A FAMOSA LENDA DO MENINO COR DE ROSA QUE VIRAVA GOLFINHO DE RIO DOCE

A FAMOSA LENDA DO MENINO COR DE ROSA QUE VIRAVA GOLFINHO DE RIO DOCE
De Gabriel Tonin

PERSONAGENS
VOVÓ IAPONIRA
BOTÂNIA (MULHER ROSADA)
GUMERCINDO BOI
GUTO (MENINO ROSADO)
GUTO (RAPAZ ROSADO)
JENYFER
NETOS
CONVIDADOS
APRESENTADOR
VOVÓ IAPONIRA (CRIANÇA)


INTRODUÇÃO

(OS ARTISTAS ENTRAM EM FESTA)

TODOS
Os pastores dessa aldeia
fazem prece noite e dia
Os pastores dessa aldeia
fazem prece noite e dia
Como poderei viver
Como poderei viver...

Como pode um peixe vivo
Viver fora da água fria?
Como pode um peixe vivo
Viver fora da água fria?
Como poderei viver?
Como poderei viver?

Sem a tua, sem a tua
Sem a tua companhia
Sem a tua, sem a tua
Sem a tua companhia.


CENA 1

(VOVÓ IAPONIRA CONTA UMA HISTÓRIA PARA SEUS NETOS)

VOVÓ IAPONIRA
Atenção! Atenção! Agora eu vou contar a história pra vocês que minha mãe contava pra mim quando eu era só uma criancinha.

NETO 
Nossa, então faz um tempão, hein!

NETO
Ei, nem faz tanto tempo assim, a vó só tem cento e oitenta e oito anos, né, vó?

VOVÓ IAPONIRA
Calma, calma! Cento e oitenta e oito não. Oitenta e oito!

NETO
Nossa, é muito velha!

VOVÓ IAPONIRA
Não, não, não. Não pode falar assim não. Eu estou na melhor idade. E só por isso que eu sei de toda a verdade da história que eu vou contar. É a história da lenda do menino cor de rosa!

NETO
Menino cor de rosa?

NETO
Mas rosa é cor de menina, vó!

VOVÓ IAPONIRA
Ué, e quem foi que criou essa regra?

NETO
Ah, vó, todo mundo sabe disso. Azul é cor de menino e rosa é cor de menina.

VOVÓ IAPONIRA
Pois regras bobas são quebradas pela própria natureza. Essa história que minha mãe contava aconteceu de verdade. Muita gente até conhece a história, ela é bastante famosa, mas ninguém sabe exatamente como ela começou.

NETO
Ai, vó! Conta logo! Tô ansioso(a)!

VOVÓ IAPONIRA
Era uma vez, uma aldeia em festa...

(ESCURIDÃO)


CENA 2

(UMA FESTA INDÍGENA FUTURISTA; GUMERCINDO BOI ESTÁ CANTANDO EM UM PALCO)

GUMERCINDO BOI
Sou igara nessas águas
Sou a seiva dessas matas
E o ruflar das asas de um beija-flor
Eu vivia em plena harmonia com a natureza
Mas num triste dia o kariwa invasor
No meu solo sagrado pisou
Desbotando o verde das florestas
Garimpando o leito desses rios
Já são cinco séculos de exploração
Mas a resistência ainda pulsa no meu coração
Na cerâmica Marajoara, no remo Sateré
Na plumária ka'apor, na pintura kadiwéu

TODOS
No muiraquitã da icamiaba

GUMERCINDO BOI
Na zarabatana Makú, no arco Mundurukú
No manto Tupinambá, na flecha kamayurá
Na oração Dessana

TODOS
Oh, oh,  oh!

GUMERCINDO BOI
Canta índio do Brasil
Canta índio do Brasil
Canta índio do Brasil
Canta índio do Brasil

TODOS
Anauê nhandeva, anauê hei, hei, hei!
Anauê nhandeva, anauê hei, hei, hei!

GUMERCINDO BOI
Dos filhos deste solo és mãe gentil pátria amada Brasil.”

(MÚSICA “ÍNDIO DO BRASIL” DE DAVID ASSAYAG; OS CONVIDADOS APLAUDEM)

APRESENTADOR
É isso aí, rapaziada! Esse foi o Gumercindo Boi garantindo a apresentação aqui pros irmãos nessa noite de comemoração. Gumercindo Boi veio lá da cidade só pra fazer esse show, né, Gumercindo?

