O METAMORFÉTICO: A MORTE É A MELHOR (E ÚNICA) SAÍDA PARA SEUS PROBLEMAS

O METAMORFÉTICO
A MORTE É A MELHOR (E ÚNICA) SAÍDA PARA SEUS PROBLEMAS

QUASE MONÓLOGO

PERSONAGEM
ROBSON
ELA

PRÓLOGO

(escuridão)

ROBSON
Antes de começar, eu preciso de cinco cenas dramáticas pra me aquecer. Os extremos, aqueles que fazem doer a cabeça, são os que trazem melhor resultado. Eu perdi a porra da primeira parte.


ATO I

CENA I

(ouve-se um copo quebrando)

(Robson entra correndo com o pulso sangrando)

ROBSON
(envergonhado e nervoso) Alguém! Ai, caralho! Alguém tem um telefone pra emprestar? Eu tentei me matar, mas demorou. E agora eu meio que não quero mais. Será que dá tempo? Eu acho que eu não perdi muito sangue, foi só... foi só... (cai desmaiado)

(música trágica; um foco fecha sobre o corpo)

(Robson levanta repentinamente quebrando a tragédia)

ROBSON
Alguém! Ai, caralho! Você tem um telefone pra me emprestar? Eu tava desesperado, eu... demorou demais pra fazer efeito. Olhe, eu cortei meus pulsos com uma faca daquelas de serrinha, meu deus. E agora eu meio que não quero mais. Será que dá tempo de fazer pelo menos mais alguma coisinha? Uma punheta, pelo menos. Sem punho? Ai, caralho. Eu acho que eu não perdi muito sangue, eu acho que... foi só... (cai desmaiado novamente)

(nenhum som; depois de segundos de silêncio, Robson se levanta novamente)

ROBSON
Eu não tô fingindo! Minha respiração tá desse jeito por culpa desse levanta e cai. Não é nervosismo. Todo mundo sofre de nervosismo e pode ser o mais experiente possível. É medo de morrer mesmo, de não poder fazer nada. E tá demorando pra cacete, meu deus. O que eu fiz pra merecer uma morte lenta? Eu só queria morrer de vez mesmo. Só isso... só isso... antes... (desmaia de novo)

(dessa vez, Robson fica caído por longos segundos; silêncio absoluto e uma espera exagerada por algo)

(black-out)


CENA II

(bolas de diversos tamanhos e cores invadem o palco; Robson se diverte com elas)

ROBSON
Eu amo uma bola. Eu amo bolas. Tudo o que é circular. Eu amava aula de geometria. Pra ficar desenhando bolas. Uma linha que não tem começo. Que não chega em lugar nenhum. Mas que chega, por outra perspectiva mais longe do exato. Esferas. Coisas gordas. Redondas. Que demoram pra parar. Que vai e volta. Que cabe na boca. Que se chuta com os pés. Eu já quis ser jogador de futebol. Mas eu odeio futebol, por todo o contexto e manias. Eu já quis ter um parque de diversão pra poder construir a maior roda gigante da terra. Mas eu ia ser egoísta, ia ser ciumento e não ia deixar ninguém andar nela.

(ele quebra um ovo dentro da boca)

ROBSON
O ovo. O óvulo. O pinto. A barriga da grávida. Num formato do infinito. Eu como ovo cru pra ver se nasce um pinto na minha barriga. Pra plantar uma célula nova. O alimento é só o combustível pra energia elétrica que corre e pulsa dentro da gente. A coisa mais importante de se fazer nessa vida é comer. Comer tudo e comer todos. Vegetarianos, me perdoem, mas talvez eu queira me alimentar do medo e da dor do porco que virou bacon no meu prato. Talvez eu me alimente da dor pra não sentir. Pra tornar meu corpo imune. Não sabemos nada do que se transforma a energia ingerida, pensando pela parte espiritual e sentimental. Sabemos o que trás proteína e o caralho, mas de resto, foda-se o passado daquele peixe suculento. A coisa mais importante de se fazer nessa vida é ingerir o coleguinha que está sentado do seu lado.

