MINHA MÃE CONTRA O DIABO


MINHA MÃE CONTRA O DIABO
Monólogo de Gabriel Tonin

CENÁRIO: DUAS MÁSCARAS EM EXPOSIÇÃO; UMA MÁSCARA DA MÃE E A OUTRA MÁSCARA DO DIABO.

cena única

ATOR
Antes de morrer, um dia eu acordei de madrugada e a minha mãe tava discutindo com o diabo. Discutindo não, minha mãe tava saindo no soco com o diabo. Foi um pouco antes de morrer. Minha mãe sempre foi dada como maluca; fortona, poderosa, popular, mas maluca. Brigar com o diabo era até coisa normal perto das coisas que ela já fez. Uma vez minha mãe matou uma anaconda num sítio que a gente ia; quebrou a boca da cobra gigante abrindo a mandíbula do bicho assim. Uma vez também minha mãe ajudou um cara bêbado todo ensanguentado que tinha apanhado num bar, aí ninguém da rua queria ajudar o cara porque falavam que o cara era HIV positivo; minha mãe pegou o cara no colo e levou pro médico sozinha. Minha mãe, essa.  Uma vez minha mãe viu a face de deus também. Parece bobeira, mas é real. Minha mãe foi uma das poucas pessoas na história desse planeta que descobriu a verdade das verdades sobre o que é deus. O deus verdadeiro, não esse deus de vocês aí. Minha mãe sabia. A sua mãe não sabe, mas a minha sabe. E aí ela tinha moral pra peitar o chifrudo, moral de verdade, não igual essa infestação de falsos moralistas que a gente tá vivendo. Minha mãe saía no soco com o diabo e que se foda. Mas claro, o diabo é o diabo. O diabo venceu a minha mãe, de certa forma. O diabo matou a minha mãe. Não sem sair com um olho roxo, minha mãe era osso duro de roer, gênio forte, resistiu até o fim. Mas... morreu. Tá tudo bem, faz bastante tempo, eu já nem tenho tanta saudade assim. Eu só tô fazendo essa apresentação porque essas máscaras estavam paradas lá em casa e aí eu escrevi essa história pra sobreviver mais um pouco nessa loucura. (PAUSA) Mas é real. Minha mãe descobriu o segredo do segredo da vida! E é por isso que a gente tá aqui hoje! Mas... o grande problema disso tudo é que não é fácil aplicar, colocar em prática, minha mãe não conseguiu aplicar completamente, morreu na treta, claro.  Em teoria, deus e o diabo é coisa simples de entender. Na prática, só minha mãe sabia. A sua mãe não sabia, mas a minha mãe sabia. Minha mãe que sabia não conseguiu aplicar direito, agora imagine você e sua mãe que não sabem de nada! Minha mãe não deixou um legado, não deixou um livro, nenhuma carta. Tudo o que ela deixou como prova da verdade sobre a nossa existência – vejam só, adivinhem! - fui eu! Nós não estamos aqui nessa posição - eu aqui, vocês aí - por acaso. Isso tudo está programado pra que vocês também saibam a verdade das verdades das verdades! A minha mãe sabia, a sua mãe pode dizer o mesmo? Ah, meu amigo, eu acho que não.

(ELE VAI ATÉ A MÁSCARA DA MÃE)

ATOR
Depois de década, eu voltei a morar na casa que eu morava com a minha mãe. E eu aprendi a incorporar a minha mãe. É verdade, eu posso incorporar o espírito da minha mãe. Esse teatro todo é pra mostrar pra vocês como é que o sobrenatural divino e, também o maldito funcionam. Por favor, tenham respeito com a lembrança da minha mãe.

(ELE VESTE A MÁSCARA DA MÃE; ELE DANÇA ESQUISITO, TALVEZ ATÉ SEM MÚSICA)

MÃE
Eu não matei uma anaconda, não é real essa história. A lembrança das coisas na cabeça das crianças vem sempre com mais peso dramático do que o fato. Uma acontecimento traumático triplica na cabeça de uma criança. Era só uma cobra morta que a gente achou num sítio de um amigo, e aí eu abri a boca da cobra pra mostrar os dentes dela pra ele. Ele devia ter uns seis, sete anos. Mas é bonito essa lembrança de me ver como uma guerreira selvagem matadora de anacondas. (SILÊNCIO) Sobre a briga com o diabo, isso aconteceu mesmo. Foi verdadeiro. Eu saí no soco com o capeta. Perdi, mas lutei. E agora nem importa mais. Mas o diabo ficou com medo de mim, porque eu tinha descoberto a verdade das verdades sobre tudo. E ele veio em pessoa me destruir. Dizem que quando você descobre uma grande verdade sobre a existência, sobre deus e o diabo, você não pode mais sobreviver, porque nós seres humanos feitos de carne não podemos suportar fisicamente a capacidade de saber de toda a verdade ainda. Então pessoas que descobrem alguma coisa muito extraordinária, elas simplesmente precisam morrer, passar adiante na existência; tudo tem seu tempo pra acontecer, inclusive a morte da sua mãe.

