QUEM TEM BOCA, LOGO EXISTO

QUEM TEM BOCA, LOGO EXISTO
Texto de Gabriel Tonin

PERSONAGENS
HAHA
ÉMEU
PASSARINHA

CENA 1

(Haha entra correndo e abraça a parede)

HAHA
Caralho, que lindo!

(Ele grita exageradamente maravilhado com todas as coisas em cena)

HAHA
Que lindo, que lindo! Que coisa linda! Olhem isso. (ele liga um liquidificador e se maravilha com o barulho) Olhem isso! (gargalha extasiado dançando pelo espaço) Uau. Uau, meu deus.

(Ele se interessa por um baú destacado em um foco; o baú está cheio de terra)

HAHA
Gente. Tá cheio de terra. Um baú cheio de terra! O que é que tá acontecendo aqui?

(Haha cava e encontra um rato morto; cava mais um pouco e encontra uma maçã; ele come a maçã com muito gosto)

HAHA
Gente. Que coisa, não?

(no meio de uma mordida, ele fixa sua atenção repentinamente em um espectador)

HAHA
Você. Você por aqui. Caramba. É lindo, não é? Você é lindo/a também. É lindo deixar as coisas lindas, não é? Eu me apaixono por cantos, olha só esse daqui! (ele corre para um dos cantos e se senta) Olhe a visão desse lado de cá. Essa perspectiva da coisa. É única. Cantos me dão a sensação de que “nunca alguém sentou aqui antes, nunca ninguém olhou por essa perspectiva”. Eu vou cantar. Cantar é lindo. (ele se concentra) Peraí, que eu tô com vergonha. Calma, eu vou me soltar.

(ele começa tímido; vai sentindo a música aos poucos até ficar confiante; Émeu entra observando com graça)

HAHA
“Você, bebê, era como o mar
Me afundou
Não deixou voar
Foi como o que disse pra mim
Que medo que dá

Era uma casa lá
Me segurei, no lavabo, lá
Meu deus que medo que dá

Não era tão fácil assim
Nascer sem dim dim
Foi como o que disse pra mim
No começo e no fim

Era uma casa lá
Não vai cair, dá pra pintar
Que não foi feita pra mim”

(silêncio; Émeu anda pelo espaço medindo tudo; ele se veste como um bom burguês e é um cínico)

ÉMEU
Hum. É meu.

(vagarosamente, Émeu retira uma fita de uma maleta e cerca seu território, empurrando e deixando Haha pra fora da maior parte; por fim ele mija pelo espaço)

HAHA
Ai, seu porco! O que você tá fazendo? Depois vai ficar fedendo, pô! E quem é que vai limpar? Eu, né? Sacanagem. (sai pegar um balde)

ÉMEU
Limpe aqui pra mim, então, por favor, por gentileza.

HAHA
Eu vou limpar porque eu tô cuidando daqui, não porque você mandou. Já não basta a tarde toda que eu perdi limpando bosta de dez anos do banheiro que transbordou.

(Haha limpa todo o mijo)

HAHA
Sacanagem, cara. Na sua terra sua gente faz isso, é? Tem banheiro aqui, privada. Isso é falta de respeito.

ÉMEU
Liberdade de expressão.

HAHA
Hum. Liberdade de expressão.

(silêncio; Haha termina de limpar)

ÉMEU
Tem alguma coisa pra comer? Alguma coisa diferente de ovo, ou miojo?

HAHA
(se ofende e levanta na defensiva agressiva) O que você quer? (silêncio) Me fala! Vamo parar de enrolação.

ÉMEU
Pode ficar atrás da faixa, por favor?

(Haha obedece inocentemente)

HAHA
Agora me fala. O que é que tá acontecendo? Isso daqui era pra ser um monólogo, eu estive precisando de um momento sozinho, já faz tempo que eu não fazia isso.

(Émeu não tá ligando pro que Haha está dizendo; ele ajeita um canto e retira alguns luxos da maleta)

HAHA
Senhor? Senhor? Você tá me ouvindo ou é surdo? Caramba, gente, ele tá fazendo de propósito. Alguém dá um semancol pra esse lazarento.

ÉMEU
Pode falar. Não precisa ser um diálogo, então. Fale aí. Fique a vontade. Você gosta dos cantos, não gosta?

