteiro? (um raio seguido rápido de um trovão forte e perto) Jesus! Chegou rápido demais! (pega um guarda-chuva e sai correndo)

(black-out)



CENA V

(a luz acende; Rodolfo e Alana estão com a mão um dentro da calça do outro; Ramiro entra; black-out; a luz acende e Rodolfo está caído no chão, logo após ser eletrocutado pelo raio)

RAMIRO
Em hora.

(Ramiro olha ao redor, coloca um saco na cabeça de Rodolfo e o carrega nos ombros)

RAMIRO
Não me julguem. Eu também sou vítima de um despreparo.

(sai)

(Surge uma sombra de uma mulher de joelhos chupando um homem)

(black-out)


CENA VI

(Rodolfo entra bem vestido e se posiciona ao centro; flashes de fotografias e perguntas de repórteres. Ele está em um púlpito numa coletiva de imprensa; Rodolfo faz gesto pedindo silêncio)

RODOLFO
Tenho ouvido uns comentários pela imprensa. De que um certo livro previu minha ascensão. (ri) Meus amigos, eu preciso que entendam que não tenho uma divina intenção. Não, eu não sou satanás. (ri com os repórteres) Não sou nada Anticristo. Curto bastante Jesus Cristo. Eles leram algo que se auto intitula premonitório, mas que é extremamente comum em todas as fases da evolução, que é o que? A ascensão de grandes homens. Perdoem-me a modéstia. E aí eles consideram todas as vezes que isso acontece como uma afronta a seu deus. Creio que este livro, que eles tanto defendem como única e perfeita verdade, já poderia ser desconsiderado e guardado como memória histórica – não com nostalgia, por favor, com alegria. Concordo que esse livro tem partes ótimas, além de ser um grande meio de se conhecer a história do mundo. Porém, sua melhor parte foi totalmente distorcida pela ideia do monoteísmo que ganhou muita força. Então vale a pena virar a página. Um homem super inteligente que só disse que seria legal se fôssemos legais uns com os outros foi crucificado com preconceitos e limites culturais de um deus finito. Todos nos lembramos da história. Porém de nada adiantou. Crucificaram o homem e crucificaram suas palavras depois. Sim, e continuam crucificando todos os dias. Principalmente os que mais falam em nome dele. E no fim das contas, de tanta babaquice falada em seu nome, sua crucificação virou coisa de careta. É verdade. Experimente chegar numa roda de jovens que estão bebendo em uma praça e pergunte pra eles se eles gostariam de ouvir a palavra de Cristo. Falar de Jesus virou caretice. E isso é uma pena. Não que Ele esteja nos julgando por crer ou não, mas é uma pena o desperdício de tanta movimentação na Terra por sua causa ter sido em vão. Depois de tudo, poucos entenderam. E os que entenderam tiveram o mesmo fim que o primeiro. (pausa) Nessa nova era devemos revisar as leis. Revisar os erros de interpretação. E revisar a cagada que fizeram em cima da grande ideia dos grandes mestres. O livro que estou lançando apresenta coisas importantíssimas para nossa geração. Mas já aviso no prefácio que essas páginas têm data de validade. Receio dizer essas palavras, mas acho necessário para a história que estamos fazendo. (com suspense) Eu estou lançando neste momento, escrito a partir de experiências e histórias de diversos homens (enfatiza) e mulheres ao redor do mundo, com – sem dúvida nenhuma – a verdadeira e única voz de deus, que está dentro de cada um desses seres não muito especiais; com revisão de grandes filósofos conhecidos pela área aleatoriamente escolhidos e com montagem – sem edição e nem corte – de minha pessoa; além do prefácio e observações de rodapés escritos por mim também, lhes apresento a Nova Bíblia.


CENA VII

(a luz acende e Rodolfo está amarrado em uma cadeira ao centro, ainda encapuzado e desmaiado; Alana fuma um cigarro e joga a fumaça pra dentro do capuz de Rodolfo; depois de um tempo ele acorda vagarosamente)

ALANA
Você tem religião? Por que tem “Jesus” tatuado nas costas? (silêncio) Não? Alô-ô? Você tem “Jesus” tatuado nas costas. E uma cruz na canela. O que significa? (silêncio) Fala alguma coisa, pô.

RODOLFO
Tira esse capuz.

ALANA
Desculpe a má educação. Não é culpa de ninguém. (retira o capuz)

RODOLFO
Você?

ALANA
Eu?

RODOLFO
Você também.

ALANA
Eu também o que?

RODOLFO
O que vocês querem?

ALANA
Nossa, se eu fosse falar tudo o que eu quero, você não teria tempo.

RODOLFO
Para de papo furado! Que merda aconteceu? Cadê aquele filho da puta? O guarda-chuva é uma arma, porra!

ALANA
Que nada. O mundo é uma arma.

RODOLFO
Dá pra falar o que é? Vocês planejaram isso tudo, né? Desde o bar. Quem são vocês? Eu sabia que você era uma puta das baixas! Tava na cara que era merda.

ALANA
Não fala assim, amor.

(Alana não se ofende; ela se diverte maliciosamente; Rodolfo tenta se soltar sem sucesso)

RODOLFO
O que você quer, garota?

ALANA
Nem lembra meu nome, não é? Eu sabia que não ia lembrar.

RODOLFO
Eu disse que não ia lembrar.

ALANA
Você troca duas garrafas de cerveja por uma buceta toda quinta à noite. É assim seu mundo, não é?

RODOLFO
É assim meu mundo. Uma delícia.

ALANA
E se eu te dissesse que a importância da sua existência é maior que isso?

RODOLFO
Pelo amor de deus, não me venha falar de deus.

ALANA
Não. Relaxe, esse já tá velho. É sobre um livro.

RODOLFO
(grita) O que você quer, caralho? Dá pra você me soltar dessa porra?

ALANA
Não dá. Só o Ramiro tem a chave.

RODOLFO
Ramiro? (ri) Aquele viado filho da puta. Me deu um puta de um choque.

ALANA
Não, não. Não foi isso...

RODOLFO
Você é putinha dele, é isso?

ALANA
Sou bem mais que putinha dele.

RODOLFO
Caralho, menina.

ALANA
Eu sou igual o mundo todo. Eu sou o que você quiser.  (ri)

RODOLFO
O que vocês querem, porra? Eu não tenho dinheiro. Eu sou um fudido. Reclamo de quarenta contos no bar se não for rolar um sexo depois.

ALANA
Sei bem. (ri)

RODOLFO
Caralho! Para com essa porra de encenação e me fala, merda!

ALANA
Quer que eu dê uma pegadinha do seu pau, lindão? (ri) Quer?

RODOLFO
Vocês são o que? Curtem umas experiências? Fetiches, é isso? Vocês são um casal desses doidos?

ALANA
Não. Mas sexo é uma coisa importante pra tudo que temos para aprender. Por isso tanto problema sobre o assunto. Em breve você...

RODOLFO
Tá bom, tá bom! Eu tô aqui preso. Pronto! Agora vai logo com essa porra. Vai matar mata, vai cortar corta. Chega de enrolação! Vocês querem se vingar porque eu fiz aquilo com você, não é? Vai logo então. Enfia um pau no meu cu e pronto.

ALANA
Não iria adiantar. (lixa as unhas)

RODOLFO
(quase chora de raiva) Pelo amor de deeeeus, menina!

ALANA
De quem? Desculpe, eu não ouvi.

RODOLFO
O que?

ALANA
O que o que, meu filho? Você que tá dizendo.

(silêncio)

RODOLFO
(sem ânimo) Pelo amor de deus.

ALANA
Ah, sim. (chama) Ramiro! Ramiro! Sinal número um!

(Ramiro entra pronto e sorridente)

RAMIRO
Rapaz! Que alegria!

RODOLFO
Alegria meu cu! Me fala que merda é essa! Me solta daqui!

RAMIRO
Finalmente está acontecendo. Fique calmo. Teremos tempo.

RODOLFO
O que está acontecendo?

RAMIRO
Você é grande homem, rapaz! Grande homem!

ALANA
Se deus quiser.

RODOLFO
Vocês estão de sacanagem comigo, né?

RAMIRO
Não agora. Mas será necessário, uma hora.

RODOLFO
Me solta!

RAMIRO
Rapaz, tenho tanto pra te contar. Eu te procurei a vida toda, moleque.

RODOLFO
O que é isso, cara? Tá maluco?

RAMIRO
Rodolfo José Assis. Nascido na Bolívia. Trazido para o Brasil bebê. Mãe, curiosamente chamada de Maria...

ALANA
Excitante!

RAMIRO
... coincidência bastante provável. Criador de ideologias estranhas e duvidosas a partir do uso do cânhamo para fins pseudo intelectuais, usando do fumo como ritual. Maconheiro mesmo. Base de caráter um tanto idiota descendência de um atrito com assuntos paternos. Pai ausente. Não que a falta do sexo masculino pudesse causar algum problema numa criação, mas a ideia da falta de um pai quando se insistia uma existência dessa figura fez com que essa criança desenvolvesse esse pequeno transtorno que quase arruinou com os planos. Você esteve nos planos desde que o mundo é mundo, porque tudo está acontecendo ao mesmo tempo!

RODOLFO
Quem foi que te contou tudo isso? Que brisa forte, maluco. Dá pra me soltar?

RAMIRO
Meu amigo, é muito mais que isso. É coisa pra caralho além de uma brisa forte. Eu tenho uma pergunta pra você. Uma pergunta. Você nunca se sentiu diferente dos outros?

RODOLFO
Diferente como?

ALANA
Responda a pergunta, idiota. Eu já não aguento mais esperar.

RODOLFO
Eu não sei nada dessa porra que vocês estão falando! Eu sou um fudido, caralho! Não tenho nada nessa merda. Agora me solta! Me solta!

(silêncio)

RAMIRO
Você está contaminado.

RODOLFO
O que?

ALANA
O que? Como assim?

RAMIRO
Contaminado.

ALANA
Ai, a gente não vai ter que matar ele também, né? Diga que não. Eu não aguento mais procurar essa bosta.

(silêncio)

RODOLFO
Calma, pessoal. Vamos conversar.

ALANA
Ramiro.

RAMIRO
Não sei.

ALANA
Eu não acredito! Eu não acredito!

RODOLFO
Calma, é... é... eu me lembro...

ALANA
Eu sabia! Tanto pra nada!

RAMIRO
Não me deixe mais nervoso, Alana.

ALANA
Que raiva! Desovar um corpo é uma coisa muito cansativa.

RODOLFO
Talvez eu tenha feito algumas coisas quando criança! Eu não sei.

(silêncio)

ALANA
Que tipo de coisas?

RODOLFO
Umas coisas.

ALANA
Que coisas, caralho?

RODOLFO
Uma vez eu limpei uma água suja. Uma vez.

RAMIRO
O que?

RODOLFO
Eu limpei uma água suja, eu acho.

ALANA
E transformou em vinho? Vamos ter que matar.

RODOLFO
Não! É sério.

ALANA
Imbecil, a coisa que estamos dizendo é coisa grande. Não minta pra gente, porque se descobrirmos mais tarde, a morte pode ser mais dolorida. Seria melhor morrer agora.

RODOLFO
Pelo amor de deus! Pelo amor de deus! Me deixem ir! Eu não conto pra ninguém! Eu não sou um cara do mal. Eu só curto buceta.

RAMIRO
Como assim “pelo amor de deus”? É literalmente que você diz?

ALANA
Não é ele, Ramiro! De novo! Não é ele!

RODOLFO
Eu limpei a água. Eu juro. Eu limpei uma água suja. E depois eu bebi e era boa.

ALANA
Essa não é a questão! Ramiro, você mesmo disse. Precisa ter um fio de senso já formado. A gente não pode fazer milagre! Esse cara só pensa com o pinto!

RAMIRO
Já estamos esperando muito. Há séculos. Um pouco de tara sexual talvez ajude. Acho que com esse podemos...

ALANA
Ra, por favor! E se não for só o problema sexual? E se tiver mais problemas e distúrbios?

