A PEDRA DO GÊNESIS: POR ONDE E COM QUEM ANDAS, JESUS? (Versão 2)



A PEDRA DO GÊNESIS:
POR ONDE E COM QUEM ANDAS, JESUS? (versão 2)

Texto e montagem de Gabriel Tonin



MONÓLOGO de QUATRO ATOS

CENÁRIO: Um deserto com pedras.

ATO I

(enquanto a plateia entra, uma música ambientaliza um tipo de saga, grande aventura; no telão vemos imagens rápidas de Jesus, o mesmo artista que faz o personagem ELE, em cenas icônicas da história de Jesus como se é conhecida; logo após o terceiro sinal e alguma mudança na luz, ELE entra vestido ainda como o clássico Jesus, com o capuz escondendo boa parte do seu rosto, e tentando não ser reconhecido ao máximo; há o encontro do demônio com Jesus no deserto em vídeo, mesclando com a cena no palco; ELE, diferente do que conta a história, dessa vez realmente transforma uma das pedras em um sonho de padaria bem bonito e suculento e também transforma a água de um copo em vinho; ele se senta em uma poltrona confortável que antes era uma pedra, e se sacia)

ELE
CVC. (pausa; canta) “Chegueeeei, tô preparada pra atacar”. (ri) Agora começa a parte que é ficção, tá bom? E também a liberdade poética e de crença pessoal e intransferível que todo mundo aqui dentro tem por direito. Desde que não interfira na liberdade do outro, óbvio. (pausa) Eu prometo não fugir do tema proposto, tenham paciência. Ciência, é isso, né? Prometo não fazer como Tchecov – olha lá uma referência bonita, gente! – e não falar absolutamente nada sobre os malefícios do tabaco numa peça de nome “Os Malefícios do Tabaco”. É que tá tudo englobado, e é tudo muito complicado, e Tchecov não tem nada a ver, foi um devaneio pra criar certa credibilidade acadêmica, confesso. (pausa; inicia o teatro) Exatamente há cada trinta e três anos, um ser humano híbrido das estrelas, da criação e do criador, vindo de naves interestelares, gerado por inseminação artificial, costumamente em jovens virgens – vale ressaltar que essa regra tem sido extinta já há algum tempo, vide a discussão sobre misoginia, e evolução, estamos em novos tempos, graças às deusas – esse avatar dos deuses vem ao nosso mundo para ser mártir e trazer alguma influência híbrida ao mundo! Nesse meio tempo, com base no livre arbítrio que também lhe é concedido, tanto para o bem como para o mal, esse ser humano divino e geneticamente um tanto mais evoluído tem sido parte da história de cada geração específica, hora sendo mártir, hora sendo monstro. Eu nasci em 1987. Tenho três anos ainda pra escolher pelo que que eu vou morrer. O que é que tá importando nesse momento. Eu também sou uma reencarnação de Jesus, como é Buda, como é a moça transexual da peça que foi censurada agora a pouco – não sei se vocês viram. - , trago uma mensagem, fiz Jesus na Paixão de Cristo, como vocês puderam ver. Por alguns anos. Depois fiz o capeta tbm. Sou eu me interpretando há dois mil e dezessete anos depois. Vocês podem achar tudo besteira, é tipo o papinho de Inri Cristo, mas no fundo tem uma base científica. Garanto, mas não posso provar. Fé. Não é isso? É uma loucura essas coisas de teatro moderno, vocês tentem entender o contexto e o medo e a raiva do artista aqui presente. Eu venho tomando tapas na cara como era previsto, mas eu não tô conseguindo não revidar...