HAHA
(achando ser um mal entendido) Ah. Mas eu ia usar esse espaço aqui também. Bem aí eu canto a música do final, entendeu? Por isso que eu tô falando. Você pode sentar aqui com esse pessoal, ó.

(silêncio)

(Haha indignado, destrói a demarcação de Émeu; com jogo de luz e sonoplastia, repentinamente Émeu demonstra um lado monstruoso e violento, indo em direção de Haha ameaçadoramente com voz triplicada em gravação)

ÉMEU
É meu! É meu! É meu! É meu! É meu! É meu! É meu! É meu!

HAHA
É seu.

(silêncio; Émeu se recompõe sem constrangimentos e volta para seu canto luxuoso)

HAHA
Eu tinha me esquecido. É dele mesmo. Foi ele quem escreveu e quem me chamou pra participar. Eu tô recebendo em contrato. O espaço é dele. (pausa) O pai dele é o Cabral. O Pedro Álvares. Eu nem imaginava a existência de Roma antes que eles viessem aguçar a ideia de uma possível visita à Europa. Tô juntando dinheiro pra fazer um intercâmbio agora, quem sabe ano que vem, ou no outro. É chique ir pra Europa. (pausa) Eles são todos bonitões, assim mesmo. Paquitões. Aprumados. Eles falam com deus e sem usar chá de raiz, é impressionante, sério. Eu não consigo. Talvez seja por causa da cor deles, que estão em vantagem, segundo deus disse pra eles semana passada. Vai entender esse mundo! Eu não contesto muito porque eu consigo ver beleza até nas coisas ruins da vida. Não que esteja ruim alguma coisa, eu não tô reclamando! Eu aprendo, ele aprende, todos aprendemos com as merdas que acontecem na nossa vida. (Émeu peida em desrespeito; Haha finge não se importar) Cada um que aceite o destino de nascença. Eu vou brigar? Eu vou matar? Quem tem dinheiro vai à Roma. Quem tem boca... fala.

(Passarinha entra magistralmente, cantando em cânone)

HAHA
Um passarinho. Que coisa linda. Eu arrepio com os cantos. Você é lindo, passarinho!

(Haha observa a dança da Passarinha com paixão; Émeu retira uma espingarda de algum lugar e se posiciona mirando na Passarinha)

HAHA
O que você está fazendo? Você tá louco? Não, não, não! Não atire, por favor! Deixe que cante, deixe que cante! Por favor! Não faça uma coisa dessas!

(Émeu atira sem pensar; Haha entra em choque; Émeu vai até o corpo morto da Passarinha e a arrasta pelo espaço; ele a coloca em um canto e mija em cima dela)

HAHA
Uma participação pequena de uma amiga. Perdida assim. Seres vivos coadjuvantes. Esquecidos. Os mais bonitos. Saindo mijados na arte. Não um bonito por padrão. Um bonito por si só. Sendo torto, ou sendo o que for. Só por se mexer. Por respirar e ter memória genética. Coitado. De mim.

ÉMEU
Dá um passinho pra trás, por favor. Mais um.

(Haha obedece e sai do foco, ficando no escuro em um canto)

ÉMEU
Pra quem gosta de cantos; cantos.

(Émeu se apresenta em seu foco com uma reverência exagerada)