RAMIRO
Podemos consertar. Pelo que sabemos teve coisas de positivo.

ALANA
(indignada) Um depósito de dez reais para o Teleton!

RAMIRO
Eu acho que há uma esperança.

ALANA
Pois eu acho que não! Tínhamos um acordo. Só quando os dois tiverem certeza.

RODOLFO
Vocês podem resumir o que diabos é tudo isso? Foi de coração.

ALANA
Não interessa! (para Ramiro) Traga a injeção. Eu aplico. (para Rodolfo) Não se preocupe. Será um sono profundo. Veja que coisa louca.

RODOLFO
(ele chora como uma menininha; muito nervoso) Não, não... Por favor. Eu estava brincando. Sou eu aqui, caralho. Sou eu aqui.

RAMIRO
Você? Você o que?

RODOLFO
Oi?

RAMIRO
Oi. Você. Você disse que é você.

RODOLFO
O que...

RAMIRO
Você acabou de dizer: sou eu aqui, caralho!

ALANA
O que?

RAMIRO
Ele acabou de dizer. “Eu estava brincando. Sou eu aqui, caralho. Sou eu aqui” Ele já sabe, Alana. Eu disse que não teríamos problemas. Finalmente! (gargalha abobalhado)

ALANA
(preocupada) Não é ele, Ramiro! Não é ele. Não viaja! Não é ele... Ele estava dizendo que...

RAMIRO
É ele sim. Ele disse. Eu sei que é. Resposta espontânea, Alana. Resposta “dele”.

ALANA
Ai, meu deus!

RAMIRO
Amigo, você se lembra? Você estava falando e aí chorou que nem uma menininha e disse: “Sou eu aqui, caralho. Sou eu aqui”. Você disse, lembra? Você já sabe, não é? Já sabe o que tem que fazer, não é? A atividade do seu cérebro – que obviamente tem algumas porcentagens a mais que a minha, por exemplo – já vieram pré-moldadas junto com a evolução do homem, não é? Sua genética já é feita do novo mundo, não? Foi sempre assim. Com os grandes mestres. Eles eram grandes homens fisicamente. Da mesma forma que grandes maníacos assassinos são grandes homens fisicamente. Que grandes defensores da paz possam curar uns aos outros pela fé. E que grandes destruidores possam matar milhões em nome da fé. Existem seres humanos especiais e grandes. E não de altura, de concepção.  Jesus aceitou uma missão que falou em sua cabeça. Não creio que antes de ser homem, ele estava ao lado de deus assistindo os dinossauros e tudo o mais. Jesus foi um homem que olhou pro céu e pras estrelas e ouviu o que sua cabeça dizia. Talvez a gravidez do espírito santo para com Maria fosse mais uma das possibilidades de histórias do universo, e não algo premeditado. Homens sonharam com um profeta, eu sei. Talvez porque todos temos a necessidade de esperar por um salvador de nossas dores. Imagine ainda naquela época! Desculpe, eu não creio que Jesus me ama. Ele não me ama hoje. Creio que ele me amou. Existe uma teoria que diz que quando um homem descobrir exatamente para que nasceu, para que vive e para que morrerá, este ser deverá desaparecer pelo vácuo, porque seu conhecimento o transforma no tudo. O leva de volta pra deus. (pausa) Jesus veio para nos mostrar a mágica do poder da fé, e a mágica da contaminação de energias e dos milagres misteriosos dela, do quanto temos nas mãos a escolha de sermos todos – eu disse todos – homens que viverão num inferno criado por nós mesmos, e propagando esse inferno – que já é comum e suportável – pelos séculos e séculos que virão. Ou então podíamos muito bem começar a tentar deixar um planeta para nossas próprias cópias humanas das gerações seguintes, um lugar de paz e harmonia sem preocupação e sem competição; o conhecido paraíso. E que venha bondade e paz, lógico! A força deste lado gera melhorias para o mundo todo e melhorias para deus também. Meu amigo, me diga: você já se sentiu alguma coisa diferente?

RODOLFO
Alguma coisa diferente?

RAMIRO
Isso! Isso! Você sabe de alguma coisa diferente, não sabe?

(silêncio)

RODOLFO
Pode ser, eu acho.

ALANA
Menino, cale essa boca. Você não tem noção do que...!

RAMIRO
Alana!

RODOLFO
Talvez eu tenha me sentido especial em alguns momentos.

ALANA
Eu mandei você calar a boca!

RAMIRO
Alana!

RODOLFO
A história da água é ridícula, eu sei, mas é verdade. (pausa) Quando eu era criança eu não gostava de ficar no escuro. Eu sei que é besta e comum, mas eu me sentia próximo e longe de alguma coisa quando estava no escuro. Entende? Bem, eu estava no escuro e eu não era mais eu. Entenderam? Aceitei isso como medo. Coisa de louco, eu sei. Não consigo explicar. Era como se eu não existisse e não sentisse nada. Ninguém acreditava em mim, aí eu chorava e acendiam a luz.

(silêncio)

ALANA
Não é ele.

RODOLFO
Me deixem tentar! É ele quem? Eu tento! Por favor, não me matem.

RAMIRO
Calma.

ALANA
Não é ele, Ramiro.

RAMIRO
Não é. Mas os outros também não eram. Nem Jesus era.

ALANA
Eu sei. Mas todos eles tinham propósitos.

RAMIRO
Nós temos o propósito. Ele tem o corpo.

(silêncio)

RODOLFO
Quem diabos vocês estão procurando? O que é tudo isso?

ALANA
Não interessa pra você! É muito pra sua cabecinha regredida!

RAMIRO
Um novo homem. Estamos procurando um novo homem. Não eu, nem ela. Muitos. Há alguns séculos já se procura esse novo homem. Nossos avós fizeram um grande trabalho de conservação da real palavra. Surgiram alguns. Grandes, mas não tão convincentes. Procuramos outro homem que substitua o velho.

RODOLFO
Calma...

ALANA
Um novo messias. Um novo Cristo. Um novo Jesus. Buda. Seja lá o nome que você queira dar.

RAMIRO
Trabalhamos com publicidade. Eu tenho uma agência.

ALANA
Somos sócios. Eu tô estagiando, na verdade.

RAMIRO
Queremos lançar a verdadeira ideia para o mundo. Usando dos meios de hoje.

ALANA
E ele espera que seja você esse cara pra fazer isso.  

(black-out)

(sombras de um homem sendo chupado por outro)



CENA VIII

(a luz acende; em um bar numa esquina Alana está fumando um cigarro vestindo uma saia curta)

ALANA
(conversa com um homem; um tanto sensual) Oi? Sim. Patrícia. Você quem sabe. Quanto acha que é? Quanto? (ri) Tudo isso, é? Muito o caramba. Pouco, isso sim. Bem pouco. Vamos fazer o seguinte, você responde a uma charada que eu vou te dar e aí tá tudo liberado. Hoje eu tô boazinha. Tudo liberado, ué. Liberada. É, bonitão, uma pergunta simples. Quer? Pode ser? (pausa) Legal. Lá vai, então. “Quantos caminhos um homem deve percorrer?”. É isso. (pausa) É isso, ué! “Quantos caminhos um homem deve percorrer?”, é isso. “Quantos caminhos um homem deve percorrer?”. Não. Não. Não, não, não. Não nesse sentido, mais no sentido de “quantos caminhos” literalmente, entende? Literalmente, literalmente, oras. (algo faz com que ela se ofenda com o que o homem diz) Entendi. Nossa. Tudo bem, então. Quanto é? Bom, se tivesse acertado a pergunta – que seria: “a resposta está soprada nos ventos” – o serviço completo sairia por oitenta. Isso é uma pergunta de um livro que um idiota me entregou. Tenho me encafifado muito com isso. Mesmo eu não sendo homem, acredito que a frase fala de mulheres também. (ri burra) “Quantos caminhos um homem deve percorrer?” A resposta é a que o livro já dá. Bob, capítulo trinta e sete, versículo cento e dez. “A resposta está soprada nos ventos”. Ou seja, a bosta do livro não respondeu nada. Jogou a responsabilidade na mão do coitado do vento. Quem diabos é Bob? (ri; longa pausa; por alguns segundos Alana fecha os olhos numa piração) Quem diabos eu sou? (pausa; mecanicamente) Eu faço programa pra pagar minha faculdade de publicidade e propaganda. (volta rápido da brisa; para o homem) Mas como você errou, faço por noventa. (pausa) Sim, sou mesmo uma puta bacana. (dá uma piscadinha)

(black-out)

(outra vez a sombra de um homem sendo chupado por outro; a sombra de uma mulher entra, se aproxima, se agacha e, então os dois juntos chupam o terceiro homem; logo, o homem que está chupando se levanta e apenas observa o sexo oral que segue por um tempo longo)

(a luz acende novamente e Alana acaba de sair do carro; se despede sorridente para o motorista limpando o canto dos lábios)

ALANA
Tchau, nojento. Perdoem-me os homens, mas eu os odeio. (cospe no chão) Tenho nojo de testosterona. Eu daria pra uma boa sapatão. (ri) “A resposta está soprada no vento”. Sim, senhor. Bem que está. Bem que está.

(Alana reflete sobre coisas que a incomodam; então, o riso se torna uma cena depressiva; ela surta em silêncio, apenas com suor e olhares; de repente, acorda consciente)

ALANA
(para a plateia, um tanto didática) Mas o que diabos sexo têm a ver com tudo isso?

(Ramiro entra gargalhando)

RAMIRO
Essa é a mais fácil de todas! (gargalha debochando de Alana) Burrinha, querida. Bem burrinha. Você é muito burrinha pra querer reclamar de algo, menina. Não devia ter o direito de perguntar nada! Tira essa carinha de bunda que você tá e bora pra vida! Bora, bora!

ALANA
É só bunda, saco e pinto que eu tenho na minha vida. Minha cara está se camuflando.

RAMIRO
É só bunda, saco, pinto e piriquita que todo mundo tem na vida toda, minha linda. Não se sinta mais especial. Você não é nenhum pouco mais especial que ninguém.

ALANA
Não, definitivamente eu não estava me sentindo especial.  Eu estava falando de lixo mesmo.

RAMIRO
Ora, cale a boca. Cale essa sua boca.

(silêncio)

ALANA
Desculpe.

RAMIRO
O que sexo tem a ver com isso? É isso que você quer saber?

ALANA
Sim. O que é? Por que é tão assim? Por que tudo é tão baixo, tudo tão chulo e triste?

RAMIRO
Triste? Não invente isso! Pelo amor de deus!

ALANA
É triste sim. Talvez eu entenda o que a tal da bíblia queria dizer sobre casamento casto. Talvez se nos guardássemos somente pra uma pessoa, não seria tão difícil de não nos contentar depois. Não teríamos com o que comparar, e nem iríamos nos lembrar de amores passados, e nem de pintos passados, ou de flertes bacanas no metrô. Pois de amor – teoricamente – só teria acontecido um.

RAMIRO
Você falou um monte de merda. A cagada tá nesse negócio de todo mundo querer amar só uma pessoa num mundo com milhões e milhões! (imita) “Eu me limito a querer falar e ter intimidades somente com amigos e família! Eu me limito a ser um retardado limitado!”. Foi o homem idiota que inventou que casais devem ser constituídos de duas pessoas. O amor se tornou egoísmo hoje, sabe. Você prende a outra pessoa pra você e não quer que ela tenha outras experiências além. O amor devia ser de outro jeito. Eu gosto de imaginar um bosque, cheio de gente bacana e bonita e limpa. E aí nesse bosque, com essas pessoas brilhantes – um tanto gnomísticas, eu imagino – os dias se seguem de farturas e todo mundo se apalpando e se beijando e dormindo abraçados uns aos outros. E aí não existe o pudor do “pega no meu pau”, porque o pegar no meu pau seria como pegar na minha mão.

(silêncio)

RAMIRO
Entende?

(Alana, curiosa, pega no pau de Ramiro)

RAMIRO
Opa!

ALANA
Não. Não é a mesma coisa.

