DESVENTURAS DE MENTIROSOS – PARTE 2: UM DESENLACE PÓS DRAMÁTICO

DESVENTURAS DE MENTIROSOS – PARTE 2: UM DESENLACE PÓS DRAMÁTICO

PERSONAGENS
LAILA (princesinha nariguda)
EDUARDO (beleza exótica; macho alfa)
JOICE (mãe cansada)
BRENO (criança atentada) - BRENO (jovem ator)
GUSTAVO (vizinho sexy)
CELSO (policial cristão)
CAMILA (coadjuvante biscate)
ROBERTSON (negro)
UM DUENDE
ATRIZ (mãe)
VOZ (Afrodite, secretária)

PRÓLOGO

TODOS
(cantam)
Você é um puta de um mentiroso! 
Sabe o que significa um puta de um mentiroso? 
Quando a pessoa é tão mentirosa que a gente tem que 
(Tem que ter!)
O som e a potência da palavra “puta”
Ou qualquer outro palavrão!
(Pra descrever)

Uma puta de uma mentira! 
Um puta mentiroso! 
Uma porra de um caralho de confiança nas criança
nas minhas, nas suas, nas nossas 
Lembranças e lambanças
Que no fim das contas 
chega a se tornar verdade! 
Cê acredita? 
São tantas mentiras, 
que no fim, cê balança e acredita
(Acredita, acredite)
Todo mundo pensa que é verdade
(Afrodite, Afrodite!)

A verdade não é nada mais que a própria filha da puta. 
A verdade não é nada mais que a própria filha da puta. 
A verdade não é nada mais que a própria filha da puta. 

E vai descendo
E desce mais
Mexe esse bumbum
E ninguém, nem eu, nem você, nem ninguém 
Desce, desce, desce
Até o chão
Vai!
Desce
Pro buraco do poço
Vai! 
Mexe esse bumbum

Você é um puta de um mentiroso! 
Sabe o que significa um puta de um mentiroso? 
Quando a pessoa é tão mentirosa que a gente tem que 
(Tem que ter!)
O som e a potência da palavra “puta”
Ou qualquer outro palavrão!
(Pra descrever)

(os personagens desaparecem, ficam apenas Joice e Eduardo num foco)


CENA 1: CONTINUAÇÃO PÓS DRAMÁTICA

(quando as luzes acendem, Joice e Eduardo estão na mesma posição do final da primeira parte, "O Homem Verde, o Dramalhão e a Injustiça; o Duende entra)

DUENDE
Olha, vamo parar com essa porcaria aqui. Tá todo mundo cansado. Vocês querem ver o homem verde? Aqui estou eu. Pronto, sem neura. Eu não sou maléfico e nem sou uma assombração. Minha função aqui é a de palpitar e de ser o alter ego do inventor. Faço também boa parte da complicação da história, mas isso sempre existe a necessidade de acontecer, então... Bem, eis me aqui. Olá! Ficaram chocados? Relaxem que eu estou aqui só pra encher linguiça.

(eles observam completamente chocados; com a boca arreganhada e os olhos esbugalhados de terror)

DUENDE
E aí? Ninguém vai me oferecer um café?

JOICE e EDUARDO
(gritam) AAAAAAAAAAAAAAH!

DUENDE
Merda de realismo. Se bem que faz mais sentido um medo aterrorizador assim desse jeito do que de repente eles já quererem trocar uma ideia com um ser que supostamente não deveria existir. (para eles) Deem tempo ao tempo. Vocês se acostumarão com a minha presença.

EDUARDO
Que porra você é?

DUENDE
Lembre-se que da porra todos viemos. No meu mundo também é assim. Papai comeu mamãe.

JOICE
Você é um duende! Você é a porra de um duende cabeludo e orelhudo!

DUENDE
Aposto que você acha que eu nasço em árvores, né? Típico. Isso é preconceito!

JOICE
Ah, meu deu do céu! Santa Maria Mãe do Senhor.

DUENDE
(se empolga) Em dia de vigília ela chega a se tornar real, sabia? A Santa Maria. É a fé das pessoas, sabe. Quanto mais cabeças eletrificadas, mais real a mentira vira. Não é legal?

(silêncio)

DUENDE
Eu devo ser um chato de galocha.

EDUARDO
O que você quer?

DUENDE
Cérebros.

(silêncio)

DUENDE
Brincadeira. Não quero nada. E vocês?

(Laila entra saltitante)

LAILA
Eu quero sinceridade! Seguir o combinado. Podemos adquirir isso nesse mundo filho da puta pós moderno?

JOICE
(baixo) É ela?

EDUARDO
É.

JOICE
O nariz...

(silêncio)

EDUARDO
Cale essa boca.

JOICE
Ela é do tipo que fala "pós moderno" no sentido pejorativo.

LAILA
Eduardo, você tem que me prometer que nunca mais se encontrará com essa vagabunda.

JOICE
Ô, sua mocoronga! Nós temos um filho, tá bom? Nosso vínculo será eterno.

LAILA
Eu estou grávida.

(suspense novelístico)

EDUARDO
Oh!

(Camila entra correndo)

CAMILA
Eu também estou grávida!

(o mesmo suspense)

EDUARDO
Santo deus!

JOICE
E quem é essa, agora? Nossa senhora?

LAILA
Essa é minha amiga Camila. Ela é recém-convertida. Segunda amante dele.

CAMILA
Eu costumava ser chamada de Camila Chuteira. Eu dei pra alguns ali do clube. Ninguém tem nada com isso!

JOICE
Eduardo...

CAMILA
O Eduardo era meu caso sofisticado. (pausa) Como eu só entrei em cena agora, eu ouvi tudo o que aquele duende contou ontem na primeira parte. Eu tava junto com ela (Laila) ali na coxia, ajudando de contra regra, e me odiei sabendo que eu seria a amante biscatinha da história. Eu tive que fazer alguma coisa. Eu ia só ajudar as meninas na maquiagem, mas aí alguma coisa me chamou pra entrar. E quando eu entrei, o homem verde me abriu os olhos para a verdade. O homem verde nada mais é que satanás querendo nos desviar do caminho, gente. Olha que coincidência incrível: o uniforme do time de futebol lá do clube que eu frequentava é de que cor? Adivinhem. Verde, pasmem.

(silêncio em busca de coerência)

CAMILA
Tem outra explicação melhor? Todo essa complicação, todo esses problemas que estão sendo apresentados têm a ver com o meu descobrimento pessoal com o senhor deus todo poderoso. Eu decidi: eu não serei mais nenhuma vadia e nem garota do backstage. Nunca mais! Agora eu vou ter um filho e eu quero ser uma mulher das direitas. Viver pelo meu filho e pelo meu marido. Eduardo, vamos.

(ele vai)

LAILA
Calminha aí, colega! Todas temos agora o vínculo eterno.

JOICE
Eu tenho prioridade porque meu vínculo já fez treze anos! E é um capeta!

LAILA
Tem prioridade porra nenhuma! Ele me tirou a virgindade.

CAMILA
E eu sou menor de idade!

(silêncio; a cena congela)

DUENDE
Um modelo de complicações nos é apresentado com a ficção. Sério. Como vivem os burgueses, como vivem os miseráveis, como deve viver o branco, o negro, o japonês. Nos apresentam até como se deve sofrer se você é burguês ou se você é pobre. Porque pobre e burguês choram diferente. E aí a novela de ficção passa a se tornar real, pois no fim acreditamos que a verdade de uma rotina é aquela. "Essa é a verdade e como as pessoas vivem", pensamos. A diferença é que na ficção, a música, a iluminação fazem o trabalho mais difícil. Deixa poético e sentimental. Na vida real, um caso idiota como esse apresentado, tem mais absurdos, piadas negras e mentiras que a gente nunca imagina, e não terá um final enquanto a morte não chegar. E acontece o tempo todo. Das coisas mais doidas que se possa imaginar. Será sempre, repito, será para sempre um belo de um eterno ponto e vírgula. 

(black-out)

INTERLÚDIO

(Todos os personagens aparecem em focos separados; o menino Breno é substituído em cena por um ator um pouco mais velho; antes de sair, Celso faz o ator menino assinar alguns papéis do sindicato dos atores, dando visto em diversas páginas; uma ATRIZ (mãe) entra para assinar como responsável pelo menino; os dois se abraçam e saem; os personagens e o novo Breno se olham muito desconfiados um do outro; todos se movimentam em cena, trocando de lugar, se distanciando e se aproximando dos outros personagens e demonstrando com o movimento da troca os segredos de suas relações pessoais; o Duende tira o mesmo espectador (se o espectador retornar a ver a continuação) da plateia e faz ele se relacionar com alguns personagens; forma-se um jogo dançado; por fim, todos gritam:)

TODOS
Seu puta mentiroso! Você é um puta de um mentiroso! Sabe o que significa um puta de um mentiroso?

(um foco)

CELSO
Eu tô de bom humor, rapaz. Eu sou cristão. Penso no bem do próximo. Vamos esquecer que tudo isso aconteceu. Fechou? Vai ser a minha caridade do ano.

ROBERTSON
Puxa, senhor. Deus te abençoe.

CELSO
Amém. (pausa) Olha, uma mão lava a outra, certo?

ROBERTSON
Com certeza, cara.

CELSO
Eu curto uma cocaína de vez em quando. Sabe onde eu consigo sem dar bandeira?

(outro foco)

LAILA
(desesperadíssima) Você não pode fazer isso comigo! Você não pode! Não pode, não pode!

EDUARDO
Laila, tente entender...

LAILA
Eu não entendo! Não pode! Não pode! E o seu filho, Eduardo? Você vai me abandonar agora, Eduardo? Ele pode virar um gay se não tiver a figura masculina convivendo diariamente.

EDUARDO
Não use o Dudu.

LAILA
Uso! Uso! Uso, uso! Eu uso sim! E eu vou começar a usar drogas, você vai ver! Vou cheirar, vou até injetar! Você quer seu filho sendo criado por uma mãe nóia, Eduardo? Quer? E não me venha dizer que eu tô fazendo chantagem emocional porque você não sabe como é que tá o meu emocional por dentro! (chora)

EDUARDO
(desiste) Nosso vínculo é eterno, Laila.

LAILA
(instantaneamente apaixonada) Você jura? Jura? Fala que jura.

EDUARDO
Eu juro.

LAILA
Ai, como eu amo você, seu corno filho da puta!

(outro foco)

DUENDE
Experimenta. (dá um baseado para Breno)

BRENO
Eu nunca fumei.

DUENDE
Por isso eu disse “experimenta”.

(Breno fuma)

BRENO
Nossa.

(outro foco: Gustavo come Joice realisticamente por alguns instantes; outro foco: Celso come Camila; outro foco: Gustavo come Camila; outro foco: Eduardo come Camila; outro foco: Eduardo come Joice; outro foco: Robertson come Joice; outro foco: Breno sozinho)

BRENO
Nossa.

(outro foco: Eduardo come Laila; outro foco: Robertson come Camila; outro foco: Joice come Camila; outro foco: Robertson e Celso se trombam e se assustam; outro foco: Eduardo come Gustavo; outro foco: o Duende come Camila)

(o Duende goza)

CAMILA
Viu como eu tenho mais importância do que pareço?

DUENDE
Realmente. Os laços de sangue que vão à merda. A novela de dentro da memória é que é, e deve, e pode ser completamente surreal todo o tempo. E na maioria das vezes sanguinária e injusta. E mentirosa, claro. Sempre. Não teria tanta graça se tivesse uma porra de um desenlace feliz e comum.

(black-out)


Cena 2: DESTINADO À MENTIRA

(Breno está sentado com um figurino bem elaborado e grande; ele se maquia em frente a um espelho; Joice entra)

JOICE
Que lindo, meu filho.

BRENO
Ai, mãe. Vai pra lá. Não posso conversar agora.

JOICE
Tá bom. Tá bom. Quis só vir desejar boa sorte. Como que se diz mesmo? Merda. (ri)

BRENO
Merda, mãe.

JOICE
Ai, ai.

(silêncio)

BRENO
Vai lá, mãe.

JOICE
Seu pai veio.

BRENO
(para tudo) Oi? O que?

JOICE
Ele tá na terceira fileira.

BRENO
Mentira.

JOICE
Juro.

BRENO
Mãe! Na estreia?!

JOICE
Ai, o que tem?

BRENO
Mãe, pelo amor de deus!

JOICE
Ele vai te amar, filho! Ele está muito ansioso pra te ver, meu bem.

BRENO
Mas assim...? Mãe, eu dou um beijo na boca de um menino em cena.

(silêncio)

JOICE
Ué. Seu pai é cabeça aberta, filho.

BRENO
Ai, que puta que o pariu, viu. Você devia ter me avisado antes. Não posso me estressar agora. Por que ele teve que aparecer justo hoje? Hoje? Você tem noção da minha cabeça, mãe? Você tem noção? Não devia ter falado agora, caramba. Devia ter falado no final da peça, mãe, poxa!

JOICE
Isso, não se estresse. Vai dar tudo certo. (pausa) Merda.

BRENO
Merda, mãe.

(Joice sai contente)

BRENO
Caralho.

(ele volta a se maquiar um pouco nervoso; Joice volta puxando Celso)

JOICE
Olha, filho. Esse é seu pai.