GUMERCINDO BOI
É sempre um prazer estar aqui.

APRESENTADOR
Agora... vamos comer!

TODOS
Eba!

(ELES COMEM E DISTRIBUEM DOCINHOS PRO PÚBLICO; BOTÂNIA ENTRA CURIOSA COM A FESTA; GUMERCINDO BOI A VÊ E VAI ATÉ ELA)

GUMERCINDO BOI
Boa noite, minha senhora.

BOTÂNIA
Sua não.

GUMERCINDO BOI
Boa noite, senhora dona de si mesma.

BOTÂNIA
Boa noite, ser humano.

GUMERCINDO BOI
Não conheço você aqui da comunidade.

BOTÂNIA
Estou de passagem.

GUMERCINDO BOI
Você... você é bastante cor de rosa, né? Bonita, bonita, mas é bem cor de rosa. Curioso.

BOTÂNIA
Não enxergo as coisas desse jeito.

GUMERCINDO BOI
De onde vem?

BOTÂNIA
Rio.

GUMERCINDO BOI
Rio? Veio do Rio? Rio de Janeiro?

BOTÂNIA
Não. Eu vim do rio, do rio doce.

GUMERCINDO BOI
(RI) Engraçado. Você é bastante diferentona.

(VÓ IAPONIRA APARECE COM ALGUNS NETOS)

NETO
Mas vó, você não disse que era um menino cor de rosa? Essa daí é uma mulher! Não é?

VOVÓ IAPONIRA
É claro que sim, você não está vendo uma mulher? É claro que é uma mulher. Mas tenha paciência, eu estou contando o começo da história.

NETO
Ah, já entendi. Então é o filho dessa mulher!

VOVÓ IAPONIRA
Exatamente! O famoso cantor regional Gumercindo Boi se apaixonou por Botânia instantaneamente.

NETO
Botânia?

VOVÓ IAPONIRA
Botânia era o nome dela, dessa daí. Quando os outros repararam na cor de Botânia, todo mundo ficou muito curioso.

(OS CONVIDADOS PAPARICAM BOTÂNIA)

CONVIDADO
Você tem uma cor diferente, né?

CONVIDADO
Dói até o olho de ficar olhando.

CONVIDADO
De onde você veio?

GUMERCINDO BOI
Ela disse que veio do rio.

TODOS
Uau!

CONVIDADO
Nossa! Do Rio!

CONVIDADO
Por isso que é rosinha assim.

BOTÂNIA
Gu, eu gosto de responder por mim mesma. Eu vim do rio, mas não do Rio de Janeiro. Eu vim do rio fundo, do rio doce, do rio preto, do rio mesmo.

CONVIDADO
Ah, Rio Preto. Conheço.

BOTÂNIA
Eu vim porque o destino do folclore brasileiro está em minhas mãos pra continuar a existir.

(SILÊNCIO CONSTRANGEDOR; OS CONVIDADOS NÃO GOSTAM)

CONVIDADO
Folclore?

CONVIDADO
Ah, tá.

CONVIDADO
Entendemos. Aham.

CONVIDADO
Ela tá tirando sarro da gente, isso sim. A gente é descendente de índio, mas ninguém aqui acredita em saci pererê não, viu, dona?

BOTÂNIA
Vocês não acreditam? Como vocês podem não acreditar em algo que existe? Eu sempre trombo com o Saci por aí.

(SILÊNCIO; TODOS GARGALHAM)

CONVIDADO
Essa daí é doida!

CONVIDADO
Tem certeza da escolha, amigão?

GUMERCINDO BOI
Eu estou apaixonado! E ela diz ter uma missão. Eu serei parte dessa missão pra onde ela for, seja doida ou seja criativa! Eu encontrei o meu grande amor, meus amigos, e vou embora com ela para Rio Preto. Mas antes... (ELE SE AJOELHA) Quer casar comigo, Botânia?

TODOS
Oh!

BOTÂNIA
Eu... aceito!

VOVÓ IAPONIRA
E então, Gumercindo Boi e Botânia se casaram! E viraram as grandes celebridades da aldeia!

(O CASAMENTO ACONTECE EM GRANDE FESTA)

APRESENTADOR
E eu vos declaro, marido e mulher!

TODOS
Viva!

BOTÂNIA
Temos uma notícia para dar antes de ir.