(alguém o chama pra comentar algo em seu ouvido)

ELE
O quê? (ouve de novo) É pra eu tomar mais cuidado? É isso? (ouve mais) Há muita gente conservadora aqui, é isso? Entendi. (pausa) Amigos, o tapa na cara inicial não fui eu quem dei. E quem disse pra dar o outro tapa foi aquele de dois mil anos atrás. Tacaram gente na fogueira, e ainda tacam! E eu então dessa vez transformei a pedra em pão. Eu caí em tentação. Eu rebato o tapa. Eu sou da paz, mas eu luto por ela, com dente também. E talvez seja por isso que eu vou dedicar a minha tão estimada morte. Eu vou morrer lutando pelo ideal que acredito. (ele mostra uma camiseta do Che Guevara) “Jovens”, dirão. Pra mim eu tô vestindo a camiseta mais cristã possível dos últimos tempos. É o que posso dizer. Os incomodados que se retirem. É o personagem ditado Jesus sendo esquerdista e socialista, como sempre foi. “Oh, céus, heresia! Estão usando o nome dele em vão e dizendo que é arte com a Lei Rouanet!” Quem me dera a lei Rounet. (pausa) Querem mais citação? Querem referência pra dar credibilidade? Tenho uma. “O fervo também é luta”. McQueer, 2016, um Mc funkeiro e gay.

(ele é enfim crucificado; enquanto a cena acontece vemos imagens de homofobia no telão; há um microfone na cruz)

ELE
Eli eli lama sabactani!

(uma música começa, o playback original com backing vocals; um tanto brega, mas não caçoando, sendo brega propositalmente)

ELE
(canta) Se tudo que existe é Teu
Dono do céu, da terra, do mar
Se a fé é crer no que é incrível
Te pergunto
Onde estás?

Se o mistério do tempo é infinito
E o homem não entende onde vai
Se a história do mundo é sem respostas
Te pergunto
Onde estás?

Onde está Deus?
Está nos olhos de quem sofre?
Está nos olhos de quem chora?
Está nos olhos de quem espera?
Onde está Deus?
Está nos olhos de quem nasce?
De quem ri e de quem ora?
Onde está Deus?

Se estamos condenados a ser livres
Que preço pagamos por viver?
Injustiça, solidão, guerras e fome
Te pergunto
Onde estás?

(por baixo do capuz Ele revela uma tromba de elefante)

Por que, Deus? Por que, Deus?
Pra uns é "sim", pra uns é "sim"
Pra outros "não", pra outros "não"
Por que, Deus? Por que, Deus?
Somos o ódio, somos o ódio
E o amor, e o amor
Por que, Deus?
A mesma mão que dá carinho é a mesma mão que fere

Onde está Deus?
Onde está Deus?

Enquanto alguém faz nada da sua vida
E um outro está preso no poder
Quando muitos não encontram a saída
Te pergunto
Onde estás?

Por que, Deus? Por que, Deus?
Se és a luz, se és a luz
Se és o sol, se és o sol
Por que, Deus? Por que, Deus?
Se és a noite, se és a noite
Se és a dor, se és a dor
Por que, Deus?
És a calma no conflito
És a lágrima que rola

Eu pergunto
Onde está Deus?

Pra uns é "sim", pra uns é "sim"
Pra outros "não", pra outros "não"
Pra uns é "sim", pra uns é "sim"
Pra outros "não", pra outros "não"”

(música "Por que, deus?" - Chiquititas; ele sai da cruz com seu poder sobrenatural)

ELE
“I will not be subjected to a criminal abuse”, “Eu não me submeterei a abusos criminosos”, "Yo no me sometió a abusos criminales", "Je ne me soumettrai pas à des abus criminels". (pausa) Citação: “Cloud Atlas” ou “Atlas de Nuvens” de David Mitchell. Há um livro e uma adaptação ao cinema traduzida como “A Viagem”. Tem na Netflix. Enfim. (pausa) Começamos com religião, óbvio, foi assim que a ciência começou, buscando a verdade sobre deus e como tudo funciona. Podemos começar a parte científica agora.

FIM DO PRIMEIRO ATO.


