O METAMORFÉTICO: A MORTE É A MELHOR (E ÚNICA) SAÍDA PARA SEUS PROBLEMAS

O METAMORFÉTICO
A MORTE É A MELHOR (E ÚNICA) SAÍDA PARA SEUS PROBLEMAS

QUASE MONÓLOGO

PERSONAGEM
ROBSON
ELA

PRÓLOGO

(escuridão)

ROBSON
Antes de começar, eu preciso de cinco cenas dramáticas pra me aquecer. Os extremos, aqueles que fazem doer a cabeça, são os que trazem melhor resultado. Eu perdi a porra da primeira parte.


ATO I

CENA I

(ouve-se um copo quebrando)

(Robson entra correndo com o pulso sangrando)

ROBSON
(envergonhado e nervoso) Alguém! Ai, caralho! Alguém tem um telefone pra emprestar? Eu tentei me matar, mas demorou. E agora eu meio que não quero mais. Será que dá tempo? Eu acho que eu não perdi muito sangue, foi só... foi só... (cai desmaiado)

(música trágica; um foco fecha sobre o corpo)

(Robson levanta repentinamente quebrando a tragédia)

ROBSON
Alguém! Ai, caralho! Você tem um telefone pra me emprestar? Eu tava desesperado, eu... demorou demais pra fazer efeito. Olhe, eu cortei meus pulsos com uma faca daquelas de serrinha, meu deus. E agora eu meio que não quero mais. Será que dá tempo de fazer pelo menos mais alguma coisinha? Uma punheta, pelo menos. Sem punho? Ai, caralho. Eu acho que eu não perdi muito sangue, eu acho que... foi só... (cai desmaiado novamente)

(nenhum som; depois de segundos de silêncio, Robson se levanta novamente)

ROBSON
Eu não tô fingindo! Minha respiração tá desse jeito por culpa desse levanta e cai. Não é nervosismo. Todo mundo sofre de nervosismo e pode ser o mais experiente possível. É medo de morrer mesmo, de não poder fazer nada. E tá demorando pra cacete, meu deus. O que eu fiz pra merecer uma morte lenta? Eu só queria morrer de vez mesmo. Só isso... só isso... antes... (desmaia de novo)

(dessa vez, Robson fica caído por longos segundos; silêncio absoluto e uma espera exagerada por algo)

(black-out)


CENA II

(bolas de diversos tamanhos e cores invadem o palco; Robson se diverte com elas)

ROBSON
Eu amo uma bola. Eu amo bolas. Tudo o que é circular. Eu amava aula de geometria. Pra ficar desenhando bolas. Uma linha que não tem começo. Que não chega em lugar nenhum. Mas que chega, por outra perspectiva mais longe do exato. Esferas. Coisas gordas. Redondas. Que demoram pra parar. Que vai e volta. Que cabe na boca. Que se chuta com os pés. Eu já quis ser jogador de futebol. Mas eu odeio futebol, por todo o contexto e manias. Eu já quis ter um parque de diversão pra poder construir a maior roda gigante da terra. Mas eu ia ser egoísta, ia ser ciumento e não ia deixar ninguém andar nela.

(ele quebra um ovo dentro da boca)

ROBSON
O ovo. O óvulo. O pinto. A barriga da grávida. Num formato do infinito. Eu como ovo cru pra ver se nasce um pinto na minha barriga. Pra plantar uma célula nova. O alimento é só o combustível pra energia elétrica que corre e pulsa dentro da gente. A coisa mais importante de se fazer nessa vida é comer. Comer tudo e comer todos. Vegetarianos, me perdoem, mas talvez eu queira me alimentar do medo e da dor do porco que virou bacon no meu prato. Talvez eu me alimente da dor pra não sentir. Pra tornar meu corpo imune. Não sabemos nada do que se transforma a energia ingerida, pensando pela parte espiritual e sentimental. Sabemos o que trás proteína e o caralho, mas de resto, foda-se o passado daquele peixe suculento. A coisa mais importante de se fazer nessa vida é ingerir o coleguinha que está sentado do seu lado.

(uma mesa farta de besteiras surge em um foco; Robson ataca pratos de macarronadas, bananas, bolos de chocolate, tortas e sorvete; no meio de tudo ainda quebra dois ovos na boca; ele come até quase explodir)

ROBSON
Não digo literalmente. Não vá morder o coleguinha, por favor. Mas ingira o que ele tem pra falar. Mesmo que for merda, a pior coisa que você aprenderá é que graças a deus ainda existe gente mais idiota que você. (ele ouve alguém perguntar) Por que diabos o espetáculo começou com uma cena de suicídio? Oras, por que. Primeiro: porque eu tenho tendências, é isso. Lógico. Pra se matar, basta estar vivo e com dúvidas. Segundo: porque, como qualquer discussão existencial, em espetáculos modernos, a repetição e o estilo cíclico já são clichês, mas incrivelmente bem usados, em algumas vezes. Vale o risco. E terceiro: porque a licença poética é única e intransferível.

(ele repara em algum específico espectador)

ROBSON
Você! Você mesmo. Sim, levante-se. Por favor. Deixe eu ver. (pausa) Sim. Bem, sim. É você mesmo. Todo dia eu faço uma busca por algumas pessoas aqui. Não precisa ficar com medo, eu não vou te expor numa cena embaraçada. A única coisa é que eu olhei no profundo da sua íris – olha como eu consigo ser dramático – e aí eu pude ver alguma coisa que não pertence aos outros olhares. Olhe para esses outros. Você consegue ver? No espelho, quando você está no espelho, você consegue reparar que seu olhar é diferente de qualquer outro aqui presente, de qualquer outro no mundo? Pense, você deve estar se perguntando: “por que caralho ele teve que me escolher? No meio desse monte de gente ele foi e me escolheu.” Pois não é incrível? A exatidão da coisa? Você não se sente especial mesmo, pra você? A coisa que mais importa nesse mundo, nessa bunda é o nosso próprio cu, cara. Eu sei que você já teve pensamentos de que era diferente e de que faltava apenas ser reconhecido por essa diferença divina. Hoje é o dia, cara. Eu te reconheci no primeiro segundo que você entrou por aquela porta. Eu tava ali me maquiando e eu olhei de canto. Eu só não podia deixar passar batido, pessoal, desculpem. Você consegue entender a grandiosidade desse encontro? A maquinaria estelar tava conspirando e trabalhando num conjunto pra você chegar aqui e eu olhar pra sua cara e falar assim: esse será o condenado, o que eu vou pegar pra Cristo. Por favor, não se preocupe, tá bom? (pausa) Bom, eis a minha proposta pra você: Eu quero comer você. Calma, não é nada disso que você tá pensando. Eu não vou te cozinhar e nem quero comer o teu cuzinho. Eu quero comer você intelectualmente, entende? Eu sinto que você tem algo grandioso pra me mostrar. Algo que eu esperei até o dia de hoje, nesse exato dia de apresentação, nessa noite. Eu sinto – não é deus – eu sinto que você tem algo bacana pra me falar ou pra mostrar. Não tem? Não fique com medo desses olhares, e nem dessa pressão teatral, eu só quero saber que porra de mensagem é essa que você tem pra me dar. Você sabe? Você lembra de alguma mensagem? Qualquer coisa. Qualquer frase de efeito. Pode ser até do Caio Fernando Abreu, sei lá. Não fale pra ninguém. Eu quero que você fale no meu ouvido.

(ele ouve qualquer que for a coisa que o espectador lhe falar; ele não se anima e nem desanima; faz algo que consiga deixar o espectador um pouco constrangido)

ROBSON
Hum. Legal. Legal, gente. Ele falou aqui uma coisinha. Você é ator, também? Hum. Obrigado pela participação de todos. Tenham uma boa noite. (saindo, pra si) Preciso beijar na boca hoje.

(black-out)


CENA III

(Robson está aos prantos em cima de uma cadeira, com uma corda pendurada)

ROBSON
Não é o suficiente. Ah, nunca é, meu. Poxa. Desse jeito acho que eu não vou chegar nem aos trinta mesmo. Porra, eu sou a porra de um moleque! (ele coloca a corda no pescoço) Odeio ser moleque. Tem tanta gente mais idiota que eu que vem dar conselhos e a gente tem que ouvir pra prosseguir com o caralho da humildade. Acho que humildade é chegar nesse ponto que eu cheguei. Cheguei num ponto onde ou eu mato um, ou... E acho que é mais bonitinho morrer que matar pela causa. Gay, né? Eu sei. Eu curto comer um rabo de macho mesmo. Adoro coisinhas redondas.

(um foco destaca uma espectadora da plateia; uma música romântica explode o coração de Robson)

ROBSON
Você! (volta) Não. Eu não vou falar nada. Eu vou esperar ela perceber.

(ele se senta e aguarda olhando ansiosamente para a espectadora; ele começa a comer as unhas; cheira o sovaco e o hálito; ele tenta escrever alguma carta, mas desiste; ele até pergunta pra alguém sobre a garota; no auge do nervosismo ele decide desabafar)

ROBSON
Ai, meu. Você tem Whatsapp? Você pode passar? Você é gatíssima. Por favor. Tem o cheiro que eu quero que meus filhos tenham. Você parece ser a mulher mais fértil pra mim. Consegue ver? E pode não ser, mas parece pra mim. Você emana um cheiro de dentro da sua vagina – com todo respeito – um cheiro que atinge minhas narinas e me sufoca com um tesão que costumamos chamar por outro nome. Eu não vou dizer. Só vou dizer quando você disser primeiro. Tem essas coisas, não tem? Quem será que vai dizer primeiro? E depois o segundo ou se sente aliviado, ou se sente orgulhoso, ou, na maioria das vezes, com medo. Não fique com medo de mim, eu não vou te expor ao ridículo e nem vou beijar a sua boca – ao menos que você queira. Eu só queria que você dissesse primeiro – aquilo – pra eu não ter que passar por uma situação constrangedora. Eu digo e aí você vai ficar embaraçada e me fode na frente de todo mundo porque não tem os mesmos sentimentos que eu. Aí meu pau desce e eu me mato por uma desilusão amorosa. Ou eu mato você, também. Pode ser. Quem sabe? Você morreria ou mataria pela causa? Não responda. Eu morro de amor por você. Mas eu mato de amor por você também, porque nesse quesito foda-se a humildade! Eu quero comer você também. Aquele era pra ser um brother. Achei ele meio fútil. Você... eu acho que eu tô gostando de você.

(a música sobe ele tenta beijá-la)

ATOR
Faz parte do espetáculo. Eu juro que eu não tô tentando me aproveitar. Faz parte da dramaturgia.

