O INFERNO SÃO OS OUTROS, MAS A CULPA (NÃO) É MINHA

O INFERNO SÃO OS OUTROS, MAS A CULPA (NÃO) É MINHA
Monólogo de Gabriel Tonin


(JOÃO DE JESUS CONVIDA TODOS OS EXPECTADORES PARA UMA SESSÃO DE MEDITAÇÃO)

JOÃO DE JESUS
(COM MUITA CALMA E BONDADE) Boa noite à todos. Axé pra quem é de axé, amém pra quem é de amém, matemática pra quem é do bem. Estamos todos reunidos nesse dia especial pra uma pequena absorção do poder que esse nosso universo quântico emana em cada porta, em cada pedra, em cada coração, em cada pedaço de carbono aqui presente, que são a formação de vossos corpos terrenos aqui presentes. Não importa em qual deus você acredita, qual nome você escolheu pra dar pra ele, o que importa é que uma magia existe e mesmo a ciência, para os mais incrédulos, já está conseguindo nos provar algumas práticas consideradas “sobrenaturais”. Vejam bem, meus caros amigos, se falássemos sobre computadores que cabem na palma da mão e comunicação global através de ondas do ar há cem, até mesmo cinquenta anos atrás, haveria quem lhe chamaria de louco. Ou mago, bruxo, como se dizia sobre pessoas que conseguiam dominar os poderes quânticos e espirituais nas antiguidades.

(DE REPENTE UM GRITO DE ÓDIO DESPROPORCIONAL PARA ALGUM EXPECTADOR DESARMONIZA A CENA)

JOÃO DE JESUS
(GRITA) Para de olhar pra mim desse jeito! Odeio que olhem pra mim desse jeito! Olha pro lado, olha pra baixo, olha pro caralho da onde você quiser! Mas não olha desse jeito pra mim, porra! (PRA ALGUÉM) O cara fica olhando estranho pra mim, pô.

(SILÊNCIO CONSTRANGEDOR; JOÃO DE JESUS, TIMIDAMENTE, SE RECUPERA DA RAIVA EXPONTÂNEA, SEM ENTENDER MUITO BEM O QUE ACONTECEU)

JOÃO DE JESUS
Desculpe, desculpe. Pode olhar pra mim. O problema não é você. Me desculpe. É que... eu... Pra quem acredita em signos eu sou de gêmeos. (RI SEM GRAÇA) Pode olhar pra mim, mas não tanto daquele jeito, tá bom? Olha... de um outro jeito. Ou se preferir, feche os olhos. É isso. Vamos todos fechar os olhos nesse momento. Coloca uma música de concentração, produção. (MÚSICA; SILÊNCIO) É necessário que, como seres ainda terrestres, que consigamos lidar com as provações e as tentações que habitam a nossa carne. Atingir a máxima perfeição da socialização, seja nas redes sociais, seja aqui fora na vida real, sob a luz das estrelas ou dos holofotes. Quero que todos comigo, me ajudem a buscar aquela frequência que o mundo almeja, que todas as grandes histórias e os grandes mestres disseram sobre evolução e sobre o segredo da harmonia entre os seres. Alguém sabe me dizer que frequência é essa? Alguém sabe? Essa é fácil, é até brega. Exatamente, é a frequência do amor! Ouçam, ouçam como soa bonito. O amor. A frequência do amor. O amor entre nós, o amor divino, o amor universal!

(DE REPENTE, EM OUTRO SURTO, JOÃO DE JESUS GRITA COM OUTRO EXPECTADOR)

JOÃO DE JESUS
Filha da puta, sem vergonha, canalha do pau pequeno! Respira junto, porra, respira junto, porra! Ai, que me irrita essa saliva mexendo na sua boca desse jeito, caralha!

(ELE VOLTA ASSUSTADO, CONFUSO COM O PRÓPRIO SURTO)

JOÃO DE JESUS
Desculpem. Desculpem de novo. Todos nós terrenos estamos passando por diversas provações e todos os dias temos que lidar com a socialização e com os olhares das pessoas e até mesmo com algumas respirações e mastigações irritantes. Mas a alma pura de deus, aquele que busca a verdade na evolução química e espiritual, deve sempre estar atento ao sinais e também pedir sempre pra que nossos mentores não nos deixe cair nos nossos horríveis vícios mundanos.

(JOÃO DE JESUS VAI ATÉ UM MICROFONE)

JOÃO DE JESUS
(CALMO, PALESTRANTE) Eu sou um ser que tenta todos os dias melhorar os meus instintos da carne aqui nesse planeta. Tenho sucesso em mais ou menos oitenta e cinco, noventa por cento das vezes. Posso dizer que sou uma pessoa muito... calma, perto das outras pessoas normais desse planeta, sem querer fazer comparações. Até mesmo nos prazeres carnais! É sério. Eu, como bom cientista da arte espiritual, consegui me livrar da maioria das nossas necessidades fisiológicas. Há dez anos que eu já não me alimento de cadáver animal, um vício humano do prazer em sentir o gosto da dor da morte. É isso, é isso que é o prazer que vocês sentem ao comer um pedaço de porco. Esse porco gritou pela vida antes de morrer e é esse o prazer que desce pela sua garganta e pro seu estômago e depois pro seu sangue. É um vício assim como o cigarro. Entre tantos outros exemplos que aqui poderia dar sobre prazeres carnais, egos, aparências físicas, drogas, romances. Sim, até mesmo o sexo, queridos amantes. Ah, o sexo! Posso dizer, meus amados, que nada do que estou dizendo tem a ver com aquelas questões antigas de pecado e proibições, nada disso, todos somos livres e ninguém vai pro inferno por ser um vadio ou uma vadia. Podem transar à vontade, queridos. Glória às boas transas! Mas digo, que quanto menos precisamos dos prazeres da carne, mais próximos do espírito e da luz divina do cosmos podemos chegar!

(OUTRO SURTO)

JOÃO DE JESUS
(GRITA) Mas também enfiar o pau num cuzinho apertado é gostoso pra caralho. E bate uma punheta, goza na cara da menina ou do menino, pede perdão e pronto! Se deus fez a carne ter prazer nesse caralho, com controle emocional não tem problema nenhum, porra! Problema nenhum, caralho! Pode meter pra caralho nessa porra, seus putos! Mete, mete, mete, gostoso, porra!

(SILÊNCIO; MAIS CONSTRANGIMENTO; JOÃO DE JESUS SEMPRE FICA MUITO CONFUSO COM OS SURTOS)

JOÃO DE JESUS
(CALMO, SINCERO) Desculpem, desculpem. Quanto mais... quanto mais você conseguir se livrar do prazer da carne e se aproximar do prazer da existência do espírito, menos problemas você terá na sua vida. E isso não é questão de um castigo divino e nada disso, é questão de lógica. Por exemplo, uma pessoa que é ambiciosa, sofre quando não consegue atingir seus objetivos, se deprime, se frustra, muitos se suicidam. Mas uma pessoa que é humilde, que nada espera, ela só pode se alegrar, porque ela não espera nada e quando qualquer coisa acontece, oras, aí é fartura. Conseguem entender? Os desígnios de deus não tem nada de sobrenaturalidades, meus caros, amigos! É física, é lógica, matemática pura! É pura assim como a comunicação e também como a arte...

(OUTRO SURTO)

JOÃO DE JESUS
(GRITA) Dá pra calar a porra dessa boca! É, você mesmo que tá falando aí no fundo, porra! Respeita os artistas, respeita os artistas, RESPEITA OS ARTISTAS que o artista aqui ensaiou pra caralho pra vir aqui apresentar essa bosta pra esse bando de vagabundo sem vergonha!

(SILÊNCIO; MAIS CONSTRANGIMENTO)

JOÃO DE JESUS
Eu quero mostrar que a benevolência e a... (PAUSA) calma, elas estão conectadas ao nosso ser, assim também como todos os outros sentimentos instintivos do nosso corpo terreno. É função nossa conseguir trabalhar elas da melhor forma possível. (PAUSA) Eu quero cantar uma música pra vocês. Pra vocês conhecerem esse lado do meu espírito.

(JOÃO DE JESUS COMEÇA CANTANDO COMO SE FOSSE UMA MÚSICA GOSPEL, CALMA E AMÁVEL)

Eu sei, o mundo é mau
E eu tentei ser bom pra sempre, ha ha ha
Chorei, desmunhequei
Me assumi, bati de frente

Briguei, e apanhei
E vi
Que estava errado
O amor que deus me deu
Hoje eu encontrei

(EXPLODE DE RAIVA)

Ah vá!
Tomar no cu
Não aguentei, tem dias quentes
Você, cê me irritou
Me infernizou
Você é gente!

E eu, eu sou também
Até tentei
Ser paciente
Só que, não foi aqui
Que eu me encontrei
Tem às vez, eu sei também
Que vem ninguém
E o dia vai ficar bem
Mas na maior, vejo você
Quero matar, ou me esconder
Eu pego ar, e só com deus...
‘Vai se fuder!’

Vovó me ensinava
Que com carinho
Alcançava a calma
Papai já me mostrou
Que ser chorão é maricada

E assim, na confusão
O mal e o bem
Foi só ferrada
Mas foi, sim foi em deus
Que eu me encontrei

(NUMA RAIVA DESESPERADA)

Pois tem às vez, ah!
Que eu quero mais
Pedir pra deus
Tirar de mim
Essa raiz
Enfiada aqui
E ele me diz
‘O inferno é aqui
Que é só assim
E que é aqui
Que me encontrarei!’

JOÃO DE JESUS
(CALMO) “O inferno são os outros” anuncia o ser existencialista. É preciso ter a consciência profunda de que somos responsáveis pelas consequências de nossas ações. Não podemos falar que “Deus quis assim”, porque a única coisa que deus fez foi dar permissão às nossas escolhas – pra quem crê, claro. E então afinal descobrir que então que a culpa é sempre nossa. Quando dizemos que “a vida está nos testando”, quer dizer que estamos apenas fazendo colheita, caros companheiros. É necessário perceber, PORRA, que o seu sofrimento e o seu ódio não é culpa dos outros, mas é fruto das nossas atitudes e tão somente nossa culpa e das nossas reações às atitudes dos outros. Ora, se o outro te irrita, a irritação está em você e não no outro! A famosa frase de Sartre “O inferno são os outros” possui muitas interpretações equivocadas. Contudo, a interpretação mais equivocada e comum, é aquela de quem acredita que esta frase acusa os outros de causarem um inferno em nossas vidas. Entretanto, o fato desta interpretação ser a mais corriqueira só dá mais crédito e confirma mais ainda o pensamento  e a ironia de Sartre: normalmente não assumimos as consequências de nossas atitudes, está no outro aquilo que me irrita. Quem não tem consciência de suas ações culpa os outros.

(OUTRO SURTO)

JOÃO DE JESUS
(GRITA) A culpa é sua, porra! Não deu certo porque você fez errado! Eu não gozei porque você não está sendo gostosa ou gostoso demais pra minha supra e extraordinária existência! A-CULPA-É-TODA-SUA!

(SILÊNCIO)

JOÃO DE JESUS
Mas aquele que tem a consciência não possui o conforto nas suas próprias mentiras. Não consegue encontrar conforto na covardia moral. “O homem é responsável por tudo o que faz”.

(OUTRO SURTO)

JOÃO DE JESUS
(GRITA) “O inferno são os outros”!

(SILÊNCIO DRAMÁTICO)

JOÃO DE JESUS
Sartre apenas nos deu um alerta existencial. Um alerta irônico que nos lembra a todo momento de nossa responsabilidade, principalmente para com os outros, principalmente para com o sentimento que nós deixamos que os outros coloquem dentro de nós! Nós-deixamos-os-outros-colocarem-os-sentimentos-dentro-de-nós. Por mais insuportável que alguém seja, é você quem se deixa levar. De fato, é um inferno estar na terra. São muitos chatos, são muitos injustos, é muita gente que mastiga de jeito extremamente irritante. E é bem mais fácil culpar os outros quando a gente se sente assim por eles. Não é?

(OUTRO SURTO)

JOÃO DE JESUS
(GRITA) “O inferno são os outros”! Você é um caralho de chata! Você é um escroto! Você é injusto! Você é feio! Você é escrota! Você é prepotente! Buceta, cu, caralho! Eu não consigo suportar a existência de nenhum de vocês aqui!

(SILÊNCIO; ELE SE ACALMA)

JOÃO DE JESUS
O inferno está nos outros sim. Mas a culpa... é minha se eu deixo isso me afetar.

FIM


EPÍLOGO

(APÓS OS APLAUSOS O ARTISTA PODE FAZER UMA VOTAÇÃO ENTRE OS EXPECTADORES PARA DESCOBRIR O QUE AQUELA PLATEIA ESPECÍFICA EM MAIORIA ACHA SOBRE A FILOSOFIA DO MAL E DO BEM DOS GRANDES FILÓSOFOS DA HISTÓRIA HUMANA)

1 – “O homem é mau por natureza a menos que precise ser bom”. Nicolau Maquiavel

2 – “O homem é bom por natureza. é a sociedade que o corrompe”. Jean-Jacques Rousseau
3 – “O homem nasce como se fosse uma folha em branco” John Locke
4 – “O homem é o lobo do homem em guerra de todos contra todos” Thomas Hobbes
5 – “O homem é um macaco cego, robusto e irracional, que carrega um macaco aleijado que enxerga” Arthur Schopenhauer
6 – “O homem é uma corda esticada entre o animal e o super homem” Friedrich Nietzsche
7 – “O homem é um animal político” Aristóteles






MENINO PRODÍGIO DO VENTRE DO CÉU


MENINO PRODÍGIO DO VENTRE DO CÉU
De Gabriel Tonin

PERSONAGENS
VILMA, irmã mais velha
VÂNIA, irmã mais nova
VALÉRIA, irmã do meio
ZÉ, pai velho
SESSENTA E SEIS, extra terreno
ADOLFO, líder nerd
TEREZA, capanga forte
JUBILEU, capanga bobo
GABRIEL, bebê/boneco
GABRIEL, criança
GABRIEL, pré-adolescente
RUI, vizinho violeiro
BERNADETE, galinha/boneca
CAMILINHA, galinha/boneca
GALINHAS, bonecas
PINTINHO, boneco

CENÁRIO: UMA FAZENDA COM UMA PEQUENA CAPELA, UM GALINHEIRO COM GALINHAS E UMA PORTEIRA.


I ATO

INTRODUÇÃO

(UMA LUZ FORTE DESCE DO CÉU E DEIXA UMA CESTA COM UM BEBÊ EM UM FOCO, AO SOM DE GRANDES MOTORES CELESTES E VENTANIA; A NAVE ESPACIAL VAI EMBORA E O BÊBE FICA NO SILÊNCIO DA NOITE, CHORANDO FRAQUINHO; POR UM TEMPO NADA ACONTECE E ENTÃO ESCURIDÃO)


CENA 1: ENVIADO DE DEUS

(AMANHECE; VILMA, VÂNIA E VALÉRIA ENTRAM CARPINDO E CUIDANDO DAS GALINHAS)

AS TRÊS
Começa o dia
Toma café
Colher o almoço
Que dá no pé

E dar comida
Para as galinha
Que dão os ovos
E muito amor

E sem terror
Sem sentir dor
Quando ela morre...
A gente faz um velório!