ATO II

(Ele se transforma no clássico Preto Velho, com um chapéu, uma xícara de café, uma pinga; ele fuma e bebe)

"No fundo do oceano existe um baú
Que guarda o segredo almejado desde a aurora dos tempos
Por gênios, sábios, alquimistas e conquistadores
Eu conheci esse baú num estranho ritual reservado a poucos
Hoje eu posso enfim revelar que essa busca de séculos foi em vão"

A pedra do Gênesis
A pedra do Gênesis
Não é o segredo da vida
A pedra do Gênesis
A pedra do Gênesis
É segredo nenhum.

É a escada do seu velho sonho
Que vai dar sempre onde começou
É a chave do maior poder
Que não vale um chiclete
Que alguém mascou, mascou”

“A pedra do Gênesis
A pedra do Gênesis
Não é o segredo da vida
A pedra do Gênesis
A pedra do Gênesis
É segredo nenhum.

É a Pedra de cada dia
Que está no chão de qualquer lugar
Onde o mendigo pisa
E o santo cospe quando passar
Essa pedra”

A pedra do Gênesis
A pedra do Gênesis
Não é o segredo da vida
A pedra do Gênesis
A pedra do Gênesis
É segredo nenhum.

É Deus traçando linhas tortas
É mais um que nasce e começa a morrer
Jogando jogo da velha, o jogo da guerra
Sem poder vencer, sem vencer”

(música “A Pedra do Gênesis” – Raul Seixas; calmamente ele se senta na poltrona e conversa com a plateia)

ELE
Eu estava há pouco menos de um mês, criando esse espetáculo numa madrugada depois de um dia de irritação sobre coisas que aconteceram naquelas semanas e naqueles dias - típico de mim. Eu estava de acordo com um outro texto teatral que já estava pré-estabelecido o formato e o que abordaria, de mesmo nome, com o mesmo tema, mas a diferença estava na abordagaem aquele assunto; havia todo um grupo que estava envolvido e que foi desmanchado, porque muitos não concordaram com o novo formato proposto; cada um com sua ideia e preferência estética. A questão é que eles não queriam participar da baixaria anti-cristã que irá acontecer aqui hoje – desculpe, anti-cristão não, não anti o real Cristo, à favor dele na verdade; anti-falso-cristão que eu digo; é isso. (pausa) Aquele fatídico e maldito dia ordinário, quando rolou notícias absurdas e desfundadas e descontextualizadas e pré conceituadas e inventadas e deturpadas, compartilhada por amigos próximos, e por amigos artistas também, que também querem ter o direito de se expressar por aí! Porra! Tive até que mandar uma mensagem quase meia noite pra minha psicóloga. E o negócio é que foi o seguinte! Eu, depois de muito esculhambar com a família tradicional brasileira nos meus textos - porque isso aqui é dramaturgia - , os valores cristãos pra merda, com deus, com cena de personagem mijando na bíblia, com peças de teatro com cruz enfiada no rabo mesmo, muuuuita masturbação gratuita só pra gozar mesmo, sabe? Aí dessa vez eu tinha decidido que iria pegar na mão do público cristão, sem ofendê-los, sem ser pesado, sem dar tapa na cara – inclusive chamei um músico cristão pra tocar no espetáculo, exatamente pra segurar minhas rédeas. Eu juro, eu juro por mais que tudo nessa vida, que eu ia tentar dessa vez ser bem diplomático, era essa a ideia inicial. Fazer uma peça tanto para religiosos fervorosos, como para gente voltada mais para a ciência, para ateus, satânistas, o que seja. Eu trouxe até o texto aqui, a primeira versão, a primeira ideia.

(Ele pega algumas folhas)

ELE
(lê) A PEDRA DO GÊNESIS: POR ONDE E COM QUEM ANDAS, JESUS? VERSÃO 1, De Gabriel Tonin. Vou ler o trecho final pra vocês, ouçam a pieguice mais ordinária desse mundo.