(ELE TIRA A MÁSCARA, UM TANTO CONFUSO)

ATOR
Sua mãe vai morrer. Você vai morrer. Nós todos vamos morrer. Com tantos anos de balbúrdia, drogas e satanismo teatral eu também aprendi a incorporar as coisas do diabo. Não se preocupem, é papelão.

(ELE VESTE A MÁSCARA DO DIABO E DANÇA UMA MÚSICA TOSCA; DURANTE A MÚSICA ELE PREPARA ALGUMAS GARRAFAS COMO COQUETEL MOLOTOV)

DIABO
É de mentira! O diabo é de mentira, não se preocupem tanto! Vocês humanos médios não possuem a capacidade de entender a grandiosidade de um evento teatral. Nem me preocupo com essa doutrinação existencial porque ninguém aqui leva nada a sério realmente. Eu tô cagando e vocês tão cagando também. Pode cagar. A verdade tem vários pontos de vistas, mas no final, bem no final dos termos e dos fatos, uma única verdade é a verdade das verdades, e não há nada que vocês possam fazer. (ELE DISTRIBUI AS GARRAFAS DE COQUETEL MOLOTOV PARA O PÚBLICO) Vocês não podem brigar contra a verdade, mas vocês todos podem tomar as decisões, isso não é coisa só do diabo não. Todo mundo carrega o mundo nas costas, inclusive eu, e inclusive você. Todo mundo está no limite até que a gente ultrapasse o limite, até a explosão do nosso verdadeiro espírito, do nosso verdadeiro eu. Você garante esse controle? Você precisa realmente garantir esse controle? Taca fogo nessa porra, bicho! É performance teatral, bora lá! Todo mundo junto! Que se foda, vai!

(ELE TIRA A MÁSCARA RAPIDAMENTE)

ATOR
NÃO! Não! A minha mãe quer contar a verdade pra vocês. Não percam o limite da civilidade, por favor, não ainda.  

DIABO
Isso tá parecendo teatro de terapia.

ATOR
Não é teatro de terapia, é que o bagulho é louco, cara. A vida é uma maluquice sem tamanho mesmo. Eu tenho memórias muito malucas, experiências esquisitíssimas, que eu não posso explicar. Não é terapia, isso aqui é uma mensagem interestelar, bicho!

DIABO
Ah! (GARGALHA) Ah, meu deus do céu, essa criançada, esses jovens doutrinados por essas coisas esquisitas de ficar conversando com duas máscaras sobre deus e o diabo e anacondas! São esses jovens que precisam ser internados de verdade!

ATOR
Você é o diabo! Ninguém vai ouvir o diabo. Todo mundo sabe que você é o pai da mentira.

DIABO
Até porque você está em cena sozinho, né, companheiro?

(O ATOR PERCEBE O QUÃO MALUCO DEVE ESTAR PARECENDO E SE ENVERGONHA)

ATOR
Eu não sei o que me fez vir aqui contar essa história pra vocês. Tava no ar, eu tinha as máscaras lá em casa. Sintonizei uma frequência, conversei com a minha mãe se ela topava fazer uma participação, e aí fui fazendo, até chegarmos aqui hoje. Eu não tenho como explicar pra vocês os significados todos, eu sei que eu falo muito sobre muitas coisas avulsas, mas... a minha mãe sabia. A sua mãe não pode dizer o mesmo, que pena.

(COLOCA A MÁSCARA DA MÃE NOVAMENTE)

MÃE
Eu ainda era muito jovem quando eu vi a face de deus. Primeiro eu vi deus, só depois que eu fui me meter com o diabo. E deus me disse um segredo que no fim causou a minha morte. Eu estava doente, HIV positivo também, eles disseram. Por isso não me importei em pegar o cara que apanhou no bar no colo, HIV não pega duas vezes, levei o cara no braço. Anos noventa, vários amigos morrendo dessa maldita. Deus apareceu pra mim e me disse que o poder da cura estava na fé. Abriu uma igreja evangélica perto de casa. Eu sempre tinha sido católica, não muito praticante, mas sempre gostei do lado místico do mundo. Até que esse pastor me mostrou que Jesus podia me curar, que só Jesus podia salvar a minha alma, e a alma dos meus filhos. E que só Jesus podia me curar do HIV.