VÂNIA
(PARA A GALINHA) Oh, bom dia pra você também, Bernadete!

VILMA
Gente, quem foi que deixou essa cesta aqui? Eu já falei que... Oh, meu deus! É um bebê!

VÂNIA
O que?

VALÉRIA
Um bebê?

VILMA
Oh, meu deus do céu! (PEGA O BEBÊ NO COLO)

VÂNIA
Nossa senhora das desaparecidas!

VALÉRIA
Cacilda do céu!

VILMA
Gente, não pode ser... Ele tá rindo pra mim, olha!

VÂNIA
É menino ou menina?

VILMA
Deixa eu ver.

VALÉRIA
Quem foi que deixou esse bebê aqui?

VILMA
É menino! Ah, meu deus...

VÂNIA
Aaah! Que fofinho!

VALÉRIA
E agora? O que a gente faz com ele?

VILMA
Calma...

VALÉRIA
Calma? Alguém deixou um bebê aqui, gente! E se tem... uma bomba dentro dele?

VILMA
Ah, não tem bomba nenhuma, garota! Quem iria colocar uma bomba em um bebê?

VALÉRIA
Vamo levar lá pro pai!

VILMA
Não! Calma.

VÂNIA
Nossa, o pai vai matar a gente se a gente aparecer com um bebê sem nem ter ficado grávida antes.

VALÉRIA
Não tem nenhum bilhete na cesta? (PROCURA)

VÂNIA
Ele é muito fofo. Deixa eu carregar um pouquinho?

VILMA
Cuidado. (ENTREGA O BEBÊ)

VALÉRIA
Nada. Não vai pegando intimidade, Vânia. Nem cogite essa possibilidade.

VÂNIA
Eu não falei nada. Eita.

VILMA
Mas até que seria legal se o papai deixasse a gente ficar com ele. Não seria?

VÂNIA
Ai, seria!

VALÉRIA
O que? Você pirou? Papai jamais deixaria.

VÂNIA
Ah, verdade. Nem em sonho.

VILMA
Ai, mas Val, pensa se não seria maravilhoso um bebezinho com a gente. Ia ser brincar de casinha só que agora de verdade.

VALÉRIA
Eu adoro bebês, mas bebês viram adolescentes. E adolescente eu não suporto.

VÂNIA
Que nome ele teria se ele ficasse com a gente?

VALÉRIA
Gente! Isso é muito sério! Vamo levar esse bebê pro pai agora!

VÂNIA
Ah, espera mais um pouquinho!

VILMA
Ela tem razão, Vâ. Melhor a gente levar ele pro pai. O pai vai saber o que fazer.

VALÉRIA
É, vamo!

VÂNIA
Ah. A gente nunca tem nada de diferente e quando tem...

VALÉRIA
Vânia, é um bebê, não é um boneco. Essa coisa cresce, caga.

VÂNIA
Ah, eu adoraria limpar o cocô dele!

VALÉRIA
Ah, fala sério! Igual você limpava o cocô do Tobias, né?

VILMA
Talvez papai até pense se a gente souber o que falar.

VALÉRIA
O que? Vilma, pelo amor do seu deus, ninguém vai defender a ideia de criar um bebê que vai virar uma pessoa nessa casa agora, ouviu bem?

VILMA
Eu concordo com a Vânia, seria bom uma coisa nova, um recomeço de uma vida!

VALÉRIA
Vilma, não! Vocês estão pirando na maionese! Não é fácil assim, não é nenhuma brincadeira! Tem um monte de responsabilidade e se você não souber fazer as coisas direito pode acontecer de você criar um ser humano... meio bosta! Ainda mais um menino! Imagina mais um menino bosta nesse mundo!

VILMA
Ah, não dá.

VÂNIA
Ah, se a gente criar ele com muito amor as coisas podem dar certo. Acho um risco extraordinário! É isso que dá graça nessa aventura, Val. O coraçãozinho dele bate igual um reloginho, Vilma, ouça!

VALÉRIA
Com muito amor. Só poder ser piada que amor resolve alguma coisa. Adolescente não tá nem ligando pra amor...

VILMA
Vamo levar ele lá pro pai.

VALÉRIA
Sim, é isso, ele decide o que fazer!

(ELAS VÃO SAINDO)

VÂNIA
Se o pai deixar, eu voto por Gabriel, o enviado de deus!

VALÉRIA
Cala a boca, Vânia! O pai não vai deixar.

VÂNIA
Quem sabe por um milagre?

VALÉRIA
Vânia, pode parar!

VÂNIA
Eu torço à favor e você torce contra, ué.

VALÉRIA
Eu torço essa sua cara, você vai ver.

VILMA
Chega vocês duas!

(ELAS SAEM)


CENA 2: O ANJO ASTRONAUTA

(DENTRO DA CASA, ZÉ ESTÁ COZINHANDO)

São anjos que mandam nesse lugar
Foi deus que fez o foguete voar
Subindo e subindo
Até a lua de deus!

Não sei
Se a igreja subiu
Ou se o céu desceu...

(UMA LUZ INVADE O PALCO; ZÉ CONTINUA CANTANDO, MAS AGORA ATERRORIZADO)

Só sei que, senhor, o que é isso, caramba, meu deus?
Uma aparição... SOBRENATURAAAAAL!

(SESSENTA E SEIS SURGE NA LUZ)

AAAAH!(DESESPERADO) Meu deus do céu! O que é isso, minha nossa senhora? Salve, Cristo, nosso senhor deus, obrigado, desculpa, perdão, agradeço! O que é isso?

SESSENTA E SEIS
Querido humano, eu sou o Sessenta e Seis. Trago boas novas à humanidade.

Boas novas à humanidade? Pra mim?

SESSENTA E SEIS
Você terá um filho menino, um filho do universo. Você deverá criar essa criança para que no futuro essa criança possa ajudar a evolução do seu planeta.

Minha nossa senhora! Eu sou a nova Nossa Senhora?!

SESSENTA E SEIS
Ele está pra chegar por aquela porta e você deverá aceitar a missão. Vocês humanos ainda não possuem a capacidade para entender como funciona essa hierarquia ainda. Mas terão tempo. Nosso contato é para trazer paz ao seu povo e vocês precisam ter crédito, trabalho nisso também. Não depende só de nós, há a necessidade de que sua espécie mereça evoluir. Se não, de nada serve. Então... faça bom proveito.

(SESSENTA E SEIS DESAPARECE; ZÉ CONTINUA EM CHOQUE, COM FALTA DE AR; ELE PEGA UMA GARRAFA DE PINGA E VIRA UM GOLÃO)

Espera um pouco que eu fiquei tonto... santo anjo do senhor, meu zeloso guardador...ic...! Eu acho que eu pirei.

(VILMA, VÂNIA E VALÉRIA ENTRAM)

VALÉRIA
Pai, pai! A gente vai precisar ligar lá na delegacia! Olha o que a Vilma achou lá na frente da capelinha...

VÂNIA
É um bebê, pai, um nenénzinho. Olha isso.

VILMA
Deixaram numa cesta na frente da capelinha. Sem bilhete, sem nada.

(ZÉ ESTÁ EM CHOQUE, VIDRADO NO BEBÊ)

VÂNIA
Ai, pai, imagina que legal ter um bebezinho aqui? Seria tão lindo!

VALÉRIA
Cale essa boca, garota! Isso não é um cachorro. Você cuidou do Tobias só nas duas primeiras semanas!

VÂNIA
Lógico! Ele foi atropelado!

VALÉRIA
Pai, a gente super entende que a gente tem que dar um fim nessa história! Não dar um fim no bebê, claro, não isso! Dar fim no sentido de chamar alguém da cidade, né? A mãe é uma criminosa, isso é abandono de criança! Um absurdo, que mãe é essa? Em que mundo estamos vivendo?

(ZÉ ESTÁ VIDRADO NO BEBÊ; ELE PEGA O BEBÊ DO COLO DE VILMA)

VALÉRIA
Pai? Pai!

Meu pai amado... É o enviado do céu!

VÂNIA
Sim!

VALÉRIA
O que?!

VILMA
Deixaram ele lá, numa cesta.

VALÉRIA
Pai...!

VILMA
E agora, pai? A gente vai ligar na delegacia, né?

O que? Do que você tá falando? Que delegacia! (ZÉ NINA O BEBÊ)

VÂNIA
A gente vai ficar com ele? Eba!

VALÉRIA
Não, pai, pelo amor de deus, você tá viajado na maionese, né? Pai!

Ele é seu irmão, filha. Ele é irmão de vocês três. Deus enviou, deus enviou esse menino...

VILMA
Papai pirou.

VALÉRIA
Deve ter bebido de novo.

(ALGUÉM BATE NA PORTA, VALÉRIA SAI ATENDER)


CENA 3: OS MENSAGEIROS SÁBIOS

(ADOLFO, JUBILEU E TEREZA ENTRAM EM CLIMA DE TERROR MISTURADO COM COMÉDIA; ELES SÃO JOVENS DA CIDADE E NERDS)

ADOLFO, TEREZA e JUBILEU (VILMA, VALÉRIA e VÂNIA)
Vimos a estrela
Que vai nos salvar...

Um menino aqui chegou para ajudar (ai, ai, ai)
E ao chegar nós tivemos que vir (ai, ai, ai)
A profecia enfim vai se cumprir
E então, meu bem, quem é gente de bem
Vai se fugir

Menino que é prodígio e vem do céu (ai, ai, ai)
Escrito estava, não viu porque não viu (ai, ai, ai)
A profecia enfim vai se cumprir
E então, meu bem, quem é gente de bem
Não vi, sumiu

Oh, oh, oh, vimos a estrela
Que vai nos salvar
Oh, oh, oh, vimos a estrela
Que vai nos salvar!

ADOLFO
Trazemos presentes ao menino prodígio!
Vimos a estrela e ela nos guiou até aqui.

TEREZA e JUBILEU
E a estrela veio para nos salvar!

VALÉRIA
O que é isso? O que é que tá acontecendo aqui?

São os três reis magos da nova história. Tá acontecendo de novo, filha.  

VILMA
O que?

VALÉRIA
O que tá acontecendo de novo?

ADOLFO
Eu trago um notebook personalizado de última geração que você pode conectar o seu cérebro através da corrente sanguínea, por injeção na veia aqui das têmporas. Com essa máquina de edição limitada será possível dar todas as informações necessárias que estão na internet para esse pequeno cérebrozinho que está no início do seu trabalho de guardar memórias ainda. Ele não vai precisar nem fazer uma faculdade, veja só!

TEREZA
Eu trago a assinatura premium de um anti vírus alemão, metal, pólvora e agentes nucleares.

VALÉRIA
Metal e pólvora? Pra que metal e pólvora?

TEREZA
Saúde, querida. É um remédio. Mistura com açúcar, fica ótimo. É pra proteção. Defesa pessoal.

JUBILEU
Eu trago ervas aromatizadas para a criatividade e um sorvetinho de chocolate pra aguentar essa transmissão toda da vida, porque nem mesmo o filho do céu é o homem de aço, não é mesmo?

ADOLFO
E nós queremos e devemos participar dessa criação. Pra garantir que não aconteça erros. A gente tem se preparado por esse momento desde que a minha mãe foi abduzida nos anos noventa. E eu sou formado em ciência da computação e tenho graduação em física, pós graduação em astronomia, mas eu gosto um pouco de astrologia e fiz artes cênicas também, mas não dá dinheiro.

TEREZA
Eu sou formada em defesa microeletrobiótica. Curso técnico.

JUBILEU
Eu sou formado de várias dúvidas. Por exemplo: por que estamos aqui? Qual o sentido da nossa existência nessa pequena bola vagante do espaço?

(SILÊNCIO CONSTRANGEDOR)

Vocês foram enviados por deus pra guiar a gente, é isso? Na história original era só pra dar alguns presentes e depois ficava nas mãos de deus, do padrasto e da mãe...

ADOLFO
Todo remake é pra ser diferente mesmo, quem espera que seja sempre tudo igual é porque parou no tempo, meu querido! Vai ser tudo igualzinho de novo toda santa vez?

JUBILEU
Não faz sentido. Às vezes os atores já até morreram.

VALÉRIA
Peraí! Pai, o que tá acontecendo aqui?

Valéria...

ADOLFO
Esse menino é o novo messias, garotas sensíveis! Tudo vai mudar de agora em diante! Nós vamos salvar o planeta que resta nessa humanidade! Essa é a nossa missão!

VILMA
Como assim o novo messias?

JUBILEU
Ele veio lá do céu.

ADOLFO
Do ventre dos pensamentos de Albert Einstein!

TEREZA
A gente viu a nave descendo. Ele tem um telescópio, se você quer saber.

ADOLFO
Eu tenho. E eu mesmo construí.

TEREZA
Com a minha ajuda.

JUBILEU
E meu apoio moral.

TEREZA
Fomos guiados pelas luzes até aqui.

ADOLFO
A gente vai ajudar na criação dessa criança pra que nenhuma maldade aconteça até que ele esteja preparado para a grande luta.

VÂNIA
Luta? Que luta?

ADOLFO
O mundo vai mudar, novinha. Vai haver luta. Como sempre, há de haver muita luta pelo caminho.

TEREZA
Oh, yes, baby!

VALÉRIA
Pai, isso é uma brincadeira, né? Fala que isso é uma brincadeira...

Não, filha. Não é não. Um anjo veio me falar que a gente ia ter que carregar essa missão pela humanidade, filha. Veja só. Humanidade, eu. Justo eu.

VÂNIA
Justo você, papai...

VALÉRIA
Justo você.

ADOLFO
Pois é, deus faz certo por linhas escrotas.

VILMA
Não é assim a frase correta.

(DECIDIDO) Esse menino faz parte dessa casa agora! Nós vamos criá-lo da melhor forma possível, assim como deus nos confiou!

VALÉRIA
Cacilda do céu!

VÂNIA
Eu nunca imaginei que fosse ser assim tão fácil!

VILMA
Isso é muito estranho.

E vocês...?

(SILÊNCIO)

TEREZA
A gente o que?

Como é que vai ser isso daí?

ADOLFO
A gente vai ter que morar aqui também. É a nossa missão. Guiar os passos do novo rei dos reis para a grande missão de salvação do planeta Terra!

VALÉRIA
Aqui? Eles vão morar aqui? Pai...

VILMA
Aqui dentro não cabe nem a gente, pai!

VÂNIA
Meu deus do céu!

ADOLFO
Nós fomos enviados por deus para guiar essa criança, minhas queridas humanas do sexo feminino. Isso não é qualquer coisa, criar uma criança com essa importância. Nós vamos precisar unir forças e fazer sacrifícios. Todos teremos que fazer sacrifícios pelo bem maior!

(SILÊNCIO)

VALÉRIA
Pai...

Vocês ficam. A gente aperta.

VALÉRIA
Mas pai...!

VILMA
Pai...

Não! Acabou. Eu sinto... nós não temos escolha, meninas. É chamado de deus, filhas! Eu não sei como explicar... Foi um chamado de deus... (PARA ADOLFO) Vocês podem ficar no estábulo que tem ali atrás até a gente dar um jeito. Aos poucos a gente vai se ajeitando...

VILMA
Pai, essa história está esquisita...