(ele dança grudado à espectadora; de repente outra espectadora lhe chama a atenção; ele ainda dança coladinho, mas paquera a outra)

(um black-out rápido; ouve-se um tapa forte; quando a luz retorna, Robson está com a mão no rosto)

ROBSON
Você é louca! Ela me bateu! Cadê a lei que protege os homens da violência doméstica agora? Cadê essa porra? Eu tava olhando pra aquela gostosa mesmo! Tá bom? O instinto masculino é e sempre será assim. As exceções são bichas! Pode acreditar! O pau pensa antes, compreendeu? Enquanto eu tô aqui te dizendo “eu te amo” o pau sobe com as dançarinas do Faustão. E elas nem são tão peladas como parecia antigamente. Você quer terminar? Volte pro seu lugar que eu tô me lixando, porque toda vez que eu saio daqui tem meia dúzia de aspirantes a atrizes que vão querer dar pra mim. A vida de artista tem suas regalias, sua ordinária. (pausa) Pelo menos na teoria.

(um silêncio; as luzes de serviço se acendem)

ATOR
Bom, vamo pular a parte chata então. Fim. Podem aplaudir. (ele aguarda os aplausos) Obrigado. Foi difícil decorar, foi bacana a experiência de testar isso tudo, e tudo o mais. Quem quer dar pra mim aí? Pode ser homem, também. Eu como. Vai. Quem vai querer? Vocês podem falar que isso daqui é uma cena, que é pelo bem e pela estética do espetáculo.

(o foco retorna)

ROBSON
Vamo lá. Quem vai? Sem preconceitos. Quem vai?

(uma música grandiosa e dramática explode a cena; Robson cai destruído e chorando incontrolavelmente)

ROBSON
Eu não sou pintudo o suficiente pra ser o preferido dos preferidos. Não basta demonstrar popularidade pra não ser solitário. No fim das contas, o cara mais acompanhado do mundo vai morrer sozinho. Um black-out é o fim disso.

(um foco destaca um revólver em uma mesa)

ROBSON
Eu não acho as pessoas interessantes. Nem os novos e nem os velhos. Não consigo segurar o meu instinto. Não consigo ser forte por um amor que não sei se é reciproco. É sempre uma dúvida louca e aí eu prefiro caminhar pelo caminho que é mais gostoso. Menos decepcionante. Eu sei que eu conseguiria ter controle sobre o meu corpo, controlar a vontade, o desejo, eu sei porque eu fui fumante por oito anos e consegui parar quando eu decidi que ia parar – porque sexo também é um vício, eu só falo e escrevo sobre isso. Mas eu nunca consegui sentir que valesse mesmo a pena me privar da liberdade por ninguém. Às vezes que eu quase senti, foi rápido. No outro dia a pessoa arrotava na minha cara e eu começava a sublinhar os defeitos.

(ele põe o revólver no coração)

ROBSON
Os defeitos nos outros são tão gritantes que me ensurdecem.

(suspense; Robson se prepara para atirar; no auge da cena, uma voz interrompe)

ELA
Robson? Robson?

ROBSON
Quem é?

ELA
Robson?

ROBSON
Pode falar, caralho. O que é que é? Eu errei?

ELA
Tá fora do foco.

ROBSON
Ah, caralho.

ELA
Um pouco mais pra trás.

ROBSON
Tá bom, tá bom. Julgo desnecessário, isso.

ELA
Só mais uma coisa.

ROBSON
Fala logo que não é fácil retomar uma cena assim.

ELA
Eu amo você. Não tenho tempo pra nós dois, mas eu amo você.

(silêncio; Robson quase se emociona; ele deixa a arma abaixar um pouco)

ROBSON
Alguém.

(de repente; ele relembra das aflições e retorna para o desespero com o revólver apontado para o coração)

(no auge do suspense ele atira)

(a arma não dispara; ele entra em choque; não sabe se ri, se chora; olha para o alto e tenta descobrir o que deus está pensando; ele ri no descontrole; tem um surto de raiva e desiste de se matar)

ROBSON
Eu sim sou um fracassado. De solidão por solidão, preferiria a que eu não conheço. Mas até nisso o filho da puta quer decidir. Que culpa tenho eu de meus pais terem trepado?

(ele acende um cigarro)

ROBSON
Eu não chego nem até os trinta, escreva o que eu tô dizendo.

(ele fuma o cigarro e as luzes caem em resistência; black-out)

(as luzes logo acendem e Robson está na mesma posição de antes; ele procura o maço de cigarro no bolso pra acender outro; só percebe isso depois)

ROBSON
Olha o nível de desespero. Eu ia acender um cigarro e eu já tô com um aceso, cacete.

(black-out)


CENA IV

(Robson entra neutro; com um copo e um violão)

ROBSON
Me mandaram entrar aqui e listar os meus problemas. “Expor para encontrar uma solução”. Eu fiz uma música, que eu acho que pode explicar bem a situação. Me levem a sério que eu fiz curso, tá bom.

(ele se ajeita; toca uma nota errada, mas começa)

ROBSON
Me mandaram entrar aqui e listar os meus problemas
Expor para encontrar uma solução
Escrevi essa canção pra poder te explicar
Só o violão que tô aprendendo

Os meus princípios otimistas
Não sei onde é que foi parar
O meu discurso pessimista foi mais fácil de arrumar
E eu só vejo nesse mundo um destino de fuder
Pra mim e pra você
E não tem “mas”
Não sou sincero sempre

Quando digo que não estou bem
Não quero que venha me abraçar
Legal seria se dinheiro você pudesse me emprestar
E eu te diria amém
O mundo então vai ficar bem
“Se deus criou a rota mata”
Mas aí tá tudo bem
Não tenho dinheiro pra pagar o aluguel
E nem pra comprar um Marlboro
Já tá acabando a minha maconha
E tô devendo pro mundo
Envergonhado inseguro
Vou ter que ligar pro tio Raimundo
Nem quero ver o que ele vai dizer
A minha alma pro capeta agora eu vou ter que vender

Então eu decidi uma peça montar
E achei que teria patrocínio
Mas nessa vida de artista não tem como se safar
Eu sou um grande amante do ócio
E não veio ninguém
Não vou negar
Com a grana só deu pra pagar o buzão
Quase não deu pra alimentação
Eis o meu dilema
Será que a morte é a melhor e única saída para meus problemas

(finaliza a música com neutralidade)

ROBSON
Maestro, a porra do violão tá desafinado.

(ele bebe o líquido do copo)

ROBSON
Mentira, eu não tenho um maestro.

(cai com a boca espumando)

(black-out)


CENA V

(na escuridão)

ELA
Robson? Robson? Robson, você está aí?

ROBSON
Não, é a sua mãe que tá aqui. Sim, isso é uma porra de um monólogo!

(as luzes acendem; Robson está se levantando)

ROBSON
Eu não vou dizer que tô esperando alguém ou algo, porque se não vai todo mundo dizer que Beckett foi uma referência. É tudo crédito meu!

ELA
Eu ainda amo você. Não importa o que aconteça. Mesmo se eles não chegarem.

ROBSON
Meu cu. Não existe essa porra.

ELA
Existe, caralho. Se eu tô falando que amo você é porque eu amo você, pô.

ROBSON
Eu não acredito em mais ninguém.

ELA
Pois acredite. Eu amo você. Você pode confiar em mim pro que for.

ROBSON
Ok. Tá bom. (sincero) Valeu.

ELA
Imagina. Você tem como arrumar cem reais, Robson? Eu pago você no fim do mês. Eu tô desesperada.

(Robson ri)

ROBSON
Se eu passar dos trinta, eu vou ser um desses caras que entra no trabalho e mata o chefe e os colegas. Não vejo mais sentido em viver nessa falsidade descarada. Pode falar o que for. Depressão é coisa do diabo. Satã. O oposto de Jesus Cristo mesmo. De chifres. E fica dentro do corpo, mais precisamente entre o estômago e o coração. Você não sabe se é gases, um infarto, ou se é o capeta atentando. Ô, bicho lazarento esse que a gente é, não?

(silêncio; Robson retira um papelzinho do bolso)

ROBSON
Antes de vir pra cá hoje eu apostei na loteria. 01-07-08-23-48-60. Quando eu aposto, eu sempre aposto esse. Esperança é a mensagem cristo enfiou na nossa cabeça. Pode parecer ridículo, mas eu usei os meus últimos cinco reais, e essa é minha última esperança pra resolver a minha vida. Eu não acredito mais em deus, mas que ele me abençoe.

ELA
Robson?

ROBSON
Sim, o que é agora?

ELA
Os números sorteados são: 12-22-32-42-52 e 60.

ROBSON
(grita) Sim! Sessenta!

(silêncio; longo silêncio; ele rasga a aposta)

ROBSON
Ah! Comprei também uma raspadinha. Ufa. A vida sempre nos dá segundas chances.

(ele raspa)

ROBSON
Dois “setenta mil”. Dois “um e cinquenta”. (torce) Setenta mil, setenta mil. (termina) Yes! Um e cinquenta! Vou trocar por outro.

(ele troca)

ROBSON
A vida nos dá as chances que forem necessárias.


(ele raspa em silêncio; na “chance extra” ele fecha os olhos e pede a deus)

ROBSON
Eu creio, senhor. Eu creio. Eu tô precisando. Eu doo dez por cento pra primeira família necessitada que passar pela minha frente.

(ele raspa com os olhos fechados; ele vê o resultado; quase antes de se ver um sorriso, black-out)

ROBSON
Agora eu posso começar o espetáculo.


ATO II

CENA I

ROBSON
“Quando certa manhã acordei de sonhos intranquilos. Encontrei-me metamorféticamente transformado num inseto monstruoso. Eu estava deitado sobre as minhas costas. Duras como couraça. Ao levantar um pouco a minha cabeça, pude ver meu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas. Minhas numerosas pernas, patas, lastimavelmente finas com relação ao volume do resto, tremiam desamparadas diante dos meus olhos. “O que aconteceu comigo?”. Eu pensei.”

(silêncio)

ROBSON
O que tem acontecido comigo desde sempre? É muita mutação pra chegar pelo menos nos trinta anos. Imagina então nos noventa. Isso me inconforma. Quando os altos e baixos se tornarão linhas retas? Quando, caralho?

(ele pega o violão novamente)

ROBSON
“Mas sou assim
Um tanto estranho
O que diabo eu faço aqui?
Eu não pertenço a esse mundo.

Ela corre para longe
Ela foge
E fode, foge, fode, foge...”