“A total intenção desse espetáculo era levar a real mensagem de Jesus. Eu, como artista, sempre fui muito subversivo nesse assunto. Dessa vez eu quis ser um pouco mais... diplomático. Foi a única forma que encontrei. Única regra: amor ao próximo. Você pode até pensar que a Terra é plana se quiser. Você tem total livre arbítrio pra escolher entre o bem e o mal, de ser de esquerda ou de direita, de concordar e discordar do que quiser. Total liberdade de discordar do Jesus que a gente apresentou aqui. Mas se você acredita naquele Jesus da história cristã, então não tem como discordar do que foi que ele realmente falou, se foi do jeito que contam. “Amai o próximo como a si mesmo”. Porque você é o próximo desse outro aí que tá sentado do seu lado. (pausa)”Pausa. É só isso. Fim”

(silêncio)

ELE
Olha que fofinho esse garoto! Mas... naquele maldito, poucas semanas depois do cancelamento da exposição "Queer Museu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira", em Porto Alegre, devido a acusações de zoofilia e inadequação moral, outra obra de arte teve suas motivações rechaçadas publicamente. A performance "La Bête" ("O Bicho"), do artista Wagner Schwartz, que integra a mostra 35º Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, apresentado ao público em evento de abertura fechado na última terça-feira, foi acusado de incitar a pedofilia, onde a mãe de uma criança mesmo sabendo que havia nudez havia levado a criança pra experenciar a performance; CRIANÇA É INCENTIVADA A TOCAR UM HOMEM NU EM EXPOSIÇÃO ARTÍSTICA, gritou aquele partideco de molecada, e tudo que a criança fez, com a participação da mãe, foi tocar no pé do ator. Naquele exato dia, pouco menos de um mês, acontecendo tudo que tava acontecendo sobre gente palpitando na arte sem fundamento nenhum e com muita mentira e com muito medo cristão sobre a nossa sexualidade, e gente amada, e gente querida. E foi que eu passei a me sentir um covarde, tomei dois rivotril. Um covarde por tentar a... diplomacia. Agora? Diplomacia justo agora? Eu não podia fazer isso justo agora, justo agora que essa luta mais precisava do meu descaramento cênico - que eu sei que eu tenho! – e eu sei que eu posso dar um tapão na cara! E eu não tenho medo das consequências! Não tenho medo! Arco! Arco! Arco-íris! “Olha como eu sou fofinho com as palavras”. Era um trecho da primeira versão da peça. Eis que foi uma loucura. O dia de hoje estava chegando e tudo estava pré programado, tudo caminhando, eu tinha acabado de finalizar o texto fofinho que passava a mão na cabeça do cristão pra tentar levar uma mensagem de Jesus Jesus e não daquele falso cristianismo, mas eu não queria ser o covarde diplomático bem agora, bem nesse momento. Avisei a organização aqui do evento que seria um espetáculo tranquilo, sem “baixaria” – entre aspas – que eu estava na intensão real de só contar o que foi realmente que Jesus tinha vindo fazer na Terra. E resumindo, o músico fazia um tipo de personagem, e ele era um cara gay que estava sofrendo por ser gay, e Jesus iria contracenar com esse personagem com o que eu penso sobre o que Jesus falaria pra uma confissão sobre homossexualidade. Que amor ao próximo é a única regra. Eis que tudo mudou. Eu prometo não enfiar crucifixo no rabo e nem mijar em bíblia, mas não irei conseguir segurar a temerosa promiscuidade – QUE TODOS PRATICAM – mas que noventa por cento tem medo de falar e de tocar nesse assunto, medo de que nossas crianças tenham consciência do que é e pra que serve o sexo desde sempre pra acabar com a porra do Tabu; de ver um corpo nu, ou de ver uma transexual interpretando uma reencarnação de Jesus numa peça em São Paulo que acredito que ainda está em cartaz e está sofrendo perseguição horrores. “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, dirigido por Natalia Mallo e interpretada pela atriz Renata Carvalho. É mais fácil a mentira. A cegonha. Papai Noel. Deus cruel. (pausa) Eu fiquei com medo sim de dizerem que eu estaria aproveitando o embalo da polêmica, mas o viés político dessa merda toda tem muito mais peso pra mim! E acreditem em minhas palavras ou não! Estamos falando sobre liberdade! Sobre o corpo desnudo! (ele começa a tirar a roupa de Jesus, e revela um jovem moderno; o cachimbo se transforma num cigarro elétrico) Eu não vou ficar nu. Não agora. (pausa) A menina que engravida com doze anos de idade foi aquela que não teve informação! E não o oposto, porra! Agir com naturalidade sobre o que é natural, é o mínimo. E isso desde que nasce. A gente inventa esse medo todo, do proibido, e é por isso que depois acontece merda! Não há pedofilia e estupro na cultura indígena e eles vivem com os bilau e com as buceta pra fora, caralho, cu, mamilos sensuais!