GUMERCINDO BOI
Exatamente. Estamos grávidos!

TODOS
Oh!

GUMERCINDO BOI
Vamos ter um bebê!

CONVIDADO
Mas vai nascer cor de rosa.

GUMERCINDO BOI
E o que é que tem isso?

CONVIDADO
Nada, nada.

GUMERCINDO BOI
Com sorte ele irá puxar o pai.

BOTÂNIA
O que isso quer dizer, hein?

GUMERCINDO BOI
Nada, amorzinho, brincadeira...

BOTÂNIA
Hum.

GUMERCINDO BOI
Adeus companheiros, até um dia!

TODOS
Adeus! Adeus!

(BOTÂNIA E GUMERCINDO BOI SE DESPEDEM DA ALDEIA)

VOVÓ IAPONIRA
Mas algo muito maluco e surreal aconteceu...

(GUMERCINDO BOI VOLTA CORRENDO DESESPERADO)

GUMERCINDO BOI
Minha nossa senhora! Santo anjo do senhor, meu zeloso guardador.

CONVIDADO
Essas orações não são da nossa aldeia.

CONVIDADO
Mas o que aconteceu que você parece que viu um fantasma?

GUMERCINDO BOI
A Botânia... ela é... ela é... um peixe!

TODOS
Um peixe?

GUMERCINDO BOI
Eu vou ter um filho peixe!

CONVIDADO
Como assim um peixe?

GUMERCINDO BOI
Agora eu entendi o que ela queria dizer com ter vindo do rio. A gente chegou na beirada do riacho, eu não sabia pra onde ela estava me levando, achei que a gente ia pegar algum barco. E de repente ela se transformou num golfinho cor de rosa!

CONVIDADO
Era um boto! Um boto! Em rio de água doce é boto. Parece um golfinho, mas é boto.

GUMERCINDO BOI
Parecia coisa... do tinhoso!

TODOS
Aaai!

CONVIDADO
Aqui na aldeia o tinhoso não existe. Isso é coisa da cidade grande.

TODOS
Verdade mesmo.

GUMERCINDO BOI
Sei lá, só sei que credo. Eu não posso ser casado com um peixe. Posso?

VOVÓ IAPONIRA
E então com apenas um dia de casados, Gumercindo Boi abandonou Botânia grávida. E Botânia ficou sozinha de novo. Bem, não exatamente sozinha, né?

(UM FOCO MOSTRA BOTÂNIA CHORANDO, JÁ COM A BARRIGA GRANDE)

BOTÂNIA
Serenô, eu caio, eu caio
Serenô, deixai cair
Serenô da madrugada
Não deixou, meu bem, dormir

Minha vida, ai ai ai
É um barquinho, ai ai ai
Navegando sem vela e sem luz
Quem me dera, ai ai ai
Quem me dera
Os faróis dos teus olhos azuis

Serenô, eu caio, eu caio
Serenô, deixai cair
Serenô da madrugada
Não deixou, meu bem, dormir

Vivo triste, ai ai ai
Soluçando, ai ai ai
Recordando o amor que perdi
O sereno, ai ai ai
É o pranto, ai ai ai
Dos meus olhos que choram por ti

TODOS
Serenô, eu caio, eu caio
Serenô, deixai cair
Serenô da madrugada
Não deixou, meu bem, dormir.

(MÚSICA “SERENÔ” DE MARIA BETHÂNIA; BOTÂNIA FAZ UM CARINHO NA BARRIGA E SAI)


CENA 3

NETO
Ah, eu conheço essa história! É a lenda do boto cor de rosa!

VOVÓ IAPONIRA
Exatamente!

NETO
Legal!

NETO
Mas, vó, o boto cor de rosa não era aquela história do moço bonito que engravidava as moças da aldeia?

NETO
É, eu aprendi na escola assim, mas foi o cantor lá que engravidou a mulher boto então?

VOVÓ IAPONIRA
Como eu disse, toda história tem um começo. A história do boto cor de rosa também começou com uma mulher igual a história de todo mundo. Mas vocês sabem que a lenda do boto não é uma história tão bonita, né? Botânia então teve o filho sozinha, colocou o nome do menino de Guto, e um dia o Guto cor de rosa cresceu.

(GUTO ENTRA COM BOTÂNIA; ELES BRINCAM DE PEGA-PEGA)

GUTO
Mãe, eu gosto mais do rio do que ter duas pernas assim.