ÉMEU
Émeu. Prazer. Posso até parecer um cuzão, mas como disse nosso amigo, tudo é uma questão de ponto de vista, então... Veja bem, a vida não é nada fácil e eu sou da velha teoria de que temos que preservar os mais fortes, continuar com os de melhores genéticas – tanto na questão estética, como nas funções básicas de sobrevivência saudável. Ou seja, nós, bonitos e com herança. Não há espaço na terra pra que todos prosperem – isso já foi comprovado por diversos estudiosos em várias pesquisas, depois eu mostro as fontes. Uns precisam morrer pra que outros sobrevivam. Eu preciso matar o porco pra fazer uma feijoada ou um McBacon. Eu sei que a realidade é uma dura e fria situação, mas vocês não esperam que eu dê de mão beijada as coisas que meu pai deu duro para conseguir, né, só por compaixão aos pobres, né? Eu, de boa família e boa educação, consigo compreender que nem todos chegarão onde eu cheguei, que eu tenho que ser grato por tudo o que eu tive. Mas e eu posso fazer o que? Vou morrer de compaixão de vagabundo que não quer trabalhar e que fica mamando nas tetas dos programas sociais? Que entra no prédio dos outros pra fazer zoeira? Não interessa que isso aqui era moradia de rato! Se o rato mijou, o canto é dele! É assim que funciona o mundo. Meu pai chegou aqui primeiro, meus queridos. Ele ralou pra conseguir manobrar a Vera Cruz, e agora vem uns filhos da senzala querendo “colocar ordem na casa”? Não é assim que faz a coisa, não é assim que muda o mundo. Esses marginais – que vivem na margem da sociedade – pensam que gritar palavras de ordem vão ajudar em alguma coisa. Não é quem tem boca que vai à Roma não, é quem tem dinheiro, meus caros. Vejam bem, eu não sou nenhum monstro insensível. Não tenho como adotar todas as crianças brancas que passam fome pelo mundo, tenho? Eu tenho culpa de as pessoas ainda fazerem filhos sem uma segurança financeira? Eu não tenho culpa. Eu só tenho medo... sabe do que eu tenho medo? Eu só tenho medo de tomar uma facada no meu baço, é isso que eu tenho medo.

(Haha surge cantando com uma bandeira branca)

HAHA
“Bandeira branca amor
Não posso mais
Pela saudade que me invade
Eu peço paz”

(Haha dança ao redor de Émeu; Émeu finge se interessar cinicamente; Haha monta Émeu com a espingarda na mão e faz a clássica posição de um militante colocando uma flor na ponta da arma; Passarinha acorda da morte e canta junto com Haha; os três dançam em paz)

ÉMEU
Isso é que é exemplo de luta. Exemplo de manifestação. Em paz, com danças e músicas de cultura. Sem que os cães precisem colocar ordem com os dentes. Sem bala de borracha e quebra-quebra. Pra que quebra-quebra? Não podia ser tudo assim? Você reclamar o seu direito em paz? É muito melhor assim. É tudo mais fácil desse jeito, ninguém se machuca, ninguém toma tiro. Parabéns pela iniciativa, meu amigo! Paz e amor, brother! Agora dá um passinho pra trás, por favor. (os dois obedecem inocentes) Assim. Você não, você tá morta. Deita aí. (Passarinha deita) Mais um pouquinho pra trás, querido. Isso. Mais um pouquinho. Mais. Isso. Agora pode fechar a porta. (Haha obedece e desaparece) Obrigado.

(Émeu suspira aliviado; ele olha para a Passarinha e tem uma ideia; ele a arrasta até o centro, em um foco que pisca em tensão; ele vira o corpo da Passarinha de costas e levanta seu vestido; abre o zíper e se posiciona em cima dela)

ÉMEU
O que é meu, é meu.

(Émeu estupra a Passarinha enquanto a luz cai em resistência)

(black-out)


CENA 2

(quando as luzes se acendem, Haha está do lado de fora da demarcação que está vazio; Émeu e a Passarinha sumiram e Haha está curioso e insatisfeito com seu espaço; ele se move impaciente pelo espaço que sobrou; em um momento, Haha entra correndo na área de Émeu, mas logo sai com medo; ele aguarda alguma coisa acontecer e repete a cena; na terceira vez ele fica por mais tempo, correndo em círculos e deitando no chão que não é dono; finalmente ele destrói a demarcação por completa, com uma sensação de libertação)

HAHA
É meu também. Depois de tanto tempo isso aqui virou moradia pra rato de novo. Eu vou deixar cheirosinho e limpinho. Vou arrumar esses canos aqui, e vou pintar essa parede. Talvez eu faça um espaço pra apresentações de teatro aqui. Aqui pode ser uma cozinha. Limpinha, sem sangue. Aqui as crianças vão poder estudar, mesmo que os pais delas sejam uns vagabundos, ou mesmo que elas mesmas queiram seguir algum tipo de vida de vagabundo. Não importa. O mínimo é um canto pra dizer como seu.  Para trabalhadores ou não. Para sortudos ou azarados. Isso aqui tava apodrecendo sozinho, oras. Por que diabos tem gente deixando prosperidade virar poeira e entulho no centro da cidade? Uma coisa tão linda como essa. Pra que diabos tem gente com mais dinheiro do que gasta, um dinheirinho que virou dígito cibernético sem uso? 

