DESVENTURAS DE MENTIROSOS - PARTE 1: O HOMEM VERDE, O DRAMALHÃO E A INJUSTIÇA

DESVENTURAS DE MENTIROSOS – PARTE 1: O HOMEM VERDE, O DRAMALHÃO E A INJUSTIÇA

PERSONAGENS
LAILA (princesinha nariguda)
EDUARDO (beleza exótica; macho alfa)
JOICE (mãe cansada)
BRENO (criança atentada) - BRENO (jovem ator)
GUSTAVO (vizinho sexy)
CELSO (policial cristão)
CAMILA (coadjuvante biscate)
ROBERTSON (negro)
UM DUENDE
ATRIZ (mãe)
VOZ (Afrodite, secretária)

PRÓLOGO

UM DUENDE
Seu puta mentiroso! Você é um puta de um mentiroso! Sabe o que significa um puta de um mentiroso? Quando a pessoa é tão mentirosa que precisamos – que necessitamos – do som e da potência da palavra “puta” – ou qualquer outro palavrão – pra descrever. Uma puta mentira! Um puta mentiroso! Uma porra de um caralho de confiança nas minhas, nas suas, nas nossas mentirinhas. Que no fim das contas chega a se tornar verdade! Acredita? São tantas mentiras, que no fim, todo mundo pensa que é verdade. Ou seja, a verdade não é nada mais que a própria filha da puta. E aí todo mundo vai descendo e descendo. E descendo. Cada vez mais pra baixo, em vez de subir. E ninguém, nem eu, nem você, nem ninguém ganha nada com essa porcaria.

(ele alopra algum espectador violentamente com uma brincadeira de mau gosto e sai)


Cena 1: O COMBINADO

PERSONAGENS
Laila
Eduardo

(o casal corre entre girassóis e dentes de leão; eles dançam toscamente apaixonados; aos poucos, Laila vai se entristecendo dramaticamente; ela se ajoelha e Eduardo se aproxima)

EDUARDO
O que foi, meu amor?

LAILA
Não é nada. Não se preocupe.

EDUARDO
Eu gosto muito de você, tá bom?

LAILA
(ri chorando)

EDUARDO
O que foi, La?

LAILA
Nada, nada.

EDUARDO
Como nada? Por que você tá chorando?

LAILA
Eu sou muito auto insuficiente, Du.

EDUARDO
O que?

LAILA
Eu não sei. Eu sou uma pessoa confusa. Tenho medo de...

EDUARDO
De?

LAILA
De você não me aguentar. Entende?

EDUARDO
Pare com isso, La.

LAILA
Eu tenho medo, Du. Eu tenho medo. Você sabe como são as coisas. Você é meu primeiro amor. Todo mundo conta do primeiro amor, e todos eles são doloridos. Todas as minhas amigas sofreram de primeiro amor, e algumas foram chifradas, outras largadas.

EDUARDO
Pare, La. Não vamos falar nisso.

LAILA
Como não? Você me perguntou o que eu tinha, e é isso o que eu tenho. Eu tô insegura. Você é lindo. Você... eu não sei o que dizer. Mas nós somos tão jovens, não somos?

EDUARDO
Ai, meu deus.

LAILA
“Ai, meu deus” eu que digo! O que eu faço, Du? E se você se apaixonar por outra pessoa? Eu acho que uma hora isso vai acontecer.

EDUARDO
Você também pode se apaixonar. Estamos todos no risco.

LAILA
Impossível. Eu te amo mais que tudo nessa vida.

(silêncio)

LAILA
É verdade.

EDUARDO
Eu odeio quando chega nessa parte.

LAILA
É. Você já teve várias namoradas.

EDUARDO
A gente tem que curtir o agora, La.

LAILA
Todo mundo diz isso. Mas eu gostaria de conviver tranquila com o que a gente está combinando, Du.

EDUARDO
Mas você pode viver tranquila.

LAILA
Posso? Posso mesmo?

EDUARDO
Claro que pode. Você não acredita em mim?

LAILA
Claro que acredito, Du. Mas...

EDUARDO
Laila, para. Não entre nessa paranoia.

(silêncio; Laila se levanta chateada)

EDUARDO
La.

LAILA
E se eu sou uma paranoica estranha realizando o sonho de encontrar um príncipe bonzinho e maravilhoso? E se eu sou essa pessoa, Du? Você quer terminar?

EDUARDO
Laila, por favor. Você quer terminar?

LAILA
Nunca! É a última coisa que eu quero nessa vida. Mas se você quiser, eu não posso fazer nada.

EDUARDO
Ai, deus.

LAILA
“Ai, deus” eu que falo! Eu já ouvi tanto por aí sobre o que as pessoas sofrem...

EDUARDO
As pessoas são as pessoas! Pelo amor de deus, Laila! Se você quiser eu vou embora e você pensa se você quer continuar namorando comigo.

LAILA
Não! Não. Tudo bem. Eu paro.

EDUARDO
Relaxe, La. Você é linda. Eu gosto de ficar com você.

LAILA
Gosta mesmo?

EDUARDO
Amo!

LAILA
Ama mesmo?

EDUARDO
Demais.

LAILA
Sério?

EDUARDO
Sério, Laila.

LAILA
Eu fico muito contente em ouvir isso.

(silêncio; Eduardo cafunga o pescoço de Laila; ela inicia um choro contido)

EDUARDO
O que foi agora?

LAILA
Nada, nada.

EDUARDO
Ai, Laila, que saco isso! Por que você tá chorando de novo?

LAILA
É que eu amo você demais. Eu gosto muito de ficar com você, Du. Eu não queria que essa cena acabasse nunca. Mas ela vai acabar. Se tivermos sorte e ficarmos juntos pra sempre, nós vamos envelhecer e essa sensação não vai ser a mesma porque já teremos intimidade. Mas se o óbvio acontecer, que eu sei que vai acontecer de você me trair ou me dar um pé na bunda, isso vai ser só uma memória dolorida. De qualquer forma estamos fudidos.

(silêncio)

EDUARDO
Laila, tá ficando chato. (doce) Se você quiser eu vou embora e volto amanhã. Daí você pensa um pouco o que você quer.

LAILA
(ri sem graça) Eu devo tá parecendo uma louca, né? Pior que eu sou super pra frente, sabe. Super cabeça aberta. Não sei o que está acontecendo comigo. É você. (pausa) Desculpe, Du. Se você quiser ir embora e... aí a gente se tromba por aí.

EDUARDO
Você tá terminando comigo?

LAILA
Você que disse que quer ir embora. Pode ir. Não tem problema. Eu vou ficar bem. Foi muito bom ter conhecido você. Eu vou te amar pra sempre, Du.

EDUARDO
Laila!

LAILA
O que foi? Se você quiser, pode ir.

EDUARDO
Eu não disse que eu queria terminar!

LAILA
Desculpe. Desculpe, Du. Me desculpe. Eu acho que... Tudo bem, então.

(eles se beijam meio estranho)

EDUARDO
Não fique pensando essas coisas, La.

LAILA
Eu tô te assustando, né?

EDUARDO
Não.

LAILA
Tô sim. Às vezes acho que isso que vai fazer você querer se separar de mim.

EDUARDO
(ri) Ai, Laila.

LAILA
É sério. As coisas acontecem.

EDUARDO
Pare de ser boba.

LAILA
Mas é sério. A Jéssica e o namorado eram o casalzinho do rolê, sabe? Eles namoraram seis anos aí de repente ela descobriu que...

EDUARDO
Chega. Por favor. Laila, pelo amor de deus. Vamos falar de outra coisa? Eu tô ficando incomodado.

LAILA
Desculpe.

(silêncio)

LAILA
Eu sou uma idiota mesmo.

EDUARDO
Ai, senhor! Não é nada, Laila! Você é linda, inteligente, simpática...