(um silêncio horrivelmente constrangedor)

BRENO
Mãe...

CELSO
Oi, filho.

BRENO
(contendo-se) Mãe, sai daqui.

JOICE
Ele queria te desejar merda, também, Breno.

CELSO
Merda, filho. Boa interpretação.

(silêncio)

BRENO
Merda.

CELSO
A gente conversa depois, tá bom? Quero saber sobre tudo de você.

JOICE
Ele tá nervoso porque é estreia.

BRENO
Mãe.

CELSO
Vamos voltar pra lá.

JOICE
Sim. Merda, filho! Merda, merda, merda, seu fofo!

(eles saem rindo, abraçados; Breno se amarga em silêncio)

BRENO
Eu não acredito. Um encontro de vida. Assim?

(black-out; terceiro sinal)

(o Duende surge com sua mesma roupa de duende, mas com mais enfeites; ele sapateia e faz um número solo de ballet contemporâneo (?); não forçando comédia, realmente uma apresentação de dança bacana, pop; ele finaliza com um passo grandioso e pede aplausos; Breno entra canastrão, faz uma voltinha idiota e beija a boca do Duende; Celso, na plateia se levanta inconformado; Joice tenta acalmar Celso; além do beijo, o Duende recita esse texto tocando o corpo de Breno:)

DUENDE
As mãos. Os corpos. O sangue. O cacete. A gengiva. A língua. A cobra. A mentira. A mulher. A santa. O macho. O sexo. A trepada. Deus é uma mulher! (ele esfrega o rosto no pau de Breno)

JOICE
Santo deus!

CELSO
Parem essa porcaria!

(luz de serviço)

DUENDE
Continue o texto, Breno. Continue o texto.

CELSO
(toscamente decepcionado) Meu filho...

JOICE
Pelo amor de deus, Breno!

BRENO
(tenta continuar; nervoso) Os brotos. As virgindades. A santidade. Existe?

DUENDE
Não enquanto eu estiver com meu corpo próximo ao seu.

(eles se beijam novamente)

CELSO
Eu falei pra parar com essa invocação demoníaca! Isso aqui não é teatro! Isso é que é teatro? Acende essa luz aí!

(Joice, desesperada e envergonhada, sobe no palco pra tirar Breno)

CELSO
Vocês tudo são o que? O que que é isso? O que é? É alguma seita, isso daqui? É? Porque se for, esse tipo de coisa é proibido por lei. Eu sou policial.

DUENDE
É pra consumo próprio, senhor.

CELSO
(para Breno) Esse seu personagem, rapaz, apareceu criança aqui. Você já ouviu falar de censura? Sabe se por um acaso alguém vai autorizar um menor de idade fazer parte disso tudo?

(Breno se desvencilha da mãe, e sai chorando de raiva)

DUENDE
Breno! Desculpem, espectadores. (afiado) Tivemos um problemão. (ele sai)

(silêncio)

JOICE
Lembre-se, Celso. Você não é o pai dele de verdade.

CELSO
Mas se é pra fingir, vamos fazer direito, né? Que pai que aguentaria? Eu não sou pai. Mas acho que esse tipo de coisa é mais comum de acontecer do que a gente imagina.

JOICE
O escândalo que a gente fez, é isso?

CELSO
Exatamente.

JOICE
Mas foi bastante emocionante, não foi? Numa estreia de teatro! Parecia que você era mesmo o pai dele porque você envergonhou ele, descaradamente.

CELSO
Verdade. Ele nunca vai desconfiar.

(Breno entra subitamente)

BRENO
Desconfiar de que?

DUENDE
(surge) É ótimo quando esse tipo de introdução súbita surge numa situação suspeitosa. (desaparece)

JOICE
Oi, meu filho! Parabéns pelo espetáculo. Merda.

BRENO
Vocês destruíram a minha vida.

CELSO
Imagina, filho. Estávamos prezando pelo seu bem.

BRENO
Eu nem te conheço! O que te dá esse direito? Só porque gastava um pouquinho a mais no natal? Se liga, babaca. Depois de hoje não espere que eu te aceite como pai. Nunca mesmo.

JOICE
Filho, pelo amor de deus. Ele é seu pai, não importa o que você quer. Tá no seu sangue.

BRENO
Foda-se! (profundo) O mundo todo tá no meu sangue.

JOICE
Oi?

BRENO
É, mãe. Uma hora a gente tem que se livrar de alguns amores e seguir em frente pra amar outras pessoas. Foda-se o vínculo de sangue.

JOICE
Breno!

BRENO
Eu amo você, mãe. Vou te amar sempre. Mas não me obrigue a aceitar esse...

CELSO
Esse o que, moleque? Olha o desacato.

JOICE
Filho...

BRENO
Mãe. Puta papelão. Eu vou ser lembrado por essas pessoas que vieram assistir pro resto da vida delas. Tomara que não comentem. Ou se comentarem que não inventem. Ou se inventarem que meu nome desapareça da história. Eu tô fudido. Um belo de um fracassado antes mesmo de começar minha carreira direito.

CELSO
Antes lembrado que é de uma família direita, que lembrado como prostituto que deixa um outro homem (!) esfregar a cara no próprio bilau. Isso é um absurdo, menino!

BRENO
E depois de séculos, descubro que meu pai é homofóbico.

CELSO
Eu não sou homofóbico, moleque. Minha esposa tem uma prima que é sapatão, tá bom? Só pra você saber.

(silêncio)

JOICE
Breno. Ele não é seu pai.

(suspense)

BRENO
O que?

JOICE
Eu menti.

BRENO
O que? Como assim mentiu?

JOICE
Ele não é seu pai, Breno. Eu inventei.

BRENO
E o que significou tudo isso, mãe?

CELSO
Ela me deu quinhentão.

(silêncio)

BRENO
Mãe, vai pra puta que te pariu, meu! Que porra de sacanagem que você tá me falando?

JOICE
Eu estava desesperada. Seu verdadeiro pai é um alucinado mentiroso. Ele tem três filhos com mulheres diferentes. E trabalha com... Coisas internacionais...

BRENO
(grita) Não interessa! Eu...

(silêncio)

JOICE
Desculpe. Estamos quites agora.

BRENO
E onde é que ele está?

JOICE
Oi?

BRENO
Onde é que tá meu verdadeiro pai?

CELSO
Na cadeia.

BRENO
Na cadeia? Por poligamia?

CELSO
Por assaltar um branco. Na saidinha do banco. Um celular e quinhentos reais.

(uma luz introduz Robertson grandiosamente)

ROBERTSON
Filho.

BRENO
Vocês tão de sacanagem, né?

JOICE
Por isso seu cabelo é enroladinho, Breno.

(o foco se apaga; Robertson entra em cena)

ROBERTSON
Eu fui um injustiçado! Eu nunca roubei nada na minha vida! A câmera de segurança não comprova nada! Eu lembro! Eu lembro, tá bom? Foi legítima defesa, a faca! Tem que ficar esperto quando se mora na rua. Eu não fiz nada daquilo!

CELSO
Ah, cale a boca, vagabundo.

BRENO
Ele é meu pai?

JOICE
Ele é um homem super inteligente, meu filho. Olhe, você tem os olhos dele.

BRENO
Nada a ver.

JOICE
Meu filho. Esse é seu pai, meu filho. Dê um abraço no seu pai, Breno.

(Robertson se aproxima e dá um abraço em Breno)

ROBERTSON
Menino, eu fui preso injustamente. Acredite no seu pai. Sua mãe nunca te deixou passar fome, não é, Bruno?

BRENO
É Breno.

ROBERTSON
Breno.

BRENO
Minha mãe te deu quinhentão.

ROBERTSON
Ah... eu não sei do que está falando.

BRENO
Ela te deu. (vira-se) Mãe, cacete, mãe!

JOICE
Filho, não! Agora é verdade. Ele é mesmo seu pai. Eu emprestei quinhentão pra poder tirar ele da cadeia.

BRENO
Ele não tem nada a ver comigo!

JOICE
Filho, você que não percebe. Eu vejo muitas semelhanças. O seu “coisinho” aí é igualzinho o dele, viu. Igualzinho.

BRENO
Mãe! Faça o favor!

JOICE
Mas é.

ROBERTSON
(orgulhoso) Parabéns, garoto.

BRENO
Vai te fuder. Não te conheço. Não sei. Quero um teste de DNA.

JOICE
O que?

BRENO
Eu quero. Já que é pra ter drama, vamo esculachar. Eu não sei acredito que ele é mesmo meu pai. Eu desconfio. Quero realizar o teste imediatamente.

(o Duende entra com um carrinho com vários instrumentos musicais e um gorro de enfermeiro; vagarosamente ele entrega um instrumento pra cada, e ordena algumas instruções apenas com gestos, sempre pedindo silêncio; por um longo tempo, com muita calma e lentidão, ele se prepara para tocar com a banda; ele acerta a posição dos atores/músicos com precisão, limpa algum trombone, afina algum violão, etc; finalmente ele se posiciona como maestro, pede silêncio e...)

JOICE
É mentira! É mentira! Ele não é seu pai.

BRENO
O que?

JOICE
Não. Ele não é seu pai. Seu pai é o Gustavo.

(Gustavo entra)

GUSTAVO
Amado!

BRENO
Mãe!

JOICE
Não! É mentira também!

GUSTAVO
Uma a menos.

(Gustavo sai)

JOICE
Eu não sei. Eu não quero dizer. (ela desiste chorando)

(longo silêncio; o Duende retira todos os objetos, bravo pelo serviço perdido, mas mais uma vez com muita calma e tranquilidade, longo silêncio)

JOICE
Seu pai é um homem maluco. Eu não queria que você tivesse que conviver com ele.

BRENO
Eu não sei se eu quero conviver com ele. Mas, porra, depois disso tudo você não quer saber qual vai ser a minha reação a hora que eu descobrir quem ele é?

(silêncio; as portas do teatro se escancaram; Eduardo entra grandiosamente, com luz e música)

EDUARDO
Breno, eu sou seu pai.

(música de final feliz; Breno finalmente se emociona; ambos se olham e se amam instantaneamente)

JOICE
Não! É mentira! É mentira também. Na verdade isso tudo também é uma mentira. Eu sou prima da esposa dele (aponta para Celso). Eu sou a prima sapatão dele. Eu não sou mais sapatão. Eu me converti no nome de Jesus. Você é fruto de um amor que eu tive com uma garota, Breno. Ela queria ter um filho, eu fiz tirar um óvulo dela, procurei um doador, e eu me engravidei. Nem fiquei internada. E aí esse filho da puta começou a atormentar a nossa vida. Ele entrava de madrugada no seu quarto e te chacoalhava! Ele é um traficante internacional!

CELSO
O que?

EDUARDO
Ela tá variada.

CELSO
Eu não acredito em mais ninguém nesse mundo.

JOICE
E aí um dia nós nos separamos. Eu e sua mãe número dois. Antes de você nascer. Ela não queria mais saber. Ela ficou com medo, eu acho. Eu só aceitei as coisas dele porque eu fiquei sozinha.

BRENO
Mas meu pai de sangue é ele mesmo, então?

JOICE
Sim, mas você mesmo disse que foda-se esse negócio do sangue. Você não tem pai. Pra mim, você tem duas mães.

EDUARDO
O espermatozoide era meu.

JOICE
Infelizmente!

EDUARDO
Você já disse que me ama uma vez, Joice.

JOICE
A gente diz isso pra todo mundo. Não é?

EDUARDO
Nosso sexo era sensacional. Sapatão é o caralho, não é?

JOICE
Isso se chama tesão pós decepção amorosa.

(silêncio)

BRENO
E quem é minha segunda mãe, mãe?

JOICE
Ela não vai aparecer. Ela não gosta muito de teatro.

BRENO
Mas eu quero conhecer ela.

JOICE
Um dia. Mas não nessa sessão. Talvez num episódio três, se houver.

(Joice se ajoelha e põe seu filho em seu colo; o Duende, com um cajado, aparece e veste uma capa azul em Joice; os três pais, Eduardo, Robertson e Celso entram com presentes; Gustavo entra como uma ovelha; eles formam a famosa manjedoura)

(black-out)


INTERLÚDIO

(o Duende entra)

DUENDE
Atenção moralistas e ditadores de regras artísticas. Venho através desse comunicado informar-lhes que foda-se. O dramalhão veio da necessidade de mostrar que – sim! – nós somos obras primas de nosso próprio drama existencial e artístico. O drama é diário e é tão absurdo na ficção como na realidade. O surrealismo veio da necessidade de mostrar que – sim! – o diabo realmente existe e ele é verde e ele atazana a vida de quem deixar ele atazanar, no simples poder de acreditar. A justiça... bom, a justiça é um bom assunto pra se discutir quando falamos de mentira? (instantaneamente ele se exalta monstruosamente irritado com o espectador de sempre) É? Eu fiz uma pergunta? É, ô, idiota? É um bom assunto, caralho? Eu tô perguntando pra você. (ele chacoalha o espectador) A porra da justiça direita tá longe de ser realmente de esquerda. E eu e você vamos sempre se fuder nessa merda! E agora? E agora? (pausa) Sorte que ninguém é racista quando vê um cara que é verde. Porém, o cara que é marrom...