Chega, Vilma! Esse menino veio pra salvar a humanidade, foi o que o anjo disse, ele disse pra mim, eu não estava bêbado, eu bebi depois. E nós temos muito trabalho à fazer. As coisas vão mudar por aqui à partir de hoje, meninas, sejam pacientes.

VÂNIA
Papai, ele vai se chamar Gabriel, o enviado do céu!

ADOLFO
Gosto desse nome. Tem significado.

TODOS
Gabriel...

VILMA
Como o anjo...

VALÉRIA
Um nome qualquer.

ZÉ, ADOLFO, TEREZA e JUBILEU
O enviado do céu!

ADOLFO, TEREZA e JUBILEU (VILMA, VALÉRIA e VÂNIA)
Menino que é prodígio e vem do céu (ai, ai, ai)
Escrito estava, não viu porque não viu (ai, ai, ai)
A profecia enfim vai se cumprir
E então, meu bem, quem é gente de bem
Não vi, sumiu

Oh, oh, oh, vimos a estrela
Que vai nos salvar
Oh, oh, oh, vimos a estrela
Que vai nos salvar!

(ESCURIDÃO; PASSAGEM DE TEMPO)


CENA 4: SOPA DE BERNADETE

(AMANHECE E AS GALINHAS ESTÃO AGITADAS; UM GRITO DE VÂNIA FORA DE CENA; AS MENINAS ENTRAM DESESPERADAS, ZÉ ENTRA TENTANDO AJUDAR VÂNIA QUE VOMITA AOS PRANTOS)

VÃNIA
(CHORANDO DESESPERADA) Bernadete! Oh, Bernadete! Oh, não, Bernadete!

VALÉRIA
Pai! Eles mataram a Bernadete! A gente acabou de comer a Bernadete! (COSPE)

E eu ia saber que esse povo ainda come galinha, Valéria?

VÂNIA
Ah, Bernadete, tadinha da Bernadete...

VILMA
Eu achei que era sopa de cenoura. (VÔMITA TAMBÉM)

(ADOLFO ENTRA SEGUIDO POR TEREZA E JUBILEU)

ADOLFO
Ora, não entendi o porquê de tanto drama.

TEREZA
Mulheres são tão sensíveis. Fiz a sopa com tanto carinho. Coloquei até tempero industrializado de sabor amor caipira de telenovela!

Aqui nessa casa a gente não come carne de galinha, dona Tereza.

ADOLFO
Oh, não?! Não me diga que vocês são dessas extremistas malucas!

TEREZA
Que desgentileza!

JUBILEU
Eu escolhi a mais gordinha pra essa sopa. Não imaginei que a gorda fosse a mais querida.

(VÂNIA VOMITA DE NOVO)

Elas são parte da família, a minha filha aqui tem um álbum de fotos de cada geração. Bernadete tinha dois anos.

ADOLFO
Vocês criam galinhas pra não comer?

São animais domésticos e elas dão ovos pra gente.

VÂNIA
Ovos e amor! Seu monstro! Assassinos! Canibais!

ADOLFO
Gente, vocês não podem querer que o nosso menino Gabriel, filho do céu, não tenha os nutrientes e proteínas da carne da galinha, não é mesmo? Essa discussão está mais do que ultrapassada!

JUBILEU
Ele tem de ficar bem fofinho pra dominar o planeta!

TEREZA
Precisa de músculos! Ficar forte! Bombadão! Topzeira!

VILMA
Nessa casa a gente não come carne de bicho nenhum, seu coiso. Desde sempre e nunca! A gente tira proteína de outras coisas. Couve, abacate, aveia, ovos!

ADOLFO
Mas eu acho que o filho de deus precisa comer carne. Jesus comia peixes, não tinha problema nenhum.

VALÉRIA
Acontece que Gabriel não é Jesus, tá bom? Jesus não tem nada a ver com essa história! O remake é pra ser diferente e é pra ser atualizado! Se deus deixou ele pro meu pai cuidar, é meu pai que decide. Pai?

ADOLFO
Nós somos os mensageiros sábios. Nós fomos enviados pra isso.

VILMA
Mas é meu pai que decide!

TEREZA
Cadê a democracia, meu deus? Cadê?

JUBILEU
Elas são tão violentas.

VÂNIA
Vocês cortaram a cabeça da Bernadete...

JUBILEU
Foi rapidinho, menininha, ela correu sem cabeça só uns cinco segundos e depois já caiu morta.

VÂNIA
(CHORA)

JUBILEU
É verdade. Quando você corta a cabeça da galinha o corpo continua vivo alguns segundos. É super curioso. Tem até uma história de uma que viveu anos sem a cabeça.

VÂNIA
(CHORA E VOMITA)

VILMA
Pare com isso! Não vê que tá fazendo mal pra ela?

JUBILEU
É a natureza, ué! Assista um pouco de televisão, garota!

VALÉRIA
Pai, fala pra eles que a gente e nem ninguém vai comer carne aqui nessa casa.

ADOLFO
E se o Gabriel decidir comer?

VALÉRIA
Quando ele puder escolher ele faz as escolhas dele! Mas quem dita as regras dessa casa é o meu pai, vocês estão aqui de enxeridos!

VÂNIA
Ah, Bernadete...

TEREZA
Querida, ele matou ela com humanidade, sem sofrimento.

JUBILEU
Uma facada só, aqui no pescocinho.

(VÂNIA VOMITA DE NOVO)

(grita) CHEGA! Já chega.

(ADOLFO TOMA PARTIDO CONFIANTE)

ADOLFO
Olha, seu Zé, é o seguinte. A gente vai precisar entrar num acordo. Nós acreditamos que seres humanos precisam se alimentar da proteína animal pra desenvolver o cérebro e consequentemente serem mais inteligentes. Principalmente se essa criança é o novo messias! Isso aqui não é brincadeirinha de ideologia pós moderna facebookiana, garotas! É a sobrevivência natural!

TEREZA
Ele vai precisar ser musculoso! Músculos! Brrr!

VILMA
Uma baboseira isso! Dá pra pegar todos os nutrientes necessários direto da terra! É comprovado isso! Nós crescemos a vida toda sem comer nenhum pedaço de bicho morto.

VÂNIA
Só a Valéria que comeu um McDonald’s uma vez.

VALÉRIA
Foi só pra exeperimentar, tá bom! E eu odiei!

TEREZA
E é por isso que são umas magrelas, ué.

VILMA
O que importa tá aqui, ó! (APONTA A CABEÇA)

ADOLFO
Mas eu em todos os meus estudos e pesquisas com doutorados que defendi em grandes universidades pelo país – que não cabe dizer os nomes pra eu não parecer um mesquinho prepotente – a carne animal é essencial para uma parte do cérebro se desenvolver com maior facilidade e força, até num campo um tanto sobrenatural, já que lida com a morte de um ser para virar alimento de outro ser. A energia da morte absorvida na alimentação gera uma substância que plantas e vegetais não conseguem suprir, por mais que vocês vegetarianos consigam sobreviver normalmente. Queremos um filho de deus mais forte ou mais fraco?

(SILÊNCIO)

VILMA
Pai...

ADOLFO
Eu acho que devemos fazer uma votação. Quem vota que Gabriel deve ser alimentado com carne animal, que não é uma coisa tão absurda assim já que a grande maioria da população come galinha todo santo dia, levanta a mão.

(ADOLFO, TEREZA E JUBILEU LEVANTAM)

JUBILEU
Eu adoro bacon.

TEREZA
Hum, e strogonoff então!

JUBILEU
Strogonoff com bacon.

TEREZA
Aaah!

VALÉRIA
Quem vota que Gabriel deva ter uma vida como todos sempre tivemos nessa casa, sem morte, sem sangue, sem dor?

(VALÉRIA, VILMA, VÂNIA E ZÉ LEVANTAM A MÃO)

VALÉRIA
Quatro a três! Acabou.

ADOLFO
O Zé aí não vale, o Zé é juiz. Tem que ter um juiz!

VILMA
Nada disso!

TEREZA
Sim, sim! O Zé é o juiz!

VALÉRIA
Nada disso! Vocês estão roubando!

TEREZA
Garota, não me acuse de ladroa...!

VILMA
É ladra que fala.

ADOLFO
Precisa ter alguém neutro nessa discussão! O Zé tem que ser juiz, já que ele é o patriarca.

VILMA
Podem parar com isso! Vocês estão roubando na cara dura!

VALÉRIA
Foi quatro a três e pronto e acabou!

TEREZA
Não, não, não!

JUBILEU
Ordem, ordem!

TEREZA
Cala a boca, Jubileu, o juiz é ele!

ADOLFO
Deu empate! Três e três!

VALÉRIA
A gente ganhou, quatro contra três! Você é um fanfarrão! A gente ganhou, cara!

ADOLFO
Não! Já falei que seu pai é juiz! Precisa ter um juiz!

TEREZA
Precisa ter alguém neutro, alguém pra contar os votos por fora!

ADOLFO
Pra toda votação tem que ter alguém de fora pra ser juiz e contar os votos. Eu estudei sobre isso, não convém dizer onde pra não parecer mesquinho.

VALÉRIA
Vocês tão falando isso porque vocês perderam!

VILMA
Isso tá errado, pai!

Chega! Se todo assunto que a gente discordar for essa briga toda, a gente vai criar essa criança num inferno. Deus nos escolheu por algum motivo, por alguma razão. A gente precisa viver em harmonia e em paz nessa casa, ensinar o melhor pra esse garoto...

ADOLFO
Sim, e nós também concordamos completamente com isso, Seu Zé. E lembre-se: Nós somos os mensageiros sábios, não se esqueçam disso. Deus nos enviou pra ajudar a criar essa criança. Isso não é nenhuma brincadeira, nós não viémos aqui sem nenhuma razão!

(SILÊNCIO)

A gente vai precisar fazer acordos então.

ADOLFO
É isso. Essa é a função de um juiz.

VALÉRIA
Pai! É a sua casa, é a sua casa, pai. É você quem decide. O anjo falou com você!

ADOLFO
É pela humanidade. Não é só por essa casa, é por todas as casas, por todas as famílias. É pelo mundo... É pelo mundo, gente.

(SILÊNCIO REFLEXIVO)

JUBILEU
Que doido, né?

(SILÊNCIO)

Eu fico de juiz.

VALÉRIA
Pai...

VÂNIA
Bernadete...

E cada um de vocês vai defender a criação dessa criança do jeito que acharem certo, em votação. Como numa democracia.

ADOLFO
Sendo assim, Gabriel se alimentará de carne dia sim, dia não.

VALÉRIA
O que? Pai!

ADOLFO
Nós empatamos, ué.

VILMA
Mas a gente tá defendendo que ele não coma nunca!

ADOLFO
E a gente aceita que ele coma só a metade. Tá vendo como elas são egoístas, seu Zé? É tudo do que jeito que elas querem!

TEREZA
Oh, como são egoístas!

VALÉRIA
Olha, o senhor não se faça de cínico aqui não! Não faz sentido isso porque não existe uma vida meia vegetariana. Se for desse jeito, vocês venceram, não houve acordo nenhum.

TEREZA
Tão violenta essa menina.

VALÉRIA
Cale essa boca, você é só capacho desse aí.

TEREZA
Cala a boca você, sua garota sem músculos!

Já falei que chega de briga! Quem estiver cuidando do Gabriel é responsável por ele na hora que estiver cuidando. Se deus colocou todos nós no caminho dele, é porque ele precisa de um pouco de cada um de nós. Cada um de nós tem alguma lição importante pra dar pra esse garoto. Eu não sei qual é e não sei como é que vai ser, mas se deus quis assim... assim será!

(SILÊNCIO)

ADOLFO
Bonito, achei bonito, poético e justo.

VILMA
Isso não tá certo.

ADOLFO
Deus faz certo por linhas tortas, minha cara.

TEREZA
Escrotas!

VALÉRIA
Ah, você é moleque de frase pronta!

ADOLFO
(SE IRRITA) Olha ela! Olha ela! Me segura, Tereza, que ela mexeu com meu ego das minhas frases calculadas!

TEREZA
Não fala assim com ele, garota magrela!

(GRITA) Gente! (OUVE-SE O CHORO DE GABRIEL AO LONGE) A gente não pode criar essa criança nessa violência toda! Parou! Nós vamos ter que conviver as diferenças pelo bem maior! Entenderam? Todo mundo entendeu?

(SILÊNCIO CONSENTIDO)

Certo. Toda conversa à partir de hoje deverá ser com calma, paz e respeito. Todo mundo de acordo? (PAUSA) Agradeço a compreensão. (SAI)

(POR ALGUNS SEGUNDOS ELES MANTÉM O SILÊNCIO E SAEM PELOS LADOS OPOSTOS)


CENA 5: IDEOLOGIAS

(LOGO UMA GRANDE DISCUSSÃO COM GRITARIA E MÚSICA EXPLODEM O PALCO)

ADOLFO, TEREZA e JUBILEU (VILMA, VALÉRIA e VÂNIA)
Meninas são boas de lavar o louça (O quê?)
Quando tão nervosinhas parecem loucas (Tá boa!)
Ele precisa mais de um exemplo masculino (Nunca!)
A roupa é azul porque ele é menino!

VILMA, VÂNIA e VALÉRIA (ADOLFO, TEREZA e JUBILEU)
Que coisa de idiota, eu vou te dar um soco (oh, oh, oh)
A cor da roupa não importa nenhum pouco (Veja se pode isso!)
Depois ele escolhe o que faz da vida (É biologia!)
Não tem brinquedo de menino ou de menina!

TODOS
A identidade
É como é! É como é!
Dentro da gente
Homem, mulher!

ADOLFO, TEREZA, e JUBILEU
Mas o que importa
É o que tá no corpo

VILMA, VÂNIA e VALÉRIA
O que tá na mente
E no coração!

TODOS
Não! Não vem com essa!
Não! Chega de graça!
Não! É do meu jeito!
Minha opinião!... NÃO!

VILMA
Olha só, nós somos cristãs, nós adoramos ir na missa mesmo, mas nós não somos iguais esses que vocês conhecem por aí, não. Nós somos os novos cristãos, os cristãos do bem.

VÂNIA
A gente é crente, mas a gente aceita os direitos dos gays, por exemplo.

TEREZA
Crente que aceita gay?

VALÉRIA
Nosso deus aceita amor seja do jeito que for!

VÂNIA
E também os direitos humanos dos animais!

ADOLFO
Garota, eu só acho que ele devia brincar com o Homem-Aranha e não com a Cinderela, não precisava de todo esse drama musicado não.

VALÉRIA
A gente acha que você não pode impor o que você acha.

ADOLFO
Ah, e vocês podem?

VALÉRIA
A gente tá impondo o direito à liberdade dele de escolher, meu caro!

JUBILEU
(GARGALHA) Liberdade! Essa foi boa, essa é velha.

TEREZA
É cristã falando de liberdade. Hipócrita!

ADOLFO
Seu deus queimava bruxa, agora quer vir defender homossexual?

VILMA
Já falei que não seguimos nenhuma instituição!

VALÉRIA
A gente defende sim! A gente defende todo mundo!
Nosso deus ama todo mundo!

ADOLFO
Nosso deus também, mas nosso deus se chama Universidade Científica dos Estados Unidos da América do Norte!