(alguém combinado vem falar algo em seu ouvido)

ELE
Tá bom. Desculpa. (pausa) Porra! Ceis não tem noção da raiva que eu passei naquela madrugada escrevendo esse caralho desse roteiro de palestra misturado com teatro. Eu tô magro assim porque eu acabei de voltar dos quarenta dias no deserto com uma excursão da CVC; todos nós Jesuses temos que passar por essa provação. Enfim. (pausa) Vamos continuar.

(Ele sai e volta com um manequim vestido; ele faz um strip-tease no boneco com muita sensualidade e música; o manequim, por fim, revela ter um pênis)

ELE
Um corpo galera. Anatomia humana. Nós vamos discutir anatomia humana básica, pra misturar a ciência com a ideia de Jesus, e não há do que ter medo. Rapazes, todos vocês possuem um parecido com esse. Alguns maiores outros menores. Tamanho não é documento, não se preocupem com tamanho, é sério, eu tenho experiência. Eu sou um tipo de Jesus bissexual, e não fui o primeiro. Tá meio friozinho assim, por isso que... mas é mediano! Mediano, na média! E Jesus tinha pinto, não tinha? Ou não tinha? Tinha! Tinha pinto. Homem de pinto, tem bunda. As meninas muitas verão um desses um dia e as que não se interessarem - eu até sugiro mesmo, porque homem é realmente muito babaca, e hoje em dia tem compensado pra vocês procurarem por amores em outras mulheres. Tô falando sério e isso é só uma opinião minha, falo pra todas as minhas amigas. O homem nada mais é do que um pedaço de carne em volta do pinto. Vejam. Olha o misândrico que tem pinto!

(Ele tira o pênis e agora o manequim possui uma vagina bem desenhada)

ELE
Desculpe-me o desabafo artístico, eu precisava me livrar dessas roupas. É exatamente isso! Egoísta mesmo. Era coisa comigo, essa libertação, uma libertação, um direito pelo jeito de como eu vim ao mundo. O mesmo direito que qualquer um aqui tem de se levantar da sala e sair. De onde vem o medo do sexo? Eva mordeu a maçã? “Oh, maldita Eva, por que fizestes isso?”, “É que era uma maçã tão prazerosa! Nenhum de vocês resistiriam, acreditem!” (pausa) Deu pra perceber que aqui é onde está a minha covardia perante vocês, né? Podem falar. Era eu quem devia ficar pelado na verdade. Mas eu pensei melhor e achei melhor... é... encontrar outros caminhos.

(Ele engasga de vergonha; quase chora, mas se contém, ele ri)

ELE
Veja que tudo isso fez eu até perder um trabalho esses dias. Eu estava participando como convidado de um espetáculo cheio de adolescentes e crianças. Um espetáculo de fim de curso desses cursos particulares, manja? Que honra! Eu tinha sido convidado pra ser o protagonista, veja que honra! Eu, preocupado com os acontecimentos que se seguiram durante esses dias, fui conversar no whatsapp com a diretora do espetáculo sobre a gente não arrumar problema em colocar um ator de trinta anos, no caso eu, fazendo par romântico com uma menina de catorze anos – porque na peça tinha um quase beijo, mas não tinha nada demais exatamente, mas era o medo das coisas que estavam acontecendo. Olha que bom moço, eu. Preocupado com os acontecimentos, preocupado com as crianças, os pais, a recepção disso. (pausa) A cagada: ao invés de mandar direto pra diretora enviei no grupo de pais, mães e alunos, e obviamente abri uma discussão que ninguém nem tinha passado pela cabeça até então. Por fim, perdi o job. Sério. Perdi. Eles não quiseram atrapalhar meu “trampo de ativista”, disseram.