TODOS
(cantam)
E vai descendo
E desce mais
Mexe esse bumbum
E ninguém, nem eu, nem você, nem ninguém 
Desce, desce, desce
Até o chão
Vai!
Desce
Pro buraco do poço
Vai! 
Mexe esse bumbum


Cena 3: E A MENTIRA MORRE NAS OUTRAS BOCAS

(quando a luz se acende, Eduardo está sentado com muitos artefatos e drogas; uma fumaça invade o palco e Eduardo fuma ervas especiais em um bongue)

DUENDE
A mente. Os raios. Os choques.

(Robertson entra tropeçando)

ROBERTSON
Caralho de degrau que eu sempre esqueço. Manda tirar essa merda daí.

EDUARDO
Cale a boca, mau educado. Pega a mercadoria e vaza.

ROBERTSON
Olha, eu só queria avisar que não faço esse tipo de coisa, viu. É que eu acabei de sair da cadeia e tô precisando arrumar um dinheiro e...

EDUARDO
Pega a mercadoria e vaza.

ROBERTSON
Ok, senhor.

(ele pega duas mochilas, confere e sai agradecendo com a cabeça)

EDUARDO
Quinta-feira!

ROBERTSON
(em off) Quinta-feira!

EDUARDO
E não vai cheirar toda essa porra, hein!

(silêncio; Eduardo continua fumando; o telefone toca)

EDUARDO
Sim.

VIVA VOZ
O cliente de codinome Homem Verde gostaria de conversar sobre a compra que ele fez. Ele tá no telefone.

EDUARDO
Uhum.

VIVA VOZ
Quer atender?

EDUARDO
Quantos milhões, Afrodite?

VIVA VOZ
Três e meio. É um russo.

EDUARDO
Hum. Pode passar a linha e mande comprar um presentinho.

VIVA VOZ
Aquele?

EDUARDO
Aquele mesmo. Pode passar.

(Laila entra raivosa e arrebenta o fio do telefone)

EDUARDO
Você tá louca? Eu posso perder um cliente super importante, sua vagabunda!

LAILA
Eu não quero saber. E o nosso combinado?

EDUARDO
Ainda com essa história?

LAILA
O nosso combinado era de que o pó era de graça, Eduardo! Pro resto da vida! Você já se esqueceu? Você lembra?

EDUARDO
Olha como você já tá nóia, Laila. Eu falei pra você não entrar nessa merda.

LAILA
Viu como eu nunca minto? As drogas foram a fuga pra depressão que você me deixou com um filho. Eu tive um filho seu e a porra da sua pensão não dá pra merda! Não dá pra comprar nem aquela garrafinha – da pequena – de whisky, que vende nos postos de gasolina.

(Camila entra)

CAMILA
É verdade. Isso daqui é uma porra. Não dá nem pra comprar...

LAILA
(grita irritadíssima) Vaza daqui que você é uma coadjuvante!

CAMILA
Caralho. O que é justo é justo.

(Camila sai)

LAILA
O pó. O pó, Eduardo. Eu sofri de amor por você. É só o que você pode fazer por mim. Eu sabia que ia ser assim, sabe. Eu super sabia. Quem é a vagabunda da vez?

EDUARDO
Não tem mais vagabunda nenhuma, Laila. Eu mudei. As coisas mudaram. Comecei a ver o mundo de outra forma.

LAILA
De que merda que você tá falando, Eduardo? Você quer voltar, é isso? Eu já tô em outra, otário.

EDUARDO
(ri) Voltar? Que horas que você entendeu isso?

LAILA
Seu insensível! Mudou de que jeito, Eduardo? Vai casar sério, é isso? Arrumou alguma vagabunda e jurou amor eterno, seu canalha?

EDUARDO
Eu acho que eu não gosto mais de mulher, Laila. É isso. Muitos problemas. Eu, que sou um viciado em sexo, consegui engravidar três. Que eu sei! E é tudo muita maluquice com essa mulherada. Muito problema o resultado do meu tesão. Com homem não tem esse problema. Tá sendo divertido. Você nem imagina o que essa erva indígena fez comigo. Mudei até de religião.

(silêncio)

LAILA
O que? Calma, eu não tô entendendo.

(Breno entra com um shorts sensual e senta-se ao lado de Eduardo)

EDUARDO
Acho que eu virei viado, Laila. Dá pra acreditar?

LAILA
O que?

EDUARDO
Virei, não, né. Só abri os olhos pra essa maravilha de sexo e sexo e sexo o tempo inteiro. Uma coisa mais animal que sentimental, entende?

LAILA
Mas esse não é seu... Esse não é seu filho, Eduardo?

BRENO
Mamãe insiste em dizer que não. Eu prefiro pensar que sim.

(Breno o beija e apalpa o pau de Eduardo)

EDUARDO
Ai, ai. Isso tudo é uma loucura, não é, não? E não tem perigo de ter mais um filho. Olha que beleza.

LAILA
Você é o homem mais nojento que eu já conheci, Eduardo. Mais mentiroso. Você sempre foi bicha, Eduardo? Aposto que sempre foi bicha! Eu sabia! Eu sabia!

BRENO
Todo mundo é bicha quando nasce. Depois que se molda.

EDUARDO
Eu gostava de comer vocês.

LAILA
Porra, pra ter tido três filhos...!

EDUARDO
Pois é.

LAILA
Meu deus do céu. A sua mãe sabe disso, menino?

BRENO
Sabe. Ela super apoia.

LAILA
Sério?

BRENO
Sério. Mamãe largou a igreja e voltou a namorar com a minha segunda mãe. É um barato. E eu namoro com o meu suposto pai. Não é surreal de moderno?

(silêncio)

LAILA
Não quero mais você sozinho com meu filho, Eduardo.

EDUARDO
Nosso filho.

LAILA
Nosso, não! Eu te denuncio! Pai que come o filho. Você não tem vergonha de fazer isso com esse moleque, Eduardo?

BRENO
Na verdade é o oposto. Eu quem domino.

EDUARDO
É. Agora eu já consigo até relaxar.

(silêncio)

LAILA
Eu vou denunciar vocês para a polícia! (se ajeita para sair)

(Breno tira um revolver de algum lugar e mata Laila sem pensar; um instantâneo inusitado e absurdo)

EDUARDO
Breno!

BRENO
Pai!

EDUARDO
Ela tem um filho!

BRENO
Já foi.

EDUARDO
Comigo.

BRENO
Já foi.

(Camila entra)

CAMILA
Olha, Eduardo, desculpa entrar assim. Mas eu tive reclamações do seu filho lá na escola. Eu sei que eu sou uma porra de uma coadjuvante, Eduardo, mas a professora dele falou que ele é um puta de um menino mentiroso! Ele mente em tudo. Ele mente que já comeu, mente que quer ir no banheiro. O tempo inteiro mentindo. A gente tem que fazer alguma coisa. O que você acha?

EDUARDO
Ué. Todo mundo é assim, não?

(silêncio)

CAMILA
Eduardo, seu filho está me dando trabalho. Está me dando dor de cabeça! Eu não sei de onde ele aprendeu a mentir desse jeito, Eduardo. Só pode ser maldição da sua linhagem! Eu só acho que nós dois devíamos refletir mais um pouco sobre...

(repentinamente Breno atira em Camila também)

CAMILA
Seu filho da uma puta! Eu nem terminei de falar todo o meu bife... (morre)

EDUARDO
Filho! Puta que o pariu, filho! Meu deus. Duas?

BRENO
Já foi, pai. Já foi.

(Breno e Eduardo se beijam enlouquecidamente; eles começam a tirar a roupa)

BRENO
Vamos fazer um sexo passando o sangue delas no nosso corpo, pai?

(silêncio; Eduardo estranha)

BRENO
Brincadeira.

(eles se agarram novamente; Joice entra; os dois disfarçam rápido)

JOICE
O que estavam fazendo?

EDUARDO
Nada, amor.

BRENO
Eu tava tirando uma espinha do papai. Precisava ver que nojo, mãe.

JOICE
Hum.

EDUARDO
E a menina?

JOICE
Que menina?

EDUARDO
A mãe dele. Vocês voltaram?

JOICE
Imagina, meu bem. Falei pra ela que agora era eu quem não queria mais nada com ela. Você nunca teve duas mães, Breno. Seu pai sempre foi esse homem aqui. Meu marido mais maravilhoso do mundo. (ela o beija) Ela não vai mais voltar. Eu joguei um monte de coisa que tava entalada, na cara dela. Agora eu quero aquele casamento que você sempre me prometia, Eduardo. Iremos formar uma família comum e feliz, pessoal. Eu, você e nosso filho artista, meu deus. Infelizmente, nem sempre tudo é perfeito, né. Mas enfim.

(silêncio)

JOICE
Não estão felizes com a notícia?

EDUARDO
Sim, sim! Com certeza. Eu te amo, amor.

JOICE
Eu também te amo, amor.

(eles se beijam; Breno se amarga)

JOICE
(vê os corpos) O que aconteceu com elas, gente? Eu não vou ter que limpar tudo isso sozinha, vou?

(Celso entra)

EDUARDO
Olha o polícia!

CELSO
Não! Calma! Eu só quero um pozinho! Digo, eu vim comprar maconha.

(Breno atira em Celso)

EDUARDO
Ufa. Quase, moleque. Você nos salvou da cadeia. (beija Breno na boca quase que sem querer)

JOICE
O que é isso?

EDUARDO
Amor de pai, querida.

(Joice abraça Eduardo um pouco desconfiada)

JOICE
Bem, vamos agora limpar essa bagunça – nós três! – antes que outro policial apareça. Ah, é o Celso, coitado. Ele era lá da igreja. O que a gente vai fazer com eles, Eduardo?

EDUARDO
Não sei.

JOICE
Eduardo, olhe pra mim. Deixa eu ver seus olhos.

EDUARDO
O que foi?

JOICE
Você é a coisa mais linda que deus já criou, sabia?

EDUARDO
Ah, para com isso.

BRENO
Ai, meu deus.

JOICE
Não faça charme. É verdade. Eu te amo mais que tudo nesse mundo. Nunca mais eu vou deixar você escapar de mim, você entendeu?

EDUARDO
Eu não vou escapar.

JOICE
As coisas acontecem. Você jura?

EDUARDO
Juro.

BRENO
Mãe?

(ela se vira; Breno atira na testa dela; ela cai morta; suspense)

EDUARDO
Breno! Sua mãe!

BRENO
Acho que a gente tem que deixar amores passados e renovar o sentimento. Você é meu amor agora. Meu primeiro amor. Sabe o que é isso?

EDUARDO
Breno...

BRENO
Estamos fadados, destinados, a sofrer. Eu, principalmente. Você já teve várias namoradas.

EDUARDO
Você é meu primeiro namorado.

BRENO
Não interessa! Você é um puto de natureza e eu sei que você vai fazer o mesmo que fez com elas comigo.

EDUARDO
Não. Agora vai ser diferente.

BRENO
Você jura?

EDUARDO
Quando eu digo que eu vou ser fiel, quer dizer que eu vou ser fiel.

BRENO
Eu tenho tanto medo de começar usar drogas, pai! Mas se você me abandonar eu não vejo outra solução. Eu não sei o que é. Mas eu te amo mais que tudo nessa vida.

EDUARDO
Odeio quando chega nessa parte.

BRENO
Desculpe, eu devo tá parecendo um louco, né?

EDUARDO
Não, filho. Com você vai ser diferente, Breno. Você não é meu único filho, mas será o único amante.

BRENO
Oh, meu amor! (ele o abraça) Eu tenho tanto medo de te perder, pai. Nosso vínculo de sangue faz nosso amor ser mais extraordinário ainda, não faz? Olha que coisa mais linda, pai. Nós somos pais e filhos e amantes. É lindo demais.

EDUARDO
E um pouco estranho, também.

BRENO
Não tem nada de estranho. Eu sonho com um mundo assim. Onde faremos sexo com nossos primos e tios.

EDUARDO
Que absurdo!

BRENO
Ué! Quer terminar, é isso, pai?

EDUARDO
O que? Agora eu não posso discordar de você, é isso? Pare de paranoia.

BRENO
Nós nunca daremos certo juntos.

EDUARDO
Você não sabe disso. Quando eu digo que eu gosto de uma pessoa, quer dizer que eu gosto.

(silêncio)

BRENO
Você jura?

EDUARDO
Juríssimo.

(eles se abraçam como um final feliz)

BRENO
Espera que eu vou fazer xixi. (ele sai correndo)

(Eduardo aproveita o momento e rapidamente tira Gustavo escondido de algum lugar)

EDUARDO
Vai, vaza daqui! Ele foi no banheiro. Corra!

GUSTAVO
Eu amo você.

(eles se beijam e Gustavo corre; Breno surge bem à sua frente)

BRENO
Ahá! Eu sabia!

GUSTAVO
Por favor... não! Mais mortes perde a credibilidade...

BRENO
Eu sou um sociopata.

(Breno atira em Gustavo)

EDUARDO
Breno!

GUSTAVO
Ah, meu. Não acredito. Vai tomar no cu, meu. (morre)

BRENO
Eu tô sanguinário hoje! Eu tô sanguinário! E não tem nada de maquiagem! É sangue de verdade!

EDUARDO
Você não pode fazer isso, Eduardo. Você tá matando o elenco inteiro.