RAMIRO
Sim. Eu sei. Eu fiz uma suposição do que eu imagino para um mundo perfeito, só isso.

ALANA
Todo mundo um pegando no pau do outro?

RAMIRO
Não, caralho! Caramba, mas que difícil! Por isso que as mulheres foram excluídas das grandes histórias.

ALANA
É nada. Seu escroto! Tem Dalila, imbecil. Madalena.

RAMIRO
A primeira foi apresentada a todos como uma filha da puta, e a outra como puta mesmo e esquecida ainda, coitada.

ALANA
E qual o problema de ser filha da puta ou de ser puta esquecida? Qual o problema? Qual o problema? Não tem nada de coitada, não! Odeio que sintam pena.

RAMIRO
É isso, menina! Isso que eu quero dizer! Não tem problema nenhum, oras! Nenhum! Tente usar mais o sentimento e menos a razão. Não existe problema nenhum!

(silêncio)

ALANA
Nenhum, nenhum?

RAMIRO
Não. Lógico que tem os problemas de doenças transmissíveis e tal. Mas de resto, tudo tranquilo, caramba!

ALANA
Nem todos pensam assim.

RAMIRO
Exatamente. É essa nossa missão.

ALANA
O que?

RAMIRO
Você leu todo o livro que eu te dei?

ALANA
Todo não. Fui abrindo na sorte.

RAMIRO
Leia tudo. É importante.

ALANA
Mas, caralho, Ramiro. Ele me joga uma pergunta e depois diz que a resposta está no vento. Que tipo de livro de auto ajuda é esse?

RAMIRO
(para por alguns segundos e a ordena a fazer silêncio e ouvir) São três Rs. Relaxe e receba a resposta. Relaxe e receba a resposta, Alana. Lembre-se. É mais fácil do que parece e bem mais divertido do que nos ensinaram. Repita. Relaxe e receba a resposta.

ALANA
Relaxe e receba a resposta.

RAMIRO
Exato! Até! (ele sai subitamente) Leia o livro inteirinho!

(Alana sozinha, olha para os lados e decide acender um cigarro; ela fuma distraída por alguns segundos; ela tenta refletir mas logo desiste; por um tempo ela não faz exatamente nada; de repente algo na fumaça a interessa; ela se interessa mais e mais com a fumaça que sai da ponta do cigarro; o palco é tomado por uma fumaça branca; Alana brinca debilmente entre desenhos e sombras projetadas na fumaça; vê se imagens de sexo, de paisagens naturais, de bebês, de idosos, de guerras, de Cristo, etc. Por fim, extasiada, Alana compreende coisas que não sabia; ela agradece sinceramente:)

ALANA
Ah, Deus, caralho! É você, meu amigo! Somos nós!

(black-out)



CENA IX

(a luz acende; Rodolfo ainda está amarrado, mas em uma posição mais confortável; Alana lê em um canto; Ramiro entra com uma bandeja com xícaras)

RODOLFO
Quanto tempo eu vou ter que ficar aqui?

RAMIRO
Beba. (entrega uma xícara para ele)

RODOLFO
O que é isso?

RAMIRO
Beba. Você vai se sentir melhor.

RODOLFO
Cara, já amanheceu. Eu tenho coisas pra fazer, meu. Vamos combinar de continuar com isso mais tarde. Eu juro que eu venho. Eu juro.

(Alana ri baixo)

RAMIRO
Você não entendeu. Beba logo.

(Rodolfo bebe; quase no mesmo instante deixa a xícara cair no chão e se contorce alucinado; a viagem de Rodolfo pode ser parecida como se estivesse sob os efeitos da erva salvia divinorum – ver vídeos; ele balbucia com os olhos tortos, numa mescla de engraçado com assustador)

RODOLFO
Nossa... quem?... nossa... uh! Nossa... (ri estranho)

RAMIRO
Aberto, Alana.

RODOLFO
Nossa! Uh!

ALANA
Onde?

RAMIRO
Na perna.

(Alana tira uma faca de algum lugar e enfia na perna de Rodolfo)

(black-out)

(surge a sombra de uma mulher de quatro; um homem a masturba com a ponta de uma faca)


CENA X

(Rodolfo está nu e sozinho no palco; ele está alucinado)

(Alana e Ramiro entram, também nus, e abraçam Rodolfo; Alana na frente e Ramiro por trás; Rodolfo não reage)

(eles transam os corpos; eles se lambem; Rodolfo não reage)

(Alana e Ramiro fazem um corte nas mãos e passam o sangue pelo corpo de Rodolfo)

RODOLFO
(em transe) Isso que vocês fazem, é satânico?

ALANA
Cale a boca!

(eles continuam o ritual; Ramiro faz Rodolfo se abaixar; e o penetra)

RODOLFO
(grogue) Vocês não estão falando de deus, estão? Soa meio sujo falar isso agora.

RAMIRO
Chiu. Fica quietinho, fica.

(Ramiro continua a meter)

RODOLFO
O que você tá fazendo aí?

RAMIRO
Te purificando.

RODOLFO
Dói, um pouco.

RAMIRO
Relaxe.

(Ramiro apressa as metidas com força; Alana inicia um cântico de vogais)

RODOLFO
Gozo?

RAMIRO
Goze.

RODOLFO
Goze.

RAMIRO
Calma.

(ele mete mais um pouco e goza; Rodolfo continua alucinado e mole; Ramiro e Alana colocam ele sentado)

RAMIRO
Rodolfo, isso foi um presente que estamos te dando. A natureza já preparou tudinho. Tudinho, tudinho. O sexo é importante, Alana, porque trocamos energia com ele. Já deve saber o que foi que eu passei pra ele, não sabe?

RODOLFO
Tava sem camisinha, essa porra?

ALANA
Sei. Eu entendo, Ramiro. Faz todo sentido.

RAMIRO
Agora me dê um pouco de pimenta.

ALANA
(tira de uma sacola) Aqui. (entrega pra Ramiro)

RAMIRO
(põe no nariz de Rodolfo um pouquinho do pó) Cheire.

(Rodolfo espirra forte)

(as luzes piscam; um carro ao longe dispara o alarme)

ALANA
Incrível.

RAMIRO
Agora é sua vez, Alana. Ensine o que você sabe.

ALANA
Sim. (ela se aproxima sensualmente de Rodolfo)

RODOLFO
(ri mole e malicioso) Ufa. Pelo menos isso.

(Ramiro o coloca em pé novamente e o abaixa como da primeira vez, de costas para Alana)

(Alana retira um gel da sacola e passa em uma das mãos até o cotovelo)

(por fim, ela passa um pouco do gel no cu de Rodolfo; e enfia a mão dentro dele)

(black-out)


CENA XI

(as luzes acendem e Alana está enxugando a mão; Ramiro coloca Rodolfo sentado na cadeira e o encapuza novamente; eles preparam uma cena; Alana se ajoelha e Ramiro saca um revólver; ele aponta pra cabeça de Alana)

(eles esperam por alguns segundos até que Rodolfo acorda)

RODOLFO
Ai, meu deus!

ALANA
(interpreta) Por favor! Pelo amor de deus, não faz isso, Ramiro!

RAMIRO
Traidora! Biscate!

ALANA
Não, pelo amor de deus!

(Ramiro atira para o alto)

ALANA
Ah!

RODOLFO
(chora) Pelo amor de deus! O que é isso? O que tá acontecendo?

(Ramiro tira o capuz da cara dele)

RAMIRO
Ela nos traiu, Rodolfo.

ALANA
Não.

RAMIRO
Ela está envolvida com a organização que nos caça.

ALANA
É mentira!

RAMIRO
Cale a boca!

RAMIRO
Traidor bom é traidor morto.

RODOLFO
Não precisa matar ela, cara.

RAMIRO
Precisa sim! Ela quase ferrou com meu plano.

RODOLFO
Calma, tem outro jeito...

(Ramiro atira de novo)

ALANA
Ah!

RODOLFO
Calma, porra! Pelo amor de deus, cara!

(ele atira mais algumas vezes; Rodolfo e Alana se encolhem)

RODOLFO
Tenho mais duas balas.

(Ramiro aponta decidido pra cabeça de Alana)

RAMIRO
Alana, eu vou atirar.

ALANA
(séria) Ramiro...

RAMIRO
Só assim.

RODOLFO
Por favor...

ALANA
(verdadeiramente assustada) Ramiro, pense bem... E se deu errado?

RAMIRO
Temos que assumir o risco. Eu vou atirar.

ALANA
Ramiro! Por favor!

RAMIRO
Vai dar tudo certo. Feche os olhos.

ALANA
Ramiro! Pare! É sério! Pare! E se não deu certo, Ramiro? Você vai me matar!

RAMIRO
(grita) Temos que tentar!

ALANA
Ramiro!

(silêncio)

RAMIRO
Temos que tentar.

(ele atira)

(as luzes piscam)

(Ramiro cai morto no chão; Alana e Rodolfo permanecem encolhidos em silêncio; aos poucos eles tomam consciência)

ALANA
Você conseguiu, seu filho da mãe.

RODOLFO
O que?

ALANA
Foi você quem desviou a bala.

RODOLFO
O que?

ALANA
Ele ia me matar e você desviou a bala. Ele esperava que você desviasse a bala pra outro lugar.

RODOLFO
Me solta daqui.

(Alana solta Rodolfo)

ALANA
Nós conseguimos, Rodolfo. Agora você pode fazer tudo. Nós tínhamos o propósito e você o corpo. Seu corpo será utilizado pra pregar a grande verdade. E com seus poderes prova-las. Finalmente as pessoas terão alguém pra seguir como exemplo de novo. (ela retira um livro da sacola) Tudo o que você precisa saber sobre a verdade está aqui escrita nesse livro. Você vai saber usufruir dos seus novos dons, Rodolfo. E aí poderemos lançar a Nova Bíblia, finalmente! E mudar o rumo da nossa história no planeta, Rodolfo.

RODOLFO
Por que diabos não podia ser um de vocês?

ALANA
O que?

RODOLFO
Se foram vocês quem me deram esses poderes, porque não foram lá e se tornaram o Novo Cristo vocês?

ALANA
Tem que ser um homem. E tem que ser um homem jovem. Nós que fazemos publicidade percebemos isso com o tempo. Não adianta regredir, deve sempre atingir a juventude.

RODOLFO
Que babaquice.

(silêncio)

RODOLFO
Escuta, vocês não pensaram em nenhum momento que eu não iria gostar de ser o Novo Cristo?

ALANA
Você não tem escolha, é o seu destino.

RODOLFO
Meu destino o cacete! Eu tenho escolha.

(ele pega o revolver e aponta pra própria cabeça)

ALANA
Não faça isso.

RODOLFO
Por que? Se esse lance todo fosse realmente verdade a coisa tinha que acontecer naturalmente. Eu teria que descobrir essa fita sozinho.

ALANA
Nós te demos um presente, Rodolfo! Isso é sério! Foram anos e anos de estudo sobre o micro e sobre o macro pra chegarmos à magia completa!

RODOLFO
Eu quero que se dane esse papo todo! Puta idiotice!

ALANA
Não é idiotice. Você viu!

RODOLFO
Eu vou atirar.

ALANA
Por favor!

RODOLFO
Eu não quero esse peso nas minhas costas.

ALANA
Rodolfo...

(ele atira)

(black-out pouco depois de ver que é Alana quem cai)


CENA XII

RODOLFO
(fuma encostado em um muro) Os sons lá de longe chegam até aqui. Demoram um pouco mais do que a iluminação, mas sempre chegam. (um raio) Enquanto for possível ouvir aquele específico barulho de sirene da ambulância que ajuda na remoção de uma vítima de um acidente duas quadras acima de sua casa, e você puder relatar que esse barulho existe, partículas estarão rebatendo em seus ouvidos. (um trovão) Nove Mississipi.

(silêncio)

RODOLFO
Eu sou o Superman.