(Ele, num segundo de tristeza, beija o manequim carinhosamente; ainda beijando ele recoloca o pênis no boneco)



ATO III

(o assunto principal)

ELE
Com tanta coisa pra gente se preocupar a gente ainda tá desesperado com o nosso sexo. (pausa) O segredo é procurar as respostas nas arestas. Eu tô por aí na borda. E eu sou só mais um. Às vezes acontece até uma fama, como aconteceu daquela reencarnação que ficou mais famosa. Virou livro, até fizeram adaptação pro cinema algumas vezes. Sim, eu estou falando que eu ainda sou um tipo de Jesus. Porque eu serei o mártir de alguma coisa, eu sinto isso; vocês vão ver. Mas teve momentos que eu só vim como um carpinteiro do universo comum mesmo que nasceu e morreu na mesma cidade comum, que teve uma vida comum e ordinária e que morreu. Ou que gravou um CD, escreveu um livro, criou uma teoria. Galileu foi um tipo de Jesus. E aí é que fica a mensagem final. A morte. É a morte o que mais conta. Em nome do que você morre, daquilo que você defendeu em vida, quem você era, isso é o que realmente importa quando você morre.

(Ele mais uma vez muda de estilo; um jovem hippie surge; enquanto fala bola algo que parece ser um baseado)

ELE
E você sou eu, e eu sou você! E todos somos uma coisa só! E às vezes a gente faz esse morfamento fisicamente mesmo! A gente se atraca! Se entrelaça! Se enfia um dentro do outro! A gente quer entrar no outro! Porque a gente é o outro! Todo ser vivo quer se roçar, garoto! De uma simples bactéria, à baleias e à cavalos marinhos – e cavalos marinhos é o macho quem gera os filhotes, porra! Me desculpe. Me desculpe se eu ofendi alguém. É que... eu fico... eu fico tão empolgado em contar pra todo mundo o quanto podia ser mais fácil, mais descomplicado... (pausa) Eu acho que a gente nem precisa se colocar no lugar do outro, porque... quem tá ligado nesse bagulho louco todo sabe! Sabe que a gente É o outro. Você... você precisa se acalmar... Acalma a alma. Olha como eu faço bonito o jogo com as palavras. Diz que é poeta, a bicha. (ri bobo; ele acende o cigarrinho) Por quê esse bagulho choca mais que os dois outros tipos de fumos existentes? Não é maconha não. É minha covardia expressa mais uma vez. Devia de ser! Por que não? Mas não é não. Pode ver! É fumo “normal”. Mas e se fosse maconha? Devia de ser. Mas eu sou um covardão. Ano passado eu fiz uma cena fumando um baseado. Acharam desnecessário. O que é necessário e desnecessário no diálogo e na expressão? (Ele retira um baseado real do bolso) Coragem, porra! (Ele quase acende, mas desiste)

(música de transição; ELE apaga o baseado, fura o próprio dedo com um alfinete, coloca uma gota num microscópio que antes era uma pedra; e olha)

ELE
Ordinário. Pequeno nos versos. No meio das cordas, das ondas sonoras e das ondas de luz! Enxerga? Consegue ver? Não tem fim tanto pro micro, quanto para o macro, e ainda chega uma hora que eles se encontram nas milhares e milhares de bolas que giram no seu corpo e que giram lá em cima. E que giram na luz, no som, e na sua verdadeira cor, como um arco-íris, esse negócio consciente dentro de você. Vai ser clichê, mas foda-se...