LAILA
Nariguda.

EDUARDO
Não tem nada de nariguda! Eu amo o seu nariz.

LAILA
Ama nada. Eu sei que eu sou nariguda. Não precisa ser lindo o tempo inteiro, Eduardo.

(silêncio)

EDUARDO
Vamos ver o filme?

LAILA
Por que? Eu tô te entediando?

EDUARDO
Não, Laila, não tá.

LAILA
Eu sou uma chata, não sou?

EDUARDO
Não, Laila.

LAILA
Eu sei que eu sou. Chata e nariguda. Por que alguém como você ia querer ficar comigo?

EDUARDO
(um pouco irritado) Ai, eu vou embora. Depois a gente conversa. Você tá muito carente hoje, La.

LAILA
Eu sou carente. Vamos deixar como está, então. Não me dê esperança de “depois a gente conversa”, tá. Vamos deixar assim mesmo.

EDUARDO
Porra, Laila, se você quer terminar então beleza! Por mim, tudo bem!

LAILA
Por mim eu ficaria com você o resto da minha vida. Mas eu sei que eu vou sofrer.

EDUARDO
Como você sabe que vai sofrer, Laila? Você tá sofrendo antes de acontecer alguma coisa!

LAILA
Tô? Tô mesmo? Não tá acontecendo nada mesmo, Du?

EDUARDO
Lógico que não, Laila!

LAILA
Tem certeza?

EDUARDO
Lógico, Laila! Por favor...

LAILA
Quem é Joice?

EDUARDO
O que?

LAILA
Joice. Então, quem é Joice, Du?

EDUARDO
Ai, meu deus.

LAILA
Me fala. Quem é?

EDUARDO
É uma amiga, Laila.

LAILA
Amiga?

EDUARDO
Se você quiser eu ligo pra ela agora e você conversa com ela. Ela passa o natal com minha família, Laila. Amiga velha.

LAILA
Você já ficou com ela?

EDUARDO
Já. Já fiquei, Laila. Há muito tempo. A gente era criança ainda.

(silêncio)

EDUARDO
Contente?

LAILA
Desculpe. Eu sou uma imbecil. Eu sei. Não tem mais nada?

EDUARDO
Mais nada, Laila. Mais nada. Viu a mensagem no meu celular, não foi?

LAILA
Foi. Desculpe.

EDUARDO
Olha, La. A gente tem que começar a confiar um no outro se não vai ser impossível.

LAILA
E quem é Camila?

EDUARDO
Oi?

LAILA
Camila. Eu vi um e-mail que você mandou pra ela marcando de se encontrar. E tem uma Camila que sempre curte suas fotos no Facebook.

(silêncio)

EDUARDO
Qual é o seu problema, Laila? Você mexeu no meu computador, também?

LAILA
Nós somos namorados! Você combinou uma coisa comigo! Se eu descubro algo que está errado, não importa quais foram os meios!

EDUARDO
Claro que importa! Eu tenho minhas coisas pessoais também.

LAILA
E eu não posso saber? Tem coisas pessoais que a pessoa que deu a virgindade pra você – ou você já se esqueceu? – não pode ver? O que tem sobre você que eu não posso saber, Eduardo?

EDUARDO
Nada, Laila! Mas eu sou uma pessoa e você é outra.

LAILA
Aí é que está. Eu sinto como se fossemos um só.

EDUARDO
(ri)

LAILA
E você ri.

EDUARDO
Você tá me deixando...

LAILA
Como?

EDUARDO
Tá me deixando irritado, Laila. Puta paranoia.

LAILA
Desculpe. Eu avisei que eu sou uma idiota. Eu só tenho medo da quebra do combinado.

(silêncio)

LAILA
Eu tenho uma ideia, Du. Talvez seja bom pra nós dois.

EDUARDO
Diga.

LAILA
Eu sou meio paranoica em não saber o que está acontecendo de algo que deveria estar rolando como combinamos, entende? E aí eu pensei que talvez se combinássemos algo diferente poderia ser menos dolorido pra nós dois. E acho que por causa do seu instinto masculino, pode ser que você adore a ideia.

EDUARDO
O que é?

LAILA
E se a gente combinar um relacionamento aberto? E se nosso namoro for liberal?

EDUARDO
O que?

LAILA
Sei lá, Du. Eu ficaria tão mais tranquila.

EDUARDO
Calma...

LAILA
Eu amo você, Du. De verdade mesmo. E eu gostaria muito de dividir a minha experiência aqui na Terra do seu lado. Até o fim da vida. Só que eu necessito da sinceridade, sabe. E eu não vou conseguir sobreviver sabendo que você pode estar por aí quebrando o nosso trato de fidelidade de casal comum. Me traindo ou sei lá. Coisas que eu poderia nunca ficar sabendo. Igual a Jéssica que foi descobrir dois anos depois que o namorado tinha uma amante. Mas agora se eu souber que podemos ficar com quem a gente quiser eu vou ficar mais tranquila porque o combinado é esse.

EDUARDO
Você quer ficar com outra pessoa, é isso, Laila?

LAILA
Não, Eduardo! Não é isso! Eu gosto muito de você, Eduardo. Será que você não entendeu ainda que eu tô abrindo mão da fidelidade – o que é muito difícil – e abrindo mão da possessão do seu corpo que te pertence e não é meu totalmente – igual você me relembrou agora a pouco – pra ver se de algum jeito nossa história dê certo por um bom tempo?

EDUARDO
Laila, você tá falando sério mesmo?

LAILA
Sim. Se você preferir, se você souber que não vai conseguir ser fiel o resto das nossas vidas, assim eu prefiro. Eu vou dormir melhor.

EDUARDO
E aí a gente poderia ficar com quem a gente quisesse, sem neura?

LAILA
Sim. Sem neura.

EDUARDO
Mas aí a gente teria que contar um pro outro quando acontecesse?

LAILA
Acho que não. Não vejo a necessidade nesse caso. Acho que quando acontece uma traição num casal comum, a primeira coisa que deveria acontecer era um contar pro outro. Mas quando é liberal, foda-se.

(silêncio)

EDUARDO
E você também?

LAILA
O que?

EDUARDO
Você também poderia ficar com quem quisesse?

LAILA
Sim. Direitos iguais. Mas...

EDUARDO
Calma. Por exemplo, se o Juninho viesse aqui em casa e você quisesse dar pra ele ia ficar tudo ok?

LAILA
Sim, acho que sim. Mas eu não daria pro Juninho.

EDUARDO
E daria pra quem?

LAILA
Ai, Du, você não entendeu o ponto?

EDUARDO
Que ponto, Laila? Agora a pouco você tava parecendo uma louca neurótica e agora vem com esse papo de moderninha.

LAILA
Eu tô tentando achar uma solução, Eduardo.

EDUARDO
Pois essa solução é de merda. Eu nem consigo imaginar. Aí eu te como hoje, e você dá pra outro amanhã. Pelo amor de deus, Laila! Se você é minha namorada, você é minha namorada. Não gosto de dividir essas coisas, não. Imagine.

LAILA
Mas eu sou uma e você é outro. Você quem disse. Você tá falando agora como se eu te pertencesse.

EDUARDO
Como que as pessoas dizem? “Essa aqui é minha namorada. Minha”.  Então. Se você é minha, não quero saber de nenhum marmanjo pensando sacanagem pra cima de você.

LAILA
Mas não gostou de você poder ficar com quem quiser? Vai ser um direito por igual. Assim como dizem: chifre trocado não dói.

EDUARDO
Pare de ser louca. Eu não sou desse tipo.