BOTÂNIA
Você faz parte dos dois mundos, Guto. Tem que aprender a andar na terra também.

GUTO
Mas eu tenho medo.

BOTÂNIA
Medo?

GUTO
Dos caçadores.

BOTÂNIA
Sempre que ver um caçador, nunca se esqueça, esteja sempre como um ser humano. Eles não se caçam entre si.

GUTO
Não?

BOTÂNIA
Às vezes sim, mas no rio a gente não tem chance nenhuma. Sua vó foi levada para um parque aquático onde ela teve que fazer várias apresentações sem sua vontade. Eu nunca mais vi ela.

GUTO
Ai, mãe.

BOTÂNIA
Mas não é pior do que acontece com muitos dos nossos irmãos.

GUTO
O que acontece?

BOTÂNIA
Vira comida.

GUTO
Comida?

BOTÂNIA
Sim, eles queimam a nossa carne e depois mandam pra dentro.

GUTO
Ai, você tá me assustando mais ainda!

BOTÂNIA
Eu estou contando como é o mundo. Você precisa estar sempre preparado pra tudo. E mais importante que todas as coisas, sempre, sempre, meu filho, respeite todas as mulheres.

GUTO
Por que as mulheres? E os homens? Não devo respeitar os homens?

BOTÂNIA
Ah, sim! Deve respeitar todos. Mas ainda existe a necessidade de ensinar homens como você de sempre respeitar uma mulher, porque muitos ainda não respeitam. A maioria dos homens desse mundo respeitam apenas outros homens, amam outros homens, se espelham em outros homens.

GUTO
Que esquisito.

BOTÂNIA
Eu deveria te dizer pra que você apenas respeite todos. Mas por necessidade histórica, eu preciso afirmar o respeito que deve ter às mulheres, em especial. Insista sempre no amor, meu filho.

NETO
Ai, vó, você já tá parecendo a prô Simone.

NETO
A prô Simone que vive falando essas coisas.

VOVÓ IAPONIRA
Ué, não sou que estou falando, é a história.

NETO
Essa tal de Botânia nem existiu.

NETO
É lenda, todo mundo sabe que ninguém vira boto.

VOVÓ IAPONIRA
Não é uma pessoa que vira boto, é um boto que vira pessoa! Existem mais mistérios nesse nosso universo que a gente nem imagina. E o Guto cor de rosa cresceu e virou um homem. E Botânia... Botânia morreu.

NETO
Ai, vó...

NETO
Credo.

NETO
Morreu de quê?

VOVÓ IAPONIRA
Morte matada.

NETO
Oh! Mataram ela?

VOVÓ IAPONIRA
Uns turistas a encontraram e tiraram ela de dentro da água pra tirar foto pra postar no Instagram. Ela estava como boto e não podia se transformar em humana na frente de tanta gente com câmeras, ela iria desmascarar todo o mundo mágico da floresta se aquelas pessoas vissem algo assim. Então ela não se transformou pra humano e morreu afogada de ar.

NETO
Nossa...

NETO
Afogada de ar!

NETO
Turistas assassinos!

NETO
Que tragédia!

NETO
E o filho dela, vó?

NETO
Ele chorou?

VOVÓ IAPONIRA
Mas é claro que ele chorou, era mãe dele! É claro que ele chorou. Guto chorou muito, mas teve que continuar, todo mundo tem que sempre continuar. Não importa o que aconteça, não pode ficar chorando pra sempre, todo mundo tem que se levantar e continuar em frente.


CENA 4

(OUTRA FESTA MAIS NO FUTURO; QUEM SE APRESENTA NO PALCO AGORA É JENYFER)

JENYFER
Tenho um coração
Dividido entre a esperança e a razão
Tenho um coração
Bem melhor que não tivera

Esse coração
Não consegue se conter ao ouvir tua voz
Pobre coração
Sempre escravo da ternura

(GUTO ENTRA COM UM TERNO BRANCO E UM CHAPÉU, NA CLÁSSICA IMAGEM DA LENDA DO BOTO COR DE ROSA; ELE ASSISTE JENYFER)

JENYFER
Quem dera ser um peixe
Para em teu límpido aquário mergulhar
Fazer borbulhas de amor pra te encantar
Passar a noite em claro
Dentro de ti