(ouve-se o som da máquina que indica um coração parado; Robson não entende; longo silêncio)

ROBSON
Caralho, morrer é mais difícil que viver. No fim da primeira parte eu decidi não ir. Fiquei. Mas sempre dá tempo. Inventei uma desculpa de que tinha cursado Engenharia e tentado a vida comum. Comum, quando eu digo, é fora dessa porra louquice de vide artística. Mas aí eu fui, gente. Eu fui! No fim das contas, acabou a porra das apresentações e eu fui. Terminei os estudos e saí pra vida. Me mudei pra (com uma ênfase idiota) São Paulo. Eu chupei em São Paulo. Caguei nas privadas de São Paulo. Perdi meus traumas invejosos e decidir fazer o que eu gosto de fazer não era mais a grande questão da vida. “Ser ou não ser” passou a ser clichê demais. E aí eu fui. E os natais continuaram os mesmos, mais especificamente em dezembro, sempre. A mala da insegurança ficou pra trás e eu troquei de roupa de novo. O problema maior é que todas as roupas possuem pelo menos quase o mesmo formato: um buraco pra cabeça e dois pros braços. E aí eu fui. E do mesmo jeito que eu estava indo eu estava ficando. A diferença é que agora o registro profissional na carteira não podia mais me deixar mentir ou inventar. A porra agora já é essa. Essa é a porra da coisa, agora. Não tem beirada pra escapar. Não tem porque tentar voltar em dois mil e onze, por exemplo.

(silêncio)

ROBSON
Eu decidi até que iria mudar de nome. Já me chamei Gregório uma vez. Mas é assim que funciona o teatro. Cada vez é uma vez.

(Robson se vê cercado por um foco)

ROBSON
Caralho, velho. Olha onde é que eu tô. Puta que o pariu. Me bate um deja vu. Um deja vu de uma experiência que ainda nem existiu.

(ele grita com a raspadinha em uma das mãos)

ROBSON
Não! Não acredito, não acredito! Ah, meu deus! Ah, meu deus! Não acredito! Eu ganhei, caralho, eu ganhei! (gargalha alucinado) Não é possível, eu devo estar sonhando. Não é possível. Eu não acredito, caralho. Setenta mil! Setenta mil, porra! Eu sou foda! Vou comprar uma filmadora! Tirar meu nome do Serasa! Caralho, velho, caralho! Eu sou foda, porra! Agora o que eu faço? Eu tenho que ir na Caixa. Amanhã cedo. Caralho, caralho. Eu não tô acreditando, meu deus. Foi deus quem fez isso, não é possível. Ele existe sim. Não é possível.
Amanhã, então. Cedinho eu vou abrir a porra daquele banco!

(silêncio; ele vai desanimando aos poucos sem saber o que fazer naquele instante)

ROBSON
Ufa. Jesus amado. Eu não acredito nessa certeza de ter setenta mil reais na mão. Só pra mim. Meu. Merecido pela porra da sorte. Caramba, cara, que incrível essa sensação.

(silêncio; longo silêncio; Robson apenas respira ofegante)

(black-out)


CENA II

(as luzes se acendem e Robson está na mesma posição esperando a manhã chegar)

(black-out)


CENA III

(Robson entra fantasiado bem colorido)

ROBSON
Olha esses prédios. Esse céu. Olha pra essas pessoas. Olha pra mim. Me adicione no Facebook e veja quem eu sou. Que tipo de coisas compartilho e defendo. O mundo é sensacional demais pra se matar no final das contas. Eu sou sensacional. (ri tonto) Não, gente. A morte não é a melhor e única saída para seus problemas. Death is not the better and even the only way to solve your problems. A morte é a razão pra vermos beleza nisso tudo. E agora me sinto tão mais otimista. Comprei roupa, viajei, comi merda, dei duzentos reais pra cada um dos meus irmãos, só não ajudei a família necessitada porque não sobrou. Se fosse os sete milhões da mega, aí não seria problema. Mas setenta mil não dá pra quase nada.

(ele se vira para o espectador que puxou antes)

ROBSON
Amigo fútil. Quer dez reais emprestado? É a sua parte do cachê. Toma. (ele entrega) E pra você também. (entrega dez reais para a espectadora) Quase o preço do ingresso, olha que legal.

(Robson se vê preso em um foco e canta)

ROBSON
“Em dois mil e onze
A minha crise era outra
Entrar num palco era brincadeira
Isso passou
Em dois mil e catorze
Eu conheci os meus problemas
Coçar o saco, expor a merda alheia
Deus, quem eu sou?

Meu pai avisou
Pra eu ralar
Ai, meu senhor
Ele avisou”

(silêncio)

ROBSON
Sabe os finalmente? Então. Finalmente. Cheguei. Cheguei nos finalmente só que ainda não é finalmente nessa porra. Porque só vai ser quando der um black-out e não voltar. Quando apagar a luz e ninguém agradecer. Aí acabou. Aí sim será finalmente. Muita gente não vê a hora que isso aconteça. Tudo bem. Ninguém tem que gostar do que a gente tem pra falar. Talvez sintam até pena desse desespero humano transformado em língua e ações imbecis, que não tiveram nenhuma referência dramatúrgica inteligente. Pobre da vítima que eu sou das minhas próprias opressões. Pobre. “Eu vou fazer teatro, vou fazer cinema, vou passar maquiagem como rotina, vou beijar mulher, beijar homem, vou fazer novela – se der na telha, vou fazer o caralho a quatro quando eu me mudar pra grande e maravilhosa terra da garoa. É isso que eu vou fazer. E eu só preciso de um registro profissional pra me indicar pra sorte da vida.” (pausa) Burro. A geração dos anos noventa é essa. Sonhadora. E no final do dia todo mundo caga, e no final da vida todo mundo morre. É a única coisa certa que não decepciona jamais.

(repentinamente, Robson abaixa as calças)

ROBSON
Daquela vez eu não consegui ficar de pinto duro em cena. Agora são outros tempos. Vou bater uma punheta com o pinto duro e pra fora.

(ele tenta)

ROBSON
Seria mais fácil se eu tivesse uma ajuda. Não é fácil ficar excitado com toda essa gente olhando. Espere um pouco.

(vai tentando)

ROBSON
Pode parecer nada a ver eu ter mostrado o pau agora. Mas pra mim faz todo sentido porque a punheta foi um grande passo na descoberta – que eu ainda não cheguei a descobrir direito, lógico. Vocês me permitem ver algum vídeo pornô pra ajudar?

(num telão, um filme selvagem explode a cena)

ROBSON
Agora sim. Quem ficar com o pau duro também, pode mostrar, sem neura. Sou profissional o suficiente pra entender que mais gente que eu também necessita chamar a atenção. Fiquem a vontade.

(ele assiste um pouco do filme)

ROBSON
A punheta foi um grande passo da evolução. Eu vi isso numa tese. Mentira, eu acabei de inventar isso. Mas acho que foi mesmo. Sexo tem tudo a ver com tudo. Queria poder não precisar esconder o pinto na rua. Se fossemos o tempo inteiro pelados metade dos preconceitos se perderiam. Bem. Acho que não vou conseguir mesmo. Teatro é teatro, vida real é vida real. Eu podia até fingir, como da outra vez, mas o finalmente jamais chegará em cena. E nunca eu vou conseguir expor isso do jeito que eu acho que seria mais expressivo e explicativo. Ser existencial tem suas regalias. Pelo menos na teoria, né? (pausa) Agora eu já sei que deus não me julga por uma gozada. Não, ele não existe.

(black-out)


CENA IV

(Robson entra cantando sílabas que no fim se tornam risadas – pode ser alguma ópera clássica)

ROBSON
Chupa, tia! E eu nem fiz curso específico!

(silêncio)

ROBSON
Amantes e estudantes de teatro, não se baseiem em sonhos infantis na vida de artista. Fazer isso tem outro sentido. Não é brincadeira, não é passar um tempinho. Quem se perde nessa loucura é pra não voltar mais e vai sempre ter alguma coisa incomodando. Sabem o drama? Então. O drama acontece vinte e quatro horas. Eu fui dramático em dois mil e onze, mas um drama adolescente e imaturo. Eu sou dramático hoje, e espero que daqui três anos eu decida fazer uma terceira continuação e que eu esteja pensando totalmente diferente, e que eu olhe pro eu de hoje e me ache um infantil imbecil. “Tolo é aquele que não sabe querer melhorar.” Gabriel, capítulo vinte e quatro, versículo dois mil e quinze. E lembre-se: nunca chegará nos finalmente enquanto a morte não bater bem no meio do encéfalo. Se não quer ter problemas e crises no ciclo redondo do aprendizado, morra. O fim disso é um black-out, repito.

(black-out)

ROBSON
Não ainda, porra.

(as luzes voltam)

ROBSON
Eu ainda tenho um cigarro pra fumar. Foda-se os altos e baixos de um espetáculo também. Quem decide que uma pausa dramática deve ser descartada?

(ele fuma um cigarro INTEIRO em silêncio)

ROBSON
Agora sim.

(black-out)


CENA V

(ouve-se um copo quebrando)

(Robson entra correndo com o pulso sangrando)

ROBSON
(envergonhado e nervoso) Alguém! Ai, caralho! Alguém tem um telefone pra emprestar? Eu tentei me matar, mas demorou. E agora eu meio que não quero mais. Será que dá tempo? Eu acho que eu não perdi muito sangue, foi só... foi só... (cai desmaiado)

(música trágica; um foco fecha sobre o corpo)

ROBSON
O ciclo. O início se repete. Me parece um tanto absurdo. Não dá pra morrer, nem de desgosto,  mais de uma vez. Morreu, morreu. (pausa) Minha respiração já está tranquila porque já me acostumei com vocês aqui.

ELA
Robson?

ROBSON
Me deixa morrer em paz!

ELA
Sua mãe está aqui conosco. Ela veio assistir o espetáculo.

(ele se levanta)

ROBSON
Para com isso. Não brinca com essas coisas.

ELA
Ela tá sentada ali no fundo.

ROBSON
Mas a minha mãe já morreu, todo mundo soube disso. O encéfalo deu problema.

ELA
Não sei. Só sei que ela está sentada naquela cadeira vazia.