LAILA
Mas, Eduardo, pense bem. Olha, esse tipo de relacionamentos a gente não vê muito por aí. Agora o casal comum a gente vê um monte e tenho um monte de exemplos e testemunhos de sofrimento e infidelidade. Talvez esse tipo de relacionamento aberto tenha uma chance de dar mais certo. Talvez seja o único jeito de a gente conseguir viver feliz, sem encanação e sem paranoia, Du.

EDUARDO
Não. Eu não quero. Se você quiser terminar, tudo bem, Laila. Tem um monte de meninas atrás de mim. Sozinho eu não fico. Mas pra mim, namoro é namoro. Você é só minha.

LAILA
Eu não quero terminar. É a última coisa que eu quero. Eu queria achar um jeito.

EDUARDO
Um jeito de que, Laila? Puta maluquice.

LAILA
Eu queria acreditar em você. Que você vai ser fiel, então.

EDUARDO
Laila, não se preocupe. Eu não sou igual os outros caras. Se eu digo que vou ser fiel, vou ser fiel.

LAILA
Sério?

EDUARDO
Sério, coração. Eu jamais te trairia. E não quero saber de você com outro cara.

LAILA
Então tá bom. Você quer um combinado comum mesmo?

EDUARDO
Sim.

LAILA
Tem certeza, Eduardo? Pense bem.

EDUARDO
Não tem o que pensar. Certeza absoluta.

LAILA
Você jura que nunca vai me trair ou mentir pra mim?

EDUARDO
Juro.

LAILA
Pela sua mãe.

EDUARDO
Juro pela minha mãe morta atrás da porta.

(ela pula no pescoço dele, apaixonados)

LAILA
Eu te amo, meu amor! Muito, muito, muito!

EDUARDO
Eu também te amo.

(eles se beijam)

LAILA
Quem é Camila, Eduardo? Que encontro era aquele?

EDUARDO
Porra, Laila. De novo?

LAILA
Ué. Se nosso relacionamento fosse aberto, foda-se quem ela é. Mas eu tenho que saber quem são as mulheres com que você se encontra e porque diabos se encontra com ela numa terça-feira à tarde. Não tenho que saber se sou sua namorada e guardo meu sexo exclusivamente para você? Se eu me abdico da minha total liberdade por você, eu não tenho o direito de vasculhar e encontrar essas coisas?

EDUARDO
Sim. Tem que saber.

LAILA
Então quem ela é?

EDUARDO

(respira fundo) A Camila é cliente lá da empresa. Sou eu quem faço todo contato com ela e com os funcionários dela. Entendeu? Não é nada disso que você tá pensando.

LAILA
E por que você marcou um encontro com ela numa terça à tarde?

EDUARDO
Ué, que horário marcaria? Se eu tivesse marcado à noite seria muito mais estranho, não?

(silêncio)

LAILA
Hum. Num restaurante?

EDUARDO
Já ouviu falar de puxar o saco do cliente quando se envolve uma compra de três milhões e meio? Além do restaurante mais chique, levei uma garrafa de champanhe caríssimo, e um amuleto banhado à ouro.

LAILA
Hum.

EDUARDO
Ué, se você não acredita eu ligo pra ela e você conversa com ela. Ela vai achar bastante idiota isso tudo.

LAILA
Tudo bem. Não precisa.

EDUARDO
Confia em mim, agora?

LAILA
Sim.

EDUARDO
Mesmo?

LAILA
Sim.

(ele a beija)

EDUARDO
Sua boba.

LAILA
Ela é bonita?

EDUARDO
Linda. Mas você é o triplo.

LAILA
Seu fofo.

EDUARDO
E triplo ciumentinha.

LAILA
Haha. A gente tem que ficar esperto nesse mundo.

EDUARDO
Não é pra tanto, vai.

LAILA
Você nem imagina como são as pessoas, Eduardo. A mentira faz parte da rotina. Seria muito mais fácil se todo mundo fizesse o que a gente fez. Combinar e conversar direitinho sobre as coisas.

EDUARDO
Olha, se todo mundo fosse igual a gente, ninguém nunca mais ouviria falar de decepção amorosa! (ri)

LAILA
Você é um lindo. Vou postar isso. (ela pega o celular) Vamos tirar uma foto. (eles fazem pose; ela posta)

EDUARDO
A sinceridade é um puta de um remédio, não é, amor?

LAILA
Um puta de um remédio. Vou postar isso entre parênteses.

(eles apoiam toscamente a cabeça na cabeça do outro e sorriem; black-out)


INTERLÚDIO

UM DUENDE
The end. (pausa; acende um cigarrinho) Na verdade Joice não é só uma amiga de Eduardo. Eles possuem um vínculo eterno à distância. Um amor meio que pra sempre, entre tapas e beijos. Existe até um filho no meio do caminho, o motivo do vínculo. Que Eduardo finge não existir para a família. A Camila, a da história do encontro à negócios, não tem nada de cliente, ela tem dezessete anos e mora na rua de trás de Eduardo. Dá pra todos que jogam futebol ali na rua. Eduardo é uma exceção sofisticada. Duas mentiras tão bobas e tão bem executadas. É disso que uma pessoa precisa para enganar outra. E o amor cega. Eduardo e Laila possuem um relacionamento aberto sem ela saber. Laila faz de tudo como diz a regra do tal do combinado. Ela nunca acha nenhum outro homem bonito. Bonito é o seu namorado e só. Ela insistiu tanto nessa ideia, que quando ele a pediu em casamento, Laila decidiu se resguardar no sexo para ver se segurava Eduardo por mais tempo dentro do amor. Pobre, Laila. Se abdicou de seu próprio corpo por um outro corpo que se deixou pertencer ao mundo. Laila foi uma criança sonhadora e acreditou nas palavras do seu homem. (pausa) Eduardo, como vemos, já é do tipo mais comum.

(ele dá um beijo na boca do mesmo espectador e sai)


Cena 2: O MENINO ASSOMBRADO

PERSONAGENS
Joice
Breno
Gustavo

(na escuridão, ouve-se gritos de um menino)

(luz; o menino Breno surge correndo, terrivelmente assustado; desesperado, se esconde num cantinho óbvio; chora contido)

BRENO
(chama) Mãe! Manhê! MANHÊ!

(Joice entra correndo)

JOICE
O que foi, Breno? Breno? Sai daí! Tá fazendo o que? O que foi?

BRENO
(choroso) Mãe...

JOICE
Breno, pelo amor de deus, a mamãe tem que entregar aquelas calças até amanhã cedo. Eu vou ter que trabalhar a madrugada toda pra entregar porque sua tia foi numa festa. (pausa) Teve outro pesadelo, filho?

(silêncio)

JOICE
Breno, o que foi? Parecia que te matavam, menino. Os vizinhos vão achar que eu bato em você, Breno. Eu tava lá no barracão e ouvi seus gritos. O que foi?

BRENO
Tem um homem.

JOICE
O que?

BRENO
Tava escuro. Não é pesadelo, mãe. Eu pensava que era. Eu acho que ele entrou pela janela.

JOICE
Chiu.

(ouve-se um barulho longe)

JOICE
Tem certeza, Breno?

BRENO
Ele me segurou. Ele me chacoalhou assim. (se chacoalha)

(Joice segura o filho e pega o celular; ela disca)

BRENO
Liga pra polícia.

JOICE
Chiu. (alguém atende) Gu, sou eu. O filho da puta voltou a entrar aqui, Gu. É. Sei lá. Não, eu não vi. O Breno disse que alguém chacoalhou ele lá no quarto dele. Tem como você vir dar outro sustinho, Gu? Desculpa, viu. Não vai adiantar chamar a polícia. Ele iria fazer um escândalo aqui na frente. Ok. Corra. Beijo. (desliga)

BRENO
Mãe, não era o papai.

JOICE
Você não lembra do seu pai, Breno. Quando você era mais bebê ele pulava a janela pra te ver. E eu pegava ele te chacoalhando pra te acordar. Um puta problema, seu pai.