(ele vai até o baú, cava mais um pouco e retira uma nota de cem reais)

HAHA
Eu sobrevivo um mês. Alguns compram um único vinho mais caro que isso. E eu suei nessa vida o mesmo tanto que esse indivíduo. Não é justo, mas eu me contento com as sobras que ninguém quis mais, com coisas que foram esquecidas. Não tô pedindo que você me dê a sua terra de herança de mão beijada, mas que entenda que um espaço como esse vazio é um desperdício de tempo e de vidas e de senso. Eu só preciso de um cantinho pra dormir e bater punheta em segurança. Com uma ajeitadinha esse lugar vai ficar uma belezura! Vou colocar uma cortina aqui e arrumar essas tomadas. Eu consigo ver beleza nas coisas esquecidas. Eu mesmo me esqueci de muitas coisas pela vida e não tenho nenhum remorso. Levaram meu celular num assalto o ano passado, mas eu já consegui comprar outro. Eu não tenho nenhum apego, talvez aquele garoto precisava mais de uma overdose de cocaína naquela noite do que eu de um celular, quem sou eu pra julgar? Vai saber como foi a vida dele, vai saber se aquela overdose não tenha sido a liberdade para um último descanso, afinal. Vai saber. Eu só tenho medo... sabe do que eu tenho medo? Eu só tenho medo de não dar tempo de todo mundo curtir a vida com dignidade e com muito, muito, muito prazer.

(Haha sente vontade de urinar)

HAHA
Vou marcar meu território antes que alguém o faça. (ele pensa) Não, melhor não. Ainda consigo sentir o cheiro do mijo daquele filho da puta. Melhor sem mijo. Aqui tem banheiro, pra quê?

(ele sai e ouvimos uma descarga)

HAHA
Pra quê se tem banheiro? Aqui eu quero uma vida sem porcaria e cheirosinha, bem cheirosinha. É meu. É meu.

(Haha abraça a parede maravilhado; Passarinha entra cantando)

PASSARINHA
“Era uma casa
Muito engraçada
Tinha entulho
Tinha barata
Ninguém podia entrar nela, não
Porque a casa tinha patrão
Ninguém podia ter uma parede
Sobrando água tem gente com sede
Ninguém podia fazer pipi
Porque o córrego pode subir
Tava lacrada, tava trancada
Cheio de rato, que filho da puta essa patrão.

(um tiro; Passarinha cai morta novamente)

HAHA
Não! De novo não! Eu queria dar uma oportunidade pra você mostrar o seu talento, mas eles não deixam. Na minha próxima história você será a protagonista e protagonistas não morrem. Você é linda.

PASSARINHA
Vocês todos vão aprender com a minha morte. É tudo uma lição.

HAHA
Quantos mais vão precisar morrer?  Mais quantos vão ter que dar a vida e o suor pra sustentar o luxo de poucos? Segundo a segundo alguém morre e são apenas números na estatística. Mas tinham memórias.

PASSARINHA
Genéticas e filosóficas. (encontra uma pena em seu figurino) Olha, é uma pena. (morre)

HAHA
Não tá dando tempo de sentirem o prazer da vida antes de virarem poeira novamente. Mal deu tempo pra um canto inteiro. Tem gente dando mais valor a tijolo.

(Émeu entra tranquilo)

ÉMEU
Boa noite.

HAHA
Émeu!

ÉMEU
É meu.

(Émeu demarca novamente o mesmo espaço; termina e vai mijar de novo)

HAHA
Não precisa! O cheiro da sua essência e assinatura ainda permaneceu. Veja, sinta, impregnou.

(Émeu concorda e não mija)

ÉMEU
O que aconteceu com ela?

HAHA
Morreu.

ÉMEU
Ah, vá!

HAHA
Não deu tempo. Eles vão morrendo enquanto você bebe.

ÉMEU
Foi tiro? Seria melhor chamar a polícia, não?