(um foco destaca uma cadeira vazia)

ROBSON
Mãe? Mas... O que? Eu sabia que era uma conspiração. Eu sabia que um dia você ia chegar e dizer que aquela morte tinha sido brincadeira. Você foi bem egoísta, viu. Acabou com seus problemas, mas me trouxe diversos. Justo? Não, não foi. (pausa) Não sei se eu te abraço ou se dou um murro na sua cara. (ele ri) A morte é uma coisa boa? (gargalha) Será mesmo? Alivia? Ah, não pra você, é isso? Alivia os outros? Aham. Sei. (ele ouve algo; gargalha; explica para a plateia) Minha mãe tá dizendo que as pessoas morrem para o bem das outras. Que elas sofrem pelo bem das outras. Por exemplo, a tal da Maria da Penha, a pessoa, não a lei, infelizmente teve que ver que seu nome virou um símbolo pela luta contra a violência contra a mulher em uma cadeira de rodas; não que justifique a violência e a tragédia, mas que algo mudou com o fato de ela ter passado pelo que passou. E assim vai. Esse foi o exemplo que ela deu. Que pessoas morrem pelo bem das outras, que tragédias acontecessem pra que nos acorde em alguns assuntos. Se eu aprendi alguma coisa em ser órfão de mãe? Aprendi que ninguém ama você de verdade como ela te amava. E aí sim você vira um completo solitário. Um jovem sem mãe é um jovem sem amigos.

ELA
Eu sou sua amiga e amo você. Você nunca precisará mais se sentir solitário?

ROBSON
Cadê você, então? Por que você não entra aqui e me dá um abraço. Ou me empresta logo uma grana? Por que você não entra e me assume em público? Eu nunca precisei de palavras porque sou eu quem gosto de falar. Eu quem preciso estar sozinho no foco e que preciso de uma peça completamente minha pra poder me explicar. Só eu. Você não está aqui comigo pra ser minha muleta. Talvez eu nem precise mais de uma muleta. Não querendo perder a humildade, mas eu me viro bem sozinho, acho.

“Ela corre para longe
Ela foge
E fode, foge, fode, foge...”

Foder é tão bom. (ele vai saindo) Preciso beijar alguém na boca. Pra me sentir quente. (sai) Valeu, mãe!

(black-out)


EPÍLOGO

(um vídeo mostra Robson andando por vários lugares conhecidos de São Paulo; depois de minutos de caminhada, ele para em um viaduto)

VOZ DE ROBSON
Eu faço aquilo que eu mais amo. Consegui ganhar na loteria na visão de algumas pessoas. Mas não consegui chegar no “ufa!”. Desse jeito, com tanta coisa fritando parte do meu encéfalo, sei lá onde é que eu vou parar.

(ele sobe no parapeito do viaduto; Robson entra em cena correndo e interrompe o vídeo)

ROBSON
Não! Para! Oh, meu deus. Eu nunca fui tão pessimista. Quem me conhece sabe que eu até li e divulguei o tal do Segredo. Eu não sou assim. Eu não sou esse depressivo. Eu não tenho coragem de me matar e a discussão talvez nem seja essa. Não é o medo. É a coragem. E ter coragem nunca é o suficiente. Eu vivo na base de uma carência completamente egoísta. Talvez essa cena dramática toda é só pra alguém poder sentir pena. Pra chamar atenção. Como todo mundo que faz cagada na vida pensou um dia. (pausa) Eu queria poder chegar nos noventa. Mas morrer aos vinte e sete seria sensacional se eu fosse uma estrela do rock. No mais, assim como Beckett sugeriu, basta esperar. É a única coisa que temos a fazer.

(Robson se levanta)

ROBSON
Então vamos? Vamos.

(silêncio; a luz cai em resistência exageradamente lenta)

(black-out)

FIM




ATO

ATO

PERSONAGENS
LULU
PABLO LEÔNCIO
EDILAINE

CENA I

(Pablo Leôncio está sentado sozinho num foco em cena; enquanto a plateia entra ele observa curiosamente e atentamente cada espectador, um tanto malicioso; quando todos se acomodarem ele pigarreia e inicia)

PABLO LEÔNCIO
Eu sou ator. (com desdém) Tenho registro profissional. Eu canto, também. Gosto de cantar. Danço. Eu danço. Muita gente é também. Gente boa, gente ruim. Gente estudada, gente achada. (toscamente adolescente) Mas isso tudo não é pra qualquer um, não. Eu gosto de falar que eu sou ator, sabe. Quando eu vou fazer algum cadastro, quando alguém pergunta. Eu encho a boca. E cuspo orgulhoso. Atores são assim. Os bons sabem que são bons, possuem o melhor camarim e esbanjam confiança numa simples tossida. Confiança é tudo na imagem de um ator. Sem confiança um ator se torna um eterno colegial nas artes. (pausa) Ouso dizer – não posso afirmar cem por cento –, mas acredito que isso tudo talvez até seja uma baita de uma camuflagem pra cobrir uma carência existencialista mais profunda que a de um contador, por exemplo. Ou talvez seja sem-vergonhice mesmo. Não, é? (pausa) Desculpem, não posso ser simples, generoso, atencioso com todo mundo. Eu sou um ator. Porque quando eu estou no palco... Ah! Quando eu estou no palco é isso aqui. Percebem? Vocês me olhando. Me dando real atenção, até pagando pra me ouvir falar. Tem como não viciar nesse caralho, gente? Não tem. E aí depois vem os paparicos. E os aplausos. E aí as pessoas querem te adicionar freneticamente no Facebook pra dar parabéns depois da peça. E as pessoas que convivem com você não querem nada contigo, mas quem te assiste quer dar o rabo pra você. (ri) É muita carência. E eu sei que tem muito ator que vai assistir uma peça de teatro e tem inveja do coleguinha que tá no palco, na necessidade de estar em cena o tempo todo. Eu sou assim, por isso posso falar. Nói sômo bicho feio, cara. Pode crer. Eu não sou nada inteligente, tenho uma porrada de contas pra pagar – igual todo mundo. Me aproveito da minha profissão pra trepar, pra entrar nas festas de graça, pra convencer as pessoas daquilo que eu acho que é mais justo de elas pensarem. E aí o povo lá de fora, e os de dentro também, vão um endeusificando o outro. Na medida que chega uma hora que as pessoas esquecem que você também caga. Que todo santo dia você também senta na privada e caga, caralho. É a mesma coisa. Eu não sou ninguém, odeio tietagem, odeio que as pessoas queiram saber quem eu sou. Mas eu amo que as pessoas precisem e queiram me olhar, me ver, falar de mim, quererem trepar comigo. Mesmo que eu não queira. Não é um absurdo de controvérsias? Pois bem. (pausa) Eu tenho medo de morrer aos vinte e sete.

(Edilaine entra)

EDILAINE
É nada. Você quer. É isso o que você mais quer. A coisa que você mais quer nessa vida é ser tratado profissionalmente com o respeito que você acha que merece. Eu sei que é. É um carma não ser nada. Não ser ninguém. Mas é foda perder parte da privacidade. Você não quer ser tratado como a Madona, mas isso é o que você fala. No fundo, você queria ser a Madona. Que as pessoas babassem. Por anos. Um título. Rei, rainha, mestre. O que mais teve, o que mais se sobressaiu em tal época. Você bem que gostaria de morrer aos vinte e sete pra entrar na lista das lendas. Você não é cantor. Você canta pro teatro. Teatro não existe isso dos vinte e sete, o mínimo exigido é morrer em cena. Numa tragédia. Com plateia ou sem plateia. Estaria preparado pra não terminar o serviço? Virar lenda é uma bosta, já que você não estaria mais aqui pra levar os créditos.

PABLO LEÔNCIO
Talvez seja uma forma de nos eternizar.

EDILAINE
Cara, pegue uma foto sua, embrulhe num pacotinho e enterre num lugar onde você tem certeza que nunca acharão. E nunca mais desenterre a sua foto. É a mesma forma de eternização.

PABLO LEÔNCIO
Não é a mesma forma. Uma foto enterrada ninguém nunca vai ficar sabendo.

EDILAINE
Exatamente. Quando você morrer, nada mais vai importar dentro dessa sua cabecinha. E esses conceitos de importância não terão mais sentido nenhum, porque os rainhos daí de dentro irão parar de te eletrocutar. Ou seja, naquele momento você não terá mais importância. Talvez até fique alguma ideia propagada, alguma ajuda no avanço, mas de mais, daqui cinco mil anos, as lendas serão ninguém. Pó. Que Zeus nos perdoe, não é?

(Edilaine encara a plateia e se destaca na luz)

EDILAINE
Eu sou atriz. Tenho registro profissional. Sou uma fudida. Nunca nem leram os editais que mandei pras leis de incentivo, que eu tentei pelo meu grupo. É. Eu sou do tipo: dona de grupo. Fiz um curso bacana de teatro e adoro falar que eu sou atriz, também. Posso não ser lá grande coisa, mas dou pro gasto. E dou pra caramba, viu. E quando eu digo pra caramba é pra não dizer pra caralho. Porque eu gosto de dar, sabe. De verdade. Sem exagerando nos trocadilhos. Foi a profissão que mais me acolheu, pra não precisar virar prostituta. Sem preconceitos. Eu acho que as pessoas tem que dar mesmo e foda-se. Dar e comer. Todo mundo. Eu mesma fumo um baseadinho. Gosto de falar que fumo porque passa uma imagem de descolada – porque atriz careta é uó! Enfim. A vida de atriz não é pra qualquer uma. Se o sexo feminino é tão forte – como ultimamente tem se espalhado – nós atrizes somos hiper mega poderosas a mais que as outras mulheres. É assim que somos. Não tem como tentar mudar.

(Lulu entra)

LULU
Atriz? Você é atriz? Mas é tipo novela?

EDILAINE
Ai, meu saco. É só novela que você acha mesmo que um ator faz ou você tá tirando com a minha cara, menina?

LULU
Não. Desculpe. Eu fiquei curiosa. Eu já tinha ouvido falar de gente como você, mas eu nunca tinha visto alguém assim antes.

EDILAINE
Assim como? Eu também cago, garota, me penteio. Eu sou normal.

LULU
Não. Eu vejo alguma coisa. Você tem um brilho.

EDILAINE
Menina, você tá tomando meu bife inteiro.

LULU
Espera! Mas você não quer fazer novela? Você é tão bonita. Tem cara. Acho que se você tentasse ia ser incrível.

EDILAINE
Eu nunca faria uma novela.

LULU
Ué, e por que não? Você ia ficar famosa, todo mundo ia te conhecer, todo mundo ia querer namorar com você. Você ia ter dinheiro e depois ia ser entrevistada no programa do Jô. Você não acha legal? Ai se eu fosse você. Eu ouvi dizer por aí que fazer teatro não dá muito dinheiro. Eu mesma acho que nunca fui ver uma peça pessoalmente.

EDILAINE
É por culpa de gente como você que a gente não ganha dinheiro, então. Valeu, lazarenta.

(silêncio)

LULU
Desculpe.

EDILAINE
(desiste) Tudo bem. É culpa da minha gente também que a gente não ganha dinheiro. Mas não, eu não me interesso por fazer novelas. Você quer tirar uma foto? Vamo logo com isso.