Um peixe
Para enfeitar de corais tua cintura
Fazer silhuetas de amor à luz da lua
Saciar esta loucura
Dentro de ti

(GUTO TOMA O MICROFONE)

GUTO
Canta, coração
Que esta alma necessita de ilusão
Sonha, coração
Não te enchas de amargura

Esse coração
Não consegue se conter ao ouvir tua voz
Pobre coração
Sempre escravo da ternura

Quem dera ser um peixe
Para em teu límpido aquário mergulhar
Fazer borbulhas de amor pra te encantar
Passar a noite em claro
Dentro de ti

Um peixe
Para enfeitar de corais tua cintura
Fazer silhuetas de amor à luz da lua
Saciar esta loucura
Dentro de ti

OS DOIS
Uma noite
Para unirmos até o fim
Cara a cara, beijo a beijo
E viver para sempre
Dentro de ti

(MÚSICA “BORBULHAS DE AMOR” DE FAGNER; VOVÓ IAPONIRA CONTA PARA OS NETOS)

VOVÓ IAPONIRA
E a história quase se repetiu. Guto foi paparicado por causa da sua cor diferente e ele se apaixonou por Jenyfer.

NETO
E ela é tão bonita!

NETO
É a princesa da história!

NETO
E ele é o herói!

VOVÓ IAPONIRA
Na verdade, não foi bem como a gente imaginou. Todo mundo quer uma história com final feliz, mas como eu disse, essa história é uma tragédia.

NETOS
Oh!

VOVÓ IAPONIRA
Jenyfer não se apaixonou de volta.

NETO
O que?

NETO
Não acredito!

NETO
Por que não?

VOVÓ IAPONIRA
E tem que ter motivos pra não se apaixonar por alguém? Ela apenas não achou que Guto fosse a pessoa que ela gostaria de se apaixonar. Talvez ela achasse que não combinasse, ou qualquer outra coisa, não importa. Mas Guto... Guto não aceitou muito bem.

(GUTO E JENYFER CONVERSAM)

GUTO
Como assim você não quer dançar comigo? Você não me acha bonito?

JENYFER
Acho, acho sim. Mas não tô afim. Tem que ter motivos pra não querer dançar?

GUTO
Claro que tem. Eu sou um homem solteiro, você é uma moça formosa.

JENYFER
Obrigada, mas não vou querer mesmo.

GUTO
Oras, e por quê? É só uma dança.

JENYFER
Mas não gosto, não quero. Mas fico muito lisonjeada. Obrigada. (VAI SAIR)

GUTO
(IMPEDE) Ora, ora, eu não estou entendendo.

JENYFER
Não está entendendo que eu não quero dançar com você?

GUTO
Exatamente. Eu estou te tratando com todo respeito.

JENYFER
E você quer biscoito por não me maltratar?

GUTO
Biscoito?

JENYFER
Olha, moço...

GUTO
Guto. Prazer.

JENYFER
Olha, Guto, eu... tenho namorado.

GUTO
Mentira.

JENYFER
É verdade.

GUTO
Você está dizendo isso só pra me dar um fora.

JENYFER
Cara, eu já dei o fora, eu falei que eu-não-quero. Agora você só está sendo inconveniente. (VAI SAIR)

GUTO
(IMPEDE) Nossa... o que eu te fiz?

JENYFER
Poxa, amigo, se ajuda aí, me ajuda...

GUTO
Eu só queria dançar com você.

JENYFER
E eu não quero. Entenda. Eu-não-quero. Passar bem.

(JENYFER SAI)

VOVÓ IAPONIRA
E então, dentro do peito do Guto, uma raiva descomunal surgiu. Como Jenyfer podia negar uma dança com ele? Quem ela pensava que era pra tratar ele daquele jeito? Ele era o famoso boto cor de rosa! E então ele lembrou dos ensinamentos da mãe.

BOTÂNIA
(VOZ) E mais importante que todas as coisas, sempre, sempre, meu filho, respeite todas as mulheres... insista no amor!

NETO
Ah, entendi. Então ele foi embora e encontrou outra namorada, é isso?

VOVÓ IAPONIRA
Nada disso. Guto decidiu que deveria insistir no amor que sentia por Jenyfer.

NETO
Eita, mas ele acabou de conhecer ela e já ama?

NETO
Ué, amor à primeira vista.

NETO
Mas ela já falou que não quer!