(uma mesa farta de besteiras surge em um foco; Robson ataca pratos de macarronadas, bananas, bolos de chocolate, tortas e sorvete; no meio de tudo ainda quebra dois ovos na boca; ele come até quase explodir)

ROBSON
Não digo literalmente. Não vá morder o coleguinha, por favor. Mas ingira o que ele tem pra falar. Mesmo que for merda, a pior coisa que você aprenderá é que graças a deus ainda existe gente mais idiota que você. (ele ouve alguém perguntar) Por que diabos o espetáculo começou com uma cena de suicídio? Oras, por que. Primeiro: porque eu tenho tendências, é isso. Lógico. Pra se matar, basta estar vivo e com dúvidas. Segundo: porque, como qualquer discussão existencial, em espetáculos modernos, a repetição e o estilo cíclico já são clichês, mas incrivelmente bem usados, em algumas vezes. Vale o risco. E terceiro: porque a licença poética é única e intransferível.

(ele repara em algum específico espectador)

ROBSON
Você! Você mesmo. Sim, levante-se. Por favor. Deixe eu ver. (pausa) Sim. Bem, sim. É você mesmo. Todo dia eu faço uma busca por algumas pessoas aqui. Não precisa ficar com medo, eu não vou te expor numa cena embaraçada. A única coisa é que eu olhei no profundo da sua íris – olha como eu consigo ser dramático – e aí eu pude ver alguma coisa que não pertence aos outros olhares. Olhe para esses outros. Você consegue ver? No espelho, quando você está no espelho, você consegue reparar que seu olhar é diferente de qualquer outro aqui presente, de qualquer outro no mundo? Pense, você deve estar se perguntando: “por que caralho ele teve que me escolher? No meio desse monte de gente ele foi e me escolheu.” Pois não é incrível? A exatidão da coisa? Você não se sente especial mesmo, pra você? A coisa que mais importa nesse mundo, nessa bunda é o nosso próprio cu, cara. Eu sei que você já teve pensamentos de que era diferente e de que faltava apenas ser reconhecido por essa diferença divina. Hoje é o dia, cara. Eu te reconheci no primeiro segundo que você entrou por aquela porta. Eu tava ali me maquiando e eu olhei de canto. Eu só não podia deixar passar batido, pessoal, desculpem. Você consegue entender a grandiosidade desse encontro? A maquinaria estelar tava conspirando e trabalhando num conjunto pra você chegar aqui e eu olhar pra sua cara e falar assim: esse será o condenado, o que eu vou pegar pra Cristo. Por favor, não se preocupe, tá bom? (pausa) Bom, eis a minha proposta pra você: Eu quero comer você. Calma, não é nada disso que você tá pensando. Eu não vou te cozinhar e nem quero comer o teu cuzinho. Eu quero comer você intelectualmente, entende? Eu sinto que você tem algo grandioso pra me mostrar. Algo que eu esperei até o dia de hoje, nesse exato dia de apresentação, nessa noite. Eu sinto – não é deus – eu sinto que você tem algo bacana pra me falar ou pra mostrar. Não tem? Não fique com medo desses olhares, e nem dessa pressão teatral, eu só quero saber que porra de mensagem é essa que você tem pra me dar. Você sabe? Você lembra de alguma mensagem? Qualquer coisa. Qualquer frase de efeito. Pode ser até do Caio Fernando Abreu, sei lá. Não fale pra ninguém. Eu quero que você fale no meu ouvido.

(ele ouve qualquer que for a coisa que o espectador lhe falar; ele não se anima e nem desanima; faz algo que consiga deixar o espectador um pouco constrangido)

ROBSON
Hum. Legal. Legal, gente. Ele falou aqui uma coisinha. Você é ator, também? Hum. Obrigado pela participação de todos. Tenham uma boa noite. (saindo, pra si) Preciso beijar na boca hoje.

(black-out)


CENA III

(Robson está aos prantos em cima de uma cadeira, com uma corda pendurada)

ROBSON
Não é o suficiente. Ah, nunca é, meu. Poxa. Desse jeito acho que eu não vou chegar nem aos trinta mesmo. Porra, eu sou a porra de um moleque! (ele coloca a corda no pescoço) Odeio ser moleque. Tem tanta gente mais idiota que eu que vem dar conselhos e a gente tem que ouvir pra prosseguir com o caralho da humildade. Acho que humildade é chegar nesse ponto que eu cheguei. Cheguei num ponto onde ou eu mato um, ou... E acho que é mais bonitinho morrer que matar pela causa. Gay, né? Eu sei. Eu curto comer um rabo de macho mesmo. Adoro coisinhas redondas.

(um foco destaca uma espectadora da plateia; uma música romântica explode o coração de Robson)

ROBSON
Você! (volta) Não. Eu não vou falar nada. Eu vou esperar ela perceber.