LULU
Não, não precisa de foto, não. Obrigada. Eu acho que eu gostaria de fazer uma novela.

EDILAINE
E por que?

LULU
Sei lá. Nunca fiz. Por que você só gosta de fazer teatro? Você nunca fez novela também. Nem sabe se é legal.

EDILAINE
Não me interessa. Só isso. Eu gosto de fazer teatro. E acho que se você quer fazer uma novela um dia você devia começar – antes de qualquer coisa – no teatro, sabe. É o mínimo de gratidão na iniciação.

(uma música grandiosa e confiante mostra Lulu recebendo uma luz divina com a mensagem que ela esperava; ela finalmente decide que quer ser atriz, de repente)

LULU
Meu deus. Você tem razão. Se a gente quer realizar um sonho, a gente tem que correr atrás, não é?

EDILAINE
Oi?

LULU
Foi ótimo ter te conhecido. Eu acho que eu decidi o que quero fazer da vida. Aquilo que me motiva.

EDILAINE
E o que é?

LULU
Teatro.

EDILAINE
Oi?

LULU
Exatamente. Já tinham me falado que era pra eu fazer quando eu era mais adolescente, porque eu era muito tímida. Mas eu sempre fui adiando um destino, eu acho. Era essa a mensagem que eu esperava, moça. Como é seu nome mesmo?

EDILAINE
Edilaine Corrêa. Meu DRT é o número zero, dois...

LULU
O que é que eu faço? Como eu faço? Eu começo por onde? Você consegue arranjar um papel pra mim na sua peça? Eu faço qualquer coisa, contra-regragem, qualquer coisa. Seu nome é como mesmo?

EDILAINE
Edilaine.

LULU
Edilaine, meu nome artístico será Lulu Amarantes. Anota aí. Não. Lurdinha Polly. Não, Lurdinha é feio. Lu Albuquerque.  Lurdes Albuquerque. Luque Albuquerque. Joyce. Com ípsilon. Ai, não sei! Preciso de ajuda.

PABLO LEÔNCIO
Como é seu nome?

LULU
Luciana Cibele da Silva.

EDILAINE
Por que Lurdes, então?

PABLO LEÔNCIO
Você não gosta dos sibilos?

LULU
O que?

PABLO LEÔNCIO
Você tirou os sibilos do seu nome. Seu nome é sibilante. Luciana Cibele da Silva.

LULU
Ah, não. Não gosto. Tira os sibilos.

PABLO LEÔNCIO
Que tal, só Lulu?

LULU
Como?

PABLO LEÔNCIO
Lulu. Só Lulu. Tá na moda nome único.

LULU
Hum. Gostei. Lulu, a atriz. And the Oscar goes to...

PABLO LEÔNCIO
Lulu! (ri)

LULU
(ri junto) Gostei.

EDILAINE
Ai, meu deus do céu. Incentiva. Incentiva a estupidez. A classe artística tá indo pra merda.

PABLO LEÔNCIO
Deixa ela. Ela vai aprender.

EDILAINE
Ora, menina. Quantos anos você tem?

LULU
Vinte e quatro, por que?

EDILAINE
Tá um pouco tarde pra começar, não acha?

LULU
Tarde?

EDILAINE
Eu comecei aos oito anos de idade, minha filha.

LULU
E você?

PABLO LEÔNCIO
Comecei com dezoito. Já tinha feito uma peça na escola.

LULU
Você acha que não tem espaço pra mim?

EDILAINE
Ai, menina, não é isso! Eu acho que a vida não é um sonho de ir pra novela, entendeu? Não é assim que funciona a nossa importância.

PABLO LEÔNCIO
Mas como é que a gente pode falar de importância pra alguém? O que importa pra mim não importa pra você.

EDILAINE
Mas existe um coletivo, Leôncio! Existe um coletivo! É toda uma história, uma luta, pessoas que ralaram pra falar alguma coisa. Poxa, Leôncio. Você sabe bem. É só pra isso que você faz teatro? Pela fama?

LULU
Eu queria conhecer o Malvino Salvador. Ele é lindo, não é?

EDILAINE
Não adianta discutir. (vai sair) Eu não vou falar pra que serve a arte porque você já sabe que não é pra essa merda.

PABLO LEÔNCIO
Não tem como a gente discutir o que é arte e o que não é? E se for uma inspiração divina mandando essa garota falar alguma coisa pro mundo seja qual jeito for?

EDILAINE
Numa novela, Leôncio? Pelo amor de deus. O que é que ela vai falar lá?

PABLO LEÔNCIO
Eu não sei, Edilaine. Sei lá. Sei lá. Você tem razão. Acabe com o sonho da menina que você nem conhece.

EDILAINE
Eu tô falando pro bem dela, Pablo, puta que o pariu! Menina, Luciana, olha, desculpa, mas a vida não é linda desse jeito. Você vai sonhar e os sonhos se realizam e aí um sonho realizado vira rotina. Ponto final. Você não vai chegar a namorar o Malvino Salvador, porque por um acaso ele já é casado e tem dois filhos. O teatro tem mais coisa, sabe. A arte de interpretar tem outro sentido, entende? Tem uma profundidade que, nem quem é da área – às vezes – sabe. Te juro.

LULU
Mas eu quero, poxa. Eu quero poder fazer uma novela um dia. Por que não? Por que tanto preconceito?

PABLO LEÔNCIO
Se for pela experiência, vale tudo. Tudo.

(silêncio)

EDILAINE
Desculpem. Eu não vou discutir. Você sabe o porquê que você gostou dela, Pablo. Não sabe? Se a gente tivesse em qualquer outro lugar que não fosse aqui e fosse outra ocasião, você iria achar essa menina fútil e sugeriria pra que eu desse um murro na cara dela. Mas você sabe o porquê.

LULU
Por que?

(Edilaine sai)

LULU
Por que?

PABLO LEÔNCIO
Por nada. Na arte, garota, vale tudo. Vale até ser idiota. Não tem um deus onipresente que julgue espetáculo melhor e espetáculo pior. Foda-se a boca das pessoas.

LULU
Em que tipo de ocasião você me acharia fútil e sugeriria que ela desse um murro na minha cara?

PABLO LEÔNCIO
(se cansa) Sei lá, garota. Sei lá. Você é bonitinha, sabia? Pode até que dê certo.

LULU
Sério? Você acha?

PABLO LEÔNCIO
Sim. Eu conheço algumas pessoas do meio.

LULU
Sério?

PABLO LEÔNCIO
Sim. Você curte um vinho?

LULU
Não muito. Mas aquele que é docinho eu gosto.

(Pablo sai e volta com uma garrafa)

PABLO LEÔNCIO
Você já montou alguma peça?

LULU
Nunca. Eu acho que eu tenho um pouco de vergonha ainda. Mas hoje eu sinto que eu tô destinada ao teatro.

(Leôncio vai se aproximando sorrateiramente de Lulu)

PABLO LEÔNCIO
Tem uns cursos bacanas que você paga e faz um intensivo de três meses. Sai com diploma e tudo. Depois de um ano dá pra gente fazer um esquema pra você já tirar o registro profissional.

LULU
Poxa, um ano?

PABLO LEÔNCIO
Calma, menina. Tem tempo. Você é nova ainda.

LULU
Ela disse que eu tô muito velha já.

PABLO LEÔNCIO
Ela não vê talento no que eu vejo.

(silêncio; ele entrega a taça e olha bem no fundo dos olhos dela; ela ri envergonhada)

LULU
Eu tenho a impressão de te já ter te visto em algum lugar.

PABLO LEÔNCIO
Eu sou comum.

LULU
Hum.

PABLO LEÔNCIO
O vinho, garota, tem um grande significado pra nós atores, sabe.

LULU
É mesmo?

PABLO LEÔNCIO
Teve uma peça que eu fiz – na minha época dionisíaca – que se tirassem todas as cenas que a gente colocava vinho nas taças, reduziria o espetáculo em trinta e dois minutos. É sério. Eu cronometrei.

LULU
Nossa.

PABLO LEÔNCIO
Beba.

(ela obedece)

LULU
Nossa. É forte, né?

PABLO LEÔNCIO
Forte. Quente.

LULU
Que legal. Eu sempre só tomei aqueles vagabundos.

(silêncio; os dois ficam num silêncio constrangedor por alguns segundos)

PABLO LEÔNCIO
Eu já fiz uma peça que eu ficava peladão, sabia?

LULU
Mentira. Você?

PABLO LEÔNCIO
É. É uma delícia.

LULU
Mas você não ficava com vergonha?

PABLO LEÔNCIO
Ué, quando tá calor a gente não tira a roupa?

(ele tira a camisa calmamente)

LULU
(ri envergonhada) É. Tira.

PABLO LEÔNCIO
Então. É igual.

(outro silêncio; Pablo fita Lulu esperando alguma resposta)

PABLO LEÔNCIO
E então?

LULU
Então o que?

PABLO LEÔNCIO
O que vai ser?

LULU
O que vai ser do que?

(Pablo, inesperadamente se irrita, e joga a própria taça no chão; Lulu pula de susto)

PABLO LEÔNCIO
Pra ser ator tem que ter drama. Tem que ser dramático, sabe. Tem que ser sensual. Tem que ter fogo, entende? Tem que se abrir à possibilidades. Tem que querer experimentar tudo e todo tipo de experiência. Comer homem. Comer mulher. Comer. Cheirar. Lamber. Tem que ser nua, entende? Pra ser ator tem que se alimentar do outro. Trocar saliva. Fazer soar um sibilo no cu do outro.

LULU
Chega!

PABLO LEÔNCIO
Não! Não chega! Não tem fim! Pra ser ator tem que saber que não tem fim. O espetáculo de amanhã não vai ser igual o de ontem. Nunca ninguém fará o Hamlet que Shakespeare imaginou. Nunca! Ninguém! Talvez chegue perto, mas teria traços diferentes!

LULU
Eu só quero fazer uma novela!

PABLO LEÔNCIO
Você daria pro Malvino Salvador? Chuparia a rola dele porque ele parece todo gostoso no vídeo?

LULU
Por favor, não fale essas coisas...

PABLO LEÔNCIO
Você tem medo de mim? Eu não vou fazer nada que os dois não queiram. Tô tentando te excitar.

(silêncio)

PABLO LEÔNCIO
Melhor você ir. Você está me fazendo perder meu tempo.

(Lulu sai receosa; Pablo fica sozinho se sentindo um merda; ele acende um cigarro e bebe a garrafa pelo bico)

PABLO LEÔNCIO
Constantin Stanislavski. Vai tomar no cu, cara.