ATO IV

(Ele inicia uma palestra)

ELE
Eu vou falar uma coisa que vai te deixar com um cagaço de verdade. Algo pra se preocupar de verdade, algo que importa. Não uma resposta, mais um tipo de pergunta. E algo que merece totalmente nosso foco. Uma coisa real pra gente se preocupar e perder tempo pensando do que essa bobeira que tá enfiada na nossa cabeça. Olha que idiota isso tudo vai parecer visto o que a gente devia estar mesmo preocupado e focado em entender. Não erva proibida ou sexualidade alheia! Ou liberdade de expressão artística! (pausa) O Experimento das Fendas!

(ele sai e volta com uma pequena máquina esquisita e dois painéis, um dos painéis possui duas fendas)

ELE
Nós não vamos criar nenhum Frankenstein nem viajar através do tempo com esse experimento, mas vocês vão descobrir uma coisa muito louca sobre a nossa vida. Em meados do século 18, o físico, médico e egiptólogo britânico Thomas Young conseguiu refutar umas das afirmações de Isaac Newton: a de que a Luz era composta por “corpúsculos”, unidades quantificadas – o que hoje se chamaria de partículas subatômicas. Para fazer isso ele realizou um experimento muito simples: usando uma grande caixa fechada, ele inseriu um  visor e duas pequenas fendas por onde a luz do sol deveria entrar. Ao olhar pelo visor ele observaria a luz projetada do outro lado da caixa, refletida na parede interna oposta. Como estamos no século XXI essa minha máquina é uma máquina que envia partículas de luz para onde a direcionarmos, no caso, através dessas duas fendas. (pausa) Existem duas possibilidades de como a luz poderia passar pelas fendas: o elétron é composto ou como Isaac Newton afirmava: como bolinhas de luz sendo atiradas em partículas, que deixaria aqui nessa parede ao fundo o formato de duas fendas, assim como ela o é no painel. Ou ela atravessaria as fendas como ondas, fazendo ondulações que se anulam e se multiplicam, como quando a gente joga uma pedra em um lago e ela forma várias ondinhas por bater uma na outra; formando então aqui na parede do fundo várias marcas de fendas diminuindo na sua intensidade à medida que ela se afasta do ponto inicial. Conseguiram entender? Ou duas fendas de luz somente, agindo como bolinhas - pra exemplificar - , ou agindo como ondas, formando várias fendas aqui atrás. O que vocês acham que aconteceria? (Ele faz uma votação rápida da resposta com a plateia) Bom, nós vamos usar essa lâmpada fluorescente pra ver o resultado.

(Ele coloca um óculos e liga a máquina com bastante suspense; a máquina faz um barulho estrondoso e solta um pequeno flash de luz entre as fendas)

ELE
Agora vamos ver.

(Ele vai até o segundo painel e acende uma lanterna fluorescente; ve-se apenas duas fendas marcadas, “sombra” do raio de luz)

ELE 1
Duas fendas. Isaac Newton estava certo, caralho! Óbvio que sim. Quem aí duvidou do grande Isaac, porra? Aplausos para o grande Isaac! (pausa) Mas espere só um pouco. Não é essa a maluquice descoberta pela ciência que eu tô falando, essa não é a grande parte da história, gente! Segura a bunda nessa cadeira que agora a coisa vai ficar muito mais doida ainda! A grande maluquice que acontece é que as coisas ficam um pouco diferentes se não há ninguém observando. É isso mesmo que você ouviu. Se não houver nenhum ser humano olhando, NENHUM SER HUMANO COMO OBSERVADOR, essas partículas safadinhas de luz agem de forma diferente! Eu tô falando sério. É a física quântica. Duvidam? Peço que todos se virem de costas e vamos fazer o experimento mais uma vez. Por favor, todo mundo. Não pode ficar ninguém olhando. Vamo lá, gente! Mesmo isso aqui sendo ilustrativo, porque somos artistas e não cientistas, vamo entrar no joguinho, vai...

(Ele faz com que todos virem de costas pra máquina)

ELE
Quando não há um observador, quando não há um ser que conteste a forma como a luz deveria agir, ela age do jeito que ela quiser.

(Ele liga a máquina novamente; um raio rápido de luz)

ELE
Podem se virar.