(ele se senta e aguarda olhando ansiosamente para a espectadora; ele começa a comer as unhas; cheira o sovaco e o hálito; ele tenta escrever alguma carta, mas desiste; ele até pergunta pra alguém sobre a garota; no auge do nervosismo ele decide desabafar)

ROBSON
Ai, meu. Você tem Whatsapp? Você pode passar? Você é gatíssima. Por favor. Tem o cheiro que eu quero que meus filhos tenham. Você parece ser a mulher mais fértil pra mim. Consegue ver? E pode não ser, mas parece pra mim. Você emana um cheiro de dentro da sua vagina – com todo respeito – um cheiro que atinge minhas narinas e me sufoca com um tesão que costumamos chamar por outro nome. Eu não vou dizer. Só vou dizer quando você disser primeiro. Tem essas coisas, não tem? Quem será que vai dizer primeiro? E depois o segundo ou se sente aliviado, ou se sente orgulhoso, ou, na maioria das vezes, com medo. Não fique com medo de mim, eu não vou te expor ao ridículo e nem vou beijar a sua boca – ao menos que você queira. Eu só queria que você dissesse primeiro – aquilo – pra eu não ter que passar por uma situação constrangedora. Eu digo e aí você vai ficar embaraçada e me fode na frente de todo mundo porque não tem os mesmos sentimentos que eu. Aí meu pau desce e eu me mato por uma desilusão amorosa. Ou eu mato você, também. Pode ser. Quem sabe? Você morreria ou mataria pela causa? Não responda. Eu morro de amor por você. Mas eu mato de amor por você também, porque nesse quesito foda-se a humildade! Eu quero comer você também. Aquele era pra ser um brother. Achei ele meio fútil. Você... eu acho que eu tô gostando de você.

(a música sobe ele tenta beijá-la)

ATOR
Faz parte do espetáculo. Eu juro que eu não tô tentando me aproveitar. Faz parte da dramaturgia.

(ele dança grudado à espectadora; de repente outra espectadora lhe chama a atenção; ele ainda dança coladinho, mas paquera a outra)

(um black-out rápido; ouve-se um tapa forte; quando a luz retorna, Robson está com a mão no rosto)

ROBSON
Você é louca! Ela me bateu! Cadê a lei que protege os homens da violência doméstica agora? Cadê essa porra? Eu tava olhando pra aquela gostosa mesmo! Tá bom? O instinto masculino é e sempre será assim. As exceções são bichas! Pode acreditar! O pau pensa antes, compreendeu? Enquanto eu tô aqui te dizendo “eu te amo” o pau sobe com as dançarinas do Faustão. E elas nem são tão peladas como parecia antigamente. Você quer terminar? Volte pro seu lugar que eu tô me lixando, porque toda vez que eu saio daqui tem meia dúzia de aspirantes a atrizes que vão querer dar pra mim. A vida de artista tem suas regalias, sua ordinária. (pausa) Pelo menos na teoria.

(um silêncio; as luzes de serviço se acendem)

ATOR
Bom, vamo pular a parte chata então. Fim. Podem aplaudir. (ele aguarda os aplausos) Obrigado. Foi difícil decorar, foi bacana a experiência de testar isso tudo, e tudo o mais. Quem quer dar pra mim aí? Pode ser homem, também. Eu como. Vai. Quem vai querer? Vocês podem falar que isso daqui é uma cena, que é pelo bem e pela estética do espetáculo.

(o foco retorna)

ROBSON
Vamo lá. Quem vai? Sem preconceitos. Quem vai?

(uma música grandiosa e dramática explode a cena; Robson cai destruído e chorando incontrolavelmente)

ROBSON
Eu não sou pintudo o suficiente pra ser o preferido dos preferidos. Não basta demonstrar popularidade pra não ser solitário. No fim das contas, o cara mais acompanhado do mundo vai morrer sozinho. Um black-out é o fim disso.

(um foco destaca um revólver em uma mesa)

ROBSON
Eu não acho as pessoas interessantes. Nem os novos e nem os velhos. Não consigo segurar o meu instinto. Não consigo ser forte por um amor que não sei se é reciproco. É sempre uma dúvida louca e aí eu prefiro caminhar pelo caminho que é mais gostoso. Menos decepcionante. Eu sei que eu conseguiria ter controle sobre o meu corpo, controlar a vontade, o desejo, eu sei porque eu fui fumante por oito anos e consegui parar quando eu decidi que ia parar – porque sexo também é um vício, eu só falo e escrevo sobre isso. Mas eu nunca consegui sentir que valesse mesmo a pena me privar da liberdade por ninguém. Às vezes que eu quase senti, foi rápido. No outro dia a pessoa arrotava na minha cara e eu começava a sublinhar os defeitos.