BRENO
Mas eu lembro que ele não era verde. 

JOICE
O que?

BRENO
O papai não era verde, era? E não tinha uma unha gigante, tinha? Olha. (ele levanta a manga da blusa e está todo arranhado)

JOICE
Ai, meu deus, Breno!

BRENO
Ele era cabeludo.

JOICE
Breno...

BRENO
E ele me chacoalhou sem por as mãos em mim, mãe. Assim. (ele se chacoalha) Só que no alto.

JOICE
Como assim, Breno? Você tá me assustando.

(ouve-se outro barulho)

JOICE
Ai, caralho!

(eles se abraçam)

BRENO
Mãe...

JOICE
Calma, filho. Vai ficar tudo bem. Fique quietinho.

(longo silêncio; eles aguardam no suspense; de repente Gustavo entra assustando a todos; ele carrega um revólver)

JOICE
Ai, meu deus! Gustavo.

GUSTAVO
Oi. Cadê o filho da puta?

JOICE
Que susto que você me deu. Tá carregada?

GUSTAVO
Não. Não era só um sustinho?

JOICE
Sim, sim. Mas...

GUSTAVO
Mas o que? Eu trouxe umas balas.

JOICE
O Breno disse que... é... desculpe. Eu acho que ele teve outro pesadelo e me confundiu, Gu.

BRENO
Mãe, não era pesadelo! Você não viu que ele me arranhou? Ou você acha que eu mesmo fiz em mim?

GUSTAVO
O que tá acontecendo?

JOICE
Ele disse que o cara que entrou pela janela é verde e tem unhas gigantes.

(silêncio)

BRENO
E ele ainda me chacoalhou no alto, perto do teto. E era bem cabeludo, bem cabeludo.

(silêncio)

BRENO
É verdade! É verdade! Eu juro!

GUSTAVO
Vou olhar lá no quarto. (sai)

JOICE
Ai, Breno, que vergonha! A mulher dele me odeia por causa dessas ajudinhas.  

BRENO
Eu juro, mãe!

JOICE
Chiu!

(silêncio)

GUSTAVO
(em off) Não tem nada aqui.

BRENO
Mãe, eu juro! Eu juro.

(Gustavo volta)

GUSTAVO
Nada.

JOICE
Desculpa, Gu. Desculpa mesmo.

GUSTAVO
Imagina. Precisando, só ligar. Tô aqui do lado.

JOICE
Ok. Obrigada.

(ele sai, Joice fecha a porta)

(silêncio)

JOICE
O que aconteceu com seu braço, Breno?

BRENO
Você é surda ou é burra?

JOICE
Breno! Você ficou louco?

BRENO
Eu já disse, mãe. (ele abaixa a cabeça)

JOICE
Nunca mais fale assim comigo, entendeu? Entendeu?

BRENO
(concorda com a cabeça)

JOICE
Breno, não existe essas coisas de homem verde. Quem que inventou isso?

(de repente, algo chama a atenção de Breno)

BRENO
(assustadíssimo) Ali. Tá vendo? Tá vendo, mãe?

JOICE
O que, Breno? Vendo o que?

BRENO
Ele tá parado bem ali olhando pra gente. Naquele cantinho.

(silêncio; tensão)

JOICE
Breno...

BRENO
Não se mexa.

JOICE
Breno, chega!

BRENO
Não se mexa! Não se mexa! Ele tá andando! Ai, meu deus!

JOICE
O que foi? O que foi?

BRENO
Chiu. Ele tá falando.

JOICE
O que ele tá falando?

BRENO
Pra você não se mexer.

JOICE
Breno...

BRENO
Mandou você calar a boca. Chiu. Não se mexa.

(silêncio)

JOICE
E agora? O que ele tá fazendo?

BRENO
Chiu. Ele está perto. Ele está bem perto. Eu sinto o bafo dele. (ele recebe um tapa na cara de alguém invisível) Ah!

JOICE
Filho! Ai, meu deus!

BRENO
Corra, mãe! Corra!

(Joice, confusa, obedece e sai correndo)

JOICE
(em off) Breno! O que está acontecendo?

BRENO
Espere um pouco, mãe! Ele quer me contar um segredo.

(silêncio; Breno aguarda por um segundo e desmonta num sorriso maléfico; ele retira uma maleta com vários tipos de massinhas e maquiagens e rapidamente cola um adesivo na testa como se tivesse tomado um tiro; ele pega um vidrinho com sangue e joga na cabeça)

JOICE
(em off) Breno! O que ele tá dizendo?

BRENO
Calma, ele tá terminando, mãe! (deita no chão e reproduz um barulho de tiro com uma garrafa; ele grita)

(Joice entra correndo)

JOICE
Breno! Breno! (ela vê o corpo) Ai, senhor! Breno! Não, não, não! Meu filho! Meu filhinho. Breno. Ai. (ela chora desesperada sobre o corpo de Breno) Não, não. Socorro!

(ouve-se barulho de vozes e sons assustadores)

JOICE
(grita) O que você quer? Por que fez isso com meu filho, seu desgraçado? Meu filhinho. Meu bebê.

(um foco verde destaca o Duende; Joice fecha os olhos e reza desesperada; auge do suspense)

DUENDE
Meu bebê. Meu bebê. O que você quer? Nós só existimos porque inventamos.

(Breno se levanta num salto; as luzes voltam ao normal e o Duende desaparece)

BRENO
Bu! Haha! Te peguei.

JOICE
Breno...

BRENO
Te assustei?

JOICE
Filhinho...?

BRENO
É maquiagem, mãe. Olha. (ele retira a maquiagem)

(silêncio)

JOICE
Breno...

BRENO
Legal, não é? Não parece de verdade, mesmo?

JOICE
Breno...

BRENO
Ó. E não mancha a roupa.

JOICE
Quem é aquele cara?

BRENO
Que cara, mãe?

JOICE
Aquele cara verde, Breno.

BRENO
Não, mãe. Era brincadeira, sua boba! Você caiu direitinho. Ganhei essa maleta do papai. Ele mandou pelo correio. Tem várias coisas, dá pra fazer queimaduras, arranhões, tiro...

JOICE
Mas quem é aquele cara verde, Breno?

BRENO
Não tem nenhum cara verde, mãe! Era brincadeira. Eu inventei.

JOICE
Eu vi, Breno! Eu vi o cara verde.

BRENO
Oi?

JOICE
Você disse... Você... Ele tava... Ele disse que... (ela de repente acorda do susto e de uma crise surreal) Breno. Por que você fez isso, amor? Você... (ela chora)

BRENO
Mãe!

JOICE
Ai, eu fiquei tão... tão... Breno, você quase me matou, meu filho. Ai, meu deus.

BRENO
Era brincadeira, mãe. Pra descontrair. Você trabalha tanto. Me desculpa. Eu não achei que você fosse se assustar tanto.

JOICE
Ai, filho. Nunca mais faça isso, tá? Nossa. Eu te vi aqui caído e com a cabeça... Ai, Breno.

BRENO
Desculpa, mãe. Desculpa.

JOICE
Tudo bem. Você fez eu chamar o vizinho, Breno. Fala sério, filho.

BRENO
Era brincadeira.

JOICE
Tudo bem. Agora vai dormir que já tá tarde.

BRENO
Você falou que viu o homem verde?

JOICE
Não. Chega desse assunto. Vai dormir.

BRENO
Mas você disse.

JOICE
Eu entrei no calor da situação que você me colocou, Breno. Amanhã a gente vai conversar sério sobre isso, tá bom? Você não sabe como você me deixou, filho. Eu tô tremendo ainda, ó. Você achou que eu ia super dar risada depois, Breno? Pelo amor de deus.

BRENO
Desculpa. Eu vou dormir.