(com a lanterna fluorescente agora a luz agiu como onda e formou várias fendas da parede de trás)

ELE
Shazan! Wingardium Leviossa! (pausa) Tem horas que ela escolhe agir como ondas e tem horas que ela escolhe agir como bolinhas. Obviamente que isso daqui tudo é ilustrativo, é tipo aquelas fotos de bolacha recheada que não se parece muito com a bolacha real, mas tá valendo. Não se esqueçam que vocês vieram ao teatro e não à uma feira de ciência. (apenas com o olhar ele tenta demonstrar o quanto o experimento foi grandioso) Captaram? Conseguiram figurar? Você-move-montanhas. Nós temos a capacidade de mudar e de nos confundir com a realidade ao nosso redor. O observador, seres que olham e julgam, tem total poder sobre o mundo físico. O deus com letra minúscula vive dentro de nós, porque NÓS TODOS SOMOS ELE!

(silêncio; Ele está sem fôlego de tanta empolgação)

ELE
É com esse tipo de coisa que a gente devia estar se questionando em dois mil e dezessete e não a sexualidade de alguém. Isso é tão... tão primitivo... e me ofende... ofende Jesus Cristo que morreu em nome da compreensão das coisas, e da compreensão do outro, e da compreensão de onde está deus e com quem ele tem andado! Há pouco teve aquele negócio da aprovação do ensino religioso nas escolas, se a escola decidir, de uma religião específica, por exemplo. E vamo aqui lembrar que há dois mil e dezessete anos atrás, nós viémos e já morremos exatamente por bater de frente com esses dogmas, com essas tradições infundada, fomos pregados na cruz por bater de frente contra a imposição de dogmas religiosos. E outro acontecimento que me deixou absurdado, foi aquele recente negócio dos psicólogos que querem ter o direito científico de fazer a tal da reversão sexual, das pessoas que a ainda buscam e acreditam que podem ser curado de uma coisa que a própria confederação científica que justamente estuda a mente e o comportamento humano, já entrou em unanimidade na questão de que NÃO, NÃO EXISTE A REVERSÃO SEXUAL. Uma pessoa pode até conseguir se privar de ser o que é, mas não existe essa magia divina. “A gente”, eu digo “nós todos” mesmo, já morremos uma porrada de vezes durante anos e séculos, sobre esse mesmo assunto e isso tudo, esse retrocesso, faz com que esses mártires, nós, um ou outro, ali ou aqui que morremos e fomos violados e espancados, escravizados, dilacerados fisicamente e psicologicamente, e crucificados, e escancalhados, estripados, tenhamos a nossa morte desperdiçada nesse tempo e espaço. Já é hora de a gente aprender que não devemos palpitar sobre a genitália alheia, galera. O que você realmente acha que Jesus te diria se sua preocupação da vida fosse quem você vai amar? Não precisa responder.

(ao invés de ler dessa vez, Ele repete o mesmo final da versão 1, só que falando, finalizando piegas real)

ELE
A total intenção desse espetáculo é levar a real mensagem de Jesus. Eu, como artista, sempre fui muito subversivo nesse assunto. Dessa vez eu quis ser um pouco mais... diplomático. Foi a única forma que encontrei. Única regra: amor ao próximo. Você pode até pensar que a Terra é plana se quiser. Você tem total livre arbítrio pra escolher entre o bem e o mal, de ser de esquerda ou de direita, de concordar e discordar do que quiser. Total liberdade de discordar do Jesus que a gente apresentei aqui. Mas se você acredita naquele Jesus da história cristã, então não tem como discordar do que foi que ele realmente falou, se foi do jeito que contam. “Amai o próximo como a si mesmo”. Porque você é o próximo desse outro aí que tá sentado do seu lado. (pausa) É só isso.

(Ele finaliza o espetáculo ao som de um batidão, fazendo um strip-tease. Ele termina com um espartilho sensual enquanto vemos suas imagens como Jesus no telão)

(dois artistas combinados podem terminar o espetáculo espancando Ele)


FIM




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