HAHA
A polícia? Se você tomar um tiro, chame a polícia. Se eu tomar um tiro, chame a minha mãe. Ela era órfã, não tinha família.

ÉMEU
Filho de vagabundo, vagabundo é. Não posso me preocupar com isso agora.

HAHA
Mas quem falou que ela é filha de vagabundo? Em que horas alguém falou isso? O pai dela foi um famoso catador de lixos, trabalhou a vida inteira na região do Anhangabaú. Só não teve tempo pra deixar herança, mas ele fez de tudo por ela enquanto era vivo.

ÉMEU
Catador de lixos, mas podia muito bem ter querido mudar de vida, ter estudado pra dar melhor condições pra filha. Veja o Sílvio Santos! O cara era um camelô!

HAHA
Oras, mas não foi isso que aconteceu! Na vida desse indivíduo aqui morto, desse ser pensante e solitário, não foi isso que aconteceu. Então foda-se quem não conseguiu, Émeu? É isso? Foda-se quem não teve a sorte de ter tido um pai com visão empreendedora?

ÉMEU
Você quer que eu faça o que? Que eu dê meu dinheiro de mão beijada, por amor aos pobres...

HAHA
Não, ninguém quer isso. Eu só queria que a divisão desse planeta redondo, onde todos nós acordamos de um dia pro outro pelados, não fosse tão injusto. Ela mal teve tempo de dar uma fala pra vermos seu trabalho de atriz.

ÉMEU
A vida é injusta, meu caro. Cada um deve aceitar o destino de nascença, pra não sofrer mais. O canto já tá bom.

(silêncio; Haha fica pensativo)

ÉMEU
Agora, dá um passinho pra trás, por favor. Mais um pouquinho. Mais. Aí. Seu espaço, meu espaço. Como se diz?

HAHA
Tá apertado.

ÉMEU
Não!

HAHA
Obrigado, senhor.

ÉMEU
Adoro pobre educado. Pobre também é gente, assim.

(Émeu ajeita seu cantinho luxuoso novamente)

HAHA
Você vai ficar por bastante tempo dessa vez?

ÉMEU
Vou só terminar esse vinho.

HAHA
Quando você sair, eu vou poder...?

ÉMEU
Não.

HAHA

Mas eu nem...

ÉMEU
Não é não.

(silêncio)

HAHA
Você vai alugar?

ÉMEU
Não.

HAHA
Vai reativar os escritórios?

ÉMEU
Não.

HAHA
Vai vir alguém morar ou trabalhar aqui?

ÉMEU
Não, não posso. Não tô em dia com os impostos. É dura, essa vida, rapaz. Você pensa que é fácil? Não é fácil pra ninguém, não. Esse governo pensa que o prédio é deles, só porque eu fiquei devendo alguns dois milhões – por má administração do sócio do meu pai! Mas eu ia esperar o que dessa Dilma e desse Lula? Os profetas já tinham avisado. Enquanto isso, cada um luta pelos direitos que acha direito. Tá aqui minha manifestação. (ele se serve com mais vinho e acende um charuto) Viu?

HAHA
É. Você tá certo. A gente não deve ficar calado mesmo. Você tem o seu direito de se expressar. Quem tem boca...

ÉMEU
Espere que eu quero fazer mais uma vez.

(dá mais uma baforada no charuto e toma mais um gole grande do vinho)

ÉMEU
Agora sim. Pode continuar.

HAHA
Não tenho mais nada pra falar.

ÉMEU
Nem eu. Então tá tudo certo. Obrigado, agora saia antes que eu chame os cães.

HAHA
Sim, senhor. Pode devolver a minha carteira?

ÉMEU
Ah, sim. Deixe eu dar baixa nela. Só um minuto.

(Émeu assina e carimba a carteira de trabalho de Haha)

ÉMEU
Prontinho.

HAHA
Justa causa? Justa causa por que?

ÉMEU
Ah, meu querido. Já não conversamos que essa vida é cheias de injustiças? Você tem que aprender com as perdas na vida, e não se revoltar. Como dizem os bons autoajudas de Jesus nosso senhor, foque sempre nas conquistas e perdoe sempre aquele que te ofendeu e injustiçou. Não se oprima, não se deixe abater. Nosso suor vale diferente, porque além de manter a economia do país estável, nós ainda temos o difícil trabalho de ter que domar vocês, selvagens, diariamente – domar e sustentar, agora com esse PT.