VOVÓ IAPONIRA
Pois é, mesmo tendo recebido uma boa educação de sua mãe, Guto se confundiu no que era certo e errado...


CENA 5

(GUTO APARECE EM UM FOCO COM UM VIOLÃO)

GUTO
Quem dera ser um peixe
Para em teu límpido aquário mergulhar
Fazer borbulhas de amor pra te encantar
Passar a noite em claro
Dentro de ti

Um peixe
Para enfeitar de corais tua cintura
Fazer silhuetas de amor à luz da lua
Saciar esta loucura...”

(JENYFER APARECE NA JANELA)

JENYFER
O que você tá fazendo? Ai, se meu pai acordar...!

GUTO
Eu não posso desistir de você, e veja, eu nem sei seu nome ainda. Eu quero que você entenda o tamanho do amor que eu senti por você quando eu te vi.

JENYFER
Cara, pelo amor de Tupã... se manca! Não! Eu falei não! Que parte que você não entendeu? Não tem amor, eu não te conheço, não gostei, achei abusivo. Vá embora, por favor!

GUTO
Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.

JENYFER
Não, nada disso! Isso é coisa de príncipe lá da sua cidade! Aqui não tem isso não, moço cor de rosa.

GUTO
Então é por isso que não quer ficar comigo. Porque eu sou rosa.

JENYFER
Não. É só porque eu não quero! (FECHA A JANELA)

VOVÓ IAPONIRA
Mas infelizmente Guto era o tipo clássico.

GUTO
Quem dera ser um peixe
Para em teu límpido aquário mergulhar
Fazer borbulhas de amor pra te encantar
Passar a noite em claro
Dentro de ti

(JENYFER ABRE A JANELA DE NOVO)

JENYFER
Olha, pelo amor de Tupã!

GUTO
Se você não pode ser minha, você não pode ser de mais ninguém. Eu não suportaria!

NETO
Tadinho, vó. Por que ela não dá uma chance pra ele? Fica com ele, moça!

NETO
Tadinho? Ele acabou de ameaçar ela! Falou que se ela não fosse ficar com ele que ele ia matar ela! Moça, fuja!

NETO
O que? Ele não falou que ia matar ela!

NETO
Falou sim.

NETO
Não, não falou não!

VOVÓ IAPONIRA
Calma, calma! Não falou com todas as letras, mas Guto estava embriagado, confundido por algo que ele achou que fosse amor.

NETO
Peraí! Não vai dizer que ele matou ela, vó?

JENYFER
O que?!

VOVÓ IAPONIRA
Pois sim. No final da história de Jenyfer, Jenyfer foi brutalmente assassinada.

JENYFER
Ah, droga. Todo dia a mesma história. (SAI DE CENA)

NETOS
Oh!

NETO
Não acredito que ele fez isso com ela! Assassino!

NETO
Já na história que a gente conhecia já dava pra ver que ele não prestava.

NETO
Verdade. Engravidava todo mundo e depois sumia pro fundo do rio!

NETO
Que tragédia, vó. Isso não é história de criança.

VOVÓ IAPONIRA
E eu vou esconder a verdade das crianças só porque a verdade é dura? Eu não sei fazer desse jeito. Todos vocês precisam ver o mundo do jeito que é pra que não caiam na mesma desgraça, na mesma tragédia, nem de um lado, nem de outro, nem morrendo e nem matando.

(SILÊNCIO; OS NETOS REFLETEM)

NETO
E como é que faz pra não morrer, vó?

VOVÓ IAPONIRA
Fazendo isso que a gente tá fazendo aqui! Conversando sobre isso, conversando sobre os limites, conversando sobre as tragédias, sobre as comédias também, brincando de fantasia, de teatro, de música!

NETO
Ah... entendi.

NETO
Eu não gostei muito dessa história. Achei muito triste.

VOVÓ IAPONIRA
Ora, gosto não se discute! Lidem com os sentimentos que a história trouxe. Agora vão. Chega de história por hoje. Vão brincar que daqui a pouco todo mundo vai dormir.

NETO
Espera! Mas você não falou como foi que o Guto matou a Jenyfer.

NETO
É verdade.

VOVÓ IAPONIRA
E isso importa? Os detalhes não importam. O horror já está explícito de qualquer jeito. A gente não precisa piorar as coisas. Vão, vão brincar agora.