(black-out)


CENA II

(Edilaine está em um foco)

EDILAINE
“Um dia você ficará cego, como eu. Estará sentado num lugar qualquer, pequeno ponto perdido no nada, para sempre, no escuro, como eu. Um dia você dirá, estou cansado, vou me sentar, e sentará. Então você dirá, tenho fome, vou me levantar e conseguir o que comer. Mas você não se levantará. E você dirá, fiz mal em sentar, mas já que sentei, ficarei sentado mais um pouco, depois levanto e busco o que comer. Mas você não levantará e nem conseguirá o que comer. Ficará um tempo olhando a parede, então você dirá, vou fechar os olhos, cochilar talvez, depois vou me sentir melhor, e você os fechará. E quando reabrir os olhos, não haverá mais parede. Estará rodeado pelo vazio do infinito, nem todos os mortos de todos os tempos, ainda que ressuscitassem, o preencheriam, e então você será como um pedregulho perdido na estepe.”

(silêncio)

EDILAINE
Aplaudam, caralho! É o mínimo.

(ela aguarda os aplausos; insiste se for necessário)

EDILAINE
(saindo) Essa porra é daquele cara que escreveu esperando Godot. Samuel. Becket. Samuel Becket. Se alguém se importa com as referências. (sai)

(um foco destaca Pablo Leôncio)

PABLO LEÔNCIO
Referência é o caralho! É tudo cópia mesmo. “Um é a coroa da cara do outro”. O cara, às vezes, abriu a página de um livro na sorte e copiou alguma frase de efeito bacana e aí todo mundo aplaude. Se nossa amiga atriz Edilaine não tivesse dito de quem era o bife que ela deu, ninguém aqui nunca iria saber e talvez o texto se misturaria ao nosso sem nenhuma diferença estética gritante. Mas quando se é jovem e vivo – principalmente vivo – quem é que dá credibilidade nas opiniões? (pausa) Saiu numa revista. “Pablo Leôncio diz: prefiro fazer novela que teatro.” Eu nunca disse isso, mas enfim. Eu ganho melhor, como algumas garotas, sou convidado pra festas bacanas. Eu gostei de fazer as poucas novelas que eu fiz.

(Lulu entra)

LULU
Eu não acredito! Por que você não me disse? Eu sabia que eu te conhecia de algum lugar!

PABLO LEÔNCIO
Garota, eu só queria te comer. Se quiser a proposta ainda tá em pé. Mas não me venha encher o saco.

LULU
Me coloca numa novela? Eu fiz dois cursos! Dois! Foi super caro, mas valeu a pena. Eu já me sinto preparada. Eu aprendi muito com o Marcos Giovaneti. Você conhece?

PABLO LEÔNCIO
Não.

LULU
E o Carlos Albuquerque?

PABLO LEÔNCIO
Não. Também não conheço.

LULU
Ah, mas o André Cunha você conhece, não conhece? Ele já fez novela também.

PABLO LEÔNCIO
Não conheço. Tem muita gente no mercado, sabe.

LULU
Bom, enfim, eles podem falar bem de mim. Eu fui super desinibida. Fiquei pelada também. Você acredita? Fui assistir o Zé Celso e eles abaixaram a minha calça. Foi sensacional. Eu amei. Agora eu mostro a bunda pra todo mundo. Quer ver? (ela abaixa a calça)

PABLO LEÔNCIO
Já dá também?

LULU
Oi?

PABLO LEÔNCIO
Dá também? A bunda? Bonita a sua bunda.

LULU
Ainda não dou. Não assim desse jeito que se possa dizer: “nossa, como ela dá”. Mas tô tentando quebrar uns paradigmas ainda. Você sabe, né? Vida de atriz não é fácil. (ri)

PABLO LEÔNCIO
Não. Não é fácil. Mostra a bunda de novo, então.

LULU
Oi?

PABLO LEÔNCIO
A bunda. Mostra de novo. Pra eu ver se cabe na televisão.

(Lulu pensa e depois mostra novamente; black-out; um foco rápido destaca Edilaine)

EDILAINE
“A coroa que a gente coloca em gente comum é a maior babaquice que a gente podia ter inventado. Quando a gente endeusifica qualquer coisa, a gente tá cometendo o maior pecado que se possa imaginar. Nem Cristo queria ser tratado como tratam o papa. Acho que o mundo tem girado mais rápido que antes. Precisamos de foco na arte. De cara a tapa. De embasamento. Mas antes de tudo de experiências, sim. Quando descobrirmos que a arte é feita por todos e para todos, ninguém nunca mais vai escolher a futilidade.” (pausa) Esse é meu mesmo. Eu escrevi ontem no meu tablet enquanto eu cagava. 

(Edilaine sai; em seguida, Lulu entra; ela se aquece e se alonga no jeito mais clichê)

LULU
Porra, eu dei. Ai, eu dei. Dei mesmo. Eu já tô fazendo umas figurações, até.

(no meio dos movimentos, Lulu trava a coluna)

LULU
Ai. Caralho! Ai! Ai, senhor! Alguém! Ai, caramba! Travei, porra. Travei.

(uma música instrumental grandiosa arrebenta a cena e Lulu, de um contorcionismo torto, passa a dançar magistralmente pelo palco)

LULU
(gargalhando) Ah! Eu descobri! Eu descobri qual é a sensação do medo de uma atriz! Eu era de uma inocência. (ela continua dançando afobada) As asas dessa lagarta demorarão a desabrochar. O vinho que eu bebi eu mijei no mesmo dia. A porra que eu engoli não vai chegar a virar um feto. E eu dei o cu com uma camisinha de morango! Eu amo ser atriz! Eu amo poder gritar e cuspir falas que eu nunca falaria na vida real. Quando tudo isso acabar eu vou pegar minhas coisas e vou voltar pra casa como todo mundo. Talvez eu pare em algum bar pra tomar uma cerveja, mas quem nunca? Eu amo ser atriz e dizer pra todo mundo que eu tenho registro profissional e que um dia algum diretor me valorizou em um espetáculo qualquer! Eu me sinto tão poderosa com todos me olhando enquanto eu giro, giro, giro. Igual uma retardada. Qual é a graça nisso? Qual é a graça de ver corpos fazendo macaquices? Por que diabos alguém paga pra ver outra pessoa mostrar a bunda? (pausa) Eu também não sei. Não sei se vou descobrir. Mas agora eu já estou viciada nesse caralho. Eu necessito que quando a música terminar e eu parar de dançar e falar, que aplausos ecoem por esse teatro e que depois alguns me adicionem no Facebook pra tentar saber um pouquinho de quem eu sou. Porque daí no fim eu vou ser seu deus por aqueles segundos que você me deu atenção. E eu amo ter pessoas me paparicando mesmo que eu não queira perder a minha intimidade.

(a dança freia; ela aguarda por aplausos; se tiver, ok, ela agradece e sai; se não, ela somente sai sem drama)

(Pablo Leôncio e Edilaine entram numa preliminar animal; eles se lambem violentamente, um tirando a roupa com mais ansiedade que o outro)

PABLO LEÔNCIO
Vai rolar um sexo ao vivo?

EDILAINE
Eu topo. Adoro misturar a vida com a arte.

(eles se beijam mais um pouco)

PABLO LEÔNCIO
Vai ser simples. (ainda beijando) Eu pego seu currículo e algumas fotos e tudo vai ficar legal.

EDILAINE
Ah, é? Que delícia.

(se chupam mais ainda)

PABLO LEÔNCIO

O bom é que você já tem experiência.

EDILAINE
Eu tô precisando de uma grana.

(eles se beijam mais um pouco; Edilaine percebe algo errado nas calças de Pablo)

EDILAINE
Tá tudo bem?

PABLO LEÔNCIO
Calma.

(ele a beija envergonhado; Edilaine desanima um pouco)

EDILAINE
Não tá curtindo?

PABLO LEÔNCIO
Tô. Calma. Eu bebi muito.

(Edilaine se ajoelha e abaixa as calças dele; obviamente, o pinto de Pablo está mole; ela segura o órgão com bastante delicadeza e diz)

EDILAINE
Pra ser ator tem que ter drama. Tem que ser dramático, sabe. Tem que ser sensual. Tem que ter fogo, entende? Tem que se abrir à possibilidades. Tem que querer experimentar tudo e todo tipo de experiência. Dar pra homem. Dar pra mulher. Comer. Cheirar. Lamber. Tem que ser nu, entende? Pra ser ator tem que se alimentar do outro. Trocar saliva. Fazer soar um sibilo no cu do outro.

(Edilaine vira Pablo de quatro, abaixa as próprias calças onde um pênis de borracha está amarrado; ela penetra nele com bastante macheza; eles gritam de tesão; Lulu entra)

LULU
Por que? Por que? Pra que isso, gente? Pra que diabos precisava dessa cena?

PABLO LEÔNCIO
Isso é teatro, minha filha.

EDILAINE
Vale tudo. Eu fiquei afim, ele curte também. Qual é que o problema?

PABLO LEÔNCIO
Punhetação artística é uma coisa muito comum.

LULU
Mas parem! Parem! Já deu! Todo mundo já viu! Vocês não esperam realmente serem aplaudidos de pé nessa cena cheia de falta de embasamento teórico e sensato, esperam? Putaria é putaria. Arte é arte.

EDILAINE
Cale a boca, menina. Arte é putaria. Em todos os sentidos.

PABLO LEÔNCIO
Vale tudo. O que a gente quiser. O que você quer por? Coloque. Não tem ninguém julgando.

LULU
Como assim?

PABLO LEÔNCIO
Você, como atriz, que tipo de cena gostaria de fazer?

LULU
Ah, sei lá...

PABLO LEÔNCIO
Sei lá, uma cena de estupro, que exige? Uma cena onde você foge de um macaco gigante? Uma cena onde você voa!

LULU
Voar? Sim, eu gostaria de fazer uma cena que eu voasse. Dá pra fazer?

PABLO LEÔNCIO
Dá. Dá tudo, menina. Tudo dá.

LULU
Então eu quero. Vamo lá. Eu quero voar em cena. Vai.

(silêncio)

PABLO LEÔNCIO
Não. Agora não dá. A gente tem que planejar isso. Teria que ter uma contra-regragem mais bem detalhada e bem produzida, sabe. Nós estamos começando ainda. Sem orçamento.

EDILAINE
Ninguém tem uma corda?

PABLO LEÔNCIO
Olha, escolha algo que dependa do seu trabalho de atriz. Não de uma maquinaria. O que você gostaria de fazer, por exemplo? Que cena de filme você acha que seria super divertido fazer?

LULU
Ah, lembrei de uma! Peraí que eu vou fazer.