BRENO
Pois eu já fiz. O que tá feito, tá feito.

EDUARDO
O Gustavo... você matou... eu estava gostando tanto dele.

BRENO
Pois se não for comigo, não será com ninguém também! Foda-se a porra do final feliz!

(Breno aponta a arma para Eduardo)

EDUARDO
O que é isso, mano?

(Breno atira em Eduardo)

EDUARDO
Filho, quantos tiros! Isso tudo está parecendo muito filme... Daquele cineasta famoso... Bill. (morre)

(Breno coloca a arma na cabeça)

BRENO
Cacete. A gente tem ouvido tanto sobre famílias inteiras mortas pelo filho adolescente. Não tem já uma história assim? Como eu sou clichê. (silêncio) A gente mal sabe como é na vida real, porque isso daqui é só uma mini moldura.

(ele se prepara para atirar; suspense; o Duende entra)

DUENDE
Mentira. Sexo. Mentira. Companhia. Mentira. Você não fez nada de errado, Breno. Todos eles queriam tirar sua felicidade. Temos uma ideia melhor.

BRENO
Temos?

DUENDE
Sempre.

BRENO
Eu não sei o que fazer. Isso é uma chacina. É morte ou cadeia.

DUENDE
Você não aprendeu nada, Breno? Eu sei que todo mundo odeia teatro com mensagem, mas como você é um personagem, alguma coisa você tem que tirar disso tudo, rapaz.

BRENO
Mas o que eu posso fazer?

DUENDE
Venha. Me empresta seu celular.

(black-out)


CENA 4: NEGRITUDE FINAL

(quando as luzes se acendem, Robertson entra um pouco desconfiado, carregando as mesmas mochilas)

ROBERTSON
Olá? Eduardo? (ele vê os corpos) Puta que pariu! Meu deus do céu, o que aconteceu aqui? (chama) Alô-ô?

(seu celular toca)

ROBERTSON
Ai! Péra. (ele tem dificuldade em atender) Calma, calma! (atende) Alô? Breno! O que houve? Não, eu não sei, alguém me ligou – eu pensei que tinha sido o Eduardo – e me falou pra eu trazer as drogas de volta agora. E eu cheguei aqui, menino, e tá... meu deus do céu, tá todo mundo morto. Eu não sei, eu não sei. Eu acabei de chegar. Sua mãe? Calma. (ele procura) Sim. Sim, menino, ela está aqui. Ai, meu deus. (pausa) Não chore. Não chore, Breno. Eu sinto muito. Ai, deus. E agora, menino? O que? Onde? Calma. (ele procura alguma coisa) Eu não tô achando. Onde tá? Embaixo do seu pai? Peraí. (ele retira a arma que Breno usou de baixo de Eduardo) Aqui. Achei. O que tem? O que? Você acha que quem fez isso ainda está aqui? (ele se atenta, com a arma em punho) Calma. Sim. Eu tô olhando. Quem será que fez isso, Breno? Meu deus do céu. Que tragédia. (pausa) Sim. Sim. Verdade. (pausa) Sim, tô prestando atenção pra ver se ouço algum barulho. Calma. (ele fica em silêncio ouvindo) Chiu. Calma. (mais silêncio) Viu, Breno? Será que não seria melhor a gente chamar a polícia?

(luzes e sons de sirene atingem a cena; em off, ouve-se barulho de uma tropa)

ROBERTSON
Aqui! Aqui! (percebe que está com a arma na mão) Eita.

DUENDE
(em off) Saia com as mãos na cabeça imediatamente, seu favelado maconheiro desgraçado e filho da puta!

ROBERTSON
Pois bem. Sou eu.

(black-out)

PRELÚDIO

(todos os atores em cena)

TODOS
(cantam)
Um modelo de complicação
é apresentado em ficção.
Como vivem os burgueses,
como vivem os miseráveis,
Os ricão
E talvez os de bom coração

Como deve viver o branco, o negro e o japonês.
Tamo falando de vocês!
Em claro e limpo português!

Nos apresentam até como se deve sofrer se você é burguês ou se você é um pobre freguês
Ou se está atrás do balcão
Porque pobre e burguês choram diferente.
Nascem diferente
Morrem diferente
Trepam tudo igual
E aquela novela de ficção
A peça teatral
Passa a se tornar real,
pois no fim acreditamos que a verdade de uma rotina
é só aquela.

Mentira!
Seremos sempre um belo de um eterno
Desesperançoso
Mentiroso
Ponto e vírgula.

Mentira!

DUENDE
Isso foi uma peça de ficção. Qualquer mera coincidência com a realidade ou nomes de personagens e acontecimentos... (pausa) Não passa de ficção. Brisa. Eu sou um duende. Obrigado.

FIM

de Gabriel Tonin




DESVENTURAS DE MENTIROSOS - PARTE 1: O HOMEM VERDE, O DRAMALHÃO E A INJUSTIÇA

DESVENTURAS DE MENTIROSOS – PARTE 1: O HOMEM VERDE, O DRAMALHÃO E A INJUSTIÇA

PERSONAGENS
LAILA (princesinha nariguda)
EDUARDO (beleza exótica; macho alfa)
JOICE (mãe cansada)
BRENO (criança atentada) - BRENO (jovem ator)
GUSTAVO (vizinho sexy)
CELSO (policial cristão)
CAMILA (coadjuvante biscate)
ROBERTSON (negro)
UM DUENDE
ATRIZ (mãe)
VOZ (Afrodite, secretária)

PRÓLOGO

UM DUENDE
Seu puta mentiroso! Você é um puta de um mentiroso! Sabe o que significa um puta de um mentiroso? Quando a pessoa é tão mentirosa que precisamos – que necessitamos – do som e da potência da palavra “puta” – ou qualquer outro palavrão – pra descrever. Uma puta mentira! Um puta mentiroso! Uma porra de um caralho de confiança nas minhas, nas suas, nas nossas mentirinhas. Que no fim das contas chega a se tornar verdade! Acredita? São tantas mentiras, que no fim, todo mundo pensa que é verdade. Ou seja, a verdade não é nada mais que a própria filha da puta. E aí todo mundo vai descendo e descendo. E descendo. Cada vez mais pra baixo, em vez de subir. E ninguém, nem eu, nem você, nem ninguém ganha nada com essa porcaria.

(ele alopra algum espectador violentamente com uma brincadeira de mau gosto e sai)


Cena 1: O COMBINADO

PERSONAGENS
Laila
Eduardo

(o casal corre entre girassóis e dentes de leão; eles dançam toscamente apaixonados; aos poucos, Laila vai se entristecendo dramaticamente; ela se ajoelha e Eduardo se aproxima)

EDUARDO
O que foi, meu amor?

LAILA
Não é nada. Não se preocupe.

EDUARDO
Eu gosto muito de você, tá bom?

LAILA
(ri chorando)

EDUARDO
O que foi, La?

LAILA
Nada, nada.

EDUARDO
Como nada? Por que você tá chorando?

LAILA
Eu sou muito auto insuficiente, Du.

EDUARDO
O que?

LAILA
Eu não sei. Eu sou uma pessoa confusa. Tenho medo de...

EDUARDO
De?

LAILA
De você não me aguentar. Entende?

EDUARDO
Pare com isso, La.

LAILA
Eu tenho medo, Du. Eu tenho medo. Você sabe como são as coisas. Você é meu primeiro amor. Todo mundo conta do primeiro amor, e todos eles são doloridos. Todas as minhas amigas sofreram de primeiro amor, e algumas foram chifradas, outras largadas.

EDUARDO
Pare, La. Não vamos falar nisso.

LAILA
Como não? Você me perguntou o que eu tinha, e é isso o que eu tenho. Eu tô insegura. Você é lindo. Você... eu não sei o que dizer. Mas nós somos tão jovens, não somos?

EDUARDO
Ai, meu deus.

LAILA
“Ai, meu deus” eu que digo! O que eu faço, Du? E se você se apaixonar por outra pessoa? Eu acho que uma hora isso vai acontecer.

EDUARDO
Você também pode se apaixonar. Estamos todos no risco.

LAILA
Impossível. Eu te amo mais que tudo nessa vida.

(silêncio)

LAILA
É verdade.

EDUARDO
Eu odeio quando chega nessa parte.

LAILA
É. Você já teve várias namoradas.

EDUARDO
A gente tem que curtir o agora, La.

LAILA
Todo mundo diz isso. Mas eu gostaria de conviver tranquila com o que a gente está combinando, Du.

EDUARDO
Mas você pode viver tranquila.

LAILA
Posso? Posso mesmo?

EDUARDO
Claro que pode. Você não acredita em mim?

LAILA
Claro que acredito, Du. Mas...

EDUARDO
Laila, para. Não entre nessa paranoia.

(silêncio; Laila se levanta chateada)

EDUARDO
La.

LAILA
E se eu sou uma paranoica estranha realizando o sonho de encontrar um príncipe bonzinho e maravilhoso? E se eu sou essa pessoa, Du? Você quer terminar?

EDUARDO
Laila, por favor. Você quer terminar?

LAILA
Nunca! É a última coisa que eu quero nessa vida. Mas se você quiser, eu não posso fazer nada.

EDUARDO
Ai, deus.

LAILA
“Ai, deus” eu que falo! Eu já ouvi tanto por aí sobre o que as pessoas sofrem...

EDUARDO
As pessoas são as pessoas! Pelo amor de deus, Laila! Se você quiser eu vou embora e você pensa se você quer continuar namorando comigo.

LAILA
Não! Não. Tudo bem. Eu paro.

EDUARDO
Relaxe, La. Você é linda. Eu gosto de ficar com você.

LAILA
Gosta mesmo?

EDUARDO
Amo!

LAILA
Ama mesmo?

EDUARDO
Demais.

LAILA
Sério?

EDUARDO
Sério, Laila.

LAILA
Eu fico muito contente em ouvir isso.

(silêncio; Eduardo cafunga o pescoço de Laila; ela inicia um choro contido)

EDUARDO
O que foi agora?

LAILA
Nada, nada.

EDUARDO
Ai, Laila, que saco isso! Por que você tá chorando de novo?

LAILA
É que eu amo você demais. Eu gosto muito de ficar com você, Du. Eu não queria que essa cena acabasse nunca. Mas ela vai acabar. Se tivermos sorte e ficarmos juntos pra sempre, nós vamos envelhecer e essa sensação não vai ser a mesma porque já teremos intimidade. Mas se o óbvio acontecer, que eu sei que vai acontecer de você me trair ou me dar um pé na bunda, isso vai ser só uma memória dolorida. De qualquer forma estamos fudidos.

(silêncio)

EDUARDO
Laila, tá ficando chato. (doce) Se você quiser eu vou embora e volto amanhã. Daí você pensa um pouco o que você quer.

LAILA
(ri sem graça) Eu devo tá parecendo uma louca, né? Pior que eu sou super pra frente, sabe. Super cabeça aberta. Não sei o que está acontecendo comigo. É você. (pausa) Desculpe, Du. Se você quiser ir embora e... aí a gente se tromba por aí.

EDUARDO
Você tá terminando comigo?

LAILA
Você que disse que quer ir embora. Pode ir. Não tem problema. Eu vou ficar bem. Foi muito bom ter conhecido você. Eu vou te amar pra sempre, Du.

EDUARDO
Laila!

LAILA
O que foi? Se você quiser, pode ir.

EDUARDO
Eu não disse que eu queria terminar!

LAILA
Desculpe. Desculpe, Du. Me desculpe. Eu acho que... Tudo bem, então.

(eles se beijam meio estranho)

EDUARDO
Não fique pensando essas coisas, La.

LAILA
Eu tô te assustando, né?

EDUARDO
Não.

LAILA
Tô sim. Às vezes acho que isso que vai fazer você querer se separar de mim.

EDUARDO
(ri) Ai, Laila.

LAILA
É sério. As coisas acontecem.

EDUARDO
Pare de ser boba.

LAILA
Mas é sério. A Jéssica e o namorado eram o casalzinho do rolê, sabe? Eles namoraram seis anos aí de repente ela descobriu que...

EDUARDO
Chega. Por favor. Laila, pelo amor de deus. Vamos falar de outra coisa? Eu tô ficando incomodado.

LAILA
Desculpe.

(silêncio)

LAILA
Eu sou uma idiota mesmo.

EDUARDO
Ai, senhor! Não é nada, Laila! Você é linda, inteligente, simpática...

LAILA
Nariguda.

EDUARDO
Não tem nada de nariguda! Eu amo o seu nariz.

LAILA
Ama nada. Eu sei que eu sou nariguda. Não precisa ser lindo o tempo inteiro, Eduardo.

(silêncio)

EDUARDO
Vamos ver o filme?

LAILA
Por que? Eu tô te entediando?

EDUARDO
Não, Laila, não tá.

LAILA
Eu sou uma chata, não sou?

EDUARDO
Não, Laila.

LAILA
Eu sei que eu sou. Chata e nariguda. Por que alguém como você ia querer ficar comigo?

EDUARDO
(um pouco irritado) Ai, eu vou embora. Depois a gente conversa. Você tá muito carente hoje, La.

LAILA
Eu sou carente. Vamos deixar como está, então. Não me dê esperança de “depois a gente conversa”, tá. Vamos deixar assim mesmo.