(em vídeo, vemos Rodolfo curtindo a vida adoidado; ele bebe, fuma, mete, bebe, mete, etc; Paparazzis e fotógrafos o flagram em situações constrangedoras e polêmicas; fotos com a Nova Bíblia, e fotos com bucetas de verdade)




FIM




O BURACO (2012)

O BURACO

PERSONAGENS
Lúcio
Tíbio
Alípio

Os três personagens apresentam-se com poses; fotografias. Tudo um tanto tosco e canastrão. Eles recitam sem ânimo.

TODOS
Como começar?
(pigarro)
“Ter um dia mais feliz
Só um dia mais feliz
Bem feliz e bem feliz
Nunca mais vou ser feliz

Só um dia ser feliz
Um feliz que é só feliz
Tão feliz, assim que eu fiz, feliz
Sou feliz, feliz eu sou

Sou feliz, feliz eu sou
Ser feliz, eu tento, eu vou
Nunca mais serei feliz
Quando o mundo já descobrir que a fita é bem mais pra baixo nessa porra louquice que é essa merda de conceitos ridículos. Todos os problemas que existe nesse planeta curioso vem de um conceito mal cagado.

(inicia-se um jogral mal formulado; um formal forçado)

LÚCIO
Essa história não vai ser a das mais simples de entender/Não vai ser feliz assim, não vai dar pra se render/ Nunca lágrima preparar; e nem lástima estimar-nos irá/Penso apenas em contar o que deve duvidar/ Não adiante uma póstuma presença imaginária.

TÍBIO
Não iremos alegrar com músicas dessa vez, nem criar ilusões teatrais/O que simplesmente acontece, é o que simplesmente deveria acontecer/ Não existe enganar/O que é, é/O que não é... palmas para isso (ele aplaude e força a plateia a acompanha-lo)

LÚCIO
Não chore, não ria, não tussa.

ALÍPIO
Desligue os celulares e atenção aos extintores/ Se pegar fogo, conseguimos atingir o ponto/ Dá medo de pensar que a coisa vire uma geladeira mais uma vez.

LÚCIO
Por favor, não fique de bobeira/ Vamos contar até cem. (ele conta)

ALÍPIO
Oh, vida dependente de aplausos. Oh, vida masturbante!

TÍBIO
E nem pense que agora somos reis/ Que eu me destaco/ Simples demais, tudo junto é nosso jogo/ É pobre... psicólogos... não existe nada.

ALÍPIO
Tente distanciar-nos/ E aproximarmos/Mas essa parede existe sim, porra!/Eu confirmo.

TÍBIO
Eu juro, juríssimo!

ALÍPIO
Às vezes.

LÚCIO
Eu odeio poesia.

ALÍPIO
Às vezes.

LÚCIO
Odeio o intelectual careta.

(eles se olham e riem por alguns segundos)

(silêncio; longo silêncio)

(Lúcio observa algo no céu; os outros continuam distraídos com nada)

LÚCIO
Que merda é aquela?

ALÍPIO
O que?

LÚCIO
Olhem pra cima! Meu deus!

ALÍPIO e TÍBIO
Pra cima?

LÚCIO
Tão vendo?

ALÍPIO
Caramba, o que é aquilo?

TÍBIO
Onde, gente?

ALÍPIO
Ali, ó. Meu deus.

LÚCIO
Meu deus.

ALÍPIO
Cacete!

LÚCIO
Cacete! Meu deus!

TÍBIO
Não tô vendo. Por que só eu não vejo?

LÚCIO
Ali, Tíbio! Tá cego?

ALÍPIO
Vê?

TÍBIO
Não. Ah, agora eu vejo. Meu deus. Tá caindo?

ALÍPIO
Tá descendo, parece.

LÚCIO
Descendo? É gente?

ALÍPIO
Quem sabe?

TÍBIO
Meu deus. Não tinha pensado nessa possibilidade.

LÚCIO
De ser gente?

TÍBIO
De que algo pudesse descer. Pior ainda se for gente!

ALÍPIO
Preferiria uma queda?

TÍBIO
Como é que é?

LÚCIO
Prefere que estivesse caindo? O bagulho.

TÍBIO
Eu preferiria que não estivesse se aproximando. Dá um medo, não dá? Não dá, gente?

ALÍPIO
Medo?

TÍBIO
Medo. Medo pra caralho.

ALÍPIO
Explique-se melhor.

(pausa)

TÍBIO
Como assim “explique-se melhor”?

LÚCIO
Nós não entendemos, entende? A equivalência dessa palavra.

TÍBIO
Ora, vocês não sabem o que é medo?

ALÍPIO
Claro que sim, tonto. Todo mundo sabe.

TÍBIO
Então.

LÚCIO
Na teoria.

ALÍPIO
Explique-se direito.

TÍBIO
Caramba.

LÚCIO
É. Uma explicação direita.

TÍBIO
Bom, eu estava querendo dizer que... que... (pausa) Bom, medo é quando... quando é quando...

ALÍPIO
Vai, cara.

TÍBIO
Medo é tipo um sentimento, entendem?

ALÍPIO
(óbvio) Ah, vá!

TÍBIO
Caramba, cara. Eu tô tentando. É quando a gente se sente incomodado com algo.

LÚCIO
Mas incomodado por que?

TÍBIO
Porque você provavelmente vai estar com medo dessa tal coisa.

ALÍPIO
Aí é que está, cara!

LÚCIO
O que?

ALÍPIO
Eu quero saber ao pé-da-letra, otário!

TÍBIO
Depois a gente vê num dicionário. Agora deixa eu.

LÚCIO
De novo, meu?

ALÍPIO
Ramelão.

TÍBIO
Não sou, não!

LÚCIO
Por que é que começamos com poesia toda santa vez?

TÍBIO
Como é que é?

LÚCIO
Poesia. Toda vez que começamos essa porcaria começamos com rima.

ALÍPIO
Dá uma cara de inteligente.

TÍBIO
Meu, você mudou totalmente o assunto.

ALÍPIO
E o bagulho ainda está caindo.

LÚCIO
Nem fale. Meu deus, eu cago de medo.

(Lúcio e Tíbio se olham)

TÍBIO
Entende agora? Medo é foda, cara. Você entendeu o que eu queria dizer? (procura) Cadê o dicionário? Agora vale a pena discutir.

LÚCIO
Sim. Talvez seja a primeira vez, né?

ALÍPIO
A primeira vez de que?

LÚCIO
De que nós dois nos entendemos?

ALÍPIO
Nós dois?

LÚCIO
Não. Nós dois.

TÍBIO
Vocês vão querer que eu continue com a explicação?

LÚCIO
Eu tô de boa. Já consigo senti-lo. No necessito de mas.

TÍBIO
Talvez ele necessita. Já sente medo, Alípio?

ALÍPIO
Ainda não. Espere um pouco.

(Tíbio continua a procurar a palavra; Alípio observa o objeto que se aproxima do alto; Lúcio acompanha um pouco das outras ações; os três regem algum barulho com o roçar das roupas, com o barulho da língua, com as páginas do dicionário, com a respiração)

ALÍPIO
Caramba. Talvez eu seja um corajoso sem fim.

LÚCIO
Hã?

ALÍPIO
Nada, nada me dá medo. Sou corajoso sem fim.

LÚCIO
Não ria, ria tão cedo. Explique direito pra mim. (à parte) Rima. Bosta.

ALÍPIO
Não sinto esse medo. Não sinto. Eu sou uma hiena.

TÍBIO
Como não? Olhe pra cima! Tá chegando mais perto! Não sabemos o que é. Pode ser qualquer merda de qualquer coisa. (continua a procura)

LÚCIO
Tá caindo, não tá descendo. Tá caindo, gente! Tá caindo! É um meteoro!

ALÍPIO
Caindo?

LÚCIO
É. Não é uma nave.

ALÍPIO
(treme) Cacete.

(silêncio; Lúcio e Tíbio olham para Alípio)

LÚCIO
Agora sim! Agora sim!

TÍBIO
Agora sim o que?

LÚCIO
Foi medo, não foi?

ALÍPIO
O que?

LÚCIO
Foi medo essa sua última expressão?

ALÍPIO
Eu não tô entendendo.

TÍBIO
Ele tá perguntando se o “cacete” que você disse foi tipo uma expressão de medo. Qual era mesmo a palavra que eu tava procurando?

ALÍPIO
Medo. Espere um pouco. (ele pensa) Medo. Caramba. O difícil de tudo isso é unir o nome ao sentimento, entende?

LÚCIO
Como assim? Explique-se melhor. Gostei desse assunto.

TÍBIO
Calma. Eu não entendi.

LÚCIO
Ele vai explicar.

TÍBIO
Mas eu não entendi nada. Nem o começo.

ALÍPIO
Deixe quieto. Não vou ter cu pra conseguir desenvolver.

LÚCIO
Puta que o pariu. (declama canastrão) Me diz o que sentiu! Vai me deixar morrendo de sede? Os mistérios do azul anil. Não me prenda contra a parede. Tinha que ser no Brasil!

(silêncio)

LÚCIO
Caralho.

TÍBIO
Bebe água, cara.

LÚCIO
Você não entendeu. Vocês nunca entendem! É tão difícil de me entender? É tão difícil compreender? É tão difícil entender metáforas?

TÍBIO e ALÍPIO
(óbvios) É!

LÚCIO
É? Tanto?

ALÍPIO
Puta, tu não faz ideia.

TÍBIO
Pode crer.

LÚCIO
E agora, merda? Como é que seremos compreendidos pela classe mais importantemente destacada no crânio universal se não usarmos de metáforas?

TÍBIO
Como é que a galera toda vai se ligar que fita que tá acontecendo, se usarmos de metáforas?

(silêncio)

ALÍPIO
Agora deu medo.

LÚCIO
Puta que pariu! Você tem razão.

TÍBIO
Essa palavra é do caralho.

ALÍPIO
Meu deus.

TÍBIO
Achei!

LÚCIO
Vejam! Vejam! Está perto.

(todos olham para cima)

TÍBIO
Definitivamente. Está caindo.

ALÍPIO
É agora.

LÚCIO
É agora.

TÍBIO
Definitivamente. É agora.

(a coisa cai bem ao centro dos três; eles acompanham com o olhar; quase caem para trás)

(barulho; longo silêncio; os três estão assustados e curiosos)

ALÍPIO
Caramba. Fez um buraco.

LÚCIO
Que buracão, meu deus.

TÍBIO
Definitivamente. Um buraco grande.

(silêncio; eles observam o buraco de vários ângulos; ninguém tem coragem de tocar o buraco)

ALÍPIO
É fundo?

LÚCIO
Parece. (grita) Alô?

TÍBIO
(faz o eco) Alô, alô?

(Alípio e Lúcio olham para Tíbio sem entender)

ALÍPIO
(no buraco) Ei!

TÍBIO
Ei, ei!

LÚCIO
O que foi, cara?

TÍBIO
O que foi o que?

ALÍPIO
Por que tá repetindo o que a gente fala?

TÍBIO
Não era pra fazer efeito de eco?

ALÍPIO
Para de ser besta, cara. Você não entende? Não consegue compreender? Não consegue usar o cérebro que pai nosso que estais no céu te deu? A história começou. Um conflito já se estabeleceu. Temos que descobrir que merda é essa!

LÚCIO
Eu não quero descobrir coisa nenhuma! Eu não sou idiota! (vai sair)

TÍBIO
Calma, cara.

LÚCIO
Meu, essa coisa caiu do céu! Eu não quero tentar descobrir. Quem tenta descobrir morre primeiro. (vai sair)

TÍBIO
Calma, cara. Relaxa aí.

ALÍPIO
Pode ser a grande descoberta do século. Depois das redes sociais.

TÍBIO
Ou depois de Jesus, cara. Da tecnologia 3D, da câmera digital. Lembra? Já percebeu que a época que fez a transação do filme para o arquivo digital deixou um buraco fotográfico na nossa história. Foi uma época em que revelar fotos era caríssimo, e ter uma câmera digital era luxo para poucos. Então foi um tempo de poucas fotografias. (silêncio) E o teatro sempre se fudendo nessa merda.

ALÍPIO
É.