JOICE
E pense no que você fez, Breno. Pense bem se essas brincadeiras tem graça. Você é igualzinho seu pai.

BRENO
Desculpa. (ele sai) Boa noite.

JOICE
Boa noite. (ela suspira forte) Jesus. Eu não acredito nisso. De onde que ele tirou isso?

(Joice se senta exausta por causa do susto)

JOICE
Eu... ai.

(rapidamente uma luz destaca a silhueta de um ser pequeno com orelhas pontudas; suspense rápido)

JOICE
Ai, meu senhor! Tenha piedade da minha alma pecadora, senhor! Jesus Cristo, Maria, José.

BRENO
Haha! Te peguei de novo! (retira a fantasia de duende)

JOICE
Agora eu te mato, seu filho da puta! (ela corre atrás dele que foge) Quando eu te pegar, Breno Eduardo, você não sabe do que eu serei capaz! (desiste de pegá-lo) Puta que o pariu, Breno! Puta que o pariu. Você é filho do seu pai mesmo. Mas que saco! Castigo: sem computador, ouviu? Ouviu?

BRENO
(em off; bravo) Tá bom!

(ouve-se um barulho na porta)

JOICE
O que é agora, moleque? É outra de suas brincadeirinhas, é?

(ela abre a porta e Gustavo (que estava apoiado) cai morto)

JOICE
(ri) Ah, entendi. É uma pegadinha das sérias, então. Entendi. Legal, Gustavo. Parabéns por incentivar a criatividade do meu filho com essas coisas sanguinárias. (irritada) Breno, você é um filho sensacional! (pausa) Vai, levanta daí, Gustavo. Eu tenho um monte de coisa pra fazer ainda. Tenho que entregar um saco de calças até as onze de amanhã. Vai. (pausa) Vai, Gustavo! Que saco!

(Breno entra)

BRENO
Com quem você...? (ele vê o corpo) Ah!

JOICE
O que foi? Chega dessa palhaçada, Breno. Fala pra ele que já acabou a graça. Ou tem mais? Quem mais que eu conheço tá morto por aí?

BRENO
Não, mãe... eu...

JOICE
Vai, Gustavo, chega dessa criancice. Eu tô falando sério, meu. A sua mulher vai ficar me enchendo o saco depois.

BRENO
Ele tá morto de verdade, mãe. Não é da minha maquiagem isso.

JOICE
Breno...

BRENO
Agora é sério, mãe. Eu juro! Liga pra polícia!

JOICE
Breno, faça-me o favor...

BRENO
Mãe! Agora é sério! Eu juro! Eu juro! Ele tá morto.

(silêncio; Joice reflete aflita)

JOICE
Ai, Breno, se for mais uma das suas brincadeiras...

BRENO
Não é, mãe. Não é, eu juro!

(um foco destaca o Duende ao longe; suspense)

JOICE
Ai, meu deus! Ali! Ali!

BRENO
O que?

JOICE
É ele! É ele! (ela abraça o filho) Ai, meu santo senhor! É ele de novo! Ele existe! Ele existe! Eu sabia que eu não tinha imaginado!

DUENDE
É ele de novo! Ele existe! Ele existe! Eu sabia que existia só porque eu imaginei.

(Gustavo se levanta num salto; o Duende desaparece; o suspense some)

GUSTAVO e BRENO
Bu! (eles riem e batem com a mão)

GUSTAVO
Desculpe, Joice. Ele insistiu. Eu achei que fosse ser divertido. Super legal seu kit, Breno.

BRENO
Né? Meu pai que me deu. Meu pai adora essas coisas. Eu não conheço ele. Ele me manda os presentes pelo correio. É legal, né?

GUSTAVO
Super. Vai dar pra brincar bastante. Agora você tem que assustar o pessoal da rua.

BRENO
É. Vai ser legal. Queria primeiro testar na minha mãe. Né, mã? Pra ver se é realista.

GUSTAVO
Poxa, é super realista. Eu adorei. Parece de verdade mesmo. Parabéns, moleque.

BRENO
Valeu. Tá brava ainda, mãe? Era brincadeirinha.

(silêncio)

GUSTAVO
Fica brava, não, tá? Brincadeira de criança. Eu tenho que ir. Até mais, moleque. A gente se vê no futebol, beleza?

BRENO
Beleza.

GUSTAVO
Tchau, Jo. Tranque bem as portas que ontem a noite eu fui assaltado quando eu saía do banco, viu. Você acredita? Mas não precisa ficar nervosa, beleza? Tchau.

BRENO
Tchau.

(ele sai)

JOICE
O...

BRENO
Oi?

JOICE
O...

BRENO
“O” o que, mãe?

JOICE
O homem...

BRENO
O Gu?

JOICE
O homem verde.

BRENO
Era brincadeira, mãe. Relaxe.

JOICE
Existe. Eu vi ele, Breno. Agorinha. Ali.

BRENO
Não, mãe. Acho que você que entrou no calor da situação.

JOICE
Eu vi ele, Breno. Ele existe.

BRENO
Para de ser paranoica. Já não tem mais graça. Não tem mais nenhum outro susto, tá bom? Pode ficar sossegada. Agora eu vou dormir mesmo.

(silêncio; Breno dá um beijo no rosto da mãe e sai; Joice fica por um bom tempo em choque imóvel)

(de repente, um telefone toca; Joice vai até ele)

JOICE
(atende) Alô? Alô? Quem é? (ela desliga)

(o telefone toca novamente)

JOICE
Alô? Quem é? Quem é que tá falando? Alô? (desliga novamente)

(o telefone toca instantaneamente)

JOICE
(atende irritadíssima) Quem é, cacete? Quem é que tá falando?

(ela desliga e arrebenta o fio do telefone; por alguns segundos ela se sente aliviada de conseguir silêncio)

(o telefone toca com o fio arrebentado nas mãos de Joice; espantada, olha para a plateia)

(black-out)


INTERLÚDIO

DUENDE
Não, eu não existia de verdade na história desse pentelho. Eu fui existindo a partir dos momentos que Joice acreditava na minha existência. E aí eu posso chegar a mover objetos com a crença de um cérebro elétrico. Eu passo a existir como se fosse de verdade, e às vezes até fotografado em casos específicos. O que o pentelho do Breno não esperava era que sua mãe era sensível o bastante pra se envolver com o calor da energia de um homem verde inventado. Eu. É assim que se inicia uma casa assombrada, por exemplo. (ex:) Eu acredito, deixo resquícios e histórias. E o povo, besta, vai entrando no calor dos fantasmas que eu inventei – tanto maliciosamente, na maldade, ou como um cara que realmente acredita na sua própria mentira matriz. E a coisa se espalha. E deus se faz verdade e realiza milagres no mesmo sentido. Seja qual deus você estiver falando! Jesus, Jeová, Afrodite, Alá, Waca-waca. O que quiser! Funciona do mesmo jeito. Seja qual demônio ou espírito que você acredita te atazanar. A mentira passa a ser tão verdade que a verdade se torna físico. Concreto, palpável e visível. Uma mentira aqui, faz um furacão do outro lado do mundo. (pausa) Não, acho que não é assim a frase correta.

(ele vai sair, mas antes da uma olhada para o mesmo espectador de sempre)


Cena 3: O LADRÃO BURGUÊS

PERSONAGENS
Gustavo
Celso
Robertson

(quando a luz acende; o policial Celso está segurando Robertson deitado no chão; Gustavo está em pé desesperado)

CELSO
O que ele pegou, rapaz?

GUSTAVO
Meu celular e cinco notas de quinhentos reais que eu acabei de tirar do banco.

CELSO
Cadê o celular dele, filho da puta? E o dinheiro?

ROBERTSON
Eu não sei de nada, senhor.

CELSO
(bate Robertson no chão) Como não sabe de nada? Ele tá falando do quê, então? Me diz.