(OS NETOS SAEM BRINCANDO; VOVÓ IAPONIRA SE ARRUMA PRA SAIR; GUTO SE APROXIMA)

GUTO
Você gosta de me difamar como assassino, não é mesmo?

VOVÓ IAPONIRA
Ué, mamãe se sentiu morta quando você abandonou ela grávida.

GUTO
Eu era um adolescente, tava conhecendo o mundo, eu não sabia direito das coisas. Mas assassino eu não sou!

VOVÓ IAPONIRA
Você pode não ter matado a mamãe literalmente, mas matou o coração dela, matou a juventude dela, matou os sonhos dela. E depois largou nós duas no mundão.

GUTO
Mas não sou assassino!

VOVÓ IAPONIRA
Pode não ser. Mas eu não vou diminuir o peso da sua história. Inclusive - como eu acabei de fazer - se puder, eu vou sublinhar, acentuar.

GUTO
Com uma mentira! Isso é calúnia!

VOVÓ IAPONIRA
Oras, eu usei uma lenda pra ilustrar a história, papaizinho, é claro que eles sabem que é mentira. Gente que vira boto não existe.

GUTO
É boto que vira gente. E... eu tô tentando reparar os meu erros... você sabe... eu voltei.

VOVÓ IAPONIRA
Eu sei. Fico muito feliz disso. E eu estou ajudando fazendo com que essas crianças não errem no futuro. Seu erro já foi, ficou pro passado, não se repara o passado. A ideia é que ninguém mais tenha que passar por isso no futuro e é melhor manter a sua linhagem bem atenta. 

GUTO
Sim, eu entendo. (PAUSA) Poxa, mas me comparar a um assassino, filha! Eu não sou assassino.

VOVÓ IAPONIRA
Era um personagem, não era você. Podia ser qualquer homem de várias histórias por aí. E você já morreu. Você é só um fantasma agora, uma lembrança. Bom, com licença, papai fantasma, mas eu tenho que dar o meu último mergulho do dia, antes que eu morra afogada de ar.

GUTO
Essa sua mania de querer viver mais como humana do que no rio...

VOVÓ IAPONIRA
Eu puxei a mamãe. Na natureza e na cor da pele, né?

GUTO
É verdade, isso é verdade.

(VOVÓ IAPONIRA VAI SAINDO)

GUTO
Você destruiu a famosa lenda do boto cor de rosa!

VOVÓ IAPONIRA
Pois é, porque agora é boto preto mesmo!

(TODOS OS PERSONAGENS ENTRAM EM FESTA)

TODOS
Anauê nhandeva, anauê hei, hei, hei!
Anauê nhandeva, anauê hei, hei, hei!

NETO
Gente, gente, eu ouvi dizer que a vovó é um boto cor de rosa só que preto que se transforma em gente.

NETO
O que?

NETO
Ai, que bobagem! Cresça, criança.

NETO
Criança é você! Eu ouvi gente lá da igreja falando.

NETO
Isso é coisa lá da sua cidade!

NETO
Aqui não tem isso não!

APRESENTADOR
Então com vocês! Jenyfer!

(JENYFER ENTRA EM UM SHOW)

JENYFER
Na cerâmica Marajoara, no remo Sateré
Na plumária ka'apor, na pintura kadiwéu
No muiraquitã da icamiaba
Na zarabatana Makú, no arco Mundurukú
No manto Tupinambá, na flecha kamayurá
Na oração Dessana
Oh, oh,  oh!

TODOS
Anauê nhandeva, anauê hei, hei, hei!
Anauê nhandeva, anauê hei, hei, hei!

(GUTO PEGA JENYFER PELA MÃO E AMBOS ESTÃO APAIXONADOS; UM CASAMENTO RÁPIDO ACONTECE; ELES SE BEIJAM NUM FINAL DE AVENTURA; ESCURIDÃO)


CENA FINAL

(PASSAGEM DE TEMPO COM UM JOGO RÁPIDO; VOVÓ IAPONIRA NASCE; ROTINA BREVE DE UMA FAMÍLIA FELIZ; UMA BRIGA ACONTECE E GUTO VAI EMBORA PRA SEMPRE; JENYFER FICA SOZINHA COM A VOVÓ IAPONIRA AINDA CRIANÇA, DE MÃOS DADAS, EM SILÊNCIO POR UM LONGO TEMPO; ESCURIDÃO)


FIM