EDUARDO
Porra, Laila, se você quer terminar então beleza! Por mim, tudo bem!

LAILA
Por mim eu ficaria com você o resto da minha vida. Mas eu sei que eu vou sofrer.

EDUARDO
Como você sabe que vai sofrer, Laila? Você tá sofrendo antes de acontecer alguma coisa!

LAILA
Tô? Tô mesmo? Não tá acontecendo nada mesmo, Du?

EDUARDO
Lógico que não, Laila!

LAILA
Tem certeza?

EDUARDO
Lógico, Laila! Por favor...

LAILA
Quem é Joice?

EDUARDO
O que?

LAILA
Joice. Então, quem é Joice, Du?

EDUARDO
Ai, meu deus.

LAILA
Me fala. Quem é?

EDUARDO
É uma amiga, Laila.

LAILA
Amiga?

EDUARDO
Se você quiser eu ligo pra ela agora e você conversa com ela. Ela passa o natal com minha família, Laila. Amiga velha.

LAILA
Você já ficou com ela?

EDUARDO
Já. Já fiquei, Laila. Há muito tempo. A gente era criança ainda.

(silêncio)

EDUARDO
Contente?

LAILA
Desculpe. Eu sou uma imbecil. Eu sei. Não tem mais nada?

EDUARDO
Mais nada, Laila. Mais nada. Viu a mensagem no meu celular, não foi?

LAILA
Foi. Desculpe.

EDUARDO
Olha, La. A gente tem que começar a confiar um no outro se não vai ser impossível.

LAILA
E quem é Camila?

EDUARDO
Oi?

LAILA
Camila. Eu vi um e-mail que você mandou pra ela marcando de se encontrar. E tem uma Camila que sempre curte suas fotos no Facebook.

(silêncio)

EDUARDO
Qual é o seu problema, Laila? Você mexeu no meu computador, também?

LAILA
Nós somos namorados! Você combinou uma coisa comigo! Se eu descubro algo que está errado, não importa quais foram os meios!

EDUARDO
Claro que importa! Eu tenho minhas coisas pessoais também.

LAILA
E eu não posso saber? Tem coisas pessoais que a pessoa que deu a virgindade pra você – ou você já se esqueceu? – não pode ver? O que tem sobre você que eu não posso saber, Eduardo?

EDUARDO
Nada, Laila! Mas eu sou uma pessoa e você é outra.

LAILA
Aí é que está. Eu sinto como se fossemos um só.

EDUARDO
(ri)

LAILA
E você ri.

EDUARDO
Você tá me deixando...

LAILA
Como?

EDUARDO
Tá me deixando irritado, Laila. Puta paranoia.

LAILA
Desculpe. Eu avisei que eu sou uma idiota. Eu só tenho medo da quebra do combinado.

(silêncio)

LAILA
Eu tenho uma ideia, Du. Talvez seja bom pra nós dois.

EDUARDO
Diga.

LAILA
Eu sou meio paranoica em não saber o que está acontecendo de algo que deveria estar rolando como combinamos, entende? E aí eu pensei que talvez se combinássemos algo diferente poderia ser menos dolorido pra nós dois. E acho que por causa do seu instinto masculino, pode ser que você adore a ideia.

EDUARDO
O que é?

LAILA
E se a gente combinar um relacionamento aberto? E se nosso namoro for liberal?

EDUARDO
O que?

LAILA
Sei lá, Du. Eu ficaria tão mais tranquila.

EDUARDO
Calma...

LAILA
Eu amo você, Du. De verdade mesmo. E eu gostaria muito de dividir a minha experiência aqui na Terra do seu lado. Até o fim da vida. Só que eu necessito da sinceridade, sabe. E eu não vou conseguir sobreviver sabendo que você pode estar por aí quebrando o nosso trato de fidelidade de casal comum. Me traindo ou sei lá. Coisas que eu poderia nunca ficar sabendo. Igual a Jéssica que foi descobrir dois anos depois que o namorado tinha uma amante. Mas agora se eu souber que podemos ficar com quem a gente quiser eu vou ficar mais tranquila porque o combinado é esse.

EDUARDO
Você quer ficar com outra pessoa, é isso, Laila?

LAILA
Não, Eduardo! Não é isso! Eu gosto muito de você, Eduardo. Será que você não entendeu ainda que eu tô abrindo mão da fidelidade – o que é muito difícil – e abrindo mão da possessão do seu corpo que te pertence e não é meu totalmente – igual você me relembrou agora a pouco – pra ver se de algum jeito nossa história dê certo por um bom tempo?

EDUARDO
Laila, você tá falando sério mesmo?

LAILA
Sim. Se você preferir, se você souber que não vai conseguir ser fiel o resto das nossas vidas, assim eu prefiro. Eu vou dormir melhor.

EDUARDO
E aí a gente poderia ficar com quem a gente quisesse, sem neura?

LAILA
Sim. Sem neura.

EDUARDO
Mas aí a gente teria que contar um pro outro quando acontecesse?

LAILA
Acho que não. Não vejo a necessidade nesse caso. Acho que quando acontece uma traição num casal comum, a primeira coisa que deveria acontecer era um contar pro outro. Mas quando é liberal, foda-se.

(silêncio)

EDUARDO
E você também?

LAILA
O que?

EDUARDO
Você também poderia ficar com quem quisesse?

LAILA
Sim. Direitos iguais. Mas...

EDUARDO
Calma. Por exemplo, se o Juninho viesse aqui em casa e você quisesse dar pra ele ia ficar tudo ok?

LAILA
Sim, acho que sim. Mas eu não daria pro Juninho.

EDUARDO
E daria pra quem?

LAILA
Ai, Du, você não entendeu o ponto?

EDUARDO
Que ponto, Laila? Agora a pouco você tava parecendo uma louca neurótica e agora vem com esse papo de moderninha.

LAILA
Eu tô tentando achar uma solução, Eduardo.

EDUARDO
Pois essa solução é de merda. Eu nem consigo imaginar. Aí eu te como hoje, e você dá pra outro amanhã. Pelo amor de deus, Laila! Se você é minha namorada, você é minha namorada. Não gosto de dividir essas coisas, não. Imagine.

LAILA
Mas eu sou uma e você é outro. Você quem disse. Você tá falando agora como se eu te pertencesse.

EDUARDO
Como que as pessoas dizem? “Essa aqui é minha namorada. Minha”.  Então. Se você é minha, não quero saber de nenhum marmanjo pensando sacanagem pra cima de você.

LAILA
Mas não gostou de você poder ficar com quem quiser? Vai ser um direito por igual. Assim como dizem: chifre trocado não dói.

EDUARDO
Pare de ser louca. Eu não sou desse tipo.

LAILA
Mas, Eduardo, pense bem. Olha, esse tipo de relacionamentos a gente não vê muito por aí. Agora o casal comum a gente vê um monte e tenho um monte de exemplos e testemunhos de sofrimento e infidelidade. Talvez esse tipo de relacionamento aberto tenha uma chance de dar mais certo. Talvez seja o único jeito de a gente conseguir viver feliz, sem encanação e sem paranoia, Du.

EDUARDO
Não. Eu não quero. Se você quiser terminar, tudo bem, Laila. Tem um monte de meninas atrás de mim. Sozinho eu não fico. Mas pra mim, namoro é namoro. Você é só minha.

LAILA
Eu não quero terminar. É a última coisa que eu quero. Eu queria achar um jeito.

EDUARDO
Um jeito de que, Laila? Puta maluquice.

LAILA
Eu queria acreditar em você. Que você vai ser fiel, então.

EDUARDO
Laila, não se preocupe. Eu não sou igual os outros caras. Se eu digo que vou ser fiel, vou ser fiel.

LAILA
Sério?

EDUARDO
Sério, coração. Eu jamais te trairia. E não quero saber de você com outro cara.

LAILA
Então tá bom. Você quer um combinado comum mesmo?

EDUARDO
Sim.

LAILA
Tem certeza, Eduardo? Pense bem.

EDUARDO
Não tem o que pensar. Certeza absoluta.

LAILA
Você jura que nunca vai me trair ou mentir pra mim?

EDUARDO
Juro.

LAILA
Pela sua mãe.

EDUARDO
Juro pela minha mãe morta atrás da porta.

(ela pula no pescoço dele, apaixonados)

LAILA
Eu te amo, meu amor! Muito, muito, muito!

EDUARDO
Eu também te amo.

(eles se beijam)

LAILA
Quem é Camila, Eduardo? Que encontro era aquele?

EDUARDO
Porra, Laila. De novo?

LAILA
Ué. Se nosso relacionamento fosse aberto, foda-se quem ela é. Mas eu tenho que saber quem são as mulheres com que você se encontra e porque diabos se encontra com ela numa terça-feira à tarde. Não tenho que saber se sou sua namorada e guardo meu sexo exclusivamente para você? Se eu me abdico da minha total liberdade por você, eu não tenho o direito de vasculhar e encontrar essas coisas?

EDUARDO
Sim. Tem que saber.

LAILA
Então quem ela é?

EDUARDO

(respira fundo) A Camila é cliente lá da empresa. Sou eu quem faço todo contato com ela e com os funcionários dela. Entendeu? Não é nada disso que você tá pensando.

LAILA
E por que você marcou um encontro com ela numa terça à tarde?

EDUARDO
Ué, que horário marcaria? Se eu tivesse marcado à noite seria muito mais estranho, não?

(silêncio)

LAILA
Hum. Num restaurante?

EDUARDO
Já ouviu falar de puxar o saco do cliente quando se envolve uma compra de três milhões e meio? Além do restaurante mais chique, levei uma garrafa de champanhe caríssimo, e um amuleto banhado à ouro.

LAILA
Hum.

EDUARDO
Ué, se você não acredita eu ligo pra ela e você conversa com ela. Ela vai achar bastante idiota isso tudo.

LAILA
Tudo bem. Não precisa.

EDUARDO
Confia em mim, agora?

LAILA
Sim.

EDUARDO
Mesmo?

LAILA
Sim.

(ele a beija)

EDUARDO
Sua boba.

LAILA
Ela é bonita?

EDUARDO
Linda. Mas você é o triplo.

LAILA
Seu fofo.

EDUARDO
E triplo ciumentinha.

LAILA
Haha. A gente tem que ficar esperto nesse mundo.

EDUARDO
Não é pra tanto, vai.

LAILA
Você nem imagina como são as pessoas, Eduardo. A mentira faz parte da rotina. Seria muito mais fácil se todo mundo fizesse o que a gente fez. Combinar e conversar direitinho sobre as coisas.

EDUARDO
Olha, se todo mundo fosse igual a gente, ninguém nunca mais ouviria falar de decepção amorosa! (ri)

LAILA
Você é um lindo. Vou postar isso. (ela pega o celular) Vamos tirar uma foto. (eles fazem pose; ela posta)

EDUARDO
A sinceridade é um puta de um remédio, não é, amor?

LAILA
Um puta de um remédio. Vou postar isso entre parênteses.

(eles apoiam toscamente a cabeça na cabeça do outro e sorriem; black-out)


INTERLÚDIO

UM DUENDE
The end. (pausa; acende um cigarrinho) Na verdade Joice não é só uma amiga de Eduardo. Eles possuem um vínculo eterno à distância. Um amor meio que pra sempre, entre tapas e beijos. Existe até um filho no meio do caminho, o motivo do vínculo. Que Eduardo finge não existir para a família. A Camila, a da história do encontro à negócios, não tem nada de cliente, ela tem dezessete anos e mora na rua de trás de Eduardo. Dá pra todos que jogam futebol ali na rua. Eduardo é uma exceção sofisticada. Duas mentiras tão bobas e tão bem executadas. É disso que uma pessoa precisa para enganar outra. E o amor cega. Eduardo e Laila possuem um relacionamento aberto sem ela saber. Laila faz de tudo como diz a regra do tal do combinado. Ela nunca acha nenhum outro homem bonito. Bonito é o seu namorado e só. Ela insistiu tanto nessa ideia, que quando ele a pediu em casamento, Laila decidiu se resguardar no sexo para ver se segurava Eduardo por mais tempo dentro do amor. Pobre, Laila. Se abdicou de seu próprio corpo por um outro corpo que se deixou pertencer ao mundo. Laila foi uma criança sonhadora e acreditou nas palavras do seu homem. (pausa) Eduardo, como vemos, já é do tipo mais comum.

(ele dá um beijo na boca do mesmo espectador e sai)


Cena 2: O MENINO ASSOMBRADO

PERSONAGENS
Joice
Breno
Gustavo

(na escuridão, ouve-se gritos de um menino)

(luz; o menino Breno surge correndo, terrivelmente assustado; desesperado, se esconde num cantinho óbvio; chora contido)

BRENO
(chama) Mãe! Manhê! MANHÊ!

(Joice entra correndo)

JOICE
O que foi, Breno? Breno? Sai daí! Tá fazendo o que? O que foi?

BRENO
(choroso) Mãe...

JOICE
Breno, pelo amor de deus, a mamãe tem que entregar aquelas calças até amanhã cedo. Eu vou ter que trabalhar a madrugada toda pra entregar porque sua tia foi numa festa. (pausa) Teve outro pesadelo, filho?