(silêncio)

LÚCIO
E quem foi que descobriu Jesus, meu amigo? Eu não entendi. Ninguém descobriu ele. Isso não foi uma descoberta do século.

ALÍPIO
É. Jesus não foi descoberto. Ele simplesmente aconteceu. E sobra-se somente o que acreditam ser do que ele realmente era.

TÍBIO
E agora eu te pergunto: quem foi que descobriu o Facebook? Quem? Eu que não fui. Vocês adoram colocar problemas nos assuntos dos outros.

LÚCIO
É foda botar modernidade em peça quando se busca atenção da inteligência. E ainda meter o nome de Jesus no meio.

TÍBIO
Pois eis a importância!

ALÍPIO
Uma prima que me falou do Face. A aí ela espalhou pra minha turma toda.

LÚCIO
A minha também, cara.

ALÍPIO
Ficou maior viciada e tinha oito anos. Lá em dois mil e cinco, dois mil e seis. Aí ela infectou a minha turma toda. Todo mundo teve que fazer, é como se não existisse se não tivesse.

TÍBIO
Calma. Ela era viciada e infectou o quê em quem?

ALÍPIO
Nossa! Caralho, cara. A minha prima passou o bagulho da rede pra todo mundo que eu conheço, entende? Começou assim com a minha turma. Ela achou num blog e me passou. Foi tipo o início de uma grande coisa, manja? Daí depois estourou e todo mundo fez também. Até minha vó tem. Minha prima é daquelas que manda correntes.

TÍBIO
Ah, sim. 

LÚCIO
A minha também, cara. Que maluquice.

TÍBIO
Sua prima também, cara? Que coisa estranha. A culpa é das primas filhas da putas, então. De tanta merda nesse mundo.

LÚCIO
Não. A prima dele infectou a minha turma também. Minha prima é evangélica, coitada, corrente é coisa de satã. Usa o Facebook pra defender o Feliciano e postar fotos do bebê horrível que ela teve com um machista bigodudo idiota. Desculpe, não é nada pessoal.

ALÍPIO
Tudo bem, eu não uso bigode. Já a minha é a maior interneteira do Brasil agora. Dizem que ganha dinheiro com uns vídeos mal produzidos sobre plantações de cogumelos...

TÍBIO
É uma safada, então. Quantos anos ela tem?

ALÍPIO
... e também faz uns vídeos recitando Clarice Lispector, às vezes cantando um som de Clarice Falcão, num fundo de Chroma key amassado, às vezes com o latido de um cachorro no fundo. A Tabata. Linda, grande. A cachorra. A minha prima chamava Clarice. Chama. Ela ainda não morreu.

TÍBIO
Cachorra mesmo.

LÚCIO
Lésbica, só pode.

ALÍPIO
Jesus, não diga uma coisa dessas. É minha prima, pô.

LÚCIO
Odeio sapatão. Sério. Pela burrice.

TÍBIO
Nunca quer dar pra gente. É um abuso. (pausa) Mas não tenho nada contra.

(longo silêncio)

ALÍPIO
Bosta de tecnologia.

LÚCIO
Bosta nada. Você não tá ligado. (tosco) Vida virtual é vida legal. No badoo – sabe o que é badoo? – eu sou loiro e tenho um metro e oitenta e um e tenho a profissão de cantor, graças a deus.

TÍBIO
Ai, que legal, Hanna Montana.

ALÍPIO
(gargalha) Boa...

LÚCIO
Vocês dois são patéticos.

ALÍPIO
Hanna Montana... (ri) foi boa... que besta.

TÍBIO
Valeu.

LÚCIO
Eu vou embora. Vocês nunca me entendem.

ALÍPIO
Mas e o buraco, Lúcio? O buraco, caralho! Ninguém aí falou mais nada nessa porra. Hein, Tíbio? Fala alguma coisa.

LÚCIO
O buraco que se foda! A gente preenche ele e pronto. Não é assim o fim? Pra que olhar.

TÍBIO
Ai, cale essa boca. “A gente preenche ele e pronto.” Pff... Fale por você.

ALÍPIO
Temos que fazer alguma coisa.

TÍBIO
Eu pulo lá dentro. Perdi o medo momentaneamente. Vê? Quem é o corajoso sem fim?

ALÍPIO
Então vai, fodão.

LÚCIO
Você pirou? E se for um alienígena? Isso veio do céu, cara. Lembre-se.

TÍBIO
Alienígena?

ALÍPIO
É só um buraco. Não tem nada aí.

LÚCIO
Todo buraco, pra existir, tem que ter alguma coisa em volta pra se chamar de buraco.

ALÍPIO
Ai, cale essa boca.

LÚCIO
Parem de me mandar calar a boca! É sério. Pra você pensar no nada, você obviamente precisará lembrar do tudo.

TÍBIO
Cacete. O medo voltou.

ALÍPIO
Medo filho da puta. Seja bravo como eu!

LÚCIO
Ué. Pula você, então!

ALÍPIO
Oi?

LÚCIO
Pula você.

ALÍPIO
É que...

TÍBIO
Eu pulo, vai.

ALÍPIO
Pronto.

LÚCIO
Ele tá querendo te usar, Tíbio.

ALÍPIO
Cale a boca!

(Lúcio pula no pescoço de Alípio; eles se xingam e rolam no chão; Tíbio separa-os com dificuldade)

LÚCIO
(com muito ódio) Só porque eu sou o mais novo aqui tenho que calar a boca? Digam argumentos! Não fiquem mandando calar a boca! Puta coisa chata!

TÍBIO
Vocês são fodas. Palhaçada isso, meu. Vamos logo descobrir que merda é essa que caiu.

LÚCIO
Não vai descobrir. Não tem o que descobrir. Porque não significa nada.

ALÍPIO
E pra que serve?

TÍBIO
Punhetação artística.

ALÍPIO
Isso é uma merda. Bosta.

LÚCIO
Bosta. Eu quero ir embora. Vamos?

TÍBIO
Vamos.

LÚCIO
Sério?

TÍBIO
Sério. Eu vou com você. Também não aguento mais.

LÚCIO
Então, vamos.

TÍBIO
Sim.

(eles não se mexem; Alípio sai silencioso da cena)

LÚCIO e TÍBIO
Era tudo mais fácil quando não precisávamos perguntar/ Papai, mamãe, titia/ Sempre a ajudar/ Gente vinha e respondia/ Ou teimavam inventar/ Minha tia, minha irmã, minha sobrinha/ Eu sei que eu consigo apalpar e nunca mais ser alguém com possibilidade de compreensão.

(black-out)

1 - O BURACO DE ALÍPIO

(luz, Alípio está em um foco terminando de coar um café; Tíbio e Lúcio observam)

ALÍPIO
(devagar) Duas horas da manhã. Duas e meia. (pausa) Duas e trinte e três. (pausa) Aprendi a fazer um café num blog. (pausa) Primuda gostosa. Ô, menina tesuda. Faltou um chantilly. (ele serve o café em uma xícara; bebe) Delícia. (bebe) Mais ou menos. (bebe) Falta açúcar. (coloca mais açúcar)

TÍBIO e LÚCIO
(explicativos) Isso será um flashback. (voltam a assistir)

ALÍPIO
(bebe) Bom. (pausa) Sabem bem que existe um pouco de maldade no mundo. Sabem, né? Claro. É meio óbvio. Um pouco não! Um tanto. Maldade. Manja? Maldade é um bagulho sensacional. Ouvi dizer uma vez que...

TÍBIO e LÚCIO
Citação descarada.

ALÍPIO
... a bondade em um homem bom, acontece suave, numa sutileza que só a bondade pode proporcionar. Agora a maldade em um homem mal, arrebenta, numa estupidez maquiavélica rápida de corroer um coração. (pausa) Acontece que ora fazemos coisas boas, ora fazemos coisas ruins. Descobrimos a maldade pura quando colocamos as proporções em uma balança.

TÍBIO e LÚCIO
Por exemplo, se entre cinco pessoas três te dizer que você é um cuzão, provavelmente as outras duas só são fracas demais para dizer a verdade.

ALÍPIO
Acontece também, que às vezes pessoas ruins fazem coisas boas.

TÍBIO e LÚCIO
Não duvide que o vilão ame.

ALÍPIO
Talvez ele ame até mais. Um tanto a mais. Que ame tanto que às vezes faz cagada.

TÍBIO e LÚCIO
Então quer dizer que chegamos até aqui pra dizer que a culpa de tudo isso é o amor, seu filho da puta? Vai tomar no cu.

ALÍPIO
Quem tá dizendo sou eu. Vocês não precisam concordar. Foi o que eu posso dizer que aconteceu comigo.

TÍBIO e LÚCIO
Inocente é o caralho.

(Alípio bebe todo o café quente da jarra)

ALÍPIO
Agora eu tô ligado. Posso continuar. Duas e trinta e cinco da manhã. Internet é uma bosta fácil de arranjar hoje em dia. Um papo jogado fora é uma bosta fácil de arranjar hoje em dia. Sexo é uma bosta fácil de arranjar hoje em dia. O problema é quando você é despreparado para o mundo moderno.

(Alípio avista alguém)

ALÍPIO
Bêbado filho da puta! Você não entra mais em casa, seu lazarento! Vai ficar aí fora. Não vai entrar! Vai se fuder que eu não vou abrir! Pode arrebentar! Arrebenta, então! Eu quero ver! Pode chamar quem o senhor quiser! Eu tô me lixando. Mas aqui você não entra mais!

TÍBIO e LÚCIO
O pai dele é um alcóolatra vagabundo e xucro.

ALÍPIO
Você é um alcóolatra vagabundo e xucro! Vai se fuder! (explica para a plateia; calmo) No fim da noite minha mãe vai abrir o portão pra ele. Aí ele bate nela, come ela, e depois ela faz um rango pro filho da puta.

TÍBIO e LÚCIO
Cuidado!

ALÍPIO
O que foi?

TÍBIO e LÚCIO
Você quase caiu no buraco!

ALÍPIO
Putz, valeu. (ele observa o buraco) Eu sempre reclamei do macho ridículo que meu pai me ensinou. (imita) “Princesa! Pega uma pinguinha no porão. Já!”. Princesa, seu filho da mãe? Vai tomar no cu.

(ele liga um computador e vidra instantaneamente)

TÍBIO e LÚCIO
As definições de vírus foram atualizadas.

ALÍPIO
Sexo. Sexo. Sexo. Sexo. Sexo. Buceta. Buceta. Buceta. Bucetão. Cu. Cu. Cu. Cu. Cu. Teta, teta, teta. Buceta. Buceta. Buceta. Achei! Caralho! Mas que coisa mais gostosa, meu deus! Play. Chupa gostoso, princesa. Chupa bem gostoso. (Alípio se masturba)

LÚCIO
Agora irei ler uma poesia enquanto aguardamos um gozo. (ele tira um papel do bolso; declama toscamente) Avião sem asa/Fogueira sem brasa/ Sou eu assim sem você/ Futebol sem bola/ Piu-Piu sem Frajola/ Sou eu assim sem você.

ALÍPIO
Pronto! Delícia de gozada.

TÍBIO
Aff.

ALÍPIO
Mas me parece que certas noites não são como a gente imaginou. Às vezes uma gozada só não é o suficiente. Tem vezes que necessitamos sentir o cheiro da mulher. O cheiro do suor e da lubrificação feminina.

(algo chama a atenção de Lúcio)

LÚCIO
Tá vindo gente ali.

TÍBIO
Onde?

LÚCIO
Ali, ó.

ALÍPIO
Eu tô vendo. Quem será?

TÍBIO
Caralho, por que só eu não vejo?

ALÍPIO
É uma mulher.

LÚCIO
Uma menina na verdade.

TÍBIO
Cadê gente? Vocês tão viajando.

LÚCIO
Faz parte do jogo, imbecil.

ALÍPIO
Uma menina? Ninfeta?

LÚCIO
Cale a boca, cara!

ALÍPIO
Não me mande calar a boca!

LÚCIO
Viu como é gostoso?