VILMA
Tá bom, tá bom! Chega, vai!

TEREZA
Eu acho que a gente devia colocar o Gabriel no jiu jitsu. Pra aprender defesa pessoal.

VÂNIA
O que? Luta? Mas e se ele se machucar? Ele é só uma criança ainda...

VALÉRIA
Se for pra isso, eu preferiria que fosse capoeira.

VILMA
Eu quero colocar ele no teatro, pra ele aprender a se expressar.

TEREZA
Iiih, vai falar agora também que vai colocar o garoto pra fazer balé também!

TEREZA
Zumba!

JUBILEU
(GARGALHA) Esse mundo tá perdido mesmo.

ADOLFO
Modismo que logo passa. Pra mim é pura frescura! Põe ele logo pra queimar energia no futebol! Menino tem mais energia pra coisa com força, garota!

VALÉRIA
Vocês são muito idiotas. São formados nesse monte de coisa aí norte americanos, mas não sabem nada da cabeça.

TEREZA
Olha, eu até agora não te ofendi, menina...!

VALÉRIA
Como não? Você é grande, mas não é duas! Pode vir, pode vir!

VILMA
Gente, por favor. Se a gente mal começou desse jeito o que vai ser quando ele crescer? Papai disse. Cada um terá seu tempo com ele. A gente vai ter que aceitar isso. Cada um vai ter seu tempo com ele.

VÂNIA
E se ele ficar confuso nessa loucura toda?

ADOLFO
Eu acho até bom essa diversidade, menina de ossos salientes. Já imaginou ele crescendo num lar totalmente cristão? Logo ele ia tá virando um desses pastor chato que fica gritando no ouvido de todo mundo, batendo na porta da nossa casa pra falar sobre Jesus.

TEREZA
Pai da tecnologia, que nos livre desse sofrimento!

VÂNIA
Vocês são horríveis...

VILMA
Foram vocês que bateram na nossa porta, não nós.

(SILÊNCIO CONSTRANGEDOR)

ADOLFO
Olha, garota...

(GABRIEL CHORA FORA DE CENA)

VALÉRIA
Nós não somos cristãs assim, tá bom? A gente só acha que a mensagem de Jesus de paz e amor faz sentido. É só isso. Isso que a igreja faz não foi o que Jesus mandou fazer.

JUBILEU
Isso aqui por um acaso é teatro gospel, gente? Avisa logo!

VILMA
Venham, meninas. Deus deve fazer certo por linhas tortas mesmo. Não adianta discutir com quem não quer ouvir.

VÂNIA
Bem tortas.

VALÉRIA
Tomara que seja isso.

TEREZA
Tortas, não, escrotas, frangotas.

(ELAS SAEM)

JUBILEU
Ela falou torta e deu uma fome.

ADOLFO
Vamos também. Ninguém deve deixar ninguém ficar totalmente sozinho com essa criança. Isso pode ser fatal pra todo mundo.

(ELES SAEM TAMBÉM; ESCURIDÃO; UMA MÚSICA FÚNEBRE FAZ A PASSAGEM DE TEMPO COM TODOS OS PERSONAGENS NO ESCURO)

TODOS
Era uma vez
Começa todas as histórias
Um menininho
Não tinha nem memória
Criando por vez o que ele aprendia
Não tinha magia
Só as companhias

Os tios e as tias
Contavam várias histórias
E ele só ouvindo
Histórias curiosas

De um lado gritou (de um lado gritou!)
Do outro um carinho
E ele assim vai se formar
Que a sorte lhe mostre o caminho
E que crescendo será novidade!
E que crescendo nos traga... novidade!

(FIM DO PRIMEIRO ATO)


ATO II

CENA 1: DEGOLADA

(O TEMPO PASSA; O PEQUENO GABRIEL CORRE FUGINDO DAS MENINAS, E SE ESCONDE NA CAPELINHA; VILMA, VALÉRIA E VÂNIA ENTRAM ATRÁS, BRINCANDO)

VILMA
Onde será que ele foi?

VÂNIA
Será que ele foi embora, gente?

VALÉRIA
Vamo deixar ele pra lá. A gente faz um bolo de milho bem gostoso e sobra mais.

(GABRIEL SURGE NUM PULO)

GABRIEL
Aaah!

VALÉRIA
Seu menino mais lindo do mundo!

VÂNIA
Ele vai dar trabalho quando crescer, hein.

VALÉRIA
Já tá grandão! Ó!

VILMA
Vai dar trabalho em quê?

VÂNIA
Com as meninas. Vai ser garanhão.

VILMA
Vai ser garanhão coisa nenhuma. Vai ser menino bom.

VALÉRIA
Claro, ele é o messias, né, gente. Não vai ter namorada. E nem namorado.

VILMA
Quem disse? O remake nunca é igual, Val. E além de tudo que ele também tem o livre arbítrio, pode dar tudo errado, pode ser tudo diferente. Vocês percebem o perigo?

VÂNIA
Por que não vai ter namorada e nem namorado? O que tem a ver?

VALÉRIA
Ah, Vilminha, esse garoto tá sendo bem criado, vai! Olha pra ele, corado, mimado!

VÂNIA
Só não fala.

VILMA
Tá sendo bem alimentado. Mimado. Não é o suficiente. Ser mimado é ruim.

VALÉRIA
Vai fazer o quê? Não tem o que fazer, fia. A gente tá fazendo o que dá. Eu fico exausta.

VILMA
Eu sei.

VÂNIA
Fala: titia.

(SILÊNCIO)

VALÉRIA
Eu acho que ele tem algum grau de autismo.

(ADOLFO INTERROMPE COM TEREZA E JUBILEU)

ADOLFO
Autismo?! Vocês estão lendo coisas demais na internet, minhas queridas! Não pode ficar dando o nome da definição médica pra tudo que você vê de diferente na vida. Essa criança é especial, é só isso.

VILMA
Vocês estavam espionando a gente?

ADOLFO
Espionando não. Lembre-se, nós somos os mens...

AS TRÊS
Mensageiros sábios!

VALÉRIA
A gente sabe!

(GABRIEL VAI COM ADOLFO)

ADOLFO
No momento certo ele vai falar. Vocês vão ver. E aí ninguém vai parar tudo o que está pra acontecer. Teremos muitos sacrifícios à fazer. Todos!

TEREZA
Que toda energia elétrica negativa se converta em positividade.

JUBILEU
O mundo tá ficando chato, não tá?

ADOLFO
É o nosso turno agora. Podem ir descansar, meninas. Não vão ficar espionando, né?

VILMA
Não, Adolfo, não.

VÂNIA
Tchau, moleque.

(AS MENINAS SAEM CONTRARIADAS)

ADOLFO
(PROFESSOR) Veja, garoto. Isso aqui é o que chamam de capelinha. É um local de culto cristão, que massacrou milhares e milhares de pessoas ao longo dos anos.

TEREZA
Com muito sangue e muita cabeça decepada!

ADOLFO
Desse lado aqui temos galinhas. Galinhas eram dinossauros há milhares e milhares de anos atrás e elas servem de alimento pra nossa espécie hoje em dia.

JUBILEU
Pra deixar você bem fortão!

TEREZA
Você pega o pescoço dela assim e...

(VÂNIA ENTRA SEGUIDA POR VALÉRIA E VILMA)

VÂNIA
Não! Parem! Não!

JUBILEU
É com humanidade, gente. Calma.

VÂNIA
Não, por favor! Isso não! Não vamos ensinar isso pra ele não!

ADOLFO
Por que não? Em tempos de crise ele terá que saber de onde vem o alimento que come.

VÂNIA
Não. Ele não precisa saber disso. As crianças não precisam saber disso ainda.

ADOLFO
Não dá pra fingir uma coisa que é a realidade, minha querida.

VILMA
Vai assustar o garoto, por favor.

TEREZA
Ele é homem, tem que aguentar ver uma galinha degolada.

JUBILEU
(BEBEZÃO) Fazer uma canja bem gostosa, hein? Ou um strogonoff com muito requeijão, hein? Hein?

(VÂNIA SAI CHORANDO)

VALÉRIA
Vocês são pessoas horríveis, sabia?

ADOLFO
Sim. E o mundo é cheio de pessoas horríveis, de coisas monstruosas que deixa todo mundo de cabelo em pé todo dia! O mundo é assustador, Val. (PARA GABRIEL) O mundo é assustador, Gabriel. (PARA VALÉRIA) Ele precisa saber lidar com as coisas, ele vai ter que enfrentar tudo isso. É um ensinamento. Ele precisa aprender a lidar com a morte também. E principalmente, com a própria comida.

(DE COSTAS PARA A PLATEIA, TEREZA CORTA A CABEÇA DA GALINHA COM UM FACÃO; TENSÃO)

JUBILEU
Ô, delícia que até saliva a boca!

(QUASE ESCURIDÃO; A MESMA MÚSICA, MAS AGORA COM UM TOM FÚNEBRE)

ADOLFO, TEREZA e JUBILEU
Meninas são boas de lavar o louça

VILMA, VÂNIA e VALÉRIA
A cor da roupa não importa nenhum pouco

ADOLFO, TEREZA e JUBILEU
Ele precisa mais de um exemplo masculino

VILMA, VÂNIA e VALÉRIA
Não tem brinquedo de menina ou de menino!

TODOS
A identidade
É como é...

(SILÊNCIO)

VILMA, VÂNIA e VALÉRIA
Cruel.

ADOLFO, TEREZA e JUBILEU
Real.

(ESCURIDÃO)


CENA 2: SEMENTINHA DE AMOR

(RUI ESTÁ TOCANDO UM VIOLÃO SENTADO NA PORTEIRA)

RUI
Tem um lugar
Que ninguém vê
Onde um amigo carrega um carinho que alguém pode ter
Não quero um monte
Nem quero um pitel
Só queria um pedacinho do céu

(VÂNIA ENTRA E O VÊ SEM ELE PERCEBER; ROMANCE À PRIMEIRA VISTA, UM TANTO BOBO)

RUI
Quero encontrar
Pra conhecer
Uma pessoa que trate os bichinhos como um bebê
Eu sei que ela vai
Saber meu papel
E faremos um pedacinho do céu!

(RUI A VÊ; ELES JÁ ESTÃO APAIXONADOS UM PELO OUTRO)

VÂNIA
Moço do lado,
Te vejo um bom tempo
Vejo cantando que busca um amor
Mesmo se o vento vai demorar
Pra nos aproximar
Nesse grande paraíso onde a vida é melhor!

RUI
Posso jurar, vou encontrar
Alguém legal que saiba como se alimentar
Que se junte tudo
E seja um pitel
E que seja um pedacinho do céu!

VÂNIA
Bichinho adorável
Seu canto é do céu...

(ELES VÃO SE BEIJAR; DE REPENTE ELA EXITA)

VÂNIA
(FINALIZA A MÚSICA) Mas eu tenho que cuidar do Gabriel!

(ELA VAI CORRER, ELE A SEGURA PELOS BRAÇOS)

RUI
Quem é Gabriel?

VÂNIA
É meu irmão. Meu quase irmão. É quase um filho. É complicado.

RUI
Ah, aquele menino! Eu achei que ele fosse filho de uma de suas irmãs. Mas não vi nenhuma ficar grávida.

VÂNIA
É complicado...

RUI
Você é a Vânia, né?

VÂNIA
Sim. E você é o Rui. Meu pai não gosta que eu converse com as pessoas daqui, nem com você, nem com ninguém.

RUI
Nossa.

VÂNIA
O Gabriel tá crescendo e ele logo vai ver que tem mundo fora da porteira e...

RUI
Mas qual o problema de ver que tem mundo fora da porteira? Tem muito mais mundo fora da porteira!

VÂNIA
É... é complicado.

RUI
Eu adoro complicado.

VÂNIA
Você devia ir tocar seu violão lá na porteira do seu sítio!

RUI
Eu segui uma galinha boba até aqui. Ela era tão engraçada, você precisava ver. Você já viu que vocês tem uma galinha que vira cambalhota?

VÂNIA
Já sim. É a galinha Camilinha. Ela é doidinha mesmo.

(GABRIEL ENTRA CORRENDO)

VÂNIA
Gabriel! Já pra casa! Agora!

RUI
E aí, garoto? Firmeza?

VÂNIA
Ele não fala ainda. Vamos, tá quase na hora do jantar.

RUI
Eu soube que vocês também são vegetarianas, né? Eu sou também. Eu não consigo imaginar matar um bicho pra colocar na boca.

VÂNIA
(ELA SE APAIXONA) Jura? Eu sou sim, nós somos.

RUI
(PARA GABRIEL) Os bichinhos são nossos amiguinhos, né, amigão?

VÂNIA
O Gabriel não é. Ele come carne dia sim, dia não.

RUI
Jura? E por quê?

VÂNIA
É... é complicado.

(JUBILEU ENTRA CORRENDO)

JUBILEU
Aí está você, seu peste! Venha, tá quase na hora da janta.

(JUBILEU OLHA DESCONFIADO PARA RUI E VÂNIA)

JUBILEU
(DRAMÁTICO) A perdição da carne jovem... Ah!

(JUBILEU SUSPIRA COM DESDÉM E SAI COM GABRIEL)

RUI
Quem é esse?

VÂNIA
É complicado.

RUI
Família é complicado mesmo.

VÂNIA
Ele não é família não. Deixa pra lá... (ELA VAI SAIR)

RUI
(SE APRESSA) Tem um lugar
Que ninguém vê
Onde um amigo carrega um carinho que alguém pode ter
Eu sei que ela pode
E ela é um pitel
Até parece um pedacinho... do céu!

(VÂNIA SORRI APAIXONADA, UM TANTO TÍMIDA; ELES SE OLHAM EM SILÊNCIO POR ALGUNS SEGUNDOS; A GALINHA CAMILINHA APARECE E DÁ UMA CAMBALHOTA)

CAMILINHA
Cocó!

(ELES RIEM; VÂNIA VAI ATÉ RUI, DÁ-LHE UM SELINHO E SAI CORRENDO)

RUI
O meu lindo pedacinho do céu! (FIM DA MÚSICA)

CAMILINHA
Cococoá!

RUI
Êêê, Camilinha, cê é engraçada... (RUI SAI APAIXONADO)

(CAMILINHA VAI ATÉ UM NINHO, BOTA UM OVO E DORME; ESCURIDÃO)


CENA 3: IMPOSTORES

(ZÉ ESTÁ SOZINHO, COZINHANDO)

Não sei
Se a igreja subiu
Ou se o céu desceu
Só sei que o meu deus me deu tudo que deu
E tudo que é meu está aqui...

(VILMA E VALÉRIA ENTRAM DISCUTINDO ALTO)

VALÉRIA
Pai, está insuportável!

VILMA
Eles mataram a Nora na frente do Gabriel, pai.

VALÉRIA
É ensinamento pra vida dura, eles disseram.

Filha, se eles disseram, eles são os mensageiros sábios.

VILMA
Mas, pai...!

Vocês não vão entender, filhas...

(VÂNIA ENTRA EM SILÊNCIO, COM SORRISO DISFARÇADO)

(CONTINUA) Naquele dia o anjo me disse que um bebê entraria por aquela porta e que eu devia cuidar dele. E aí vocês chegaram com o Gabizinho nos braços e a gente se apaixonou por ele à primeira vista, não foi? Todo mundo. Deve ser a magia que tem dentro dele. Filho do céu!