(ela se arruma, respira fundo e interpreta como se estivesse endemoniada toscamente)

LULU
Me coma, Jesus! Me coma! Me possua! Me possua! (ela grita bem mal interpretada)

(ela termina a interpretação)

EDILAINE
Dercy Gonçalves?

LULU
Não! É a menina do “exorcista”. Ah, eu queria tanto ter que fazer uma cena de endemoniada.

(black-out)

PABLO LEÔNCIO
Liberdade artística é perigosíssimo.

(fecham-se as cortinas)


CENA III

(a cortina se abre; quando as luzes se acendem, Lulu é uma endemoniada bem interpretada e maquiada; Pablo Leôncio é um padre; Edilaine é a mãe de Lulu; tudo acontece realisticamente bem encenado dessa vez)

ENDEMONIADA
(com voz demoníaca) Eu vou comer a porra do coração da sua mãe no inferno, padre!

PADRE
Deus todo poderoso, liberte a alma dessa inocente. Eu repreendo todo o mal!

ENDEMONIADA
(ri) Inocente é o meu rabo, padre. Ou você acha que a garota é uma puritana? Essa buceta já tomou muita bala. Em todas as poses e velocidades possíveis! (gargalha)

EDILAINE
Oh, meu deus! Misericórdia!

ENDEMONIADA
Meu cu pra você, mamãe! Meu cu!

PADRE
Meu senhor Jesus Cristo é mais poderoso que qualquer espírito! Não existe força maior que a do meu santo deus!

ENDEMONIADA
(enfiando uma cruz na buceta) Me coma, Jesus, me coma bem gostosão!

PADRE
Eu ordeno que saia agora! Saia, demônio! Em nome do pai, do filho e do espírito santo! Amém!

EDILAINE
Amém!

PADRE
Saia!

(no auge do suspense, a Endemoniada grita e se contorce horripilantemente pela última vez; a garota desmaia; uns segundos de silêncio)

(black-out)

(por longos segundos a escuridão reina)

(em off, os atores terminam)

TODOS
Acabou. Aplaudam, caralho. É o mínimo.

(black-out)

CENA IV

(Lulu está terminando de arrumar seus pertences depois do espetáculo; ela recebe uma mensagem no celular e ri vaidosa)

(com máscaras, Edilaine e Pablo Leôncio entram em cena)

EDILAINE
Ei, você! Parabéns, viu. Você estava ótima.

LULU
Obrigada.

EDILAINE
Você é muito boa.

LULU
Ah, imagina.

PABLO LEÔNCIO
A gente podia tirar uma foto com você?

LULU
Uma foto? Claro!

(eles se posicionam e tiram a foto)

EDILAINE
Nossa, mas você é muito mais bonita de perto, sabia.

PABLO LEÔNCIO
Muito mais. Aquela hora que você mostrou a bunda é sensacional de profundo.

LULU
Obrigada, gente. Muito obrigada mesmo. É muito bom ter uma plateia satisfeita.

EDILAINE
Eu faço teatro, também, sabia?

PABLO LEÔNCIO
Ela começou pequenininha.

LULU
Nossa, que legal. É. Bom, eu meio que acabei de começar.

PABLO LEÔNCIO
Sério? Nossa. Mas você mostra tanta segurança.

LULU
Sim, essa é minha primeira peça.

EDILAINE
Sério?

LULU
Sério. Eu tava tão nervosa. Mas acho que deu tudo certo.

EDILAINE
Se acostume, a sensação é sempre assim.

(Edilaine sai um pouco decepcionada)

LULU
O que aconteceu?

PABLO LEÔNCIO
Não se preocupe. Ela tem problemas com o sucesso dos outros.

LULU
Sucesso? Eu acabei de estrear.

PABLO LEÔNCIO
Mas é que você é boa, menina. Teve efeitos especiais, não teve?

LULU
Não, eu costumo ficar longe das drogas. Sei que é muito comum no meio.

PABLO LEÔNCIO
Não, eu quis dizer se houve trabalho da maquinaria. Você parecia mesmo um demônio.

LULU
Ah, sim! Sim, sim. Eles colocam a parte grossa da minha voz lá da cabine de som.

PABLO LEÔNCIO
Ah, imaginei. Foi impressionante. Ninguém esperava uma cena dessa num espetáculo sério como esse.

(Edilaine gargalha debochando fora de cena)

LULU
Um amigo meu costumava dizer que vale tudo. O artista pode fazer o que quiser.

PABLO LEÔNCIO
(desanima) Ah, sim.

(silêncio)

LULU
Bom, eu tenho que arrumar minhas coisas.

PABLO LEÔNCIO
Claro.

(ele vai sair, mas volta)

PABLO LEÔNCIO
Olha, escuta. Você acha então que qualquer um pode fazer teatro também? Qualquer merda escrita pode ser considerada dramaturgia? Nessa questão do “vale tudo”?

LULU
Ah, acho. Meu amigo sempre dizia que arte é um bagulho foda de se julgar.

PABLO LEÔNCIO
Mas existe um consenso coletivo, também, não existe?

LULU
Mas em arte existe exatidão?

PABLO LEÔNCIO
Não, mas não tem como eu não criticar um espetáculo ruim, por exemplo.

LULU
Já pensou que alguém com outras referências e experiências pode achar um significado magistralmente sensacional num espetáculo que você diz que é uma bosta?

PABLO LEÔNCIO
Já pensei. Mas temos que concordar que se alguém decide fazer um musical e nenhum dos atores tiver qualquer tipo de preparação vocal para cantar, e mesmo assim eles assinarem a produção como musical, podemos e veremos que o produto final dessa fábrica – que é o espetáculo em si – não estará direito. Não porque eles não possuem alma de artista suficiente, mas porque assumem uma estética que ainda não dominam.

LULU
Acho que se alguém pintar qualquer bosta e dizer que aquilo é arte e que significa muito pra ela, ninguém tira o crédito. Eu acho que se eu pegar um quadro em branco agora e desenhar qualquer bosta e depois disser e convencer alguém de que aquele quadro é do Leonardo da Vince, por exemplo, as pessoas iriam procurar profundidade. Se eu dissesse que o quadro é do André Cunha, foda-se o André Cunha, porque quem diabos é André Cunha, né?

PABLO LEÔNCIO
Mas o problema tá se o tal do André Cunha divulgar que aquilo é uma pintura a óleo e ter pintado com guache. Nesse quesito acho que podemos criticar, sim. Não as escolhas da alma, mas toda a parte técnica da coisa.

LULU
Hum.

(silêncio)

(um foco destaca Edilaine histericamente pintando um quadro)

EDILAINE
Quem vem falar que essa bosta não presta? Quem? É reflexo das coisas que eu sinto. E não importa se eu não tenho embasamento pra colocar nome de gente famosa como referência da minha arte! Essa porra não importa! Não importa se eu faço o que faço por dinheiro, ou por amor, porque sou burro ou inteligente. Não importa se você não entendeu o que eu quis dizer, alguém deve ter entendido, e alguém um dia vai entender. E se não, foda-se! O mais importante pra mim – sem querer ser egoísta, mas é assim que todo mundo é – sou eu mesma. E eu quero tirar uma foto do meu quadro pintado à guache e postar na minha rede social. E foda-se de novo. É coisa de dentro de mim.

LULU
Viu? Quem vai falar alguma coisa?

(Edilaine continua num expressionismo)

PABLO LEÔNCIO
Olhe bem pro quadro. Tá ruim.

LULU
Mas pela perspectiva de quem?

PABLO LEÔNCIO
Pela minha perspectiva.

LULU
E quem é você?

PABLO LEÔNCIO
O mesmo ninguém que você, também.

EDILAINE
Exatamente.

PABLO LEÔNCIO
O artista faz o que faz pra chamar atenção. Tenho vários amigos atores. Todos carentes tanto sexualmente como apenas de paparicos.

EDILAINE
Tem razão.

PABLO LEÔNCIO
Sem plateia não existe encenação.

LULU
A arte faz eternizar parte de nossos pensamentos. Sejam eles inteligentes ou idiotas. Com plateia ou sem plateia.

EDILAINE
Pegue uma foto sua, embrulhe num pacotinho e enterre num lugar onde você tem certeza que nunca acharão. E nunca mais desenterre a sua foto. É a mesma forma de eternização.

(silêncio)

LULU
Então eu não entendo mais o significado.

PABLO LEÔNCIO
Não procure. Muita gente já tentou. Eu nem sou de teatro e já me sinto com tantos problemas existenciais só de conviver com eles.

(Pablo sai)

LULU
Meu deus. No que é que eu fui me meter?

EDILAINE
Na vida, menina. O problema é que a gente vive imitando e sugerindo a vida e aí não tem como não pirar. Porque a existência é uma puta de uma piração, foi daí que surgiu a arte. De começo, com endeusificações. O teatro real era o ritual onde se incorporava personagens do fundo da alma que eram recebidos como seres divinos. O deus de hoje nada mais é que um puta teatro, também. Ligue a televisão naqueles programas de pastores pra você ver o puta teatro. É a insuficiência. A carência. A solidão. E não só dos atores, de todos os humanos. Os atores só foram os azarados que quiseram saber mais de como é que as pessoas vivem, e o que é que elas fazem, que jeito reagem a devida circunstância. Tome cuidado pra não morrer aos vinte e sete, garota. Vão te enfiar uma profundidade que você nem tinha e que é igual a profundidade de todos. Vazia.

LULU
Vocês atores são horríveis.

EDILAINE
Nós atores.

LULU
Vocês. Eu só queria fazer uma novela. E tá demorando pra cacete.

(Lulu sai; Pablo Leôncio entra correndo com alguns livros na mão e um jornal)

PABLO LEÔNCIO
Você não vai acreditar. Olhe isso.

(Edilaine pega os livros e lê)

EDILAINE
O que é isso?

PABLO LEÔNCIO
Veja o nome da autora.

EDILAINE
Lurdes Albuquerque. Claro. Eu já li esses livros. Um professor me disse pra eu prestar atenção nela porque ela era a nova cara do teatro contemporâneo.

PABLO LEÔNCIO
Você sabia que ela tem vinte e quatro anos? Escreveu o primeiro livro aos dezesseis.

(ele entrega o jornal pra ela)

EDILAINE
“Performer famosa desaparece no Amazonas”

PABLO LEÔNCIO
Eu nunca tinha visto uma foto dela. Olhe aí.

(Edilaine se espanta quando vê)

EDILAINE
Não acredito. Mas...

PABLO LEÔNCIO
Pois é. A Lulu é a Lurdes Albuquerque. Leia embaixo. A família diz que ela era viciada, vivia na base de tarjas pretas e começou a ter surtos de amnésia. Ela tinha ido pro Amazonas pra performar com uma tribo. Ela é a garota atriz contemporânea.