TÍBIO
É tipo pra gente imaginar?

ALÍPIO
Imaginar o que?

TÍBIO
A menina.

LÚCIO
É, imbecil.

TÍBIO
Ah, sim. (encena) Puxa vida! Caramba, tá vindo uma menina ali! Olha, é sua prima, Alípio.

ALÍPIO
O que?

TÍBIO
A menina. É aquela sua prima, sabe? Que faz uns vídeos e tals. Quantos anos ela tem?

LÚCIO
É mesmo. Bonitinha ela.

ALÍPIO
E o que ela está fazendo aqui?

TÍBIO
Não diga que é essa que você...

LÚCIO
Chiu! Não fale.

TÍBIO
Por que? É essa?

LÚCIO
É. Deixe ele contar.

(Lúcio e Tíbio observam a cena novamente)

ALÍPIO
Eram duas e trinta e oito da manhã.

TÍBIO
Trinta e nove!

ALÍPIO
Eram duas e trinta e nove da manhã. Eu tinha acabado de bater uma punheta assistindo um vídeo pornô. Eu sempre fui afim de ninfetinha, manja? E o pinto tem uma cabeça que não pensa muito direito. Vocês devem saber do que eu tô falando. O pinto é foda, cara. Meio que tem vida própria na vida real. (pausa) Eu já estava bem de boa no negócio. Já tinha gozado, tomado um café e já tinha partido pra parte do cigarro. Que é de praxe. (ele acende um cigarro) A menina, minha prima, era bem jovem ainda. Criança mas com um corpo de filha da puta. Super inteligente, a menina. Desse tamanho e já hackeava o quarteirão de casa. Descobriu o Facebook antes de todo mundo com oito anos de idade. E isso me dá um tesão. Mulher inteligente me dá um tesão. Ela tá com dezesseis agora. (pausa) Aqui em casa sempre tá cheio de gente. Tios, tias, irmãs, amigos, amigos de amigos, desconhecidos e etc. E sempre foi assim. Sempre churrasco e tudo mais. Perdi a minha virgindade com a prima evangélica dele, que inclusive faz sexo anal comigo uma vez por semana desde então...

TÍBIO e LÚCIO
Desembucha de uma vez, cara! Chegue ao ponto. Sua prima está aqui esperando.

LÚCIO
Encheção de linguiça é uma merda.

TÍBIO
Menos um ponto por enredo original. Dramaturgo filho da puta.

ALÍPIO
(direto) Bem, a menina acordou pra beber água, eu peguei ela pelo braço e enfiei meu pau na bunda dela. Sem ela querer. Tampando bem a boca dela com um guardanapo.

TÍBIO e LÚCIO
O pinto é foda.

ALÍPIO
Aí, quando ela fez dezoito anos ela me denunciou. Depois de dois anos do acontecido.

TÍBIO
Aí todo mundo ficou sabendo que ele já tinha abusado da irmã, abusado de uma vizinha, abusado de duas sobrinhas, abusado da prima dele...

LÚCIO
Não, com a minha prima era uma coisa mais retal mesmo.

TÍBIO
E, isso ninguém ficou sabendo, claro, abusado da própria mãe enquanto dormia.

LÚCIO
Caramba. Da própria mãe?

ALÍPIO
Eu só apalpei as tetas dela. Foi só isso. Mas ninguém saberia disso se isso fosse a vida real. Eu sou a única testemunha do acontecido. Vocês só sabem porque isso aqui é uma merda de uma encenação!

TÍBIO
Macho do tipo clássico. Que bate em viados, aposto!

ALÍPIO
Vai se fuder, cara. Quem foi que te disse isso? Hoje em dia tá foda ser reconhecido nisso, pô!

TÍBIO
Só ouvi falar.

LÚCIO
É sério? Bate em viados, filho da puta?

TÍBIO
Creio que sim.

LÚCIO
Se tem uma coisa que eu odeio além de sapatão é um cara machista.

ALÍPIO
Oras, e meu direito de opinar? Pra mim isso acaba com a moral e os bons costumes...

TÍBIO
Isso o que? Bater em viados?

ALÍPIO
Dar o cu, porra! Ali é pra sair.

TÍBIO
Ué. Mas você não come o cu da prima dele?

ALÍPIO
É diferente. Homem é homem, mulher é mulher.

LÚCIO
Pedófilo, machista, jumento e espancador de homossexual. É um puta de um personagem existencial. (explica) E por fim, foi descoberto um corpo de uma garota desaparecida há quase um mês. Com indícios claros de abuso sexual. E um sêmen dentro da boca dela. Foi fácil de encontrar o garanhão.

TÍBIO
Assassino também?

ALÍPIO
Ela ia contar. Todo mundo ia ficar sabendo.

TÍBIO
A menina? Meu deus! Você matou a menina? Ah, eu tinha me afeiçoado à ela. Todo mundo ficou sabendo, é?

ALÍPIO
Pois é. O pinto é foda. Recite uma poesia, pelo amor de deus.

LÚCIO
Você é um idiota.

ALÍPIO
E se eu te dissesse que eu amava todas elas? Poxa, eu amo minha mãe, lógico que amo! E eu sempre amei a Clarice! Sempre! Desde pequena. Desde criancinha quando eu carregava ela.

LÚCIO
Tesão é tesão, amor é amor.

TÍBIO
Nossa, você foi bem filho da puta.

ALÍPIO
Eu fui filho da puta? Eu fui filho da puta? Você também é um puta de um filho da puta!

TÍBIO
Eu? Ah, vá te catar!

ALÍPIO
Pensa que eu não sei?

TÍBIO
Sabe o que, cara? Não tem nada pra saber.

LÚCIO
Eu também sei dessa, Tíbio. Todo mundo tá sabendo.

(silêncio)

TÍBIO
Bosta de buraco.

(black-out)

LÚCIO e ALÍPIO
Vai cair! Cuidado, vai cair!

2 – O BURACO DE TÍBIO

(luz, Tíbio está chorando no telefone)

TÍBIO
Não. Ah, não. Não, não, não. Não faz isso. Não, mô. Não. Não faz isso, não. Mô. Não. Por favor, não faz isso comigo. Não, mô. Por favor. Mô. Me ouve. Não faz isso. Não, mô. Não. Não desligue. Mô. Por favor. Mô! Não desligue, por favor. Mô. Me ouve. Não faz isso. Mô! Mô? Bosta. (ele deságua como uma criança; grita surtado)

ALÍPIO e LÚCIO
A namorada dele acaba de mudar o status para solteira.

TÍBIO
Ela foi uma filha da puta! Não precisava ter feito isso.

ALÍPIO e LÚCIO
O que você faria se estivesse no lugar dela? Aceitaria de boa?

TÍBIO
(pensa) Eu...

ALÍPIO e LÚCIO
Não. Ele não aceitaria.

TÍBIO
A coisa toda começou alguns meses antes. Três meses e três dias. Não. Três meses e quatro dias. Cinco. Três meses e cinco dias. Isso. Nós havíamos brigado. Por bobeira, como sempre é. Ela queria saber por que diabos eu tinha ido dormir às quatro da manhã. Eu vou confessar: eu adoro sites de relacionamento. E eu fico me relacionando e batendo um papo virtualmente com um monte de mulher gostosa que curte mostrar a buceta a troco de nada, que às vezes pode até ser algum gordo viado com foto de modelo fingindo ser fêmea que eu me divirto. Com as coisas que é dito. Com as coisas que as pessoas curtem fazer. Eu não faço por maldade. Não tô procurando alguém pra me apaixonar. Eu amo minha mulher, entende? (pausa) Só que aí...

ALÍPIO e LÚCIO
Só que aí veio a parte chata. Certa vez ele se apaixonou.

TÍBIO
Não! Eu não me apaixonei. Eu não sou viado, cara! Quantas vezes eu vou ter que dizer isso?

ALÍPIO e LÚCIO
Vocês já podem imaginar o que deve ter acontecido.

TÍBIO
O pinto é um bagulho foda. Não tem muito que fazer quando é a hora dele agir. E é estritamente compreensível que algumas pessoas façam cagadas por ele. Eu te entendo, amigo.

ALÍPIO
Obrigado, viu.

TÍBIO
E voltando a falar de maldade, o bagulho é muito louco! A coisa toda é uma avacalhação, entende? Um dia você goza, o outro gozam em você. E boatos é uma coisa que meio que machuca, sabe? Um dia você tá no topo, todo gostosão, aí no outro, porque seu pinto disse “sim” a uma besteira, você tá totalmente fodido. E todo mundo tá sabendo.

ALÍPIO e LÚCIO
Resumindo: o filho da puta decidiu sair da regra, dos parâmetros, e marcou um encontro casual para rolar unicamente e, sem dúvida nenhuma, apenas sexo. Porém...

TÍBIO
Porém o caralho! Não existe porém. Eu não me apaixonei, porra! Por que vocês insistem nesta merda?

ALÍPIO e LÚCIO
Resumindo: o filho da puta virou viado e não teve coragem de assumir.

TÍBIO
Ninguém vira viado, cara. Que merda, meu!

ALÍPIO
A cagada então foi casar-se precipitadamente.

LÚCIO
Talvez. Você devia ter aceitado a vontade desde sempre. Teria sido mais fácil.

ALÍPIO
Ê, pinto filho da puta.

TÍBIO
Eu só queria uma gozada! Só isso. (ele liga um computador e vidra instantaneamente)

ALÍPIO e LÚCIO
Ele liga um computador e vidra instantaneamente.

TÍBIO
Sexo, sexo, sexo, sexo, sexo, sexo, sexo, sexo. Gozar, gozar, gozar, gozar, gozar. Gozar já! (procurando) Gatinha caliente. Juliana dá. Gordinha com cam. Menina dois mil e dose arroba. Safada agora. Lulu chupe-chupe. Hum. Lulu chupe-chupe. (explica) Trair é comer outra pessoa. Uma boquete é apenas um favor. É igual oferecer um copo de água.

ALÍPIO e LÚCIO
Resumindo: Tíbio, todo gostoso, marcou via badoo com Lulu chupe-chupe. Chegando no local, nosso querido Tíbio logo percebeu que Lulu não era abreviação de Luiza, ou Luana, ou muito menos de Luzia. Pensem em algo um pouco mais masculino.

TÍBIO
(alguém se apresenta para ele) Oi? Hã? (pausa) Você é Lulu? Eu pensei que... Não. Não tem nenhum problema, não.

ALÍPIO e LÚCIO
Nunca saia com alguém sem antes vê-la via webcam.

TÍBIO
Mas, então. É... Vamos deixar pra uma outra vez, pode ser? Não, cara. Eu nunca fiz esse tipo de coisa. Eu pensei que... Que é isso, cara? Imagina. Não. Olha, desculpa mesmo, viu. Mas... Eu sei, eu sei. Não, não. Não é igual, não. Eu sei que a boca é igual, mas você é homem, cara. Eu nunca... Eu tô ligado, cara. Tô ligado. Eu peço desculpas. (pausa) Eu sei, cara. Eu tô ligado. Mas... então, é que eu sou casado, entende? É. Nunca nem traí nem com outra mulher, cara. (ri) Tá bom. Não, cara. Nunca mesmo. Eu tô. Tava super afim sim, cara, mas é que... Não, cara. É foda. Melhor não. Não, não. Não. Deixe quieto.

ALÍPIO e LÚCIO
Depois de muito cu doce, Tíbio aceitou ser chupado por Lulu.

TÍBIO
Caralho, que delícia!

LÚCIO
Enquanto ele ilustra a chupeta, eu vou ler uma poesia de Vinicius de...

TÍBIO
Gozei. (pausa) Aí eu cheguei em casa e foi de boa. Ninguém nunca ficou sabendo. (pausa) É pra resumir?

ALÍPIO e LÚCIO
Por favor.

TÍBIO
Eu curti a chupada.

ALÍPIO e LÚCIO
Ele curtiu a chupada.

TÍBIO
A gente se encontrou outras vezes.

ALÍPIO e LÚCIO
Eles se encontraram outras vezes.