ROBERTSON
Eu não roubei ninguém, não. Eu não sou ladrão.

CELSO
Não é ladrão e tá fazendo o que por aqui?

ROBERTSON
Eu fui no banco também.

CELSO
Ah, foi no banco? Cadê sua carteira?

ROBERTSON
Eu muquiei.

CELSO
Você o que?

ROBERTSON
Eu moro na rua, senhor. Eu escondo minhas coisas.

CELSO
Que coisas? Que roubou?

GUSTAVO
Olha, eu só quero meu celular, tá bom?

ROBERTSON
Eu não roubei seu celular, seu filho da puta!

GUSTAVO
Pode ficar com os quinhentos reais. Tudo o que vai, volta. O universo é justo. Eu só quero minha agenda de volta.

ROBERTSON
Seu filho da puta...

CELSO
(bate Robertson de novo no chão) Vai devolver o dinheiro também, não vai?

ROBERTSON
Eu não peguei, moço. Eu não peguei.

(Celso se levanta)

CELSO
Fica de pé.

(Robertson obedece; Celso o revista pela segunda vez)

CELSO
Tem certeza que é esse?

GUSTAVO
Tenho. Lembro bem da cara dele com as cinco notas na mão. Uma navalha e o meu celular.

ROBERTSON
Você deve tá confundindo, cacete. Eu não roubei nada!

(Celso acha as notas dentro da cueca; gruda ele pela nuca)

CELSO
Ahá! O que é isso aqui, seu bosta mentiroso? O que é? Agora me explica como esse dinheiro foi parar aí.

(ele entrega o dinheiro para Gustavo)

GUSTAVO
Obrigado, moço. Deixa ele ficar com o celular, então. Não tem problema.

CELSO
Não, não. Ele vai devolver. Cadê a porra do celular?

ROBERTSON
Eu não tenho celular nenhum, moço. Eu juro que eu não peguei nada. Esses quinhentos reais é meu.

CELSO
(ri) Tá bom. Fala logo onde tá a merda do celular dele e daí eu não te levo pra delegacia, fechou?

ROBERTSON
Mas eu não peguei a porra do celular, senhor!

(Celso dá um tapa forte na cara de Robertson)

GUSTAVO
Moço, tudo bem. Não tem problema. Deixa ele ficar com o celular. Faça bom proveito, amigo. Faça bom proveito.

ROBERTSON
Eu tava ajudando lá na obra do Centro Cultural novo, senhor. Quinhentos reais foi o pagamento de vinte dias que eu trabalhei lá. Mas eu já saí. É o único dinheiro que eu tinha. Eu saquei do banco porque eu gosto de guardar comigo. Não gosto de deixar a nota virar gigabytes.

(silêncio)

CELSO
Cadê o celular dele?

ROBERTSON
Eu não peguei nada.

GUSTAVO
Moço, eu vou indo. Pode deixar. Não tem problema. Eu compro outro. Deixa ele ser feliz com o celular. Eu tô super atrasado. Desculpe incomodar.

CELSO
Imagina. Não quer fazer o boletim de ocorrência?

GUSTAVO
Não. Deixa ele, coitado.

ROBERTSON
Coitado.

GUSTAVO
É. Coitado. É o que você é, meu amigo. Um coitado!

ROBERTSON
Eu não sou seu amigo. Você me armou uma boa, hein, rapaz.  Eu sou preto, você é branco. Eu sou pobre. Certo. Estratégia ótima.  

GUSTAVO
Você tá viajando! Eu quero mais é que você exploda com aquele celular, seu verme. Que vá pro inferno com ele. Que você venda e fume tudo aquela porcaria.

ROBERTSON
Eu não fumo. Nem cigarro.

CELSO
Tem certeza que não quer fazer o B.O.?

GUSTAVO
Certeza. Esse verme vai morrer pedindo.

CELSO
Olha aí, seu filho da puta, esse homem aqui tá te dando um presentão. Fique grato. E eu tô de bom humor hoje. Não quero mais te ver por essas bandas. Você entendeu?

ROBERTSON
Eu não tenho nada de dinheiro pra janta de hoje. Trinta e três centavos no banco.

CELSO
Você entendeu o que eu te falei?

(Gustavo retira uma nota de dez reais da carteira e entrega para Robertson; Robertson, revoltadíssimo bate com força na mão de Gustavo)

GUSTAVO
Ai, tá louco?

ROBERTSON
(vai pra cima de Gustavo, mas Celso impede) Vai se fuder, seu burguesinho de merda! Você me armou uma boa! Você consegue dormir a noite, seu filho de uma cadela desgraçada? (chora de raiva)

CELSO
Fica quieto! Fica quieto!

GUSTAVO
Ingrato de merda. Essa raça devia ser exterminada das ruas.

(ouve-se um celular; os três ficam em silêncio)

CELSO
Cadê? Tá aqui? É o barulho do seu?

GUSTAVO
Não sei.

ROBERTSON
Tá no seu bolso, seu puto.

(silêncio)

GUSTAVO
(retira o celular) Esse é o meu vivo. Ele roubou o que tem dois chips.

ROBERTSON
Mentiroso! Você é um caralho de um ator, seu...! Eu não acredito! (para Celso) Senhor, pelo amor de deus. Eu sei que eu sou preto e pobre, mas esse dinheiro eu realmente saquei no banco. Se você quiser ir ver, dá pra gente tirar um extrato. Eu juro. O dinheiro é meu. Eu suei pra ganhar aqueles cinco papeizinhos. O celular dele tá ali! Eu não roubei porra de celular de dois chips nenhum! Eu nem sei mexer nessas porras e eu não uso drogas. Tô na rua porque aconteceu umas merdas, caralho. Tudo bem, eu bebo. Confesso. Sou alcoólatra. Mas nunca fui ladrão. Arrumei um trampo lá no Centro Cultural novo porque eu gosto de ler e vou sempre na biblioteca. Isso que tá acontecendo aqui é um puta de um preconceito só porque eu sou preto e pobre. Ele armou tudo isso, moço!

GUSTAVO
Que absurdo!

ROBERTSON
Armou! Armou sim! Seu corno! Você passa necessidade, moço? Quinhentão vale quanto pra você, seu moleque? Por que fez isso comigo?

CELSO
Rapaz, eu acho melhor todos irmos para a delegacia.

GUSTAVO e ROBERTSON
Não!

GUSTAVO
Vamos resolver isso aqui. Por favor. Não quero causar problemas pra ninguém. Esse homem é louco, senhor. Eu tô super atrasado. Eu não me importo com o celular. Com os quinhentos eu compro outro.

CELSO
É verdade tudo isso que você tá falando mesmo, rapaz?

GUSTAVO
Oras, mas...! Você acha que eu ia armar uma puta conspiração dessas! Você não tá acreditando nele, né? O cara mora na rua, vai saber o que passa pela cabeça dessas pessoas!

CELSO
Acho melhor todos irmos para a delegacia.

ROBERTSON
Senhor, pelo amor de deus. Você parece ser um policial direito e tal. Mas você sabe como é. Eu sou preto e pobre e vou me fuder. Ele liga pro advogado e o advogado dele mete um pau no meu cu. Deixa ele levar os meus quinhentão, então. Não tem problema. Tudo o que vai, volta.

GUSTAVO
Não, calma. Agora vai ficar parecendo que você fez uma boa ação por mim, é isso? Fala sério, rapaz. Diz tanto que estuda, que lê, e tá morando na rua por quê?

ROBERTSON
Minha vida não foi igual a sua.

GUSTAVO
Graças a deus! Por que se a minha fosse igual a sua, eu me mataria. Ou pelo menos deixaria de roubar as pessoas inocentes. Você tá de brincadeira com esse papo, né? Eu saí do banco, você me segurou, pegou meu celular da vivo e os quinhentos reais que eu segurava na mão e saiu correndo. Você já se esqueceu disso, é?