EDILAINE
Meu deus do céu.

PABLO LEÔNCIO
Ela deve ter pirado de vez.

EDILAINE
Mas ela disse que nunca tinha feito teatro antes.

PABLO LEÔNCIO
Amnésia. Você sabe o que é isso?

EDILAINE
Lógico. Mas...

PABLO LEÔNCIO
Vê? Mesmo sem saber, o teatro a fisgou novamente. Não é uma maluquice?

EDILAINE
Como ninguém a reconheceu?

PABLO LEÔNCIO
Sei lá. Nós temos que contar pra ela quem ela é.

(os dois saem determinados)

(black-out)


CENA FINAL

(Lulu está dançando nua frente a um espelho)

LULU
Eu mostro a minha bunda todo dia que eu quiser
E não é só pra ser fútil é porque é assim que é
A loucura me afunda num teato sem exatidão
É o gosto, o olfato, o tato
É o que nos dá tesão
Um rio na contra mão
A lagarta que vai demorar pra sair do seu casulo

Sem sentido, sem metáfora real
O rio na contra mão
A bosta da borboleta que não sai dessa vida, desse mundo
É só uma frase bonita mal enfiada
Que é igual a nada
É igual ao tudo

Uma frase bonita é fácil de inventar
Quero ver chegar e interpretar
Do jeito que Shakespeare imaginou que fosse
Do jeito que André Cunha quis se comunicar

O problema é dele
O problema é seu
O problema é nosso

(Lulu encana com algo em sua nuca; ela coça freneticamente parte da sua cabeça)

LULU
Alguma coisa acontece dentro da gente. E pra ser um bom ator – me disseram uma vez – quanto mais você souber como é que funciona a cabeça do ser humano, melhor você vai conseguir interpretar e reagir corretamente. Quanto mais fútil e preconceituoso você for, menos artista. Essa bosta coça.

(um foco em outro canto mostra Pablo Leôncio e Edilaine procurando por Lulu)

EDILAINE
Como é que ninguém dessa porra de produção tinha o endereço dessa garota? Ninguém sabe onde ela tava morando?

PABLO LEÔNCIO
Ela apareceu, começou a frequentar os ensaios.

EDILAINE
Nem um telefone?

PABLO LEÔNCIO
Ela nunca faltava. Era a mais pontual e a única que se aquecia. Eu disse que eu sabia reconhecer um talento, não disse?

EDILAINE
E eu lá ia saber que ela era a tal da Lurdes Albuquerque. Esse nome é um nome de velha.

PABLO LEÔNCIO
Esse fato deve ter ajudado na piração dela.

EDILAINE
A gente tem que dar um jeito de achar ela logo, Pablo.

PABLO LEÔNCIO
Ou a gente espera até sábado. Ela com certeza vem. Melhor ligarmos pro telefone que tá no jornal.

EDILAINE
Pablo, você tem noção de como isso vai nos ajudar na publicidade do negócio?

PABLO LEÔNCIO
Nosso teatro não é o mesmo estilo que ela defendia. O teatro dela é bem mais profundo que o nosso. Vai ser estranho quando descobrirem.

EDILAINE
Como assim o teatro dela é bem mais profundo que o nosso? Não tem nada a ver isso.

PABLO LEÔNCIO
Sou eu que escrevo as nossas peças. Eu sei bem o que tô dizendo.

EDILAINE
Ah, é? Só porque ela ficou louca ela é bacana agora, então.

PABLO LEÔNCIO
Não, cara. A gente refaz a cena do Exorcista descaradamente. Ela foi ter com os índios.

EDILAINE
E pra que que ela foi ter com os índios? Me responda essa. Pra que? Pra quem?

PABLO LEÔNCIO
Sei lá. Mas tem muito mais.

EDILAINE
Muito mais de que? Eu não tô entendendo. Nós somos famosinhos aqui em São Paulo.

(silêncio)

PABLO LEÔNCIO
Você falou de famosidade lá no começo do espetáculo. Jogou na cara da menina que – mesmo que o sonho dela fosse entrar no Big Brother pra ser atriz – ser atriz não tem nada a ver com famosidade. Você disse isso.

(silêncio)

EDILAINE
Bem. Que bom que eu ainda consigo me contradizer.

PABLO LEÔNCIO
Bem. Que bom.

(black-out no foco; Lulu volta muito mais insana)

LULU
Eu vou arrancar a minha cabeça fora!

(longo silêncio; suas últimas palavras ecoam pelo espaço; Lulu está exageradamente inquieta; ela percebe que está mal, mas a loucura a faz voltar para situações que chegam a alucinações; ela ri sozinha e acende um cigarro; em algum momento, de tanto rir, ela quase cai numa tristeza; mas logo se recompõe; finalmente, subitamente, ela desperta; ela se arruma pra sair completamente séria e sensata)

(duas figuras demoníacas, com máscaras estranhas, Edilaine e Pablo Leôncio entram com uma música grandiosa)

EDILAINE
Não tem como não falarmos de morte quando o assunto é o teatro.

LULU
Ué, e por que não?

PABLO LEÔNCIO
Porque não, burra.

EDILAINE
A cena é nossa e a gente pode fazer o que a gente quiser.

PABLO LEÔNCIO
Mate no teatro e sofra as consequências.

EDILAINE
Existe uma porrada de jeito de se fazer, mas tem que tomar muito cuidado pra não ser uma morte em cena desnecessária. O realismo é um perigo agora que temos a possibilidade de assistir um filme que as facas passam do lado da cabeça e os monstros enfiam a mão fora da tela – pra chegar a um palmo da sua cara – ao invés de ir ao teatro.

PABLO LEÔNCIO
Eis a porra da desvalorização teatral! Precisamos de festa por não termos sobrevivido ao cinema e a televisão!

EDILAINE
Antes o teatro era uma diversão fina. Tentaram popularizar, mas formou-se a classe. A classe teatral.

PABLO LEÔNCIO
Palpiteiros. E não só com interesse em aprender, viu.

LULU
E o que diabos isso tem a ver com morte?

PABLO LEÔNCIO
Você soube o que aconteceu com a garota que fez a garota principal do filme que vocês costumam repetir todo sábado num teatro vagabundo do centro da cidade?

LULU
O que aconteceu?

EDILAINE
Virou uma prostituta! Deu pra todo mundo! Todo mundo sabe disso e todo mundo comeu ela.

LULU
Ué, atriz.

PABLO LEÔNCIO
(misterioso) Ela ficou endemoniada na vida real.

LULU
(sensata) Hum. Se é isso que vocês acreditam...

(silêncio)

EDILAINE
Nós somos demônios e iremos te atormentar.

LULU
Beleza. Artista precisa passar por experiências.

PABLO LEÔNCIO
Não é nada disso! (revela) Nós existimos só na sua cabeça. Mas talvez isso seja muito mais perigoso que possíveis seres malignos católicos. Porque é você que está ficando louca. E tá ficando louca sozinha...

PABLO LEÔNCIO e LULU
E no fim das contas isso também não significa que não somos demônios reais, porque se está vendo e experimentando, é assim que é a realidade de todo mundo. A gente vê e experimenta e nunca sabe se dá pra confiar cem por cento no que é a realidade. Você está completamente louca e sensata ao mesmo tempo com demônios eternizados nos raios do seu cérebro.

LULU
Eu já sabia faz tempo, que isso ia acontecer. Mas eu pensei que fosse chegar pelo menos nos vinte e sete.

EDILAINE
Você nunca quis expor sua vida pessoal. Ninguém sabia quem você era. A galera curte os seus livros, não é?

LULU
Umas besteiras.

PABLO LEÔNCIO
Ah, então você lembra, cabeça!

LULU
Lembro. Lembrei agora a pouco depois de uma coceira que eu tive na nuca.

EDILAINE
Mas de qualquer forma você está ficando louca porque a gente não existe fisicamente no seu mundo.

LULU
Sei. Eu me acostumarei com vocês. Talvez com as minhas habilidades possa até adestra-los.

(silêncio; Edilaine e Pablo Leôncio riem da coragem de Lulu)

PABLO LEÔNCIO
Adestrar um demônio? (gargalha sinistramente)

EDILAINE
Não. Isso não é metalinguagem!

LULU
Eu já entendi! Podem tentar me atormentar, caralho. Vão fazer o que? Vai. Vão começar com o que?

(Edilaine aparece com uma corda pendurada no teto)

LULU
O que é isso?

(Edilaine solta a corda; um líquido vermelho cai sobre Lulu; o balde cai em cima de Pablo Leôncio que cai morto)

(um foco vermelho destaca Lulu com sangue nos olhos; grande suspense; depois de segundos de tensão onde parece que algo de grandioso vai acontecer, Lulu quebra o silêncio)

LULU
(toscamente explicativa) Stephen King.

(as luzes voltam ao normal e Lulu está sozinha; ela olha para os lados confusa; ela se conforma com tudo aquilo, simplesmente porque ela sabe que é louca)

(Edilaine e Leôncio, sem roupas de demônio, entram afobados)

EDILAINE
Menina, finalmente! Você não sabe como a gente te procurou. Onde que você mora, Lulu? Como você tem sobrevivido? Que sangue é esse, menina?

(silêncio)

EDILAINE
Eu tô falando com você, Lulu. Você sabia que seus pais estão te procurando que nem louca? Você foi pro Amazonas e de repente apareceu aqui em São Paulo? Como é que foi isso, menina? Você sabia, disso? Você não se lembra. Ela não lembra, Pablo. Lulu, seu nome verdadeiro é Lurdes Albuquerque.

(Lulu ri)

EDILAINE
Quando você estava escolhendo um nome artístico você falou ele. Eu lembro. Você já era atriz, Lu. Você sempre foi atriz. Você também começou pequena. Isso está no seu sangue.

(Lulu ri descaradamente)

EDILAINE
Por que você tá rindo? A gente quer te contratar mesmo assim.

(Lulu gargalha loucamente)

EDILAINE
Olha, garota, escuta aqui...

PABLO LEÔNCIO
Deixa que eu falo com ela.

(inesperadamente, Lulu empurra Pablo sem encostar nele fisicamente; suspense; depois de segundos de tensão onde ninguém sabe o que foi que aconteceu, Lulu diz)

LULU
Agora eu não quero mais novela, nem cinema e nem teatro. Eu tô meio que indo atrás de vida real. Posso?

EDILAINE
Não com poderes sobrenaturais.

(ela também empurra Edilaine)

LULU
A gente pode tudo na vida real também. Anote isso. A gente pode tudo.

(o espetáculo finaliza secamente)

(black-out)

FIM


Texto de Gabriel Tonin