(ele põe o revólver no coração)

ROBSON
Os defeitos nos outros são tão gritantes que me ensurdecem.

(suspense; Robson se prepara para atirar; no auge da cena, uma voz interrompe)

ELA
Robson? Robson?

ROBSON
Quem é?

ELA
Robson?

ROBSON
Pode falar, caralho. O que é que é? Eu errei?

ELA
Tá fora do foco.

ROBSON
Ah, caralho.

ELA
Um pouco mais pra trás.

ROBSON
Tá bom, tá bom. Julgo desnecessário, isso.

ELA
Só mais uma coisa.

ROBSON
Fala logo que não é fácil retomar uma cena assim.

ELA
Eu amo você. Não tenho tempo pra nós dois, mas eu amo você.

(silêncio; Robson quase se emociona; ele deixa a arma abaixar um pouco)

ROBSON
Alguém.

(de repente; ele relembra das aflições e retorna para o desespero com o revólver apontado para o coração)

(no auge do suspense ele atira)

(a arma não dispara; ele entra em choque; não sabe se ri, se chora; olha para o alto e tenta descobrir o que deus está pensando; ele ri no descontrole; tem um surto de raiva e desiste de se matar)

ROBSON
Eu sim sou um fracassado. De solidão por solidão, preferiria a que eu não conheço. Mas até nisso o filho da puta quer decidir. Que culpa tenho eu de meus pais terem trepado?

(ele acende um cigarro)

ROBSON
Eu não chego nem até os trinta, escreva o que eu tô dizendo.

(ele fuma o cigarro e as luzes caem em resistência; black-out)

(as luzes logo acendem e Robson está na mesma posição de antes; ele procura o maço de cigarro no bolso pra acender outro; só percebe isso depois)

ROBSON
Olha o nível de desespero. Eu ia acender um cigarro e eu já tô com um aceso, cacete.

(black-out)


CENA IV

(Robson entra neutro; com um copo e um violão)

ROBSON
Me mandaram entrar aqui e listar os meus problemas. “Expor para encontrar uma solução”. Eu fiz uma música, que eu acho que pode explicar bem a situação. Me levem a sério que eu fiz curso, tá bom.

(ele se ajeita; toca uma nota errada, mas começa)

ROBSON
Me mandaram entrar aqui e listar os meus problemas
Expor para encontrar uma solução
Escrevi essa canção pra poder te explicar
Só o violão que tô aprendendo

Os meus princípios otimistas
Não sei onde é que foi parar
O meu discurso pessimista foi mais fácil de arrumar
E eu só vejo nesse mundo um destino de fuder
Pra mim e pra você
E não tem “mas”
Não sou sincero sempre

Quando digo que não estou bem
Não quero que venha me abraçar
Legal seria se dinheiro você pudesse me emprestar
E eu te diria amém
O mundo então vai ficar bem
“Se deus criou a rota mata”
Mas aí tá tudo bem
Não tenho dinheiro pra pagar o aluguel
E nem pra comprar um Marlboro
Já tá acabando a minha maconha
E tô devendo pro mundo
Envergonhado inseguro
Vou ter que ligar pro tio Raimundo
Nem quero ver o que ele vai dizer
A minha alma pro capeta agora eu vou ter que vender

Então eu decidi uma peça montar
E achei que teria patrocínio
Mas nessa vida de artista não tem como se safar
Eu sou um grande amante do ócio
E não veio ninguém
Não vou negar
Com a grana só deu pra pagar o buzão
Quase não deu pra alimentação
Eis o meu dilema
Será que a morte é a melhor e única saída para meus problemas

(finaliza a música com neutralidade)

ROBSON
Maestro, a porra do violão tá desafinado.

(ele bebe o líquido do copo)

ROBSON
Mentira, eu não tenho um maestro.

(cai com a boca espumando)

(black-out)


CENA V

(na escuridão)

ELA
Robson? Robson? Robson, você está aí?

ROBSON
Não, é a sua mãe que tá aqui. Sim, isso é uma porra de um monólogo!

(as luzes acendem; Robson está se levantando)

ROBSON
Eu não vou dizer que tô esperando alguém ou algo, porque se não vai todo mundo dizer que Beckett foi uma referência. É tudo crédito meu!