HAHA
Mas, calma...!

ÉMEU
Paz e amor no coração, seja militante com consciência!

HAHA
Eu só tô querendo dizer que...

ÉMEU
Não deixe se abater pela dúvida! Sempre procure pela paz.

HAHA
Deixa eu falar!

ÉMEU
Sem violência! Fale! Você pode ter um monólogo se quiser! Mas dá um passinho pra trás, naquela direção. (aponta a porta)

(Haha, como bom obediente, olha para a saída)

HAHA
Não tem jeito, né?

(Passarinha inicia um cântico triste e Haha caminha em direção da porta)

ÉMEU
Eu amo gente humilde. E não quero mais saber dessa sua cara branca nessa apresentação! Saia logo que eu preciso ir embora, tenho mais coisa pra fazer. Anda! O que você está esperando?

(Haha para em silêncio)

ÉMEU
Pode sair. A porta da rua é serventia, meu querido. E pode levar essa daqui junto. (aponta para a Passarinha) Deve tá cansada de ficar aqui, já. Vão montar um musical que vocês ganham mais.

HAHA
Não! Eu não vou sair! Eu não vou sair! Você pode me arrastar, mas eu não vou sair! Pronto, acabou.

ÉMEU
O que?!

HAHA
Agora, eu só saio daqui morto! Eu não tenho pra onde ir. É meu canto! É meu esse canto! Esse canto é meu por direito!

(Émeu perde a postura simpática e se levanta ameaçadoramente)

ÉMEU
(monstruoso) É meu! É meu! É meu! É meu! É meu! É meu!

(Émeu pega Haha pelo cangote e o coloca pra fora sem dificuldade; ele tranca a porta finalmente; suspira aliviado)

ÉMEU
Chega. Cansei.

(ele vai até a Passarinha e a levanta)

ÉMEU
Vamos, querida. Eu e você faremos uma viagem.

PASSARINHA
Uma viagem? Uma viagem pra onde?

ÉMEU
Pro Vaticano. Eu sou bastante católico.

(ela se segura dos braços dele)

ÉMEU
O que foi? Vamos!

PASSARINHO
Meu corpo, minhas regras.

ÉMEU
Nada disso, minha linda. Isso é papo de criança, papo de menina nova. Não entre na onda das pessoas sem escrúpulos. Venha.

PASSARINHO
Não. Meu corpo. É meu.

ÉMEU
É meu.

PASSARINHO
É meu! Meu corpo é meu!

ÉMEU
(grita raivoso) É MEU! É MEU, É MEU, É MEU! PAREM COM ISSO!

(silêncio)

ÉMEU
(se recompõe) Vamos querida. Assim como diz o ditado, quem tem boca...?

PASSARINHO
Come cru.

ÉMEU
Vai a Roma, queridinha. Vai a Roma. Vocês marginais são todos burros mesmo.

(eles caminham em direção à saída)

ÉMEU
Agora sou eu quem vou cantar uma musiquinha pra você: “Ô, coisinha tão bonitinha do pai, Ô, coisinha tão bonitinha do pai. Você vale ouro, todo o meu tesouro...”

(eles saem; black-out)




CENA 3

(Passarinha, continua a música de Émeu, mas com um tom mais bonito; quando a luz acende, vemos que ela canta para uma flor que nasceu no baú)

PASSARINHA
“...Vou lhe amando, lhe adorando
Digo mais uma vez
Agradeço a deus por que lhe fez
Ô, coisinha tão bonitinha do pai
Ô, coisinha tão bonitinha do pai
Ô, coisinha tão bonitinha do pai
Ô, coisinha tão bonitinha do pai

Charmosa, você é tão dengosa
Que só me deixa prosa
Meu tesouro, você vale ouro
Agradeço a deus por que lhe fez
Ô, coisinha tão bonitinha do pai
Ô, coisinha tão bonitinha do pai
Ô, coisinha tão bonitinha do pai
Ô, coisinha tão bonitinha do pai “

(Haha entra correndo)

HAHA
Eu penso! Eu penso! Linda, você pensa. Todos nós pensamos! Você pensa, você pensa! Você também pensa! Nós pensamos! Sabiam? A gente pensa, gente! Todos nós que respiramos pensamos, cada um do seu jeito.