VALÉRIA
Pai, eles estão ensinando tudo as coisas tortas.

Deus faz certo por...

VILMA
Aaah! (SAI BATENDO PORTA) Ele vai crescer tudo errado!

Vilma! Olha os modos! (PAUSA) Meninas, tenham paciência. Criar uma criaça é difícil mesmo. Ainda mais assim, com uma missão pra humanidade. Meu deus do céu, me dá um calafrio de pensar que deus viu humanidade justo em mim.

(VÂNIA SAI EM SILÊNCIO UM TANTO SALTITANTE)

VALÉRIA
Pai. Tem alguma coisa que não tá certo nisso. Confia na gente. Se deus colocou ele aqui nessa casa sabendo que a gente estaria aqui também, então quer dizer que o que a gente tá falando pro senhor também é importante.

(VALÉRIA DÁ UM BEIJINHO NO PAI E SAI; ZÉ FICA PENSATIVO)

São anjos que mandam nesse lugar
Foi deus que fez o foguete voar
Subindo e subindo
Até a lua de deus!

(ADOLFO, TEREZA E JUBILEU ENTRAM COM GABRIEL; GABRIEL CORRE ABRAÇAR ZÉ)

Ô, meu filho, como cê tá? Brincou bastante hoje?

ADOLFO
Nós estamos com medo, seu Zé.

Medo?

ADOLFO
Sim. Medo que essas meninas deixem esse garoto com muita...

TEREZA
Frescura, Seu Zé, frescura!

JUBILEU
Muito mimimi!

TEREZA
Pra pouco músculo.

ADOLFO
Eu quero que você entenda, seu Zé, que esse garoto irá enfrentar as coisas horríveis nesse mundo. Tudo isso que estamos fazendo é ensinamento para que ele possa concluir a sua missão na Terra, coisa que não será fácil.

Eu sei, eu sei. Tenham paciência com elas, são boas meninas.

TEREZA
Nós fomos enviados aqui pra isso, pra mostrar as coisas duras do mundo.

Eu sei, eu sei bem. Tenham paciência.

ADOLFO
Na medida do possível, homem. Na medida do possível.

JUBILEU
Não querendo fazer fofoca, seu Zé, mas a menina magrela mais novinha tava lá de graça com aquele mocinho filho do vizinho, viu. O violeiro. O Gabrielzinho tava vendo a sacanagem deles e tudo.

(BRAVO) Minhas filhas são meninas direitas, você respeite a minha casa, respeite as minhas filhas!

(SILÊNCIO CONSTRANGEDOR)

TEREZA
Vamos fazer uma sopa bem gostosa agora?

ADOLFO
Venham, temos mesmo que conversar um pouco. Você fica com ele um segundo, seu Zé?

Sim, claro, com muito prazer. Venha, meu filho...

(ADOLFO, TEREZA E JUBILEU SAEM; SEU ZÉ ABRAÇA GABRIEL)

Oh, meu filho, tá grandão já, hein! (SILÊNCIO; GABRIEL FAZ CARINHO NO ROSTO DELE) Nunca falou nada, meu filho. Não quer falar não fala, não tem problema. Você que é filho do céu, você que decide a hora que tem que falar, tá bom?

GABRIEL
Papai!

Oh! Ah, meu deus do céu, pois que decidiu! Sim, meu filho, eu sou o papai...

(UMA LUZ INVADE A CENA E SESSENTA E SEIS APARECE AO SOM DE MOTORES CELESTES E VENTANIA)

(ATERRORIZADO) Santo anjo do senhor! Jesus, Maria, obrigado, desculpa, perdão, agradeço!

SESSENTA E SEIS
Querido humano, como está?

É... (PAUSA) Bão, né? Daquele jeitão igual de antes.

SESSENTA E SEIS
Vejo que o menino está corado, com cara de mimado. Tomem cuidado com esse presente, é muito importante que criem ele conforme a humanidade que ainda existe em vocês.

Não está sendo fácil, anjo. Aqueles mensageiros sábios que o senhor enviou estão confundindo a cabeça das minhas filhas, e as minhas filhas confundindo a cabeça deles. Está todo mundo muito confuso, quem dirá eu que gosto de tomar uma pinguinha de vez em quando, que deus me perdoe. Afinal, eu ouço as minhas filhas ou eu ouço eles? Eu estou numa encruzilhada que só por deus...

SESSENTA E SEIS
Não sei de quais mensageiros você está falando, humano. Escolhemos você e sua família por uma razão. Esse fardo é seu e de sua família. Você e suas meninas são essenciais para essa criação.

Mas aqueles três... eles falaram que foram enviados para ajudar no ensinamento da criança, que viram a luz no céu! Chegaram naquele mesmo dia que o senhor veio!

SESSENTA E SEIS
Não foram enviados por nós. Não enviamos nenhum mensageiro sábio, humano. Podem ser cientistas curiosos com drones caseiros que eles chamam de telescópios de tecnologia duvidosa, não sei. Lide com isso o quanto antes. Agora que o garoto falou pela primeira vez será mais difícil ainda domar o poder que emana de dentro dele. Ele precisa estar preparado e você e suas filhas também! Cuidado com as más companhias terrenas e livre-se logo desses impostores.

Mas como que prepara uma criança com esse destino divino, meu filho? Num tem um manual de instrução aí, não, filho, uma bula? Tá difícil...

SESSENTA E SEIS
Precisa haver um mérito da sua espécie, como eu te disse. É aprendizado e ensinamento totalmente próprio e intransferível dos seres desse planeta. Agora, a próxima vez que nos veremos novamente, será no dia da morte dele apenas.

Na morte dele...? Minha Nossa Senhora... que agora sou eu.

SESSENTA E SEIS
Boa sorte e cuidado, humano! Adeus e até breve.

(SESSENTA E SEIS DESAPARECE GRANDIOSAMENTE; LONGO SILÊNCIO DE REFLEXÃO DO SEU ZÉ; GABRIEL SOBE EM SEU COLO)

GABRIEL
Papai!

Sim, meu filho. Você é especial. Você é um garotinho super especial. Você pode fazer as coisas desse mundo mudar tudo. Você vai ver. Eu acho que você até que é bem criado aqui, não é? Não tem nada de tão horrível que possa fazer você crescer um ser humano ruim. Tem? Algumas briguinhas aqui, uma discussãozinha ali, toda família tem, né? (PAUSA) Galinha degolada... (RI SEM GRAÇA)

GABRIEL
Papai!

É, filho, é. Seja forte e, mais importante, seja inteligente!

(UM FOCO DESTACA GABRIEL, PREPARADO PARA DIZER ALGO)

O que foi, filho? Me diz! Me diz o que você tem pra falar! (CHAMA) Meninas! Meninas!

(SILÊNCIO E EXPECTATIVA; GABRIEL DE REPENTE SOLTA A VOZ)

GABRIEL
Se eu ainda sou criança
Você vai ser meu amigo
Porque tenho a esperança
De não ficar de castigo

(TODOS ENTRAM VENDO GABRIEL CANTAR; ZÉ CHORA DE EMOÇÃO, TODOS ESTÃO EM CHOQUE)

GABRIEL
Mas a vida é uma lambança
E estamos em perigo
Vamos todos nessa dança
Se quiser brincar comigo

Eu agora sei
Que eu vou ser rei
Só o que eu não sei
É se devo comer carne ou não
E o que tem dentro de nós.

E eu que sou velho grande
Tenho muito o que aprender
O amor é importante
Até quando você crescer

Mas eu tenho a esperança
De um mundo colorido
E eu volto a ser criança
Pra você brincar comigo!

TODOS
Eu agora sei
Que você é o rei!

GABRIEL
Eu agora sei
A verdade está dentro de quem?
Ela está dentro de nós.

VILMA
É um milagre!

VÂNIA
Ele é cantor, gente! Um cantor de musical!

VALÉRIA
Deu até raiva de tão fofo! Seu fofo!

ADOLFO
Não devemos incentivar tanto esse negócio de querer ser artista, é caminho furado. Eu estudei artes cênicas e não dá dinheiro essas coisas...

VALÉRIA
Ah, cale essa boca um pouco! Deixe ele falar. Vamos conversar mais, Ga. Canta, pode cantar.

VILMA
Qual é a verdade das verdades, Ga? Fala, canta!

VÂNIA
Eu te amo demais, meu nenénzinho!

(PARA ADOLFO, TEREZA E JUBILEU) Vocês! Eu quero ver o RG de vocês. Eu quero alguma documentação. Agora!

TEREZA
O que é isso? O que está acontecendo aqui?

Vocês não foram enviados por deus coisíssima nenhuma!

JUBILEU
Oh, que despautério!

VILMA
O que?

ADOLFO
Que acusação gravíssima é essa, seu Zé? Do que você está falando? Somos todos filhos de deus!

O anjo! O anjo falou que não tem mensageiro sábio nenhum! Vocês são uma farsa! Tantos e tantos anos, matando as minhas galinhas, ensinando essas coisas esquisitas para o garoto!

VALÉRIA
Eu sabia que tinha algo de errado!

VILMA
Não acredito!

TEREZA
Deve haver algum engano, Sr. José...

Não há engano nenhum. Fora da minha casa! Vocês três! Fora! Peguem suas coisas e fora daqui!

JUBILEU
Oh! Cruel!

ADOLFO
Perceba, seu Zé, nós somos cientistas. Nós temos o mesmo direito de estar aqui nessa Terra passando por essa experiência. A gente viu aquela nave espacial pelo meu drone telescópio. É descoberta científica de crédito nosso também!

Eu não quero saber de nada disso. Vocês enganaram a gente! Fora da minha casa agora!

ADOLFO
Ou o quê?

TEREZA
É. Ou o quê, velhote? (TEREZA AMEAÇA, SEGURANDO ALGUMA COISA NA CINTURA)

(RI) Olha, vocês me subestimam, rapaziada. Vocês podem achar que a gente aqui é tudo bobinho, tudo santinho, mas não é bem assim. Na treta a gente sabe se defender.

JUBILEU
(DEBOCHA) Olha o velho, bicho!

TEREZA
O que isso quer dizer, hein, homem?

(AMEAÇADOR) Quer dizer que as meninas aí podem até ser contra esse negócio de armar as pessoas de bem, porque elas gostam das coisas de Jesus e tal, das coisas de dar a outra face, e vida sem violência, de baixar a espada...

VILMA
Pai...

Mas eu não sou assim não! Eu sou à favor da defesa pessoal também, sou um tanto parecido igual vocês. Eu também me precavejo...

(ZÉ TAMBÉM SEGURA ALGO NA CINTURA; ELES SE ESTRANHAM, COMO SE FOSSE COMEÇAR UM TIROTEIO A QUALQUER MOMENTO; GRANDE TENSÃO)

E aí? Qual vai ser?

VILMA
Pai, pelo amor de deus...

VÂNIA
Gente, olha o Gabriel!

(GABRIEL COMEÇA A CHORAR)

Sai da minha casa agora! Os três.

(EM SILÊNCIO, ADOLFO E TEREZA SAEM)

JUBILEU
Eu fiquei muito magoado com vocês. Estou decepcionadíssimo com todos!

VALÉRIA
Ah, vá te catar, energúmeno!

(GABRIEL VAI ABRAÇAR JUBILEU)

VÂNIA
Ga, não!

JUBILEU
(ABRAÇA-O) Oh, meu menino, a gente se vê aí no mundo. Não chora não.

ADOLFO
(FORA DE CENA) Jubileu! Vamo logo!

JUBILEU
Logo a gente vai voltar.

VALÉRIA
Ah, mas não voltam mesmo! Aqui vocês não voltam.

VILMA
Não eram nem pra ter vindo.

JUBILEU
Tchau, menino. Fica com deus. (PAUSA; BASTANTE MELODRAMÁTICO, UM TANTO CÔMICO) Isso não vai ficar assim. (SAI BATENDO A PORTA) Adoro fazer esse tipo de drama...

VALÉRIA
(GRITANDO PRA FORA) Ah, isso foi uma ameaça? Isso foi uma ameaça? Foi? Venha aqui que eu tiro vocês na porrada...! Meu pai vai dar tiro na cara de vocês, seus... pseudo intelectuais, cientistas de tutorial do Youtube!

Deixa, filha. Eu estava cego. Eu acreditei no que eles falaram e eu nem sei por quê.

VILMA
Não é sua culpa, pai.

GABRIEL
Papai.

(ELES RIEM)

VILMA
É, é o papai.

VÂNIA
Ufa. Parece que saiu um peso enorme do meu coração, gente.

VILMA
Do meu também. Eu sempre desconfiei.

GABRIEL
Papai.

VALÉRIA
Ah, fala sério, você acabou de cantar uma música cheia de poesia e agora vai ficar nessa de papai, papai?

GABRIEL
Papai, papai.

(ELES RIEM)

Mistérios, filha, mistérios.

VÂNIA
Ele é meu fofinho misterioso! Né, Ga?

VILMA
Agora podemos fazer o que é certo pela criação dele, pai. Parece que saiu um caminhão das minhas costas também. Eu sempre soube que tinha algo de errado com eles. Tudo o que tinha de ruim tava com eles, pai. A gente aqui tem as nossas diferenças, mas eles eram demais.

VALÉRIA
Nem fale.

VÂNIA
Ah, as minhas galinhas agora são galinhas livres, pai! Nada de galinha na comida nunca mais!

VALÉRIA
Ouviu, neném? À partir de hoje as galinha são as nossas amiguinhas!

VILMA
A gente vai comer só coisa saudável agora. Sopa de mandioquinha, milho, brócolis...

GABRIEL
(FAZ BIRRA BRAVO) AAAAH! NÃO! Strogonoff!

VILMA
Gabriel!

VALÉRIA
Opa, opa, opa! O que está acontecendo aqui?

VÂNIA
Gabizinho, as galinhas são nossas amigas, elas dão amor e ovos pra gente.

GABRIEL
Não, não, não! Strogonoff! Strogonoff!

VALÉRIA
Sim, sim, sim! Não tem mais carne e acabou! Se for strogonoff vai ser de carne de soja ou de palmito!

GABRIEL
NÃO! Não, não, não, não, não!

VILMA
Ga, tem moranguinho, uva, melancia que você adora, Ga!

GABRIEL
NÃÃÃÃÃO!

(GABRIEL DÁ UM ÚLTIMO GRITO E SAI BRAVO BATENDO PORTA)

VILMA
Mas o que que é isso que tá fazendo birra agora? (SAI ATRÁS)

VALÉRIA
Meu deus, tá chegando a adolescência. Eu sabia. Eu preferiria ficar limpando bunda de nenê a vida toda do que lidar com adolescente.

VÂNIA
Ah, eu não queria que ele crescesse também.

VALÉRIA
Pai, será que vai dar tempo de consertar todo esse tempo perdido?

Sei não, filha. Sei nem o que tô pensando mais. Queria só um golinho... (TOMA UM GOLE DE PINGA)

VALÉRIA
Pai, devagar...

(UM BARULHO DE VIDRO QUEBRANDO FORA DE CENA)

GABRIEL
(FORA) NÃÃÃO! Strogonoff!