ELA
Eu ainda amo você. Não importa o que aconteça. Mesmo se eles não chegarem.

ROBSON
Meu cu. Não existe essa porra.

ELA
Existe, caralho. Se eu tô falando que amo você é porque eu amo você, pô.

ROBSON
Eu não acredito em mais ninguém.

ELA
Pois acredite. Eu amo você. Você pode confiar em mim pro que for.

ROBSON
Ok. Tá bom. (sincero) Valeu.

ELA
Imagina. Você tem como arrumar cem reais, Robson? Eu pago você no fim do mês. Eu tô desesperada.

(Robson ri)

ROBSON
Se eu passar dos trinta, eu vou ser um desses caras que entra no trabalho e mata o chefe e os colegas. Não vejo mais sentido em viver nessa falsidade descarada. Pode falar o que for. Depressão é coisa do diabo. Satã. O oposto de Jesus Cristo mesmo. De chifres. E fica dentro do corpo, mais precisamente entre o estômago e o coração. Você não sabe se é gases, um infarto, ou se é o capeta atentando. Ô, bicho lazarento esse que a gente é, não?

(silêncio; Robson retira um papelzinho do bolso)

ROBSON
Antes de vir pra cá hoje eu apostei na loteria. 01-07-08-23-48-60. Quando eu aposto, eu sempre aposto esse. Esperança é a mensagem cristo enfiou na nossa cabeça. Pode parecer ridículo, mas eu usei os meus últimos cinco reais, e essa é minha última esperança pra resolver a minha vida. Eu não acredito mais em deus, mas que ele me abençoe.

ELA
Robson?

ROBSON
Sim, o que é agora?

ELA
Os números sorteados são: 12-22-32-42-52 e 60.

ROBSON
(grita) Sim! Sessenta!

(silêncio; longo silêncio; ele rasga a aposta)

ROBSON
Ah! Comprei também uma raspadinha. Ufa. A vida sempre nos dá segundas chances.

(ele raspa)

ROBSON
Dois “setenta mil”. Dois “um e cinquenta”. (torce) Setenta mil, setenta mil. (termina) Yes! Um e cinquenta! Vou trocar por outro.

(ele troca)

ROBSON
A vida nos dá as chances que forem necessárias.


(ele raspa em silêncio; na “chance extra” ele fecha os olhos e pede a deus)

ROBSON
Eu creio, senhor. Eu creio. Eu tô precisando. Eu doo dez por cento pra primeira família necessitada que passar pela minha frente.

(ele raspa com os olhos fechados; ele vê o resultado; quase antes de se ver um sorriso, black-out)

ROBSON
Agora eu posso começar o espetáculo.


ATO II

CENA I

ROBSON
“Quando certa manhã acordei de sonhos intranquilos. Encontrei-me metamorféticamente transformado num inseto monstruoso. Eu estava deitado sobre as minhas costas. Duras como couraça. Ao levantar um pouco a minha cabeça, pude ver meu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas. Minhas numerosas pernas, patas, lastimavelmente finas com relação ao volume do resto, tremiam desamparadas diante dos meus olhos. “O que aconteceu comigo?”. Eu pensei.”

(silêncio)

ROBSON
O que tem acontecido comigo desde sempre? É muita mutação pra chegar pelo menos nos trinta anos. Imagina então nos noventa. Isso me inconforma. Quando os altos e baixos se tornarão linhas retas? Quando, caralho?

(ele pega o violão novamente)

ROBSON
“Mas sou assim
Um tanto estranho
O que diabo eu faço aqui?
Eu não pertenço a esse mundo.

Ela corre para longe
Ela foge
E fode, foge, fode, foge...”

(ouve-se o som da máquina que indica um coração parado; Robson não entende; longo silêncio)

ROBSON
Caralho, morrer é mais difícil que viver. No fim da primeira parte eu decidi não ir. Fiquei. Mas sempre dá tempo. Inventei uma desculpa de que tinha cursado Engenharia e tentado a vida comum. Comum, quando eu digo, é fora dessa porra louquice de vide artística. Mas aí eu fui, gente. Eu fui! No fim das contas, acabou a porra das apresentações e eu fui. Terminei os estudos e saí pra vida. Me mudei pra (com uma ênfase idiota) São Paulo. Eu chupei em São Paulo. Caguei nas privadas de São Paulo. Perdi meus traumas invejosos e decidir fazer o que eu gosto de fazer não era mais a grande questão da vida. “Ser ou não ser” passou a ser clichê demais. E aí eu fui. E os natais continuaram os mesmos, mais especificamente em dezembro, sempre. A mala da insegurança ficou pra trás e eu troquei de roupa de novo. O problema maior é que todas as roupas possuem pelo menos quase o mesmo formato: um buraco pra cabeça e dois pros braços. E aí eu fui. E do mesmo jeito que eu estava indo eu estava ficando. A diferença é que agora o registro profissional na carteira não podia mais me deixar mentir ou inventar. A porra agora já é essa. Essa é a porra da coisa, agora. Não tem beirada pra escapar. Não tem porque tentar voltar em dois mil e onze, por exemplo.