(silêncio)

JOICE
Breno, o que foi? Parecia que te matavam, menino. Os vizinhos vão achar que eu bato em você, Breno. Eu tava lá no barracão e ouvi seus gritos. O que foi?

BRENO
Tem um homem.

JOICE
O que?

BRENO
Tava escuro. Não é pesadelo, mãe. Eu pensava que era. Eu acho que ele entrou pela janela.

JOICE
Chiu.

(ouve-se um barulho longe)

JOICE
Tem certeza, Breno?

BRENO
Ele me segurou. Ele me chacoalhou assim. (se chacoalha)

(Joice segura o filho e pega o celular; ela disca)

BRENO
Liga pra polícia.

JOICE
Chiu. (alguém atende) Gu, sou eu. O filho da puta voltou a entrar aqui, Gu. É. Sei lá. Não, eu não vi. O Breno disse que alguém chacoalhou ele lá no quarto dele. Tem como você vir dar outro sustinho, Gu? Desculpa, viu. Não vai adiantar chamar a polícia. Ele iria fazer um escândalo aqui na frente. Ok. Corra. Beijo. (desliga)

BRENO
Mãe, não era o papai.

JOICE
Você não lembra do seu pai, Breno. Quando você era mais bebê ele pulava a janela pra te ver. E eu pegava ele te chacoalhando pra te acordar. Um puta problema, seu pai.

BRENO
Mas eu lembro que ele não era verde. 

JOICE
O que?

BRENO
O papai não era verde, era? E não tinha uma unha gigante, tinha? Olha. (ele levanta a manga da blusa e está todo arranhado)

JOICE
Ai, meu deus, Breno!

BRENO
Ele era cabeludo.

JOICE
Breno...

BRENO
E ele me chacoalhou sem por as mãos em mim, mãe. Assim. (ele se chacoalha) Só que no alto.

JOICE
Como assim, Breno? Você tá me assustando.

(ouve-se outro barulho)

JOICE
Ai, caralho!

(eles se abraçam)

BRENO
Mãe...

JOICE
Calma, filho. Vai ficar tudo bem. Fique quietinho.

(longo silêncio; eles aguardam no suspense; de repente Gustavo entra assustando a todos; ele carrega um revólver)

JOICE
Ai, meu deus! Gustavo.

GUSTAVO
Oi. Cadê o filho da puta?

JOICE
Que susto que você me deu. Tá carregada?

GUSTAVO
Não. Não era só um sustinho?

JOICE
Sim, sim. Mas...

GUSTAVO
Mas o que? Eu trouxe umas balas.

JOICE
O Breno disse que... é... desculpe. Eu acho que ele teve outro pesadelo e me confundiu, Gu.

BRENO
Mãe, não era pesadelo! Você não viu que ele me arranhou? Ou você acha que eu mesmo fiz em mim?

GUSTAVO
O que tá acontecendo?

JOICE
Ele disse que o cara que entrou pela janela é verde e tem unhas gigantes.

(silêncio)

BRENO
E ele ainda me chacoalhou no alto, perto do teto. E era bem cabeludo, bem cabeludo.

(silêncio)

BRENO
É verdade! É verdade! Eu juro!

GUSTAVO
Vou olhar lá no quarto. (sai)

JOICE
Ai, Breno, que vergonha! A mulher dele me odeia por causa dessas ajudinhas.  

BRENO
Eu juro, mãe!

JOICE
Chiu!

(silêncio)

GUSTAVO
(em off) Não tem nada aqui.

BRENO
Mãe, eu juro! Eu juro.

(Gustavo volta)

GUSTAVO
Nada.

JOICE
Desculpa, Gu. Desculpa mesmo.

GUSTAVO
Imagina. Precisando, só ligar. Tô aqui do lado.

JOICE
Ok. Obrigada.

(ele sai, Joice fecha a porta)

(silêncio)

JOICE
O que aconteceu com seu braço, Breno?

BRENO
Você é surda ou é burra?

JOICE
Breno! Você ficou louco?

BRENO
Eu já disse, mãe. (ele abaixa a cabeça)

JOICE
Nunca mais fale assim comigo, entendeu? Entendeu?

BRENO
(concorda com a cabeça)

JOICE
Breno, não existe essas coisas de homem verde. Quem que inventou isso?

(de repente, algo chama a atenção de Breno)

BRENO
(assustadíssimo) Ali. Tá vendo? Tá vendo, mãe?

JOICE
O que, Breno? Vendo o que?

BRENO
Ele tá parado bem ali olhando pra gente. Naquele cantinho.

(silêncio; tensão)

JOICE
Breno...

BRENO
Não se mexa.

JOICE
Breno, chega!

BRENO
Não se mexa! Não se mexa! Ele tá andando! Ai, meu deus!

JOICE
O que foi? O que foi?

BRENO
Chiu. Ele tá falando.

JOICE
O que ele tá falando?

BRENO
Pra você não se mexer.

JOICE
Breno...

BRENO
Mandou você calar a boca. Chiu. Não se mexa.

(silêncio)

JOICE
E agora? O que ele tá fazendo?

BRENO
Chiu. Ele está perto. Ele está bem perto. Eu sinto o bafo dele. (ele recebe um tapa na cara de alguém invisível) Ah!

JOICE
Filho! Ai, meu deus!

BRENO
Corra, mãe! Corra!

(Joice, confusa, obedece e sai correndo)

JOICE
(em off) Breno! O que está acontecendo?

BRENO
Espere um pouco, mãe! Ele quer me contar um segredo.

(silêncio; Breno aguarda por um segundo e desmonta num sorriso maléfico; ele retira uma maleta com vários tipos de massinhas e maquiagens e rapidamente cola um adesivo na testa como se tivesse tomado um tiro; ele pega um vidrinho com sangue e joga na cabeça)

JOICE
(em off) Breno! O que ele tá dizendo?

BRENO
Calma, ele tá terminando, mãe! (deita no chão e reproduz um barulho de tiro com uma garrafa; ele grita)

(Joice entra correndo)

JOICE
Breno! Breno! (ela vê o corpo) Ai, senhor! Breno! Não, não, não! Meu filho! Meu filhinho. Breno. Ai. (ela chora desesperada sobre o corpo de Breno) Não, não. Socorro!

(ouve-se barulho de vozes e sons assustadores)

JOICE
(grita) O que você quer? Por que fez isso com meu filho, seu desgraçado? Meu filhinho. Meu bebê.

(um foco verde destaca o Duende; Joice fecha os olhos e reza desesperada; auge do suspense)

DUENDE
Meu bebê. Meu bebê. O que você quer? Nós só existimos porque inventamos.

(Breno se levanta num salto; as luzes voltam ao normal e o Duende desaparece)

BRENO
Bu! Haha! Te peguei.

JOICE
Breno...

BRENO
Te assustei?

JOICE
Filhinho...?

BRENO
É maquiagem, mãe. Olha. (ele retira a maquiagem)

(silêncio)

JOICE
Breno...

BRENO
Legal, não é? Não parece de verdade, mesmo?

JOICE
Breno...

BRENO
Ó. E não mancha a roupa.

JOICE
Quem é aquele cara?

BRENO
Que cara, mãe?

JOICE
Aquele cara verde, Breno.

BRENO
Não, mãe. Era brincadeira, sua boba! Você caiu direitinho. Ganhei essa maleta do papai. Ele mandou pelo correio. Tem várias coisas, dá pra fazer queimaduras, arranhões, tiro...

JOICE
Mas quem é aquele cara verde, Breno?

BRENO
Não tem nenhum cara verde, mãe! Era brincadeira. Eu inventei.

JOICE
Eu vi, Breno! Eu vi o cara verde.

BRENO
Oi?

JOICE
Você disse... Você... Ele tava... Ele disse que... (ela de repente acorda do susto e de uma crise surreal) Breno. Por que você fez isso, amor? Você... (ela chora)

BRENO
Mãe!

JOICE
Ai, eu fiquei tão... tão... Breno, você quase me matou, meu filho. Ai, meu deus.

BRENO
Era brincadeira, mãe. Pra descontrair. Você trabalha tanto. Me desculpa. Eu não achei que você fosse se assustar tanto.

JOICE
Ai, filho. Nunca mais faça isso, tá? Nossa. Eu te vi aqui caído e com a cabeça... Ai, Breno.

BRENO
Desculpa, mãe. Desculpa.

JOICE
Tudo bem. Você fez eu chamar o vizinho, Breno. Fala sério, filho.

BRENO
Era brincadeira.

JOICE
Tudo bem. Agora vai dormir que já tá tarde.

BRENO
Você falou que viu o homem verde?

JOICE
Não. Chega desse assunto. Vai dormir.

BRENO
Mas você disse.

JOICE
Eu entrei no calor da situação que você me colocou, Breno. Amanhã a gente vai conversar sério sobre isso, tá bom? Você não sabe como você me deixou, filho. Eu tô tremendo ainda, ó. Você achou que eu ia super dar risada depois, Breno? Pelo amor de deus.

BRENO
Desculpa. Eu vou dormir.

JOICE
E pense no que você fez, Breno. Pense bem se essas brincadeiras tem graça. Você é igualzinho seu pai.

BRENO
Desculpa. (ele sai) Boa noite.

JOICE
Boa noite. (ela suspira forte) Jesus. Eu não acredito nisso. De onde que ele tirou isso?

(Joice se senta exausta por causa do susto)

JOICE
Eu... ai.

(rapidamente uma luz destaca a silhueta de um ser pequeno com orelhas pontudas; suspense rápido)

JOICE
Ai, meu senhor! Tenha piedade da minha alma pecadora, senhor! Jesus Cristo, Maria, José.

BRENO
Haha! Te peguei de novo! (retira a fantasia de duende)

JOICE
Agora eu te mato, seu filho da puta! (ela corre atrás dele que foge) Quando eu te pegar, Breno Eduardo, você não sabe do que eu serei capaz! (desiste de pegá-lo) Puta que o pariu, Breno! Puta que o pariu. Você é filho do seu pai mesmo. Mas que saco! Castigo: sem computador, ouviu? Ouviu?

BRENO
(em off; bravo) Tá bom!

(ouve-se um barulho na porta)

JOICE
O que é agora, moleque? É outra de suas brincadeirinhas, é?

(ela abre a porta e Gustavo (que estava apoiado) cai morto)

JOICE
(ri) Ah, entendi. É uma pegadinha das sérias, então. Entendi. Legal, Gustavo. Parabéns por incentivar a criatividade do meu filho com essas coisas sanguinárias. (irritada) Breno, você é um filho sensacional! (pausa) Vai, levanta daí, Gustavo. Eu tenho um monte de coisa pra fazer ainda. Tenho que entregar um saco de calças até as onze de amanhã. Vai. (pausa) Vai, Gustavo! Que saco!

(Breno entra)

BRENO
Com quem você...? (ele vê o corpo) Ah!

JOICE
O que foi? Chega dessa palhaçada, Breno. Fala pra ele que já acabou a graça. Ou tem mais? Quem mais que eu conheço tá morto por aí?

BRENO
Não, mãe... eu...

JOICE
Vai, Gustavo, chega dessa criancice. Eu tô falando sério, meu. A sua mulher vai ficar me enchendo o saco depois.

BRENO
Ele tá morto de verdade, mãe. Não é da minha maquiagem isso.

JOICE
Breno...

BRENO
Agora é sério, mãe. Eu juro! Liga pra polícia!

JOICE
Breno, faça-me o favor...

BRENO
Mãe! Agora é sério! Eu juro! Eu juro! Ele tá morto.

(silêncio; Joice reflete aflita)

JOICE
Ai, Breno, se for mais uma das suas brincadeiras...

BRENO
Não é, mãe. Não é, eu juro!

(um foco destaca o Duende ao longe; suspense)

JOICE
Ai, meu deus! Ali! Ali!

BRENO
O que?

JOICE
É ele! É ele! (ela abraça o filho) Ai, meu santo senhor! É ele de novo! Ele existe! Ele existe! Eu sabia que eu não tinha imaginado!

DUENDE
É ele de novo! Ele existe! Ele existe! Eu sabia que existia só porque eu imaginei.

(Gustavo se levanta num salto; o Duende desaparece; o suspense some)

GUSTAVO e BRENO
Bu! (eles riem e batem com a mão)

GUSTAVO
Desculpe, Joice. Ele insistiu. Eu achei que fosse ser divertido. Super legal seu kit, Breno.

BRENO
Né? Meu pai que me deu. Meu pai adora essas coisas. Eu não conheço ele. Ele me manda os presentes pelo correio. É legal, né?

GUSTAVO
Super. Vai dar pra brincar bastante. Agora você tem que assustar o pessoal da rua.

BRENO
É. Vai ser legal. Queria primeiro testar na minha mãe. Né, mã? Pra ver se é realista.

GUSTAVO
Poxa, é super realista. Eu adorei. Parece de verdade mesmo. Parabéns, moleque.

BRENO
Valeu. Tá brava ainda, mãe? Era brincadeirinha.

(silêncio)

GUSTAVO
Fica brava, não, tá? Brincadeira de criança. Eu tenho que ir. Até mais, moleque. A gente se vê no futebol, beleza?

BRENO
Beleza.