VILMA
(FORA) Gabriel! O que é isso?! Largue esse abajur agora!

Ah, meu deus. Vão ajudar a sua irmã, vão, pelo amor de deus! (ELAS VÃO SAIR) Você não, Vânia. Fica um pouco. (VALÉRIA SAI) Que deus tenha misericórdia de todos nós.

VÂNIA
O que foi, pai?

Que história é essa que tá acontecendo aí nas redondezas, filha?

VÂNIA
História de que história, pai?

O anjo me disse, Vânia. Não minta pra mim.

VÂNIA
O anjo? Mas não aconteceu nada... não sei do que você tá falando...

Vânia, por favor...

VÂNIA
(SE ENTREGA) Ah! Não foi nada de mais, papai. A gente só conversou, ele que invadiu a porteira aqui e eu expulsei ele. Tava todo desafinado!

Filho do Tião, né? Aqueles meninos não querem coisa boa com as moças, filha.

VÂNIA
O Rui não come carne também, pai. Ele não é igual os irmãos dele.

Rui.

VÂNIA
Ah... eu... ele me disse o nome por um acaso.

Vânia, não quero privar vocês das coisas desse mundo que tem lá fora, filha, não é isso. Eu sou um homem bom, eu conheço as coisas do mundo novo e não tô pensando por esse lado bobo das coisas.

VÂNIA
Eu sei, pai, eu sei...

O problema é que nos foi dado essa missão, filha. Uma missão do céu. Pensa nisso, Vânia. Nós quase caímos numa presepada por um erro meu que eu não consigo me perdoar...

VÂNIA
Se perdoe, pai, se perdoe! Você é bom demais pra ter percebido a maldade neles...

Eu não quero que as coisas aconteçam errado com esse garotinho, Vânia. Cuidado pra não perder o foco, cuidado pra não envolver a nossa família com gente ruim de novo, filha. Você tem parte nessa missão, o anjo me disse que vocês três fazem parte disso também.

(SILÊNCIO; VÂNIA PARECE ENTENDER O PESO DA MISSÃO)

Entende o que quero dizer, meu bebê?

VÂNIA
Entendo, papai. Me desculpe. Foi só... foi só uma bobagem.

(ELES SE ABRAÇAM)

VALÉRIA
(FORA) Não tem mais strogonoff!

GABRIEL
(FORA) AAAAAAAAAh! (VIDRO QUEBRANDO)

VALÉRIA
(FORA) Meu abajur, seu peste!

Vá ajudar suas irmãs, vá.

(VÂNIA DÁ UM BEIJO NO PAI E SAI; ZÉ SUSPIRA CANSADO E TOMA MAIS UM GOLE DA PINGA; JOGA UM POUCO DA PINGA NO CHÃO)

Um pouco pro santo. Afinal, vai saber qual é a verdade das verdades, não é mesmo? (SAI)

(ESCURIDÃO)


CENA IV: ADEUS

(É NOITE; VÂNIA SAI ESCONDIDA DA CASA; VALÉRIA A SURPREENDE)

VALÉRIA
Tá indo onde, hein, Vânia?

VÂNIA
Ai, que susto!

VALÉRIA
Ai, se o pai sabe...

VÂNIA
Você não abra esse bico, Valéria.

VALÉRIA
Tá indo ver o bonitão, né, safada?

VÂNIA
Não te interessa, enxerida! Vai cuidar dos seus assuntos! É o contrário do que você tá pensando. Tenho que resolver esse problema. Eu já volto. Não conte pro pai, por favor.

VALÉRIA
Veja lá, hein. Juízo.

(VALÉRIA DESAPARECE; AS GALINHAS ESTÃO NO NINHO CANTANDO BAIXINHO)

GALINHAS
Cocoá, cocoá, cococoricó!

(VÂNIA VAI SE ESCONDENDO ATÉ CHEGAR NA PORTEIRA ONDE RUI TOCA O VIOLÃO)

RUI
Menina! Tarde da noite e você por aqui?

VÂNIA
Eu sei que você fica aqui na porteira fazendo graça pra gente há muito tempo, Rui. Todas as minhas irmãs já viram você mostrando seus músculos pra tentar impressionar. Elas não gostam de homens do seu tipo. Minha irmã Valéria nem de homem gosta, se você quer saber.

RUI
E você? Eu faço o seu tipo?

VÂNIA
Para de ficar fazendo graça pra gente aqui, Rui!

RUI
Eu só gosto de vir aqui pra olhar as estrelas. Que autoestima, garota!

VÂNIA
Pois devia olhar as estrelas na porteira da sua fazenda, então!

RUI
Lá tem poste de luz, atrapalha a visão.

VÂNIA
Rui. Aquele dia foi um erro. Você não vai conseguir entender os meus motivos, os motivos que envolve a minha família. Mas nenhuma de nós três queremos nada com você. A gente só não pode. Ficou claro?

RUI
Ora, ora. E vocês acham que eu estou aqui cacaçando moçoilas? Vocês são muito prepotentes mesmo. Eu estou aqui observando o universo, minha querida.

VÂNIA
Ah, tá bom, Rui. A sua música dizia claramente o que você queria. Tá escrito na sua testa, Rui.

RUI
O que que tá escrito na minha testa?

VÂNIA
Que você queria um amor num pedacinho do céu.

RUI
É só poesia de iniciante, menina.

VÂNIA
Ah, tá bom. (DEBOCHA) Poeta das estrelas.

RUI
E então você me beijou aquele dia por quê?

VÂNIA
(SUCUMBE) Porque... porque... porque aquela música tinha alguma magia mundana que me fez cair nas tentações da carne! Foi uma bobagem!

RUI
Seu pai viu e ficou bravo, não foi? É normal o pai sentir ciúmes das filhas...

VÂNIA
Não, Rui! É muito maior que isso. Você não ia conseguir entender. (ELE RI E ELA O SEGURA PELOS BRAÇOS COM SERIEDADE; ELE PERCEBE O QUANTO O ASSUNTO É SÉRIO COM CURIOSIDADE) É maior que eu, é maior que você, é maior que todo esse universo que você gosta de olhar! Eu não posso explicar, mas eu quero que você nos deixe em paz. Deu pra ficar claro?

(SILÊNCIO)

RUI
Deu sim, senhora.

VÂNIA
Agradecida. Não quero mais ver você por aqui. Ouviu bem?

RUI
Nem como amigos?

VÂNIA
(SUSPIRA COM FRAQUEZA) Nem como amigos. Meu pai não quer que o Gabriel se envolva com seres humanos do sexo masculino.

RUI
O que? E por que não?

VÂNIA
Não sei. Pressentimento dele. E acho que ele tenha um pouco de razão.

RUI
Mas e amigos só eu e você?

VÂNIA
Não. Não posso.

RUI
E por que não?

VÂNIA
Porque... porque...

RUI
Porque...?

VÂNIA
Medo. Porque eu tenho medo, Rui.

RUI
Medo de mim?

VÂNIA
Não, Rui. De mim. Medo de mim, Rui.

(SILÊNCIO)

RUI
Você tem medo de cair em tentações nos meus músculos e carinho de poeta interestelar. É isso, não é? Medo de querer me beijar de novo, não é?

VÂNIA
Aff! Depois eu que sou a cheia de autoestima. Passar bem, Rui. (ELA VAI SAIR CORRENDO)

RUI
Vânia! Espera!

VÂNIA
O que?

RUI
Eu fiquei gostando de você um tempo. Fiquei gostando de verdade. Até sonhei. Desde aquele bejinho sem vergonha. Eu sei que eu sou um bobo, meu apelido em casa é Rui Cabaço.

(SILÊNCIO; ELA SORRI DOLORIDA)

VÂNIA
Quem sabe numa outra vida. (PAUSA; ELA RETORNA UM POUCO ATÉ ELE) Eu tenho uma missão que é muito mais importante que um amorzinho terreno, Rui. Que a gente fizesse amor, e que construíssemos família! Isso não seria nada! É uma missão pro universo, Rui, que eu não tenho escolhas. Porque é a restauração do tudo!

RUI
Não é possível que seja tudo isso que você esteja dizendo! Isso está me parecendo uma desculpa esfarrapada. Mas tudo bem...

(SILÊNCIO; VÂNIA QUASE CHORA; RUI PERCEBE O PESO QUE ELA CARREGA E ESTRANHA TUDO AQUILO)

RUI
Então me explica o que é!

(SILÊNCIO)

VÂNIA
Adeus! Eu também fiquei gostando de você. Eu também sonhei com aquele beijinho sem vergonha. (ELA SAI ESCONDENDO AS LÁGRIMAS)

(RUI TAMBÉM DISFARÇA UMA LÁGRIMA E VÊ UMA ESTRELA CADENTE)

RUI
Vejo passar
A luz perder
Pode ser o tempo errado de a gente se conhecer
Pode ser em outra vida
Carne e coração
Será que vai ter outra canção?

(RUI SAI CABISBAIXO; ESCURIDÃO)


ATO III

CENA 1: ABORRECENTE

(UM FOCO DESTACA GABRIEL AGORA PRÉ-ADOLESCENTE, CANTANDO EM UM KARAOKÊ, NUM SHOW PARA AS MENINAS, VESTIDO COMO UM POPSTAR)

GABRIEL (VILMA, VALÉRIA e VÂNIA)
Mas a vida é uma lambança
E estamos em perigo
Vamos todos nessa dança
Se quiser brincar comigo!

Tudo o que se sonha
Com poder se pode conseguir
Esse poder bem aqui (bem aqui!)
Dentro de mim (dentro de ti!)
E todo mundo vai ser bem mais feliz!

VILMA, VALÉRIA e VÂNIA (GABRIEL)
Eu agora sei (Eu agora sei!)
Que você é o rei (Que eu sou o rei!)
Eu agora sei

GABRIEL
A verdade está dentro de quem?

GABRIEL, VILMA, VALÉRIA e VÂNIA
Ela está dentro de nós.

(AS MENINAS APLAUDEM O SHOW)

VÂNIA
Tão lindo, esse meu Gabizito!

VALÉRIA
É, garoto, até que você canta bem.

VILMA
A gente tá fazendo um bom trabalho.

VALÉRIA
De uma coisa eu tenho certeza. Esse garoto não vai ser um macho escroto do tipo comum.

VILMA
Ele está sendo criado por três mulheres, Val. Impossível isso acontecer. É por isso que ele foi deixado nessa casa, tenho certeza disso.

VÂNIA
E a gente tá dando todo amor do mundo, né, meu lindão?

GABRIEL
Eu acho que tá na hora de eu começar a fazer as coisas sozinho também. Tem uma hora que a gente cresce, maninhas, vocês vão precisar se acostumar com minha ausência, uma hora ou outra.

VALÉRIA
Iiiih... Já tá querendo liberdade, mas liberdade de lavar a própria cueca não quer, né?

VILMA
Uma hora sim, Gabriel, mas você ainda é criança.

GABRIEL
Eu não sou mais criança...

VALÉRIA
Mas também não é adulto!

GABRIEL
Eu já sei escolher as coisas que eu acho certo e que do meu ponto de vista faz mais sentido.

VALÉRIA
Tá bom, garoto, a freada sou eu que lavo. Senta lá, vai.

GABRIEL
Por exemplo, vocês estavam falando sobre aquele partido político lá aquele dia.

VÂNIA
Ah, não, política não, gente.

GABRIEL
Eu discordo completamente de vocês, eu acho que aquele partido é totalmente populista e mercenário.

VALÉRIA
Você ainda não sabe nada de política, garoto. Se manca. Tem muita falcatrua que você por ser criança não consegue perceber.

GABRIEL
Sei sim. Tio Adolfo me ensinou várias coisas importantes que vocês não sabem com aquele computador que ele me deu e ainda ele nem me passou a metade das coisas que tinha pra passar! Disse que a hora que eu tiver tudo que eu vou virar uma bomba!

VILMA
Tio Adolfo representava tudo que tem de ruim nesse planeta, Gabriel. Eu já te disse isso.

GABRIEL
Por exemplo também, eu não gosto de rezar Ave Maria todo dia antes de dormir. Não gosto! Não sinto nada. Sinto que é uma obrigação que não faz sentido nenhum pra mim.

VÂNIA
Nós vivemos em um lar cristão, Ga.

VALÉRIA
É só uma formalidade, garoto. Se não faz mal pra ninguém, qual o problema?

GABRIEL
O Adolfo me contou bem sobre a história que os cristãos fizeram no mundo. Queimava pessoas e tudo mais!

VÂNIA
Quem é ele pra falar? Ele degolou a Bernadete.

VILMA
Nós não somos iguais esses cristãos que falam por aí. Nós somos os cristãos bons.

GABRIEL
Ué, todo mundo acha que é cristão bom. Falar é fácil.

VALÉRIA
A gente não segue a instituição, a gente segue a mensagem.

GABRIEL
Mensagem, mensagem! Tá bom, tá bom.

VALÉRIA
Escuta aqui, tem alguma reclamação direta que você quer fazer, rapazinho?

GABRIEL
Tem sim. Eu me sinto sufocado por vocês. Vocês quase não me deixam respirar. Eu não posso ultrapassar a cerca dali, dali e dali, e só posso ir até o riacho! Eu não sou mais nenhum bebezinho pra ter que ficar fazendo showzinho musical pras bonitas ficarem aplaudindo. Eu nem posso ir depois da porteira! Eu quero saber o que tem depois de lá!

VILMA
A gente tá criando você porque você é especial, Gabriel. Vai ter tempo pra tudo, mas na hora certa!

GABRIEL
Tá demorando demais.

VALÉRIA
E outra coisa, você canta porque você quer. Você que pediu essa droga desse karaokê de aniversário, lembra? Se manca, aborrecente!

VILMA
E você é uma criança ainda sim. Você querendo ou não você ainda é uma criança.

GABRIEL
Ah, tá bom, tá bom! E vocês são umas chatas.

VALÉRIA
Menino, você não sabe os sacrifícios que a gente tem feito.

GABRIEL
Ah, não adianta fazer sacrifícios pra depois ficar jogando na cara.

VALÉRIA
Eu não tô jogando na sua cara, eu só tô falando!

VILMA
Você tem uma missão nesse planeta, Ga, e a gente tem que conseguir tirar o melhor que existe em você.

GABRIEL
Quer saber? Eu gostava mais de sopa de Bernadete do que de sopa de cenoura com chuchu.

(VÂNIA, NUM SURTO, DÁ UM TAPA NA CARA DE GABRIEL; TENSÃO; ELA TAMBÉM SE ASSUSTA E SAI CORRENDO CHORANDO)

GABRIEL
Ela bateu em mim. Ela bateu na minha cara! (CHORA)

VILMA
Calma, calma. Você sabe a história da Bernadete, Ga, e como ela fica sentida.

GABRIEL
Eu não tenho culpa se vocês são umas fracas frescurentas! Era só uma galinha! (SAI BRAVO)

VALÉRIA
Gabriel!

VILMA
Deixa. Ele tá crescendo, Val. É inevitável que aquele tempo com aqueles três influencie na vida dele. Talvez pro resto da vida, viu.

VALÉRIA
Você tem razão. Tenho tanto medo disso.

VILMA
Eu também.

VALÉRIA
É tão triste que eles crescem.