(silêncio)

ROBSON
Eu decidi até que iria mudar de nome. Já me chamei Gregório uma vez. Mas é assim que funciona o teatro. Cada vez é uma vez.

(Robson se vê cercado por um foco)

ROBSON
Caralho, velho. Olha onde é que eu tô. Puta que o pariu. Me bate um deja vu. Um deja vu de uma experiência que ainda nem existiu.

(ele grita com a raspadinha em uma das mãos)

ROBSON
Não! Não acredito, não acredito! Ah, meu deus! Ah, meu deus! Não acredito! Eu ganhei, caralho, eu ganhei! (gargalha alucinado) Não é possível, eu devo estar sonhando. Não é possível. Eu não acredito, caralho. Setenta mil! Setenta mil, porra! Eu sou foda! Vou comprar uma filmadora! Tirar meu nome do Serasa! Caralho, velho, caralho! Eu sou foda, porra! Agora o que eu faço? Eu tenho que ir na Caixa. Amanhã cedo. Caralho, caralho. Eu não tô acreditando, meu deus. Foi deus quem fez isso, não é possível. Ele existe sim. Não é possível.
Amanhã, então. Cedinho eu vou abrir a porra daquele banco!

(silêncio; ele vai desanimando aos poucos sem saber o que fazer naquele instante)

ROBSON
Ufa. Jesus amado. Eu não acredito nessa certeza de ter setenta mil reais na mão. Só pra mim. Meu. Merecido pela porra da sorte. Caramba, cara, que incrível essa sensação.

(silêncio; longo silêncio; Robson apenas respira ofegante)

(black-out)


CENA II

(as luzes se acendem e Robson está na mesma posição esperando a manhã chegar)

(black-out)


CENA III

(Robson entra fantasiado bem colorido)

ROBSON
Olha esses prédios. Esse céu. Olha pra essas pessoas. Olha pra mim. Me adicione no Facebook e veja quem eu sou. Que tipo de coisas compartilho e defendo. O mundo é sensacional demais pra se matar no final das contas. Eu sou sensacional. (ri tonto) Não, gente. A morte não é a melhor e única saída para seus problemas. Death is not the better and even the only way to solve your problems. A morte é a razão pra vermos beleza nisso tudo. E agora me sinto tão mais otimista. Comprei roupa, viajei, comi merda, dei duzentos reais pra cada um dos meus irmãos, só não ajudei a família necessitada porque não sobrou. Se fosse os sete milhões da mega, aí não seria problema. Mas setenta mil não dá pra quase nada.

(ele se vira para o espectador que puxou antes)

ROBSON
Amigo fútil. Quer dez reais emprestado? É a sua parte do cachê. Toma. (ele entrega) E pra você também. (entrega dez reais para a espectadora) Quase o preço do ingresso, olha que legal.

(Robson se vê preso em um foco e canta)

ROBSON
“Em dois mil e onze
A minha crise era outra
Entrar num palco era brincadeira
Isso passou
Em dois mil e catorze
Eu conheci os meus problemas
Coçar o saco, expor a merda alheia
Deus, quem eu sou?

Meu pai avisou
Pra eu ralar
Ai, meu senhor
Ele avisou”

(silêncio)

ROBSON
Sabe os finalmente? Então. Finalmente. Cheguei. Cheguei nos finalmente só que ainda não é finalmente nessa porra. Porque só vai ser quando der um black-out e não voltar. Quando apagar a luz e ninguém agradecer. Aí acabou. Aí sim será finalmente. Muita gente não vê a hora que isso aconteça. Tudo bem. Ninguém tem que gostar do que a gente tem pra falar. Talvez sintam até pena desse desespero humano transformado em língua e ações imbecis, que não tiveram nenhuma referência dramatúrgica inteligente. Pobre da vítima que eu sou das minhas próprias opressões. Pobre. “Eu vou fazer teatro, vou fazer cinema, vou passar maquiagem como rotina, vou beijar mulher, beijar homem, vou fazer novela – se der na telha, vou fazer o caralho a quatro quando eu me mudar pra grande e maravilhosa terra da garoa. É isso que eu vou fazer. E eu só preciso de um registro profissional pra me indicar pra sorte da vida.” (pausa) Burro. A geração dos anos noventa é essa. Sonhadora. E no final do dia todo mundo caga, e no final da vida todo mundo morre. É a única coisa certa que não decepciona jamais.