GUSTAVO
Tchau, Jo. Tranque bem as portas que ontem a noite eu fui assaltado quando eu saía do banco, viu. Você acredita? Mas não precisa ficar nervosa, beleza? Tchau.

BRENO
Tchau.

(ele sai)

JOICE
O...

BRENO
Oi?

JOICE
O...

BRENO
“O” o que, mãe?

JOICE
O homem...

BRENO
O Gu?

JOICE
O homem verde.

BRENO
Era brincadeira, mãe. Relaxe.

JOICE
Existe. Eu vi ele, Breno. Agorinha. Ali.

BRENO
Não, mãe. Acho que você que entrou no calor da situação.

JOICE
Eu vi ele, Breno. Ele existe.

BRENO
Para de ser paranoica. Já não tem mais graça. Não tem mais nenhum outro susto, tá bom? Pode ficar sossegada. Agora eu vou dormir mesmo.

(silêncio; Breno dá um beijo no rosto da mãe e sai; Joice fica por um bom tempo em choque imóvel)

(de repente, um telefone toca; Joice vai até ele)

JOICE
(atende) Alô? Alô? Quem é? (ela desliga)

(o telefone toca novamente)

JOICE
Alô? Quem é? Quem é que tá falando? Alô? (desliga novamente)

(o telefone toca instantaneamente)

JOICE
(atende irritadíssima) Quem é, cacete? Quem é que tá falando?

(ela desliga e arrebenta o fio do telefone; por alguns segundos ela se sente aliviada de conseguir silêncio)

(o telefone toca com o fio arrebentado nas mãos de Joice; espantada, olha para a plateia)

(black-out)


INTERLÚDIO

DUENDE
Não, eu não existia de verdade na história desse pentelho. Eu fui existindo a partir dos momentos que Joice acreditava na minha existência. E aí eu posso chegar a mover objetos com a crença de um cérebro elétrico. Eu passo a existir como se fosse de verdade, e às vezes até fotografado em casos específicos. O que o pentelho do Breno não esperava era que sua mãe era sensível o bastante pra se envolver com o calor da energia de um homem verde inventado. Eu. É assim que se inicia uma casa assombrada, por exemplo. (ex:) Eu acredito, deixo resquícios e histórias. E o povo, besta, vai entrando no calor dos fantasmas que eu inventei – tanto maliciosamente, na maldade, ou como um cara que realmente acredita na sua própria mentira matriz. E a coisa se espalha. E deus se faz verdade e realiza milagres no mesmo sentido. Seja qual deus você estiver falando! Jesus, Jeová, Afrodite, Alá, Waca-waca. O que quiser! Funciona do mesmo jeito. Seja qual demônio ou espírito que você acredita te atazanar. A mentira passa a ser tão verdade que a verdade se torna físico. Concreto, palpável e visível. Uma mentira aqui, faz um furacão do outro lado do mundo. (pausa) Não, acho que não é assim a frase correta.

(ele vai sair, mas antes da uma olhada para o mesmo espectador de sempre)


Cena 3: O LADRÃO BURGUÊS

PERSONAGENS
Gustavo
Celso
Robertson

(quando a luz acende; o policial Celso está segurando Robertson deitado no chão; Gustavo está em pé desesperado)

CELSO
O que ele pegou, rapaz?

GUSTAVO
Meu celular e cinco notas de quinhentos reais que eu acabei de tirar do banco.

CELSO
Cadê o celular dele, filho da puta? E o dinheiro?

ROBERTSON
Eu não sei de nada, senhor.

CELSO
(bate Robertson no chão) Como não sabe de nada? Ele tá falando do quê, então? Me diz.

ROBERTSON
Eu não roubei ninguém, não. Eu não sou ladrão.

CELSO
Não é ladrão e tá fazendo o que por aqui?

ROBERTSON
Eu fui no banco também.

CELSO
Ah, foi no banco? Cadê sua carteira?

ROBERTSON
Eu muquiei.

CELSO
Você o que?

ROBERTSON
Eu moro na rua, senhor. Eu escondo minhas coisas.

CELSO
Que coisas? Que roubou?

GUSTAVO
Olha, eu só quero meu celular, tá bom?

ROBERTSON
Eu não roubei seu celular, seu filho da puta!

GUSTAVO
Pode ficar com os quinhentos reais. Tudo o que vai, volta. O universo é justo. Eu só quero minha agenda de volta.

ROBERTSON
Seu filho da puta...

CELSO
(bate Robertson de novo no chão) Vai devolver o dinheiro também, não vai?

ROBERTSON
Eu não peguei, moço. Eu não peguei.

(Celso se levanta)

CELSO
Fica de pé.

(Robertson obedece; Celso o revista pela segunda vez)

CELSO
Tem certeza que é esse?

GUSTAVO
Tenho. Lembro bem da cara dele com as cinco notas na mão. Uma navalha e o meu celular.

ROBERTSON
Você deve tá confundindo, cacete. Eu não roubei nada!

(Celso acha as notas dentro da cueca; gruda ele pela nuca)

CELSO
Ahá! O que é isso aqui, seu bosta mentiroso? O que é? Agora me explica como esse dinheiro foi parar aí.

(ele entrega o dinheiro para Gustavo)

GUSTAVO
Obrigado, moço. Deixa ele ficar com o celular, então. Não tem problema.

CELSO
Não, não. Ele vai devolver. Cadê a porra do celular?

ROBERTSON
Eu não tenho celular nenhum, moço. Eu juro que eu não peguei nada. Esses quinhentos reais é meu.

CELSO
(ri) Tá bom. Fala logo onde tá a merda do celular dele e daí eu não te levo pra delegacia, fechou?

ROBERTSON
Mas eu não peguei a porra do celular, senhor!

(Celso dá um tapa forte na cara de Robertson)

GUSTAVO
Moço, tudo bem. Não tem problema. Deixa ele ficar com o celular. Faça bom proveito, amigo. Faça bom proveito.

ROBERTSON
Eu tava ajudando lá na obra do Centro Cultural novo, senhor. Quinhentos reais foi o pagamento de vinte dias que eu trabalhei lá. Mas eu já saí. É o único dinheiro que eu tinha. Eu saquei do banco porque eu gosto de guardar comigo. Não gosto de deixar a nota virar gigabytes.

(silêncio)

CELSO
Cadê o celular dele?

ROBERTSON
Eu não peguei nada.

GUSTAVO
Moço, eu vou indo. Pode deixar. Não tem problema. Eu compro outro. Deixa ele ser feliz com o celular. Eu tô super atrasado. Desculpe incomodar.

CELSO
Imagina. Não quer fazer o boletim de ocorrência?

GUSTAVO
Não. Deixa ele, coitado.

ROBERTSON
Coitado.

GUSTAVO
É. Coitado. É o que você é, meu amigo. Um coitado!

ROBERTSON
Eu não sou seu amigo. Você me armou uma boa, hein, rapaz.  Eu sou preto, você é branco. Eu sou pobre. Certo. Estratégia ótima.  

GUSTAVO
Você tá viajando! Eu quero mais é que você exploda com aquele celular, seu verme. Que vá pro inferno com ele. Que você venda e fume tudo aquela porcaria.

ROBERTSON
Eu não fumo. Nem cigarro.

CELSO
Tem certeza que não quer fazer o B.O.?

GUSTAVO
Certeza. Esse verme vai morrer pedindo.

CELSO
Olha aí, seu filho da puta, esse homem aqui tá te dando um presentão. Fique grato. E eu tô de bom humor hoje. Não quero mais te ver por essas bandas. Você entendeu?

ROBERTSON
Eu não tenho nada de dinheiro pra janta de hoje. Trinta e três centavos no banco.

CELSO
Você entendeu o que eu te falei?

(Gustavo retira uma nota de dez reais da carteira e entrega para Robertson; Robertson, revoltadíssimo bate com força na mão de Gustavo)

GUSTAVO
Ai, tá louco?

ROBERTSON
(vai pra cima de Gustavo, mas Celso impede) Vai se fuder, seu burguesinho de merda! Você me armou uma boa! Você consegue dormir a noite, seu filho de uma cadela desgraçada? (chora de raiva)

CELSO
Fica quieto! Fica quieto!

GUSTAVO
Ingrato de merda. Essa raça devia ser exterminada das ruas.

(ouve-se um celular; os três ficam em silêncio)

CELSO
Cadê? Tá aqui? É o barulho do seu?

GUSTAVO
Não sei.

ROBERTSON
Tá no seu bolso, seu puto.

(silêncio)

GUSTAVO
(retira o celular) Esse é o meu vivo. Ele roubou o que tem dois chips.

ROBERTSON
Mentiroso! Você é um caralho de um ator, seu...! Eu não acredito! (para Celso) Senhor, pelo amor de deus. Eu sei que eu sou preto e pobre, mas esse dinheiro eu realmente saquei no banco. Se você quiser ir ver, dá pra gente tirar um extrato. Eu juro. O dinheiro é meu. Eu suei pra ganhar aqueles cinco papeizinhos. O celular dele tá ali! Eu não roubei porra de celular de dois chips nenhum! Eu nem sei mexer nessas porras e eu não uso drogas. Tô na rua porque aconteceu umas merdas, caralho. Tudo bem, eu bebo. Confesso. Sou alcoólatra. Mas nunca fui ladrão. Arrumei um trampo lá no Centro Cultural novo porque eu gosto de ler e vou sempre na biblioteca. Isso que tá acontecendo aqui é um puta de um preconceito só porque eu sou preto e pobre. Ele armou tudo isso, moço!

GUSTAVO
Que absurdo!

ROBERTSON
Armou! Armou sim! Seu corno! Você passa necessidade, moço? Quinhentão vale quanto pra você, seu moleque? Por que fez isso comigo?

CELSO
Rapaz, eu acho melhor todos irmos para a delegacia.

GUSTAVO e ROBERTSON
Não!

GUSTAVO
Vamos resolver isso aqui. Por favor. Não quero causar problemas pra ninguém. Esse homem é louco, senhor. Eu tô super atrasado. Eu não me importo com o celular. Com os quinhentos eu compro outro.

CELSO
É verdade tudo isso que você tá falando mesmo, rapaz?

GUSTAVO
Oras, mas...! Você acha que eu ia armar uma puta conspiração dessas! Você não tá acreditando nele, né? O cara mora na rua, vai saber o que passa pela cabeça dessas pessoas!

CELSO
Acho melhor todos irmos para a delegacia.

ROBERTSON
Senhor, pelo amor de deus. Você parece ser um policial direito e tal. Mas você sabe como é. Eu sou preto e pobre e vou me fuder. Ele liga pro advogado e o advogado dele mete um pau no meu cu. Deixa ele levar os meus quinhentão, então. Não tem problema. Tudo o que vai, volta.

GUSTAVO
Não, calma. Agora vai ficar parecendo que você fez uma boa ação por mim, é isso? Fala sério, rapaz. Diz tanto que estuda, que lê, e tá morando na rua por quê?

ROBERTSON
Minha vida não foi igual a sua.

GUSTAVO
Graças a deus! Por que se a minha fosse igual a sua, eu me mataria. Ou pelo menos deixaria de roubar as pessoas inocentes. Você tá de brincadeira com esse papo, né? Eu saí do banco, você me segurou, pegou meu celular da vivo e os quinhentos reais que eu segurava na mão e saiu correndo. Você já se esqueceu disso, é?

ROBERTSON
Não aconteceu nada disso.

CELSO
Não era o celular de dois chips que ele tinha pego?

GUSTAVO
Oi?

CELSO
Você tinha dito que era o celular de dois chips que ele tinha roubado. E que esse era o da vivo.

GUSTAVO
Ah, sim! Eu me confundi! É isso mesmo. Olha, eu só acho que ele precisa de um tratamento, não de cadeia. Ele é meio variado da cabeça.

ROBERTSON
Eu acho que a gente devia ir até o banco e tirar um extrato das duas contas. Da sua e da minha. Pra ver quem sacou quinhentos reais hoje.

(silêncio)

CELSO
É uma boa ideia. Eu tô tão ansioso.

GUSTAVO
O que?

CELSO
Nada, nada.

GUSTAVO
Olha, quer saber. Eu já perdi muito tempo com essa discussão idiota por causa de quinhentos reais. Como você disse, amigo, eu não passo necessidade mesmo. Toma. (entrega o dinheiro para Robertson)

CELSO
O que?

GUSTAVO
Eu acho que tudo bem. Não tem problema. Quinhentos reais é bastante, mas eu dou um jeito. Muito obrigado por tudo mesmo, senhor. Desculpa essa confusão. É que eu não quero arranjar problemas pra ele. Ele já deve ter tido tanta coisa ruim na vida, que eu tenho um pouco de pena até, sabe. Mas tudo bem.

ROBERTSON
Meu deus, como você é um sínico filho da mãe.

GUSTAVO
(ri) Ai, ai. Eu vou indo, tá bom. Já me atrasei para um compromisso importantíssimo.

CELSO
Não. Calma. Acho que a gente devia ir até o banco e ver o extrato.

GUSTAVO
Não, mas sem nenhum mandato isso não pode e não deve acontecer.

CELSO
Mas eu achei que a gente tava tentando resolver por aqui mesmo.

GUSTAVO
E tava. Eu também, poxa. Mas eu não quero arrumar mais problemas pra ele...