ROBERTSON
Não aconteceu nada disso.

CELSO
Não era o celular de dois chips que ele tinha pego?

GUSTAVO
Oi?

CELSO
Você tinha dito que era o celular de dois chips que ele tinha roubado. E que esse era o da vivo.

GUSTAVO
Ah, sim! Eu me confundi! É isso mesmo. Olha, eu só acho que ele precisa de um tratamento, não de cadeia. Ele é meio variado da cabeça.

ROBERTSON
Eu acho que a gente devia ir até o banco e tirar um extrato das duas contas. Da sua e da minha. Pra ver quem sacou quinhentos reais hoje.

(silêncio)

CELSO
É uma boa ideia. Eu tô tão ansioso.

GUSTAVO
O que?

CELSO
Nada, nada.

GUSTAVO
Olha, quer saber. Eu já perdi muito tempo com essa discussão idiota por causa de quinhentos reais. Como você disse, amigo, eu não passo necessidade mesmo. Toma. (entrega o dinheiro para Robertson)

CELSO
O que?

GUSTAVO
Eu acho que tudo bem. Não tem problema. Quinhentos reais é bastante, mas eu dou um jeito. Muito obrigado por tudo mesmo, senhor. Desculpa essa confusão. É que eu não quero arranjar problemas pra ele. Ele já deve ter tido tanta coisa ruim na vida, que eu tenho um pouco de pena até, sabe. Mas tudo bem.

ROBERTSON
Meu deus, como você é um sínico filho da mãe.

GUSTAVO
(ri) Ai, ai. Eu vou indo, tá bom. Já me atrasei para um compromisso importantíssimo.

CELSO
Não. Calma. Acho que a gente devia ir até o banco e ver o extrato.

GUSTAVO
Não, mas sem nenhum mandato isso não pode e não deve acontecer.

CELSO
Mas eu achei que a gente tava tentando resolver por aqui mesmo.

GUSTAVO
E tava. Eu também, poxa. Mas eu não quero arrumar mais problemas pra ele...

CELSO
Não, não. Isso tá me parecendo que pode ser que ele realmente tenha caído numa presepada. Você é um cara branco, esperto. Aí como ficou muito perigoso, é melhor deixar quieto. Cair fora. Não é? Porque se formos ver o extrato do banco veremos que ele realmente sacou quinhentos reais, não é isso?

GUSTAVO
(pasmo) Você tá de brincadeira comigo! Fui eu quem te chamei, pelo amor de deus! Esse cara me assaltou! Roubou meu celular e eu deixei ele ficar com a porra do meu celular de dois chips onde eu tinha um monte de contatos e fotos, e dos meus quinhentos reais – que não importa como eu ganhei!

(silêncio)

CELSO
Calma. Vocês dois são muito bons. Eu acho melhor todos irmos para a delegacia.

GUSTAVO e ROBERTSON
Não!

ROBERTSON
Por favor, moço! Vão me fuder!

GUSTAVO
Eu tô atrasado. Só vai arrumar dor de cabeça.

(outro celular toca longe)

CELSO
Tá ouvindo? É o seu?

GUSTAVO
Não sei.

CELSO
Onde tá? (para Robertson) Onde tá, seu bosta?

(Gustavo acha)

GUSTAVO
Achei! Aqui! Tava dentro desse buraco.

CELSO
É esse?

GUSTAVO
Esse mesmo. Olha as minhas fotos. Essa aqui é minha namorada.

CELSO
Hum. Deixa eu ver. (vê) Parabéns. Branquinha, ela, né?

GUSTAVO
Lindíssima. Pessoalmente mais linda e mais branca ainda.

CELSO
Ela parece ser gente fina.

GUSTAVO
Sim. Essa é minha mãe, ó.

CELSO
Nossa. Nova, ela. Olho claro? Você não tem olho claro.

GUSTAVO
Não. Puxei meu pai. Meus dois irmãos tem olho claro, menos eu. Falam que eu sou a cota na família, entende?

CELSO
(ri) Ah, sim. A cota. Sim, sim. Boa.

GUSTAVO
Enfim.

(silêncio)

CELSO
Bom. (para Robertson) Caramba, rapaz. Você quase me enganou direitinho, hein. 

ROBERTSON
Eu não peguei a porra do celular dele. Estranho ele ter achado, não?

CELSO
Pode parar! Não me venha mais com essas merdas. Foi uma conspiração bastante estranha, mas tá estampado na cara o que aconteceu aqui. Nem precisa pensar duas vezes. Você, como bom leitor e estudante – como disse –, soube interpretar bem um injustiçado caindo numa armadilha de um burguês. Parabéns. Você quase que me convenceu. Mas as origens não negam. Não tem o que negar com esse fato.

ROBERTSON
O fato de eu ser negro.

CELSO
Olha pra mim, você acha que eu sou racista, rapaz? Eu trabalho com o povo. Pelo povo. Eu não sou nenhum pouco racista. A prima da minha esposa é negra, rapaz. Mas agora eu tenho culpa de eu ter que bater mais em negros que em brancos? Tenho culpa de a realidade ser essa?

GUSTAVO
Imagina. Quer saber? Como ele é um ingrato, mentiroso e bêbado, eu vou pegar os quinhentos reais de volta. E acho que vou fazer o boletim de ocorrência, sim. (ele pega o dinheiro da mão de Robertson que não reage)

CELSO
Tá certo. Faça isso mesmo. Esses filhos da puta tão ficando espertos demais. Por isso que acho que não devíamos deixar essas porras estudar. Tinha que jogar numa ilha no meio do oceano. Todos esses porras, pra eles se matarem sozinhos.

GUSTAVO
Não ia ter nada pra roubar lá.

CELSO
Exato. E aí eles iam se comer vivos.

GUSTAVO
Sensacional.

(eles riem; Robertson continua imóvel; drama)

ROBERTSON
A única coisa que eu roubei na vida foi uma bolacha Passatempo no supermercado quando eu era criança. Meu pai me deu uma surra e nunca mais eu quis brincar de ser ilegal. Mas o problema é que eu já nasci ilegal. Nasci pobre, preto.

(Robertson aparece preso numa cela; num telão aparecem imagens das fotografias dele como presidiário, de frente e de perfil; música trágica com uma risada maléfica de Gustavo num foco)

(black-out)


INTERLÚDIO: A VERDADE DO BURGUÊS LADRÃO E A FORÇA DO NOSSO PRECONCEITO

DUENDE
Um bom mentiroso sabe reverter situações inacreditáveis. Às vezes os planos falham. Mas o que importa é a moral da história. Existem mentirosos do bem e mentirosos do mal. E todos nós somos enganados. Às vezes sentimos pena da pessoa errada. (pausa) As câmeras de segurança não podem negar! Flashback!

(Robertson está fumando um cigarro; num telão mostra-se a cena como uma câmera de segurança)

ROBERTSON
Tá vendo ali na esquina? Ali? Tem um banco ali. E um branco. Tem um cara branco sacando dinheiro no banco. Ele me viu a hora que entrou e agora tá com medo de sair. Tá falando no telefone. Sabem por que ele tá com medo de sair? Porque são onze e meia da noite, não tem mais ninguém passando na rua, e tem um negro fumando um cigarro do outro lado da esquina. Ele deve pensar: “Puxa, negro, fudido, precisa de grana, vai me assaltar.” E se tiver com uma roupa um pouco mais larga então. (pausa) Eu fico um pouco fudido com essas coisas. O cara já tá com medo de mim porque eu sou o que? Por que eu fiz o que pra ele? (pausa) Alguém aí já passou fome?

(Gustavo entra e se assusta com Robertson toscamente)

GUSTAVO
Oh!