(RAPIDAMENTE ELE TIRA A MÁSCARA DA MÃE E VESTE A DO DIABO)

DIABO
Jesus é a cura de todos os males, filha. Larga esse remédio! Não toma mais esse remédio não, filha! Você não precisa! Jesus disse que a fé cura! Tenha fé nele e você também será curada!

(ELE VOLTA COM A MÁSCARA DA MÃE)

MÃE
E eu botei fé. Falei: “Quer saber? Vou botar fé nesse Jesus.” Voltei pra casa absurdada, plena da verdade, completamente convicta desse novo segredo chamado Jesus Cristo. Eles tinham relatos, tem vários testemunhos de gente que se curou do HIV na base da fé em Jesus. (PAUSA) Mas aconteceu que... no meu caso... o diabo foi mais forte que a minha fé. O diabo é a dúvida, todo mundo sabe disso. Essa pequena dúvida que ainda existia dentro de mim, impediu que eu me curasse e então... eu morri.

(ELE TIRA A MÁSCARA)

ELE
A culpa sempre foi toda minha. Por isso essa peça. Eu também passei a ir na igreja com ela, eu era adolescente na época. Uma coisa que me afetava bastante era não conseguir controlar a minha masturbação. Na igreja falavam que era pecado e eu sofria muito com isso. Aí eu tinha ficado uns dois meses e meio sem me masturbar, tinha conseguido na base da fé em Jesus Cristo mesmo, tanto eu como minha mãe, a gente tava vivendo aquilo tudo intensamente evangélicos, era a onda do momento, era real. Aí... no dia que eu dei um deslize nessa minha penitência, depois de dois meses e meio sem bater uma, eu não consegui segurar e meio que gozei no banho, meio sem querer, meio querendo. Nesse mesmo dia, foi o dia que a minha mãe morreu. (PAUSA) Eu hoje acredito que de certa forma até tem uma conexão entra minha punheta e a morte da minha mãe, mas obviamente não acho mais que foi deus me punindo pelo meu pecado ou qualquer bobagem do tipo; talvez uma ligação muito avulsa de fé e culpa, mas definitivamente não porque masturbação seja realmente pecado e que deus seja um cara branco barbudo se importando com questões sexuais tão bobas. Imagine só quantas crianças nesse momento não estão criando histórias bizarras como essa em traumas religiosos que ninguém nunca mais vai poder consertar! O perigo que se faz com as crianças nesses templos, a gente quase não tem noção. Esse também é um dos motivos de estarmos aqui hoje.

(COM UM ALFINETE ELE FURA O PRÓPRIO DEDO FAZENDO UMA GOTA DE SANGUE REAL)

ATOR
Eu acho que a minha mãe estava certa na teoria da busca da cura pela fé. Eu não tenho como provar ainda, mas se ela tivesse vencido a dúvida, eu acho realmente que ela poderia ter se curado em nome de Jesus Cristo. E que fosse no nome de quem fosse. Poderia ser pela fé num santo, na ferradura de um cavalo ou pela fé na ciência, inclusive! Não importa o canal, importa a força na crença, a energia da fé. (PAUSA) Devo estar parecendo um desses pastores que vendem e compram a fé das pessoas, né? Ou um desses palestrinhas de auto ajuda. Mas pelo menos eu usei do teatro falando que é teatro e não fingindo que é tudo de verdade. (PAUSA) A minha mãe não sabia de tudo. Mas que a minha mãe era melhor que a mãe de vocês, disso eu não tenho dúvida. A minha mãe era a melhor do mundo, e não importa o que vocês acham. Minha mãe era foda. Minha mãe peitou o diabo, bicho, peitou a morte pela verdade que acreditava. Quem é a sua mãe perto da minha mãe, parceiro? Sua mãe tem uma peça de teatro em homenagem pra ela? Aposto que não tem. Eu falo, minha mãe é foda.

(ELE ACENDE UMA VELA E TRANSFORMA AS GARRAFAS DE MOLOTOV EM VASOS DE FLORES)

ATOR
Vocês tem sorte de eu ser maluco, mas de ser um maluco cirandeiro. Agradeço a presença de todo mundo. 

FIM