PASSARINHA
Plantas não pensam.

HAHA
Pensam, agem. A gente é que não entende. Sentem dor. Crescem. Sofrem sede. Morre.

PASSARINHA
Mas ninguém tá nem ligando pra essa belezura. Muito menos depois que morre.

HAHA
Você tá ligando. Logo, ela existe. Ela existe, bonita.

(silêncio)

PASSARINHA
Eu não queria falar nada, mas eu acho que esse baú é mágico, sabia? É moradia de rato, mas ainda dá fruto. Sabia disso?

HAHA
O problema mesmo é que tem gente que prefere deixar a fruta estragar na geladeira do que dividir com os irmãos. Dizem que se joga mais comida fora do que se come nesse mundo, e com tanta gente ainda tendo que revirar o lixo pra saber o que é uma batata. Não é um absurdo?

PASSARINHA
É um absurdo.

HAHA
Vamos transformar esse espaço aqui num centro cultural, o que você acha? E a gente vai abrigar trabalhadores e vagabundos, porque todos tem o direito de ao menos o mínimo para a sobrevivência. E ninguém nessa vida fica coçando o saco por muito tempo, não é mesmo? Quando se há liberdade pra se fazer o que dá prazer, o mundo muda, as pessoas se envolvem num desenvolvimento que não necessariamente precisa ser um crescimento de áreas urbanas; mas num desenvolvimento de bem estar social, um bem estar para os que estão vivos e respirando.

PASSARINHA
Você é muito sonhador. Eu sei que isso daqui é pra deixar a coisa um pouco mais lúdica, mas na vida real nada é tão lindo assim.

HAHA
A gente pode fazer com que fique lindo. Eu pinto essa parede aqui, coloco uma cortina aqui...

PASSARINHA
Esse lugar já tem patrão, meu amigo.

HAHA
Eu sou patrão do planeta terra assim como ele acha que é. É só a gente achar que é, oras!

PASSARINHA
Não é assim que funciona.

HAHA
Mas agora você vai desistir? Justo agora? Talvez ele nem volte mais. Talvez ele se esqueça desse monte de tijolo de uma vez por todas. Vamos ser patrão de nós mesmos, bonita! Deve ser divertido, não?

PASSARINHA
Meu corpo.

HAHA
Seu corpo, seu direito por espaço.

PASSARINHA
Meu corpo!

HAHA
Seu corpo! Todo seu!

PASSARINHA
MEU CORPO! MEU!

(eles terminam num abraço)

PASSARINHA
Obrigada por esses segundos.

HAHA
Você é linda.

PASSARINHA
Mas vamos trabalhar. Já tá quase na hora do meu turno.

(silêncio; Haha tem um senso de realidade)

HAHA
(desanimado) É. É verdade. Eu também já tô atrasado.

PASSARINHA
No fim de semana a gente tenta de novo, quem sabe.

HAHA
É. Tem razão. Puxa, eu me esqueci! Eu fui demitido.

PASSARINHA
Nossa, mas e agora? Pegou o seguro?

HAHA
Não, ele me deu justa causa.

PASSARINHA
Fodeu, hein.

HAHA
Fodeu.

PASSARINHA
Bom, beijo, querido. Eu tenho que ir. Obrigada pela participação. Valeu, gente, aplausos só no final.

(Passarinho sai; Haha fica pensativo sozinho; ele olha por todo o espaço com certa desistência)

HAHA
Fodeu. Eu já nasci e fodeu. Basta ser de uma cor diferente pra sentir a “fodição” injusta desse mundo, veja só como somos seres ridículos. Eis uma vida que eu não posso ser azul, por natureza. Acho que essa parede precisava de uma retocada. O mundo inteiro precisava de um retoque. Talvez ainda uma intervenção alienígena, uma catástrofe global, ou sei lá. O mundo humano não tem mudado com a beleza de uma flor em expressão de batalha e nem vai mudar assim. Parece-me mais que a gente só aprende com a dor, com o não, com o erro, com as perdas, com as merdas transbordando e batendo na bunda. A gente e eles também. Eu sou totalmente contra as violências, ou formas violentas na luta. Mas existem situações que ainda não há jeito. Se ele bate na minha cara, uma hora eu me irrito porque eu não sou Jesus. Se ele come e dorme tranquilamente e ainda assim insiste em alguns luxos egoístas, é meu direito pegar o que me negaram de nascença.