(repentinamente, Robson abaixa as calças)

ROBSON
Daquela vez eu não consegui ficar de pinto duro em cena. Agora são outros tempos. Vou bater uma punheta com o pinto duro e pra fora.

(ele tenta)

ROBSON
Seria mais fácil se eu tivesse uma ajuda. Não é fácil ficar excitado com toda essa gente olhando. Espere um pouco.

(vai tentando)

ROBSON
Pode parecer nada a ver eu ter mostrado o pau agora. Mas pra mim faz todo sentido porque a punheta foi um grande passo na descoberta – que eu ainda não cheguei a descobrir direito, lógico. Vocês me permitem ver algum vídeo pornô pra ajudar?

(num telão, um filme selvagem explode a cena)

ROBSON
Agora sim. Quem ficar com o pau duro também, pode mostrar, sem neura. Sou profissional o suficiente pra entender que mais gente que eu também necessita chamar a atenção. Fiquem a vontade.

(ele assiste um pouco do filme)

ROBSON
A punheta foi um grande passo da evolução. Eu vi isso numa tese. Mentira, eu acabei de inventar isso. Mas acho que foi mesmo. Sexo tem tudo a ver com tudo. Queria poder não precisar esconder o pinto na rua. Se fossemos o tempo inteiro pelados metade dos preconceitos se perderiam. Bem. Acho que não vou conseguir mesmo. Teatro é teatro, vida real é vida real. Eu podia até fingir, como da outra vez, mas o finalmente jamais chegará em cena. E nunca eu vou conseguir expor isso do jeito que eu acho que seria mais expressivo e explicativo. Ser existencial tem suas regalias. Pelo menos na teoria, né? (pausa) Agora eu já sei que deus não me julga por uma gozada. Não, ele não existe.

(black-out)


CENA IV

(Robson entra cantando sílabas que no fim se tornam risadas – pode ser alguma ópera clássica)

ROBSON
Chupa, tia! E eu nem fiz curso específico!

(silêncio)

ROBSON
Amantes e estudantes de teatro, não se baseiem em sonhos infantis na vida de artista. Fazer isso tem outro sentido. Não é brincadeira, não é passar um tempinho. Quem se perde nessa loucura é pra não voltar mais e vai sempre ter alguma coisa incomodando. Sabem o drama? Então. O drama acontece vinte e quatro horas. Eu fui dramático em dois mil e onze, mas um drama adolescente e imaturo. Eu sou dramático hoje, e espero que daqui três anos eu decida fazer uma terceira continuação e que eu esteja pensando totalmente diferente, e que eu olhe pro eu de hoje e me ache um infantil imbecil. “Tolo é aquele que não sabe querer melhorar.” Gabriel, capítulo vinte e quatro, versículo dois mil e quinze. E lembre-se: nunca chegará nos finalmente enquanto a morte não bater bem no meio do encéfalo. Se não quer ter problemas e crises no ciclo redondo do aprendizado, morra. O fim disso é um black-out, repito.

(black-out)

ROBSON
Não ainda, porra.

(as luzes voltam)

ROBSON
Eu ainda tenho um cigarro pra fumar. Foda-se os altos e baixos de um espetáculo também. Quem decide que uma pausa dramática deve ser descartada?

(ele fuma um cigarro INTEIRO em silêncio)

ROBSON
Agora sim.

(black-out)


CENA V

(ouve-se um copo quebrando)

(Robson entra correndo com o pulso sangrando)

ROBSON
(envergonhado e nervoso) Alguém! Ai, caralho! Alguém tem um telefone pra emprestar? Eu tentei me matar, mas demorou. E agora eu meio que não quero mais. Será que dá tempo? Eu acho que eu não perdi muito sangue, foi só... foi só... (cai desmaiado)

(música trágica; um foco fecha sobre o corpo)

ROBSON
O ciclo. O início se repete. Me parece um tanto absurdo. Não dá pra morrer, nem de desgosto,  mais de uma vez. Morreu, morreu. (pausa) Minha respiração já está tranquila porque já me acostumei com vocês aqui.