VILMA
É mais triste quando morrem crianças, não é?

VALÉRIA
É mesmo.

VILMA
Tem que crescer, ué. Tomara que papai esteja certo com essa história do anjo.

VALÉRIA
É. Tomara. Vai ver o Gabriel que eu cuido da Vânia.

(ELAS SAEM; ESCURIDÃO)


CENA 2: COCOÁ, COCOÁ, COCOCOÁ

(UM FOCO BRILHANTE DESTACA O ESPÍRITO DA GALINHA BERNADETE; OUTRAS GALINHAS A REVERENCIAM)

BERNADETE
Cocoá, cocoá, cococoá!
Olha os sinais
Deus é só um só
Somos um espírito embranhado em um nó
Estamos todos juntos
Mãe com tio e pai com vó
Se ligando mais que uma vez só

GALINHAS
Quando explodiu por todo o universo
A gente era uma coisa só
E então dividiu o que era celeste
E a matéria que é feita de pó

Cocoá, cocoá, cococoricó!
Cocoá, cocoá, cococoricó!
Olha os sinais
Deus é o que é
Pode ser que deus seja um homem ou mulher
Ou uma galinha bem gordinha na colher
Que ninguém não teve nenhum dó

BERNADETE
Quando o Jesus veio viver na Terra
Os homens de deus que o matou
Todo dia nasce um novo deus terrestre
Mas ninguém ainda nem ligou!

GALINHAS
Esperar, esperar, tanto esperar!
Cocoá, cocoá, quando vai voltar?
Esperar, esperar, quando ele vai vir?
Cocoá, cocoá, não é esse aí!

(CAMILINHA DÁ UMA CAMBALHOTA E BERNADETE DESAPARECE; FIM DA MÚSICA; ZÉ ENTRA ESTRANHANDO A REUNIÃO DAS GALINHAS; ELAS DISFARÇAM E VOLTAM A CISCAR)

Vamo ver quantos ovinhos temos hoje. (ELE RECOLHE OS OVOS) Bom, tudo normal! Normal, como sempre comum e normal! Nada melhor como um dia comum e normal e com bons ovos frescos não fecundados, claro, porque não temos nenhum galo! E pensar que ovos são a menstruação das galinhas. (SILÊNCIO ESTRANHO E DEPOIS UM RISO ENGRAÇADO) Acho que estou meio bêbado... (SAI) Até mais, meninas!

GALINHAS
Cocococococococoá!

(ESCURIDÃO)


CENA 3: FUJÃO

(AMANHECE; VILMA, VÂNIA E VALÉRIA ENTRAM CARPINDO E CUIDANDO DAS GALINHAS)

AS TRÊS
Começa o dia
Toma café
Colher o almoço
Que dá no pé

E dar comida
Para as galinha
Que dão os ovos
E muito amor

E sem terror
Sem sentir dor
Quando ela morre...
A gente faz um velório!

VÂNIA
(PARA A GALINHA) Oh, bom dia pra você também, Camilinha!

(ZÉ ENTRA)

Alguém viu o Gabriel?

VALÉRIA
Deve tá deitado ainda. Não levanta antes do meio dia mais.

Não tá! Não tá! Não tô achando ele em lugar nenhum!

VILMA
O que?

VALÉRIA
Era só o que me faltava!

Valéria, vai ver lá perto do riacho! Vilma, pega o cavalo e corre pros fundo da fazenda, lá perto onde começa as florestas. Vânia, procura ele lá na porteira!

VALÉRIA
Cacilda de moleque!

(ELAS SAEM CORRENDO; ZÉ SE AJOELHA EM FRENTE DA CAPELA)

Santo anjo protetor dos filhos escolhidos por deus, não deixe esse menino conhecer o confim das cidades ainda. Se ele descobrir aquelas casas de vídeogames... Se alguém da cidade descobrir que temos uma criança que não frequenta a escola! Por favor! Interceda por nós! Que ele esteja tomando banho no riacho, ou até que esteja comendo cogumelos, tanto faz! Mas deixe ele longe da cidade por enquanto, eu imploro.

(TROTES DE CAVALO E VILMA SURGE)

VILMA
Na cerca da floresta ele não está. Ao menos que tenha entrado lá, mas ele morre de medo, ele não teria entrado sozinho.

(VALÉRIA SURGE EXAUSTA)

VALÉRIA
Não está no riacho. Nem sinal dele.

VILMA
E se ele se afogou, pai?

VALÉRIA
Pelo amor de deus, se ele é filho de deus ele anda sobre as águas, garota!

VÂNIA
(FORA DE CENA) Pai! Pai!

(VÂNIA ENTRA COM GABRIEL, SEGUIDO POR RUI)

VÂNIA
Achei. Tava quase chegando na fazenda do Tião.

(BRAVO) Moleque! Você desobedeceu as minhas ordens! Eu disse que você tinha liberdade de ficar dentro dos limites da fazenda, não disse? De toda cerca, o riacho e a porteira! Ali, ali, ali e o riacho! Não disse?

GABRIEL
Mas já tá tudo tão pequeno, pai. Por que eu não posso conhecer as outras pessoas que moram do lado de lá?

Porque é perigoso! As pessoas são perigosas, Gabriel! Você sabe os motivos porque você deve esperar, você sabe muito bem! (PARA RUI) E você! Não quero você dentro da minha propriedade, já avisei o seu pai! Fora daqui!

VÂNIA
O Rui que tava trazendo o Gabriel de volta pra cá, pai.

RUI
Eu vi o garoto andando perdido e só quis ajudar.

Já ajudou. Agora pode ir. Diga pros seus parentes que ninguém tem que enfiar o nariz onde não é chamado. Tem uma placa bem grande lá na frente falando que aqui ninguém quer visita nenhuma!

RUI
A gente nunca enfiou nariz aqui, não, seu Zé. Ninguém quer saber o que você faz ou deixa de fazer não. Todo mundo aqui cuida da sua própria vida. A gente também tem nossos segredos.

Acho bom mesmo. Agora vai. Obrigado pela ajuda.

RUI
Não tem por onde.

E... desculpe pela dureza. É precaução, rapaz.

RUI
Eu entendo, seu Zé. Eu entendo bem. O mundo é complicado demais mesmo. (RUI ACENA COM A CABEÇA PARA AS MENINAS E SAI)

VÂNIA
Não precisava ser estúpido com ele, pai. O Rui é rapaz decente.

Decente, decente. Decente da tromba quente. Venha, garoto. Vou te deixar de castigo pelo susto que deu em todo mundo.

GABRIEL
Ah, eu já não tenho mais idade pra ficar de castigo!

VALÉRIA
E nem pra deixar freada na cueca também. Vai! Obedece o pai.

VILMA
(BAIXINHO) Você sabe, Gabriel. Você sabe que você vai ter seu tempo. Tenha paciência.

(ZÉ, GABRIEL, VALÉRIA E VILMA SAEM; VÂNIA FICA SOZINHA OLHANDO PARA A PORTEIRA)

(FORA) Vânia! Venha!

VÂNIA
Vou terminar de cuidar das galinhas e já vou, pai.

(VÂNIA VAGUEIA NOS PENSAMENTOS, ENQUANTO JOGA MILHO PRAS GALINHAS)

VÂNIA
Moço do lado,
Te vejo um bom tempo
Vejo cantando que busca um amor
Mesmo se o vento vai demorar
Pra nos aproximar
Nesse grande paraíso onde a vida é melhor!

Posso jurar, vou encontrar
Alguém legal que saiba como se alimentar
Que se junte tudo
E seja um pitel
E que seja um pedacinho do céu!

(VÂNIA SAI SUSPIRANDO CABISBAIXA)


CENA 4: PROFECIA DE GALINHA

(O OVO DE CAMILINHA COMEÇA A SE MEXER; TODAS AS GALINHAS FICAM EM EXPECTATIVAS; O OVO FINALMENTE SE CHOCA E O PINTINHO NASCE TAMBÉM COM UMA CAMBALHOTA; AS GALINHAS EXPLODEM EM UMA FESTA CONSCIENTE, FINALIZANDO A MÚSICA DE VÂNIA)

GALINHAS
Posso jurar, vou encontrar
Um novo deus que vai nascer de um grande amor
Não é das estrelas
Não vem lá do céu
E ele não se chama Gabriel!

CAMILINHA
Não é das estrelas
Não vem lá do céu
E ele não se chama Gabriel!

PINTINHO
Piupiu!

(ESCURIDÃO)


CENA 5: UM PEDACINHO DO CÉU

(ESCURECE; NA CASA É POSSÍVEL OUVIR UMA DISCUSSÃO QUALQUER BOBA; GABRIEL GRITA NERVOSO, ENQUANTO OS OUTROS DISCUTEM ENTRE SI; A DISCUSSÃO VAI FICANDO ABAFADA E VÂNIA SAI DE CADA; ELA ESTÁ TRISTE, CHORANDO; É UMA NOITE ESTRELADA E UMA LUA CHEIA BRILHA FORTE)

VÂNIA
Essa missão... eu não vi anjo nenhum. (PARA O CÉU) Por que você não diz o que eu tenho que fazer também? Papai está cada dia mais perdido e daqui a pouco ninguém mais vai conseguir segurar esse garoto! (COM DEUS) Por que você não fala comigo também? Eu estou aqui! O que eu tenho que fazer? (SILÊNCIO) E se papai estiver mentindo e não tiver anjo nenhum? E se papai teve esse filho com uma mulher qualquer e ela não quis assumir a criança e ele inventou essa história toda? (PARA O CÉU, DESESPERADA) O que eu tenho que fazer, deus? (ELA SE ASSUSTA COM UM BRILHO NO CÉU) Olha! Uma estrela cadente! Sim! Sim! Eu estou aqui, eu estou aqui! Aqui! Aqui!

(RUI APARECE ESPIANDO VÂNIA QUE NÃO O VÊ; LONGO SILÊNCIO; NADA ACONTECE COM A ESTRELA E ELA DESISTE) Nada disso é real... Que bobagem!

(UM ACORDE DE VIOLÃO; VÂNIA SE ASSUSTA EM UM PULO)

VÂNIA
Rui!

(RUI ENTRA)

RUI
Oi.

VÂNIA
Se meu pai ver você aqui...

RUI
(ROMÂNTICO) Veja sim a luz brilhar
Não é só mais um cometa
A poeira estelar

VÂNIA
(DESANIMADA) Me parece tão... comum

RUI
Ela pode transformar
Um planeta por inteiro

(RUI PEGA AS MÃOS DE VÂNIA)

RUI
A estrela
Que agora eu vejo
É você a luz.

(RUI A BEIJA SOB O LUAR E O CANTO DOS SAPOS E GRILOS, EM MÁXIMO CLIMA DE ROMANCE REAL)

RUI
Eu esperei, Vânia, e posso esperar ainda mais.

VÂNIA
Eu via pela janela, Rui. Você é um bobalhão. Cabaço. Com tantas meninas por aí...

RUI
Eu não sou moço de ficar caçando moça na cidade. Eu gosto mais de poesia. É brega, mas e daí?

VÂNIA
Não era por isso que a gente não podia, Rui. Eu não posso... porque...

(SILÊNCIO)

RUI
Me conta. Me conta o que tem esse Gabriel?

(SILÊNCIO)

VÂNIA
Eu não quero falar sobre isso. Eu quero... (PAUSA; ELA ESTÁ OFEGANTE) Eu quero outra coisa.

RUI
O que você quer?

(SILÊNCIO; VÂNIA OLHA BEM PARA OS OLHOS DE RUI E COLOCA SEU VIOLÃO DE LADO; COM UMA MALÍCIA ROMÂNTICA ELA PULA NO PESCOÇO DELE E ELES SE BEIJAM FORTE; ELA PEGA ELE PELO BRAÇO E O ARRASTA PRA FORA DE CENA; ESCURIDÃO)


ATO IV

CENA 1: A FALHA

(ADOLFO, TEREZA E JUBILEU FAZEM UM RITUAL ESTRANHO NO CENTRO DO PALCO; ELES MATAM OUTRA GALINHA, DANÇANDO E CANTANDO EM TERROR)

ADOLFO, TEREZA e JUBILEU
Menino que é prodígio e vem do céu
Escrito estava, não viu porque não viu
A profecia enfim vai se cumprir
E então, meu bem, quem é gente de bem
Não vi, sumiu

A estrela
Que agora eu vejo
Vai virar um... BUM!

(GABRIEL ENTRA SONOLENTO)

GABRIEL
Tio Adolfo?

ADOLFO
Oh, meu querido e mais especial menino prodígio do céu!

TEREZA
Ficamos com tanta saudade!

JUBILEU
Como você cresceu! Era desse tamanho e agora é desse!

GABRIEL
O pai falou que não era mais pra eu falar com vocês...

ADOLFO
Filho, não se preocupe que nós sempre estaremos perto pra proteger o filho da profecia.

GABRIEL
Profecia?

ADOLFO
Você pode mudar esse planeta, meu querido!

GABRIEL
Ah, agora vocês também. Eu não quero salvar planeta nenhum.

TEREZA
Salvar? Quem falou em salvar?

GABRIEL
Vocês cantaram que eu vim pra salvar vocês! Eu não quero salvar ninguém! Fica todo mundo falando isso! Que eu sou isso, que eu sou aquilo! Que eu sou especial! Eu não quero ser nada!

ADOLFO
Elas influenciaram mesmo a sua cabeça, Gabizinho. Nós acreditamos em outro tipo de salvamento, querido. Não é pra isso que você veio pra Terra não, não pra salvar e tudo ficar bem, final feliz. A gente não acredita mais que a humanidade possa ser salva desse jeito não, já passou essa oportunidade, acabou. O salvamento pra nós é a morte, meu caro. Você veio pra Terra pra nos salvar de nós mesmos. Você veio pra Terra pra destruir tudo! (SUSPENSE)

GABRIEL
O que?!

JUBILEU
(RI MALEFICAMENTE CÔMICO)

TEREZA
Está escrito que o filho do céu poderia ser também o filho das trevas, bastava um empurrãozinho.

ADOLFO
Você não é filho de deus, Gabriel, você foi criado num laboratório alienígena. Sabe-se lá qual foi a intenção real desses seres extreterrestres, pode até ter sido pra melhorar as coisas por aqui, isso não nos importa. Porém, essa foi a oportunidade que tava nos livros. Quando você chegasse só precisava de uma sementinha que te mostrasse o caminho certo do fim dos tempos.

JUBILEU
O caminho da destruição!

GABRIEL
Mas... eu também não quero ser do mal.

ADOLFO
É a sua missão, meu querido. Não existe bem e mal. Se esse planeta tá cheio de maldade, você destruir ele, é um ato genuíno! Pense bem. Você destruir tudo o que tem de ruim, é porque você é bom! Você é um super herói quando você destrói a maldade do mundo, Gabriel!

GABRIEL
Mas eu não quero missão nenhuma! Eu não quero nada! Me deixem em paz!

TEREZA
Mas vai ter que aceitar porque é assim que é! Todo mundo nasce predestinado a fazer alguma coisa.

JUBILEU
Destruição total! (RISADA MALÉFICA)

GABRIEL
Não! Eu não quero também. Eu não vou fazer nada que eu não quero fazer!

ADOLFO
Ora, garoto! Presta atenção...!