(de dentro do baú ele retira uma faca; Émeu entra subitamente)

ÉMEU
Papo de ladrão, comunista, vagabundo! Vai trabalhar, filho da puta, e pare de invejar as conquistas dos outros. Vai, querido, dá mais um passinho pra trás que o papai chegou.

(Haha ameaça Émeu)

HAHA
Passa o celular, playboy! O celular e a maleta! Acabou a putaria!

ÉMEU
Calma, pelo amor de deus! Não precisa disso, rapaz!

HAHA
Anda logo! Anda logo!

ÉMEU
Amigo, você pode sair dessa vida! Basta querer!

HAHA
Passa o celular, caralho! Eu não vou falar duas vezes antes de furar o teu baço, seu filho de uma puta!

ÉMEU
Por favor, calma. Tá aqui. (entrega o celular)

HAHA
A maleta! Passa a maleta também!

ÉMEU
Toma, tá aqui. Mas o que você vai fazer com isso?

HAHA
Vou trocar por cocaína.

ÉMEU
Meu deus. Mas, brother, drogas não é o melhor caminho...

HAHA
Brother é o caralho! Quem sabe uma overdose aqui, outra ali, finalmente não me traz a tranquilidade e o descanso que eu tanto preciso dessa vida? Não há mais jeito, não tenho pra onde ir, não tenho herança de pai e mãe, não tenho um banheiro pra bater a minha punheta. E vocês ainda querem atrapalhar! Não tenho nada e não foi por falta de suor.

ÉMEU
Lembre-se, a luta armada é coisa dos ignorantes. Lute pelos seus direitos, mas lute com paz e amor. Faça amor, não faça guerra. Você não vai chegar a lugar nenhum com esse ódio no coração.

(Haha, irritado com a hipocrisia de Émeu, enfia a faca na região do baço do patrão)

HAHA
Paz e amor é a minha rola.

ÉMEU
Meu baço. (morre repentinamente)

HAHA
Meu deus, que medo que dá. Não existe esse negócio de respeitar a liberdade do outro de mijar na sua cara.

(black-out)


CENA FINAL

(vídeo em um telão; vemos um daqueles programas sensacionalistas que se dizem jornalísticos (assim como Cidade Alerta, Brasil Urgente, Datena, Marcelo Resende e afins); a repórter entrevista Haha que está algemado de cabeça baixa)

REPÓRTER
Marcelo, estamos aqui agora com o marginal que tirou a vida do empresário. Olá, você poderia nos dizer por que matou o senhor Émeu? Por que tanto ódio a ponto de dilacerar o baço dele? Você não se arrepende? Você sabia que ele era pai de dois filhos? Você sabia disso? O que você tem a dizer pros filhos dele agora? Você mata, acaba com a vida daquela família e agora tá com vergonha de aparecer, é isso? Pode filmar sim, filma bem a cara dele. Vagabundo só tem vergonha de aparecer, mas na hora de roubar e matar é bem macho, não é? Fale alguma coisa, o Brasil inteiro quer saber quais foram os motivos desse crime brutal. Quais foram os motivos? Na verdade, nada justifica, não é mesmo? Mas quais foram os seus motivos? Você tem ódio da classe alta? Você se inveja, é isso? Tem que trabalhar, vagabundo! E agora vai trabalhar atrás das grades, bonitão! Vagabundos como você só tem um destino de nascença! É a prisão! Fale alguma coisa, você não tem vontade de pedir desculpas? Não sente ao menos algum remorso? Vamos, a sociedade espera alguma resposta, vagabundo!

(Haha fixa a câmera se preparando pra dizer alguma coisa; expectativa da Repórter)

REPÓRTER
Então?

HAHA
Eu quero mais é que vocês se fodam.

(silêncio; sem jeito, a Repórter vira-se para a tela)

REPÓRTER
Mal educado. Marcelo, é com você.

(black-out)


FIM



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