ELA
Robson?

ROBSON
Me deixa morrer em paz!

ELA
Sua mãe está aqui conosco. Ela veio assistir o espetáculo.

(ele se levanta)

ROBSON
Para com isso. Não brinca com essas coisas.

ELA
Ela tá sentada ali no fundo.

ROBSON
Mas a minha mãe já morreu, todo mundo soube disso. O encéfalo deu problema.

ELA
Não sei. Só sei que ela está sentada naquela cadeira vazia.

(um foco destaca uma cadeira vazia)

ROBSON
Mãe? Mas... O que? Eu sabia que era uma conspiração. Eu sabia que um dia você ia chegar e dizer que aquela morte tinha sido brincadeira. Você foi bem egoísta, viu. Acabou com seus problemas, mas me trouxe diversos. Justo? Não, não foi. (pausa) Não sei se eu te abraço ou se dou um murro na sua cara. (ele ri) A morte é uma coisa boa? (gargalha) Será mesmo? Alivia? Ah, não pra você, é isso? Alivia os outros? Aham. Sei. (ele ouve algo; gargalha; explica para a plateia) Minha mãe tá dizendo que as pessoas morrem para o bem das outras. Que elas sofrem pelo bem das outras. Por exemplo, a tal da Maria da Penha, a pessoa, não a lei, infelizmente teve que ver que seu nome virou um símbolo pela luta contra a violência contra a mulher em uma cadeira de rodas; não que justifique a violência e a tragédia, mas que algo mudou com o fato de ela ter passado pelo que passou. E assim vai. Esse foi o exemplo que ela deu. Que pessoas morrem pelo bem das outras, que tragédias acontecessem pra que nos acorde em alguns assuntos. Se eu aprendi alguma coisa em ser órfão de mãe? Aprendi que ninguém ama você de verdade como ela te amava. E aí sim você vira um completo solitário. Um jovem sem mãe é um jovem sem amigos.

ELA
Eu sou sua amiga e amo você. Você nunca precisará mais se sentir solitário?

ROBSON
Cadê você, então? Por que você não entra aqui e me dá um abraço. Ou me empresta logo uma grana? Por que você não entra e me assume em público? Eu nunca precisei de palavras porque sou eu quem gosto de falar. Eu quem preciso estar sozinho no foco e que preciso de uma peça completamente minha pra poder me explicar. Só eu. Você não está aqui comigo pra ser minha muleta. Talvez eu nem precise mais de uma muleta. Não querendo perder a humildade, mas eu me viro bem sozinho, acho.

“Ela corre para longe
Ela foge
E fode, foge, fode, foge...”

Foder é tão bom. (ele vai saindo) Preciso beijar alguém na boca. Pra me sentir quente. (sai) Valeu, mãe!

(black-out)


EPÍLOGO

(um vídeo mostra Robson andando por vários lugares conhecidos de São Paulo; depois de minutos de caminhada, ele para em um viaduto)

VOZ DE ROBSON
Eu faço aquilo que eu mais amo. Consegui ganhar na loteria na visão de algumas pessoas. Mas não consegui chegar no “ufa!”. Desse jeito, com tanta coisa fritando parte do meu encéfalo, sei lá onde é que eu vou parar.

(ele sobe no parapeito do viaduto; Robson entra em cena correndo e interrompe o vídeo)

ROBSON
Não! Para! Oh, meu deus. Eu nunca fui tão pessimista. Quem me conhece sabe que eu até li e divulguei o tal do Segredo. Eu não sou assim. Eu não sou esse depressivo. Eu não tenho coragem de me matar e a discussão talvez nem seja essa. Não é o medo. É a coragem. E ter coragem nunca é o suficiente. Eu vivo na base de uma carência completamente egoísta. Talvez essa cena dramática toda é só pra alguém poder sentir pena. Pra chamar atenção. Como todo mundo que faz cagada na vida pensou um dia. (pausa) Eu queria poder chegar nos noventa. Mas morrer aos vinte e sete seria sensacional se eu fosse uma estrela do rock. No mais, assim como Beckett sugeriu, basta esperar. É a única coisa que temos a fazer.

(Robson se levanta)

ROBSON
Então vamos? Vamos.

(silêncio; a luz cai em resistência exageradamente lenta)

(black-out)

FIM




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