TEREZA
Tá merecendo umas palmadas, eu sempre dizia! Faltou surra...

GABRIEL
Vem, vem bater! Vem, vem! Você é grande, mas não é duas!

TEREZA
Olha que afrontoso, esse garoto!

JUBILEU
Ela levanta pneu de caminhão, moleque!

GABRIEL
Ninguém nunca vai me obrigar a fazer nada! Nem salvar e nem destruir nada! Eu não sou especial coisa nenhuma! Eu sou eu! (SAI CORRENDO)

ADOLFO
Ah! Aquelas meninas conseguiram fazer o que tem de melhor dentro dele aparecer de alguma forma! Inferno!

JUBILEU
Poxa, o cara ficou neutro! Não é bom, não é mau...

TEREZA
Que desperdício.

ADOLFO
Isso não pode ficar assim.

JUBILEU
(DRAMÁTICO) Isso não vai ficar assim! (QUEBRA) Eu adoro falar isso.

ADOLFO
Tereza, vá pegar o garoto!

TEREZA
Pegar?

ADOLFO
Vocês dois. Tragam ele nem que seja amarrado. O que tá faltando pra esse menino... é sentir um pouco da força de quem tem mais poder.

(TEREZA E JUBILEU SAEM; CAMILINHA, A GALINHA, SE APROXIMA DE ADOLFO E O OBSERVA COM CURIOSIDADE)

ADOLFO
Que é, galinha? Quer virar sopa ou sacrifício também?

CAMILINHA
Cocó.

ADOLFO
Sai! Xispa!

(A GALINHA PULA PRA TRÁS NUMA CAMBALHOTA; TEREZA E JUBILEU ENTRAM SEGURANDO GABRIEL)

GABRIEL
Tio Adolfo! O que vocês tão fazendo? Me larguem! (GRITA) Pai!

(TEREZA DESMAIA GABRIEL COM UM MURRO E O COLOCA EM UMA CADEIRA)

JUBILEU
O moleque ficou forte, caramba!

TEREZA
Proteína animal, eu disse!

ADOLFO
(SOZINHO) Vamos ter que pular a parte do livre arbítrio, Gabrielzinho. Não há mais tempo pra tanto drama, muito menos pra galinhas cantoras. (ADOLFO SURGE COM O NOTEBOOK FUTURISTA CHEIO DE FIOS) Esse garoto precisa cumprir as profecias do fim do mundo, pra que enfim nossas poeiras retornem ao terreno cósmico e possamos recomeçar tudo do zero...

CAMILINHA
Cocó.

ADOLFO
“Cocó, cocó”! Sai, sai, galinha estúpida!

(ADOLFO CHUTA CAMILINHA PRA FORA DE CENA)

ADOLFO
Estou programando o arquivo pulando a parte intelectual, política e espiritualista. Vamos focar nos assuntos nucleares de uma vez! Só esse cérebro pode ter a capacidade de criar uma bomba que destrua tudo de uma vez só!

(OUTRAS GALINHAS APARECEM DE TODOS OS LADOS, CURIOSAS, UM TANTO AMEAÇADORAS, COM CAMILINHA E O PINTINHO À FRENTE)

ADOLFO
O que é isso? O que é que tá acontecendo? Tirem essas galinhas fedorentas daqui!

GALINHAS
Cocoá, cocoá, cocoá!
Cocoá, cocoá, cocoá!

TEREZA
Elas estão cantando, Adolfo!

JUBILEU
É um musical de galinhas!

(ADOLFO LIGA OS APARELHOS DO NOTEBOOK NA CABEÇA DE GABRIEL, ENQUANTO AS GALINHAS ATACAM TEREZA E JUBILEU NUMA LUTA DE EXTREMA VIOLÊNCIA E SANGUE; O NOTEBOOK TRANSFERE ARQUIVOS PARA O CÉREBRO DE GABRIEL COM MUITA LUZ E BARULHO; VALÉRIA, VILMA E ZÉ ENTRAM PERDIDOS COM OS ACONTECIMENTOS)

VALÉRIA
O que estão fazendo?

VILMA
Parem! Parem!

(ZÉ TIRA UM REVÓLVER DA CINTURA)

VILMA
Pai, não!

(ZÉ ATIRA EM ADOLFO; SUSPENSE E SILÊNCIO GERAL; A LUTA DE TEREZA E JUBILEU COM AS GALINHAS CESSA; APENAS AS LUZES DO COMPUTADOR CONTINUAM ENVIANDO ARQUIVOS, NUM QUASE SILÊNCIO MÓRBIDO; ADOLFO CAI DE JOELHOS)

ADOLFO
Tarde demais. O que está feito, está feito. Do pó viemos, ao pó voltaremos... (MORRE)

(O COMPUTADOR DÁ AS NOTAS FINAIS E DESLIGA; SILÊNCIO EM TENSÃO; TEREZA E JUBILEU AJOELHAM RELIGIOSOS E AGRACIADOS PELA CONCLUSÃO DA MISSÃO; VALÉRIA E VILMA TIRAM OS FIOS DA CABEÇA DE GABRIEL; VÂNIA E RUI ENTRAM SEM ENTENDER O ACONTECIDO)

VÂNIA
Oh, meu deus!

(ZÉ CAI EM PRANTOS)

Me desculpe, senhor! Eu não fui capaz. Eu era um homem fraco, um bêbado. Justo eu, meu deus? Justo eu...?

VÂNIA
Pai... (O ABRAÇA)

RUI
O menino tá morto?

VALÉRIA
Eu não sei, eu não sei. Eu acho que não. Esse negócio coloca coisas na cabeça dele.

TEREZA
A profecia enfim vai se cumprir.

(VILMA VAI ATÉ TEREZA E A ESBOFETEIA COM MUITA FORÇA)

VILMA
Sua vaca desalmada!

TEREZA
Acabou. Não tem mais nada que vocês possam fazer. O fim está próximo. Todos voltaremos às estrelas em breve. É o que a humanidade precisava há muito tempo.

VALÉRIA
Ga, ga! Acorda. Fala comigo. Ele tá respirando ainda.

JUBILEU
É o que tá dentro da cabeça que importa agora.

(O PINTINHO FILHOTE DE CAMILINHA SOBE ATÉ O OMBRO DE GABRIEL E PIA EM SEU OUVIDO; GABRIEL ACORDA NUM GRANDE SUSPIRO)

VALÉRIA
Oi, meu amor, meu lindo! Tá tudo bem! Tá tudo bem agora.

VILMA
Vai ficar tudo bem, Gabizinho. Você tá com alguma dor? A gente precisa levar ele pra um pronto socorro, gente!

(JUBILEU COMEÇA A GARGALHAR)

JUBILEU
O mundo vai acabar! E ele não virou vegeteriano, suas idiotas!

(RUI IRRITADO O EMPURRA PRA LONGE)

VALÉRIA
Ga, converse comigo...

Eu falhei...

VÂNIA
Pai, não!

VILMA
Gabriel, você está bem? Responde pra gente.

(SILÊNCIO EM EXPECTATIVA; GABRIEL OLHA PARA TODOS COM CURIOSIDADE, COMO SE VISSE TUDO PELA PRIMEIRA VEZ)

VÂNIA
Ga, somos nós...

(GABRIEL AGARRA O PINTINHO QUE ESTAVA EM SEU OMBRO E ARRANCA SUA CABEÇA COM A BOCA)

VÂNIA
Oh, meu deus do céu!

(TODOS SE APAVORAM E GRITAM)

GABRIEL
(COM MALÍCIA E IRONIA, UM TANTO VIL)
Quando explodiu por todo o universo
A gente era uma coisa só
E então dividiu o que era celeste
E a matéria que é feita de pó
Cocoá, cocoá, cococoá... BUM! (TODOS PULAM DE SUSTO)

TEREZA
Sim, mestre, sim! Acabe com todos eles! É o fim do mundo!

(OS OLHOS DE GABRIEL DEMONSTRAM O MONSTRO QUE AGORA EXISTE DENTRO DELE; ELE DEBOCHA DO MEDO DOS OUTROS QUE SE AFASTAM ASSUSTADOS; INSTANTANEAMENTE ZÉ APONTA O REVÓLVER PRA CABEÇA DE GABRIEL)

VÂNIA
Não, pai! Não!

(GRANDE DRAMA; TODOS ESTÃO EM CHOQUE; GABRIEL PARECE SE DIVERTIR COM OS NOVOS ENSINAMENTOS DO COMPUTADOR E OLHA PARA TODOS COMO UM POSSUÍDO IRÔNICO; TEREZA E JUBILEU SE APEGAM EM SUAS ORAÇÕES SATÃNICAS E OS OUTROS RODEIAM A CENA ATERRORIZADOS)

VÂNIA
Pai, não atira...

Eu falhei, filha. Ele não é mais o mesmo Gabizinho.

VALÉRIA
Deve haver um jeito...

GABRIEL
Nuclear. Atômico. Uma solução nos átomos. Retorno ao pó.

VILMA
Ga, lembra da gente, lembra das nossas brincadeiras.

GABRIEL
Um século nesse planeta é apenas um segundo cósmico, humana. Não há mais nada que se faça. A salvação humana está na morte. Vocês são a própria destruição.

TEREZA E JUBILEU
Nosso mestre, é chegada a hora!

VILMA
Há esperança, Gabizinho...

(SILÊNCIO; ELE A OLHA COM UM TANTO DE PENA E DESPREZO)

GABRIEL
Há esperança somente no pó, humana!

(DA BOCA DE GABRIEL UMA LUZ VERMELHA ILUMINA O PALCO; ELE É A PRÓPRIA BOMBA; UM GRITO MONSTRUOSO SAI DE DENTRO DELE; UM TERROR GERAL, FAZ PARECER QUE GABRIEL VAI EXPLODIR O MUNDO)

Você está errado, computador. (ENGATILHA O REVÓLVER)

VÂNIA
Pai, não!

(UM TIRO; ESCURIDÃO)


CENA 2: INTERVENÇÃO

(LONGO SILÊNCIO NO ESCURO)

VILMA
(NO ESCURO) Pai, você atirou nele?

VALÉRIA
(NO ESCURO) O que está acontecendo?

VÂNIA
(NO ESCURO) Rui!

RUI
(NO ESCURO) Eu estou aqui!

(UMA RISADA MALÉFICA E ASSUSTADORA INTERROMPE A ESCURIDÃO; AS LUZES RETORNAM E GABRIEL ESTÁ VOANDO PODEROSO SOBRE TODOS, COM OLHOS DEMONÍACOS E VOZ MONSTRUOSA)

GABRIEL
Você não pode matar o filho de deus, papai terrestre! Eu sou o novo rei dos reis! E nada vai poder impedir o fim dos tempos da Terra!

TEREZA e JUBILEU
Amém!

(DE REPENTE, UMA LUZ GRANDIOSA SURGE NO CÉU, AO SOM DE GRANDES MOTORES CELESTES E VENTANIA; GABRIEL SE ASSUSTA COM A NAVE QUE PAIRA SOBRE ELE)

GABRIEL
Não! Vocês me mandaram aqui pra isso!

(GABRIEL DESAPARECE SEM DEIXAR VESTÍGIOS; A NAVE VAI EMBORA E DE REPENTE TUDO VOLTA AO NORMAL, COM A NOITE ESTRELADA E SILENCIOSA, COM TODOS SEM SABER EXATAMENTE O QUE ACONTECEU; LONGO SILÊNCIO DE RESPIRAÇÕES OFEGANTES; ACABOU O HORROR)

TEREZA
Nãããão!

(SILÊNCIO)

RUI
O que foi que aconteceu aqui?

VÂNIA
Eu falei que era complicado.

Eu falhei, minhas filhas. Eu deixei que esses homens corrompessem aquele ser especial com suas tecnologias diabólicas. Mas eles, os anjos celestes, não iriam permitir que tal coisa se concretizasse.

TEREZA
Vocês! Vocês são culpadas de tudo isso! Mas outra criança surgirá e então...

(VALÉRIA DESMAIA TEREZA COM UM MURRO)

VALÉRIA
Cala essa sua boca, sua ordinária!

RUI
Alguém me explica o que foi isso?

VÂNIA
Longa história, Rui. Longa história.

(JUBILEU ACORDA TEREZA E AMBOS SAEM DE CENA CORRENDO)

VALÉRIA
É melhor correrem mesmo! Desapareçam, se matem!

Eu falhei, filhas...

VILMA
Pai, o fardo era pesado. Não é sua culpa. Ninguém devia ter que carregar o peso de salvar a humanidade nas costas, pai. Foi só... foi só mais uma tentativa. Eles sabiam que você podia falhar. Vai haver outra chance, em algum outro lugar. Pode ser que já esteja acontecendo agorinha mesmo, com outra família.

Que deus os proteja desse mundo.

VILMA
Sim, que deus os proteja.

(A FAMÍLIA SE ABRAÇA AO CENTRO; RUI APENAS OBSERVA AS ESTRELAS, UMA ESTRELA CADENTE ILUMINA O CÉU; ESCURIDÃO; LONGO TEMPO DE ESCURIDÃO E FIM DA HISTÓRIA)


EPÍLOGO

(ZÉ, UM POUCO MAIS VELHO, ENTRA E OBSERVA AS ESTRELAS)

Pois é, pai da eternidade. Universo cósmico. Deus pai todo poderoso. Vocês estão aí, nós estamos aqui. Nós carne, vocês divindade. (SILÊNCIO) Meu erro foi meu sim. Por ter nascido humano ainda. Ainda não estava preparado. Será que a Terra está preparada pra conceber em seu ventre seus próprios seres celestiais? A gente ainda precisa dessa intervenção extraterrena ainda, né, não? Eu sei que sim, é óbvio que sim. Ainda somos fracos na carne e medrosos, curiosos nos poderes dos cultos ocultos do mundo submundo. (SILÊNCIO) Não foi culpa deles também não. Eram jovens. Extasiados com filmes de terror e histórias de poder supremo. Estamos em aprendizado, todos nós... (SILÊNCIO) Que não desista de nós, pai celeste. Que não desista... (FECHA OS OLHOS EM ORAÇÃO)

(CAMILINHA CHOCA OUTRO OVO E OUTRO PINTINHO NASCE)

Pois, Camilinha, como faz pra isso acontecer se não temos galo por aqui? Um pintinho de novo sem galo pra fecundação? Que magia é essa, menina?

CAMILINHA
Cocó!

É. (RI EMOCIONADO) Cocó. Cocó...

(ZÉ SAI DE CENA E UMA ESTRELA CADENTE PASSA AO FUNDO; AS GALINHAS, ENFIM FORMAM UM ÚLTIMO CORAL)

GALINHAS
Posso jurar, vou explicar
Era um deus que vinha da nave espacial
Mas houve uma guerra
Podia ser o Gabriel
Mas dessa vez deus não veio do céu

Não é só das estrelas
Que vem o amor...

(VÂNIA E RUI SURGEM EM UM FOCO; VÂNIA ESTÁ COM UMA BARRIGA DE GRÁVIDA E RUI SEGURA EM SUAS MÃOS; APAIXONADOS ELES RIEM NUM COMEÇO DE NOVA SAGA)

GALINHA
A Terra também faz parte do céu!

(ESCURIDÃO)

FIM