(Robertson, com uma navalha, agarra Gustavo e tira o celular do bolso dele e o dinheiro da mão)

GUSTAVO
Não, por favor!

DUENDE e ROBERTSON
Estamos tornando físico e concreto a força do nosso preconceito.

(o Duende e Robertson correm; silêncio)

GUSTAVO
Puxa vida. Até eu quase acreditei que aquele específico personagem fosse um injustiçado das classes sociais. Realismo é realismo. (pausa) Polícia! Polícia! Socorro!

(black-out)



Cena 4: O HOMEM VERDE DA NOVELA ALHEIA

PERSONAGENS
Joice
Eduardo
Laila
Camila
Duende

(Joice e Eduardo se encaram sentados)

JOICE
Você é um idiota.

EDUARDO
Eu adoro ver você.

JOICE
Seu filho é um idiota. Ele é igualzinho você.

EDUARDO
E você não me deixa vê-lo.

JOICE
Você iria coloca-lo contra mim. Você iria pervertê-lo. Eu já disse, espere ele crescer. Quando ele puder pensar você vai poder vê-lo.

EDUARDO
Você é uma vaca.

JOICE
Mas você precisa dessa vaca, não precisa?

EDUARDO
Você sabe bem que eu tenho meus rolos, né?

JOICE
Não tem mais rolas que eu.

(silêncio)

EDUARDO
Eu disso rolos.

JOICE
Eu disse rolas mesmo.

EDUARDO
Você é uma vadia.

JOICE
Por que? Por que vadia?

EDUARDO
Só vadia. Eu gosto de falar vadia.

JOICE
E você é uma bicha.

EDUARDO
Não, isso eu não sou.

JOICE
Uma bichona, na verdade.

EDUARDO
(ri) Quer pegar na bichona? Já tá estralando.

JOICE
Seu puto.

(eles se beijam)

JOICE
Seu filho me deixou louca esses dias. Você tem ido em casa à noite, Eduardo?

EDUARDO
Eu? Não. Eu respeito sua posição.

JOICE
Alguém tem me ligado. E ninguém fala nada. E todo dia eu tenho tido a impressão de que tem alguém tentando entrar, ou rondando a casa, sabe? Seu filho me deixou tão paranoica com uma brincadeira que ele fez com aquelas maquiagens que você deu pra ele. Eu, no auge do susto – porque ele fingiu que tinha tomado um tiro na testa, Eduardo, você acredita? – no auge do susto, cheguei a ver a porra do homem verde que ele disse. Agora eu não consigo lembrar se eu realmente vi, ou se foi uma brisa forte por causa do susto. E aí começa acontecer esses negócios. O telefone tocou com o fio arrebentado na minha mão, Eduardo. Você acredita? Eu pesquisei na internet e pode ser que tenha sido um mal contato dentro do telefone, sem ter a ver com a linha, a rede, sei lá. Uma loucura. Aí eu fico ouvindo passos e uma vozes e... (pausa) Ai, eu tô parecendo uma louca, não tô? Seu filho, Eduardo! Ele é igualzinho você! Um puta de um ator! Devia ir fazer teatro aquele menino. Imagine a cena, Eduardo, eu chorando toda esgoelada em cima do corpo dele com uma porra de maquiagem de furo na testa. Você imagine isso. E ele insistiu no susto. Me assustou três vezes, aquele filho da puta! E o vizinho ajudou ele. Aquele idiota.

EDUARDO
Que vizinho?

JOICE
O vizinho, o Gustavo, marido da Amanda Tulipa.

EDUARDO
Sei.

JOICE
E agora tá acontecendo essas coisas. Eu não sei mais o que fazer. Eu tenho ido dormir todo dia cagando de medo de apagar a luz e ver aquele cara verde de novo.

EDUARDO
Cara verde. Como ele era?

JOICE
Ai, eu não sei! Era um duende, eu acho! Cabeludo, orelhudo! Verde! De pele verde! Horripilante, eu não gosto nem de lembrar. Mas pode ser que eu imaginei. Mas o foda são essas coisas que agora estão acontecendo.

(um celular toca)

JOICE
Ai! Que susto. Quem é?

EDUARDO
Peraí. (ele atende) Alô? Oi. Sim. Uhum. Sim. Beleza. Eu também. Beijo. (desliga)

JOICE
Quem era?

EDUARDO
Joice... é... isso é muito estranho...

JOICE
O que foi?

EDUARDO
Olha, sabe, eu gosto muito de você. Bastante. Nosso sexo é sensacional. Mas... é...

JOICE
Mas o que Eduardo? Você quer terminar?

EDUARDO
Então, terminar o que, né? A gente não tem nada.

JOICE
Então.

(silêncio)

EDUARDO
A menina que eu tô namorando descobriu. Ela vasculhou algumas coisas, desconfiou, eu neguei, mas aí ela descobriu. E você não acredita como ela descobriu. E o pior é que eu gosto dela. (pausa) Talvez seja ela quem esteja rondando sua casa. Porque ela é meio paranoica.

JOICE
O que?

EDUARDO
Pois é.

JOICE
Nós temos um filho juntos, não se esqueça. E ele é um louco que eu não vou conseguir criar depois de grande.

EDUARDO
Eu sei. Mas acho que a gente não devia ter mais nada, entende?

JOICE
Sexo. A melhor parte?

EDUARDO
Eu sei, eu sei.

JOICE
Você é um imbecil. E aquela vaca é uma outra imbecil. Fale pra ela parar de ser louca e deixar minha família em paz, você entendeu? Não quero saber de ninguém rondando minha casa.

EDUARDO
O mais estranho...

JOICE
O que foi?

EDUARDO
É que sabe o que ela disse quando eu perguntei quem tinha contado sobre você e sobre a Camila?

JOICE
Quem é Camila?

EDUARDO
Não vem ao caso. Uma biscatinha que eu comia. Não como mais. Mas sabe o que ela disse? Sabe o que ela disse quem contou pra ela?

JOICE
Ah, é? Alguém contou pra ela? Quem?

EDUARDO
Ela disse que logo depois da nossa conversa de combinado de namoro, ela tinha saído de cena e estava ali no fundo. Foi aí que ela ouviu e viu um homem verde falar toda a verdade sobre quem éramos. Falou com detalhes. Ela falou que ele falou que eu tinha um filho e que eu era um homem do tipo comum.

(silêncio; suspense)

JOICE
E você é mesmo do tipo comum. Meu santo deus!

EDUARDO
Mas não é uma coincidência extraordinária? Talvez esse homem verde realmente exista.

JOICE
Sim. É uma assombração com todos que tem ligação com você, Eduardo! Seu filho é um diabinho, eu estou sendo assombrada por telefonemas e barulhos estranhos, sua namoradinha teve essas visões brechtianas. E você? Não sabe de nada?

EDUARDO
Eu não sei de nada. Nunca vi nenhum cara verde.

JOICE
Então o que será tudo isso?

(o Duende entra entediado)

DUENDE
Olha, vamo parar com essa porcaria aqui. Tá todo mundo cansado. Vocês querem ver o homem verde? Aqui estou eu. Pronto, sem neura. Eu não sou maléfico e nem sou uma assombração. Minha função aqui é a de palpitar e de ser o alter ego do inventor. Faço também boa parte da complicação da história, mas isso sempre existe a necessidade de acontecer, então... Bem, eis me aqui. Olá! Ficaram chocados? Relaxem que eu estou aqui só pra encher linguiça.

(eles observam completamente chocados; com a boca arreganhada e os olhos esbugalhados de terror)

DUENDE
E aí? Ninguém vai me oferecer um café?

JOICE e EDUARDO
(gritam) AAAAAAAAAAAAAAH!

DUENDE
Merda de realismo barato.

(Black-out)

CONTINUA...



  

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