TÍBIO
E aí rolou mais.

ALÍPIO e LÚCIO
Muito mais. E sem camisinha.

TÍBIO
Eu comi aquele buraco apertado com gosto!

ALÍPIO
Que nojo, cara. Só de ouvir isso dá vontade de moer sua cara. Vire macho, bosta! Deus tá vendo toda essa porcaria, viu!

TÍBIO
E foi gostoso pra caralho! Eu queria comer toda hora, todo minuto! Eu queria estar com ele. Eu queria ficar com ele.

ALÍPIO e LÚCIO
Tíbio adorou comer Lulu chupe-chupe!

TÍBIO
Eu adorei comer Lulu chupe-chupe. Aí, alguns meses depois...

ALÍPIO
Três meses e cinco dias.

TÍBIO
Ela descobriu. Me abandonou e contou pra todo mundo via rede social. Todo mundo compartilhou. (ele vê no computador uma atualização) Filha da puta, desgraçada! Ai, meu deus! Perdão! Eu não acredito! Eu não acredito! E agora? E agora? Quem falou? Quem falou? Merda, merda, merda! Quem falou, caralho?

(Lúcio e Alípio encenam)

LÚCIO
Ficou sabendo, cara?

ALÍPIO
O que?

LÚCIO
Tíbio virou viado.

ALÍPIO
Que Tíbio?

LÚCIO
O Tíbio, porra.

ALÍPIO
Sério? É sério? Você tá brincando. O Tíbio, Tíbio?

LÚCIO
Pois é. A mulher dele se vingou e espalhou pra todo mundo. Não viu no Face?

ALÍPIO
Não. A gostosa?

LÚCIO
É.

ALÍPIO
Nossa.

LÚCIO
Fez uma faixa bem grande e pregou na frente da casa da mãe dele. “Meu marido Tíbio gosta de dar a bunda”. E postou uma foto da bunda dele que tem uma tatuagem de pimenta.

ALÍPIO
Não acredito. (gargalha)

TÍBIO
Eu não sou viado! Eu nunca dei a bunda e nunca vou dar! E a tatuagem foi coisas de ex-namoradas!

LÚCIO
Na bunda?

ALÍPIO e LÚCIO
Então nós nos perguntamos: cadê o buraco dessa história?

TÍBIO
Eu já disse que ninguém vai mexer nele nunca! E a tatuagem eu ainda vou cobrir uma passagem da bíblia, agora.

(silêncio; Tíbio se aproxima do buraco)

ALÍPIO e LÚCIO
Silêncio. Tíbio se aproxima do buraco.

TÍBIO
Eu matei ela. Eu matei minha mulher. E comi antes. Pra mostrar que eu não sou nenhum viado!

ALÍPIO e LÚCIO
O filho da puta matou e estuprou a própria esposa.

TÍBIO
Ex-esposa. Ela me largou. Foi por isso que eu... que eu... (ele chora)

LÚCIO
Não chora, cara. Tudo se resolve no final.

ALÍPIO
Curtimos linearidade apesar de tudo.

LÚCIO
É bom diversificar. A mistura estética é a coisa mais incrível.

TÍBIO
De que merda estão falando?

LÚCIO
Eu sei lá. Acho que esse buraco deve soltar alguma substância que faz a gente brisar.

ALÍPIO
Que coisa louca! (corre baforar o buraco)

TÍBIO
Eu fiquei com medo, entendem? Consegue entender? Eu caguei de medo do que os outros iriam dizer.

ALÍPIO
Medo é foda.

LÚCIO
Se é.

TÍBIO
Eu tinha que matá-la, não acham?

LÚCIO
Eu acho que você foi bem filho da puta. Podia ter largado dela antes.

TÍBIO
Mas eu amava ela! Eu amava!

LÚCIO
E quer amar duas pessoas de uma vez, cara?

TÍBIO
Eu não amava o Lulu, cara! Não amava!

ALÍPIO
Eu não posso falar nada.

TÍBIO
Eu curtia ser chupado. E só.

LÚCIO
Você comia ele mais de uma vez por semana. Isso foi o que disseram, né? Vai saber se não era o contrário.

TÍBIO
Agora você é juiz, é isso?

LÚCIO
Cara, e se você passasse alguma doença pra sua mulher? Isso é uma puta falta de responsabilidade!

TÍBIO
Chega dessa porcaria! Você não pode falar muito, não é?

LÚCIO
Eu? Olha, não começa.

TÍBIO
Você mesmo é um dos mais safados, não é?

LÚCIO
Eu? Fale. Como assim? Me explique.

(silêncio)

LÚCIO
Agora fale. Não tem, né? Eu nunca matei ninguém, nunca estuprei ninguém.

ALÍPIO
Será que ele é o exemplo da história?

TÍBIO
(surpreso) Cara, só você pode tapar esse buraco...

LÚCIO
Hã?

TÍBIO
É, cara, pense bem. Você é o único que nunca teve problemas.

LÚCIO
Também não é bem assim.

TÍBIO
Nunca matou ninguém, nunca fez maldade.

LÚCIO
Pode ser. Tive educação exemplar. Vovó era inteligente e espírita.

ALÍPIO
Sortudo.

LÚCIO
Mas isso não tem nada a....

TÍBIO
Pense, cara. Você está aqui para ilustrar um exemplo de ser humano perfeito.

ALÍPIO
É verdade, cara.

LÚCIO
O que? Vocês piraram? Eu não sou tão perfeito assim.

ALÍPIO
Para de ser teimoso.

TÍBIO
Entenda, cara. Talvez só você consiga desvendar esse grande mistério.

LÚCIO
Que mistério? Parem de viajar! Eu vou embora, gente. Cansei dessa babaquice. Vocês desabafaram, usaram de boa metáfora para brincar de inteligente, expuseram suas vidinhas ordinárias cheias de sangue e incrivelmente clichê, mas nada convenceu o estranho aparecimento dessa coisa que caiu – ou desceu, que se foda – e fez esse buraco esquisito e invisível para o público. Eu vou embora. Chega de babaquice. Adeus, mortais.

(Lúcio fica imóvel; Tíbio e Alípio saem)

LÚCIO
Aristotelicamente, necessito explicar-me.

(um foco destaca Lúcio; ele tira a camiseta e a calça e põe a mão na bunda, por dentro da cueca)

LÚCIO
Meu buraco é mais embaixo.

(black-out)
          

3 – O BURACO DE LÚCIO

(luz; Lúcio está com um shorts curto e uma camiseta colada)

LÚCIO
A partir de agora o espetáculo se tornará um flashback continuo. Com linearidade.

(Tíbio entra fumando um cigarro)

LÚCIO
Tíbio?

TÍBIO
Oi?

LÚCIO
A gente conversou na internet.

TÍBIO
Hã?

LÚCIO
Lulu.

TÍBIO
Você é Lulu? Eu pensei que...

LÚCIO
Você tem algum problema com isso?

TÍBIO
Não. Não tem nenhum problema, não.

LÚCIO
Vamos pular a parte conhecida.

TÍBIO
E a linearidade?

LÚCIO
É impossível hoje em dia. O mundo mudou, meu caro.

TÍBIO
Tudo bem, então.

(Lúcio ajoelha e chupa Tíbio)

TÍBIO
(para a plateia) A filha da puta da minha ex me largou e contou pra todo mundo. Meu pai deu um chute nas minhas costas. E o que foi que eu fiz? Matei a filha da puta. Aí eu fugi. Não fui preso. Lulu chupe-chupe foi comigo. Eu me apaixonei. E curtimos muito durante o verão.

(Lúcio se levanta)

LÚCIO
Na verdade...

(Tíbio ajoelha e chupa Lúcio)

LÚCIO
Cada um conta a história que lhe convém. Tíbio era e sempre foi um dos mais passivos.

(Alípio surge)

ALÍPIO
E eu, cara?

LÚCIO
Você quer também?

ALÍPIO
Não, meu! Cacete! Eu vou dar na sua cara, velho! Qual a minha parte no desenlace?

LÚCIO
A sua parte?

ALÍPIO
O que eu faço agora, pô?

TÍBIO
(engasgando) Você esqueceu, meu? Você é foda. Palhaçada. A culpa foi toda sua.

LÚCIO
Ele estava me chupando num beco. Você chega, dá um chute na bunda dele e me segura na garganta. Aí depois, pouco antes de eu gozar, você me empurra no chão e cospe na minha cara. Tíbio tenta fugir e recebe uma pedrada na cabeça. Ele cai e desmaia. Aí você tira com a nossa cara, fala que vai enfiar um pau no cu dos dois e mata ele por primeiro. Você pisa na cabeça dele. Abre um buraco no crânio dele. Aí eu tento correr, você atira com uma arma que eu não sei de onde surgiu, e eu caio. Você atirou na minha perna. Aí eu choro, grito, te xingo de filho da puta. E você ri da minha opção. Você faz piadas das mais colegiais possíveis sobre a palavra homossexual. E fala de buceta. De como é que é um homem. Um exemplo de humano perfeito. Você dá na minha cara com uma lâmpada fluorescente. Aí, antes de você me matar, eu morro de medo. Literalmente. Eu me mijo um pouco antes, e quase me cago. Aí eu morro. De medo. De medo mesmo, sabe. Medo é uma coisa das mais impressionantes, você sabia? Aí, você chora. Você é maluco. Você chuta os dois corpos com muito ódio. Atira em mim umas sete vezes. Depois faz um pequeno velório simbólico. Reza. E se arrepende instantaneamente. Bebe um café frio de uma garrafa térmica que eu também não sei de onde surgiu. Bebe como um ritual. Atualiza o Facebook com um adeus toscamente misturado a Caio Fernando Abreu. Lê uma poesia quando o sol já está nascendo. Poucos minutos depois atira na própria cabeça rezando a terceira ave-maria da vida.

ALÍPIO
Caramba, tudo isso?

TÍBIO
E que puta buraco, cara.

LÚCIO
Quem é que vai fechar agora, hein? Hein? Me responda.

ALÍPIO
E eu não posso fazer nada?

LÚCIO
Pode. Entra e faz a cena, cara. Já estamos todos fudidos mesmo, né?

TÍBIO
Caramba, mas e o sangue gente? Vai perder a credibilidade.

LÚCIO
É. Teatro com sangue é foda.

ALÍPIO
Não posso ter uma segunda opção? Eu meio que talvez aprendi alguma coisa vendo desse ponto de vista. Como espectador.

LÚCIO
Não tinha pensado nisso. Para de me chupar, cara! Estamos num conflito.

TÍBIO
Te amo.

ALÍPIO
Eu voto na opção!

LÚCIO
Qual opção?

ALÍPIO
Na de haver uma opção.

TÍBIO
Eu acho que eu curto. Seria bastante interessante.

TODOS
A partir de agora decide-se quem quiser/ Ou o que quiser/ Decide-se se devemos aceitar ou enxergar/ Quem escolhe é quem vier/ Quem estiver disposto a opinar/ Ou disposto a compartilhar/ Ou que simplesmente queira ver uma cena assustadoramente mal feita de assassinatos/ Ou que simplesmente queira ver uma cena mágica de final quase feliz.

LÚCIO
Agora a plateia deve escolher qual dos dois finais vocês querem assistir. A morte de Lúcio Lulu chupe-chupe com Tíbio adúltero, pelo homicida, pedófilo, buceteiro e suicida machista Alípio. Ou o entendimento verbal de três seres humanos super desenvolvidos que compartilha de bom senso sobre as questões da vida. A escolha desta noite nos trará um conceito sobre vocês, logo possível estatística.

(eles fazem uma votação rápida)



FINAL 1

ALÍPIO
Vamos começar da parte que eu já matei o Tíbio. Eu cheguei, e interrompi a boquete. Aí aconteceu um monte de coisas e tal. Daí eu matei o Tíbio. Deita aí. (ele joga uma jarra de sangue na cabeça dele) Aí eu pisei com força até abrir um buraco.

LÚCIO
Aí eu corri. (ele corre)

TÍBIO
E eu morri.