CELSO
Não, não. Isso tá me parecendo que pode ser que ele realmente tenha caído numa presepada. Você é um cara branco, esperto. Aí como ficou muito perigoso, é melhor deixar quieto. Cair fora. Não é? Porque se formos ver o extrato do banco veremos que ele realmente sacou quinhentos reais, não é isso?

GUSTAVO
(pasmo) Você tá de brincadeira comigo! Fui eu quem te chamei, pelo amor de deus! Esse cara me assaltou! Roubou meu celular e eu deixei ele ficar com a porra do meu celular de dois chips onde eu tinha um monte de contatos e fotos, e dos meus quinhentos reais – que não importa como eu ganhei!

(silêncio)

CELSO
Calma. Vocês dois são muito bons. Eu acho melhor todos irmos para a delegacia.

GUSTAVO e ROBERTSON
Não!

ROBERTSON
Por favor, moço! Vão me fuder!

GUSTAVO
Eu tô atrasado. Só vai arrumar dor de cabeça.

(outro celular toca longe)

CELSO
Tá ouvindo? É o seu?

GUSTAVO
Não sei.

CELSO
Onde tá? (para Robertson) Onde tá, seu bosta?

(Gustavo acha)

GUSTAVO
Achei! Aqui! Tava dentro desse buraco.

CELSO
É esse?

GUSTAVO
Esse mesmo. Olha as minhas fotos. Essa aqui é minha namorada.

CELSO
Hum. Deixa eu ver. (vê) Parabéns. Branquinha, ela, né?

GUSTAVO
Lindíssima. Pessoalmente mais linda e mais branca ainda.

CELSO
Ela parece ser gente fina.

GUSTAVO
Sim. Essa é minha mãe, ó.

CELSO
Nossa. Nova, ela. Olho claro? Você não tem olho claro.

GUSTAVO
Não. Puxei meu pai. Meus dois irmãos tem olho claro, menos eu. Falam que eu sou a cota na família, entende?

CELSO
(ri) Ah, sim. A cota. Sim, sim. Boa.

GUSTAVO
Enfim.

(silêncio)

CELSO
Bom. (para Robertson) Caramba, rapaz. Você quase me enganou direitinho, hein. 

ROBERTSON
Eu não peguei a porra do celular dele. Estranho ele ter achado, não?

CELSO
Pode parar! Não me venha mais com essas merdas. Foi uma conspiração bastante estranha, mas tá estampado na cara o que aconteceu aqui. Nem precisa pensar duas vezes. Você, como bom leitor e estudante – como disse –, soube interpretar bem um injustiçado caindo numa armadilha de um burguês. Parabéns. Você quase que me convenceu. Mas as origens não negam. Não tem o que negar com esse fato.

ROBERTSON
O fato de eu ser negro.

CELSO
Olha pra mim, você acha que eu sou racista, rapaz? Eu trabalho com o povo. Pelo povo. Eu não sou nenhum pouco racista. A prima da minha esposa é negra, rapaz. Mas agora eu tenho culpa de eu ter que bater mais em negros que em brancos? Tenho culpa de a realidade ser essa?

GUSTAVO
Imagina. Quer saber? Como ele é um ingrato, mentiroso e bêbado, eu vou pegar os quinhentos reais de volta. E acho que vou fazer o boletim de ocorrência, sim. (ele pega o dinheiro da mão de Robertson que não reage)

CELSO
Tá certo. Faça isso mesmo. Esses filhos da puta tão ficando espertos demais. Por isso que acho que não devíamos deixar essas porras estudar. Tinha que jogar numa ilha no meio do oceano. Todos esses porras, pra eles se matarem sozinhos.

GUSTAVO
Não ia ter nada pra roubar lá.

CELSO
Exato. E aí eles iam se comer vivos.

GUSTAVO
Sensacional.

(eles riem; Robertson continua imóvel; drama)

ROBERTSON
A única coisa que eu roubei na vida foi uma bolacha Passatempo no supermercado quando eu era criança. Meu pai me deu uma surra e nunca mais eu quis brincar de ser ilegal. Mas o problema é que eu já nasci ilegal. Nasci pobre, preto.

(Robertson aparece preso numa cela; num telão aparecem imagens das fotografias dele como presidiário, de frente e de perfil; música trágica com uma risada maléfica de Gustavo num foco)

(black-out)


INTERLÚDIO: A VERDADE DO BURGUÊS LADRÃO E A FORÇA DO NOSSO PRECONCEITO

DUENDE
Um bom mentiroso sabe reverter situações inacreditáveis. Às vezes os planos falham. Mas o que importa é a moral da história. Existem mentirosos do bem e mentirosos do mal. E todos nós somos enganados. Às vezes sentimos pena da pessoa errada. (pausa) As câmeras de segurança não podem negar! Flashback!

(Robertson está fumando um cigarro; num telão mostra-se a cena como uma câmera de segurança)

ROBERTSON
Tá vendo ali na esquina? Ali? Tem um banco ali. E um branco. Tem um cara branco sacando dinheiro no banco. Ele me viu a hora que entrou e agora tá com medo de sair. Tá falando no telefone. Sabem por que ele tá com medo de sair? Porque são onze e meia da noite, não tem mais ninguém passando na rua, e tem um negro fumando um cigarro do outro lado da esquina. Ele deve pensar: “Puxa, negro, fudido, precisa de grana, vai me assaltar.” E se tiver com uma roupa um pouco mais larga então. (pausa) Eu fico um pouco fudido com essas coisas. O cara já tá com medo de mim porque eu sou o que? Por que eu fiz o que pra ele? (pausa) Alguém aí já passou fome?

(Gustavo entra e se assusta com Robertson toscamente)

GUSTAVO
Oh!

(Robertson, com uma navalha, agarra Gustavo e tira o celular do bolso dele e o dinheiro da mão)

GUSTAVO
Não, por favor!

DUENDE e ROBERTSON
Estamos tornando físico e concreto a força do nosso preconceito.

(o Duende e Robertson correm; silêncio)

GUSTAVO
Puxa vida. Até eu quase acreditei que aquele específico personagem fosse um injustiçado das classes sociais. Realismo é realismo. (pausa) Polícia! Polícia! Socorro!

(black-out)



Cena 4: O HOMEM VERDE DA NOVELA ALHEIA

PERSONAGENS
Joice
Eduardo
Laila
Camila
Duende

(Joice e Eduardo se encaram sentados)

JOICE
Você é um idiota.

EDUARDO
Eu adoro ver você.

JOICE
Seu filho é um idiota. Ele é igualzinho você.

EDUARDO
E você não me deixa vê-lo.

JOICE
Você iria coloca-lo contra mim. Você iria pervertê-lo. Eu já disse, espere ele crescer. Quando ele puder pensar você vai poder vê-lo.

EDUARDO
Você é uma vaca.

JOICE
Mas você precisa dessa vaca, não precisa?

EDUARDO
Você sabe bem que eu tenho meus rolos, né?

JOICE
Não tem mais rolas que eu.

(silêncio)

EDUARDO
Eu disso rolos.

JOICE
Eu disse rolas mesmo.

EDUARDO
Você é uma vadia.

JOICE
Por que? Por que vadia?

EDUARDO
Só vadia. Eu gosto de falar vadia.

JOICE
E você é uma bicha.

EDUARDO
Não, isso eu não sou.

JOICE
Uma bichona, na verdade.

EDUARDO
(ri) Quer pegar na bichona? Já tá estralando.

JOICE
Seu puto.

(eles se beijam)

JOICE
Seu filho me deixou louca esses dias. Você tem ido em casa à noite, Eduardo?

EDUARDO
Eu? Não. Eu respeito sua posição.

JOICE
Alguém tem me ligado. E ninguém fala nada. E todo dia eu tenho tido a impressão de que tem alguém tentando entrar, ou rondando a casa, sabe? Seu filho me deixou tão paranoica com uma brincadeira que ele fez com aquelas maquiagens que você deu pra ele. Eu, no auge do susto – porque ele fingiu que tinha tomado um tiro na testa, Eduardo, você acredita? – no auge do susto, cheguei a ver a porra do homem verde que ele disse. Agora eu não consigo lembrar se eu realmente vi, ou se foi uma brisa forte por causa do susto. E aí começa acontecer esses negócios. O telefone tocou com o fio arrebentado na minha mão, Eduardo. Você acredita? Eu pesquisei na internet e pode ser que tenha sido um mal contato dentro do telefone, sem ter a ver com a linha, a rede, sei lá. Uma loucura. Aí eu fico ouvindo passos e uma vozes e... (pausa) Ai, eu tô parecendo uma louca, não tô? Seu filho, Eduardo! Ele é igualzinho você! Um puta de um ator! Devia ir fazer teatro aquele menino. Imagine a cena, Eduardo, eu chorando toda esgoelada em cima do corpo dele com uma porra de maquiagem de furo na testa. Você imagine isso. E ele insistiu no susto. Me assustou três vezes, aquele filho da puta! E o vizinho ajudou ele. Aquele idiota.

EDUARDO
Que vizinho?

JOICE
O vizinho, o Gustavo, marido da Amanda Tulipa.

EDUARDO
Sei.

JOICE
E agora tá acontecendo essas coisas. Eu não sei mais o que fazer. Eu tenho ido dormir todo dia cagando de medo de apagar a luz e ver aquele cara verde de novo.

EDUARDO
Cara verde. Como ele era?

JOICE
Ai, eu não sei! Era um duende, eu acho! Cabeludo, orelhudo! Verde! De pele verde! Horripilante, eu não gosto nem de lembrar. Mas pode ser que eu imaginei. Mas o foda são essas coisas que agora estão acontecendo.

(um celular toca)

JOICE
Ai! Que susto. Quem é?

EDUARDO
Peraí. (ele atende) Alô? Oi. Sim. Uhum. Sim. Beleza. Eu também. Beijo. (desliga)

JOICE
Quem era?

EDUARDO
Joice... é... isso é muito estranho...

JOICE
O que foi?

EDUARDO
Olha, sabe, eu gosto muito de você. Bastante. Nosso sexo é sensacional. Mas... é...

JOICE
Mas o que Eduardo? Você quer terminar?

EDUARDO
Então, terminar o que, né? A gente não tem nada.

JOICE
Então.

(silêncio)

EDUARDO
A menina que eu tô namorando descobriu. Ela vasculhou algumas coisas, desconfiou, eu neguei, mas aí ela descobriu. E você não acredita como ela descobriu. E o pior é que eu gosto dela. (pausa) Talvez seja ela quem esteja rondando sua casa. Porque ela é meio paranoica.

JOICE
O que?

EDUARDO
Pois é.

JOICE
Nós temos um filho juntos, não se esqueça. E ele é um louco que eu não vou conseguir criar depois de grande.

EDUARDO
Eu sei. Mas acho que a gente não devia ter mais nada, entende?

JOICE
Sexo. A melhor parte?

EDUARDO
Eu sei, eu sei.

JOICE
Você é um imbecil. E aquela vaca é uma outra imbecil. Fale pra ela parar de ser louca e deixar minha família em paz, você entendeu? Não quero saber de ninguém rondando minha casa.

EDUARDO
O mais estranho...

JOICE
O que foi?

EDUARDO
É que sabe o que ela disse quando eu perguntei quem tinha contado sobre você e sobre a Camila?

JOICE
Quem é Camila?

EDUARDO
Não vem ao caso. Uma biscatinha que eu comia. Não como mais. Mas sabe o que ela disse? Sabe o que ela disse quem contou pra ela?

JOICE
Ah, é? Alguém contou pra ela? Quem?

EDUARDO
Ela disse que logo depois da nossa conversa de combinado de namoro, ela tinha saído de cena e estava ali no fundo. Foi aí que ela ouviu e viu um homem verde falar toda a verdade sobre quem éramos. Falou com detalhes. Ela falou que ele falou que eu tinha um filho e que eu era um homem do tipo comum.

(silêncio; suspense)

JOICE
E você é mesmo do tipo comum. Meu santo deus!

EDUARDO
Mas não é uma coincidência extraordinária? Talvez esse homem verde realmente exista.

JOICE
Sim. É uma assombração com todos que tem ligação com você, Eduardo! Seu filho é um diabinho, eu estou sendo assombrada por telefonemas e barulhos estranhos, sua namoradinha teve essas visões brechtianas. E você? Não sabe de nada?

EDUARDO
Eu não sei de nada. Nunca vi nenhum cara verde.

JOICE
Então o que será tudo isso?

(o Duende entra entediado)

DUENDE
Olha, vamo parar com essa porcaria aqui. Tá todo mundo cansado. Vocês querem ver o homem verde? Aqui estou eu. Pronto, sem neura. Eu não sou maléfico e nem sou uma assombração. Minha função aqui é a de palpitar e de ser o alter ego do inventor. Faço também boa parte da complicação da história, mas isso sempre existe a necessidade de acontecer, então... Bem, eis me aqui. Olá! Ficaram chocados? Relaxem que eu estou aqui só pra encher linguiça.

(eles observam completamente chocados; com a boca arreganhada e os olhos esbugalhados de terror)

DUENDE
E aí? Ninguém vai me oferecer um café?

JOICE e EDUARDO
(gritam) AAAAAAAAAAAAAAH!

DUENDE
Merda de realismo barato.

(Black-out)

CONTINUA...