ALÍPIO
Eu saco a arma. E atiro. Na perna, pra ele cair.

LÚCIO
(dramático) Seu filho da puta! Que merda é essa, cara? (chora) Pelo amor de deus, cara. (grita) Me deixa ir embora! Pelo amor de deus! Eu não conto pra ninguém.

ALÍPIO
(ameaçando Lúcio) Como é que pode, não é? Toda essa bosta de viadice? Não é? Eu tenho um nojo que me faz vomitar, cara. Dois caras se roçando como duas putas asquerosas bem filhas-da-puta. Se fosse pra ser assim, cara, deus teria criado Adão e Ivo. Tu não tá ligado, né, cara? Não percebe quanta merda vocês estão fazendo. Minha priminha outro dia disse que viu dois homens se beijando numa loja. Isso é sacanagem, cara! Ninguém é obrigado a ver essa filha da putisse de vocês! Façam o que tiverem que fazer na casa de vocês e não contem pra ninguém. Isso aqui é lugar de fazer boquete? Hein? É? Esse local não é publico, não? E deus?

LÚCIO
Se fosse um homem e uma mulher...

ALÍPIO
Eu não te dei permissão para falar, bixa! Nojento filho da puta! Os dois! Todos os dois! Esse pinto nasceu pra comer mulher, seu bosta! Homem direito mal tem amizade com outro homem. É assim que deve ser! E agora você deve pagar por ser uma bixinha ridícula.

LÚCIO
Por favor...

ALÍPIO
Eu vou enfiar a bala dessa pistola bem dentro da tua cabeça que tanto chupou rola por aí.

LÚCIO
Pelo amor de deus, cara...

ALÍPIO
Mas antes eu vou fazer você engolir essa barra de ferro.

LÚCIO
Essa é a hora que eu mijo. (ele mija) Quase cago. (singelamente ele sente uma pontada no peito) Singelamente, eu sinto uma pontada no peito. E morro. (ele morre)

ALÍPIO
Acorda que eu não terminei, putinha. Vai. (ele chuta Lúcio) Acorda, merda.

TÍBIO
(interrompe) Cara, eu me cansei de ficar aqui.

ALÍPIO
Espera. Agora é a parte dramática.

TÍBIO
Ah. Beleza. (deita novamente)

ALÍPIO
Merda. Vocês dois são filhos de uma puta mal comida bem sem vergonha! Que merda. Merda. (se arrepende) Merda.

LÚCIO e TÍBIO
(enquanto eles narram; Alípio faz a ação) E aí, ele chuta nossos corpos e atira em Lúcio sete vezes. Depois faz um pequeno velório simbólico. Reza. E se arrepende instantaneamente. Bebe um café frio de uma garrafa térmica que ninguém sabe de onde surgiu. Bebe como um ritual. Atualiza o Facebook com um adeus toscamente misturado a Caio Fernando Abreu. Lê uma poesia quando o sol já está nascendo.

ALÍPIO
(dramático) Avião sem asa/ Fogueira sem brasa/ Sou eu assim sem você.

LÚCIO e TÍBIO
Poucos minutos depois atira na própria cabeça rezando a terceira ave-maria da vida.

ALÍPIO
... Santa Maria mãe de deus, rogai por nós pecadores. Agora e na hora da nossa morte. Amém.

(Alípio se aproxima com a arma na cabeça)

(black-out)

LÚCIO e TÍBIO
Rubrica: Ouve-se um tiro.

(luz)

(os três estão olhando o buraco)

LÚCIO
Por fim, o que significa esse buraco?

ALÍPIO
Talvez os buracos que eu fiz em vocês.

TÍBIO
Ou o vazio dessas vidas emolduradas nessa noite.

LÚCIO
Ou a mesma função metafórica de todas as outras ideias. A função de apenas complicar ou desenvolver um assunto.

ALÍPIO
Olhem!

TÍBIO e LÚCIO
O que?

ALÍPIO
Tem alguma coisa subindo.

TÍBIO
Onde? Deixe eu ver.

LÚCIO
Meu deus! É mesmo.

ALÍPIO
Caramba! É uma pessoa!

LÚCIO
Ai, meu deus! É deus! Chupa Samuel!

(eles se olham)

TÍBIO
Quem é Samuel?

LÚCIO
Ué, gente. Tudo pode acontecer. Pode ser ele. Pode ser ele!

TÍBIO
Ele quem?

LÚCIO
Aquele que nunca chegou.

ALÍPIO
Parece que é vermelho.

LÚCIO
Vermelho?

TÍBIO
Aquilo é um chifre?

LÚCIO
Ai, meu deus! É aquele monstro da Marvel. Tem o filme dois, sabe? Hellman’s!

TÍBIO
Cale a boca, seu imbecil! Hellman’s é maionese! É o diabo! Nós morremos!

LÚCIO
Ah! Não.

ALÍPIO
Sim. Eles escolheram que a resposta pra essa maluquice era que estávamos o tempo todo mortos. Como um purgatório, entendem? Isso quer dizer que se tivessem escolhido a outra opção o buraco teria outro sentido. E possivelmente uma outra explicação.

TÍBIO
Possivelmente. Estamos fudidos.

LÚCIO
Ai, puta que o pariu! Odeio ficar na curiosidade! Queria saber o que daria se eu tivesse sobrevivido.

ALÍPIO
Ele tá chegando. Vamos fugir.

TÍBIO
Aceite. Nós cagamos na nossa vida. Merecemos ir para o inferno. Vai tentar fugir do capeta, compadre?

ALÍPIO
O que fazemos então? Nos entregar?

LÚCIO
Eu não tenho com o que me preocupar. Ele deve estar vindo buscar vocês dois.

ALÍPIO
Você é viado, cara. Vai para o inferno junto com nós.

LÚCIO
Ai, cale essa boca. Deus tem o amor maior do mundo, maior do que qualquer outro amor, e se meu pai da terra consegue compreender minha opção sexual, você acha que deus vai me condenar por isso? Isso é tudo papo da culpa católica. Aqueles filhos da puta inventaram tudo isso.

ALÍPIO
Quer apostar?

LÚCIO
O que?

ALÍPIO
Que deus não é tão bom assim.

LÚCIO
Ora, você pirou.

VOZ
Atenção. Senhor Alípio Juveni, comparecer a sala sessenta e seis da ala zero seis. Machista retardado e psicótico.

ALÍPIO
Até mais gente! A gente se vê nos agradecimentos! (sai)

VOZ
Senhor Tíbio Curt, comparecer a sessão seis da ala sessenta e seis. Adúltero genocida.

TÍBIO
Até, gente. Queimaremos no mármore do inferno para que isso lhes cause terror e piedade, e que consigam aprender alguma lição idiota com tudo isso. Adeus! (sai)

LÚCIO
E agora, um anjo cintilante aparece para me buscar.

VOZ
Senhor Lúcio Boy...

LÚCIO
Eu? Mas eu não fiz nada de errado.

VOZ
(suspense) A bíblia estava certa.

LÚCIO
O que?

VOZ
Deus odeia as bixas!

LÚCIO
Nããããão!

(black-out)

FIM



FINAL 2

(Alípio interrompe a boquete)

LÚCIO
Tíbio está me chupando e lá, lá, lá...

ALÍPIO
Aí eu chego e interrompo a boquete!

(Alípio chuta a bunda de Tíbio)

TÍBIO
Ai, caralho!

LÚCIO
Vaza, cara. Qual é?

ALÍPIO
(segura Lúcio pelo pescoço) Vocês são bixas?

LÚCIO
Somos. O que tem? Você tem algum problema com isso?

(Tíbio vai correr)

LÚCIO
Tíbio, seu filho da puta!

ALÍPIO
Aí eu atiro uma pedra. (ele atira uma pedra invisível)

TÍBIO
E eu caio desmaiado. (ele cai)

LÚCIO
O que está fazendo, cara? Pense bem. (piegas) Pense no seu futuro. Nas coisas maravilhosas que a vida tem pra nos mostrar. No bem, no amor. Pense na vida. Pense no que perderá se nos matar. Nos filhos que você não vai poder ter. No resto dessa inexplicável missão que todos temos que cumprir. Estamos nivelados, cara. Temos as mesmas opções. Não existe desvantagem. Todo mundo é igual todo mundo. E a coisa vai se repetir. E repetir e repetir.

ALÍPIO
Depois de muito papo de educação moral, chegando ao ponto de dizer: ser homossexual é legal, Lúcio me convenceu de abrir mão da minha vingança sangrenta sem sentido.

TÍBIO
Cansei de ficar aqui.

ALÍPIO
Calma, cara. Falta só a parte dramática. O desenlace.

(música ridiculamente romântica)

ALÍPIO
(piegas) Perdoem-me, amigos. Eu era um homem do mau. Não conhecia o verdadeiro amor. O amor pelo próximo. Seja o próximo o que for. Hoje eu sei o quanto eu fui malvado. Me desculpem, companheiros. Perdoem-me. Por favor. Perdoem-me.

LÚCIO
É claro que te perdoamos. Mas é claro!

(eles se abraçam como um fim de filme)

TÍBIO
Posso levantar?

LÚCIO
Claro. Nessa hora você acorda da desmaiada.

TÍBIO
Ah, que ótimo. (se levanta)

ALÍPIO
E entra no abraço ridículo.

TÍBIO
Hum. Que bom.

(eles se abraçam finalmente felizes)

TODOS
Eles se abraçam finalmente felizes. E o final feliz ridículo e absurdo acontece. Se fosse um filme surgiria o The End bem agora. (eles mostram uma placa de The End) Que escolha medíocre. Esse tipo de situação não existe. Finais felizes da vida real são mais difíceis de se escolher numa votação.

(black-out)

TODOS
Ouve-se um barulho estrondoso de algo caindo do céu.

(luz)

(os três estão olhando o buraco)

LÚCIO
Alguém conseguiu descobrir o que diabos esse buraco significa, depois de nossa conciliação mais linda?

ALÍPIO
Talvez o buraco do meu peito que vocês dois preencheram com amor.

TÍBIO
Ou o vazio da nossa história refletindo em uma ridícula originalidade.

LÚCIO
Ou a mesma função metafórica de todas as outras ideias. A função de apenas complicar ou desenvolver um assunto.

ALÍPIO
Olhem!

TÍBIO e LÚCIO
O que?

ALÍPIO
O buraco está fechando.

TÍBIO
Significa que resolvemos um conflito?

LÚCIO
Meu deus! É mesmo. Pode ser.

ALÍPIO
Caramba! Mas e agora? Final feliz?

LÚCIO
Sério? Ai, não acredito. E agora a gente faz o que? Sorri? De que? Num vai rolar uma graninha? Pode passar chapéu aqui?

ALÍPIO
Quer dizer que se tivessem escolhido a outra opção o buraco teria outra função? Possivelmente uma outra explicação?

TÍBIO
Possivelmente.

LÚCIO
Ai, puta que o pariu! Odeio ficar na curiosidade! Pior final do mundo! Caralho de bosta. Final feliz? Meu, quem curte? Queria saber qual seria a explicação disso tudo se tivéssemos morrido.

TÍBIO
O outro final é mais interessante. Rola até o diabo no meio, porque, claro, nós três vamos pro inferno e tal.

ALÍPIO
Olha só onde viemos parar! Todos contentes. Pff.

LÚCIO
Que horror, gente! Ai, curiosidade é uma merda.

ALÍPIO
Todo mundo odeia final feliz.

LÚCIO
Eu também.

ALÍPIO
Tá fechando.

LÚCIO
Falta só um teco.

ALÍPIO
Ai, meu deus. O que vai acontecer?

TÍBIO
Definitivamente, um tequinho.

(eles aguardam em silêncio; o buraco fecha e eles continuam a aguardar)

TODOS
Eles aguardam em silêncio. O buraco fecha e os três continuam a aguardar. E eles aguardam. Definitivamente, aguardam.

(luz de serviço; em silêncio, os atores retiram todo o material cênico sem finalizar o espetáculo)


FIM