COMO SALVAR UM ESCROTO


COMO SALVAR UM ESCROTO

PERSONAGENS:
FLOR
KEILA
BIANCA
TIAGO
BÊNE
ALANA


INTRODUÇÃO

(enquanto Alana narra, os outros personagens formam quadros de um espancamento violento: Flor, Keila e Bianca chutam, dão paulada, batem a cabeça de Bêne no chão; Tiago acompanha filmando a cena)

ALANA
Houve um momento de muita comoção. Não foi de um dia pro outro, não, não foi mesmo. Aguentaram por tempo demais. Todo mundo aguentou por tempo demais. A gente precisa começar a entender que por mais que todo mundo sabe que vingança é uma bosta, e que nunca deveria ser incentivada, o peso de um segundo de um trauma na vida de uma pessoa... dói. Só dói. No físico. Nas coisas que a pessoa pensa sobre o mundo. E não que se justifique a violência, mas se justifica! Afinal, porra, afinal se justifica! Os homens vão ter que entender que estamos num tempo que alguns sofrerão injustiças, infelizmente. Eu digo isso com sincero pesar. Vocês homens precisam ficar muito espertos, muito atento nas coisas que falam, que fazem. Sabem por que? Porque a gente sabe que pode acontecer – por conta dessa crescente onda de denúncias sobre abuso sexual, de homens para com mulheres, claro – que pode acontecer de uma mina canalha rejeitada fingir que foi abusada pra poder manipular um cara. Pode ser, pode acontecer. Todo mundo sabe que existe mina filha da puta também. Digo, desculpem, todo mundo sabe que existe mina que o pai fugiu. (pausa) Fiquem espertos, meninos. E isso não é uma ameaça, é um conselho verdadeiramente preocupado. Claro que esse conselho vale só para os caras minimamente preocupados em aprender e evoluir, com os outros, a grande maioria aliás, tem que fazer igualzinho o que elas tão fazendo com esse filho da puta aí mesmo. Filho da puta não! A mãe dele era uma guerreira, ela não tem nada a ver com isso! Era o pai dele! O pai dele que é puto! Não! Vida sexual ativa não precisa estar envolvido com xingamento! Desculpem. (pausa) Enfim. Vocês também não tem aquela impressão de que nós somos só crianças grandes? Eu tenho.

(Alana entra na cena do espancamento e o quadro se transforma na cena de uma mãe chorando pelo seu filho morto)

(black-out)


CENA 1

(Bêne e Keila estão no telefone, cada um em um canto do palco)

KEILA
Menino, você tem alguma noção do que cê fez? Desculpa é a minha buceta! Desculpa não arruma a merda que cê fez!

BÊNE
O que você quer que eu faça, cara? Já falei. Já assumi que eu não devia ter falado.

KEILA
Eu queria mesmo era que você se fudesse, Bêne. Era isso que eu queria.

BÊNE
Meu, tá bom.

KEILA
Não, não tá bom! Se tivesse bom não tava essa merda! A mãe dela viu o print, idiota! O pai dela viu o print! A Bia viu! Você desgraçou a vida dela!

BÊNE
Eu posso ter sido exagerado, mas eu tava conversando sobre as minhas experiências sexuais com um parceiro. Era isso que eu tava fazendo, pô! Não tenho culpa se espalharam, caralho!

KEILA
Nossa, cê não tem noção da raiva que as meninas estão de você, Bêne. Todas. Cê entendeu? Todas.

BÊNE
Meu, o que você quer que eu faça?

(silêncio)

KEILA
E é verdade?

BÊNE
O que?

KEILA
É verdade? É verdade o que você escreveu lá pro seu parceiro?

BÊNE
(ri) Ué!

KEILA
A Flor disse que você devia tá com o saco formigando porque ela nega a sua versão.

BÊNE
Claro que ela nega, né! Olha a merda que deu esse print.

(silêncio)

BÊNE
Cara, em nenhum momento eu desrepeitei ela, eu só falei o que ela fez. Foi maravilhoso, eu não quis criar esse causo todo. Eu tava elogiando ela, veja lá no print!

KEILA
Cara, você não consegue entender que a nossa liberdade na libertinagem, na safadeza, no tesão tem peso diferente na boca do povo? Eu digo nós mulheres, é diferente!

BÊNE
Meu, foda-se a boca do povo!

KEILA
Claro que foda-se! Foda-se! Mas a mãe, o pai, o irmãozinho dela viram que ela fez massagem nas suas bolas enquanto você comia o cu dela sem camisinha. Todo mundo viu o print, Bêne! A família dela viu, a escola inteira viu, o chefe dela viu! A Bia, cara. Porra!

BÊNE
Quem que espalhou que é filho da puta!

KEILA
Não, a mãe da pessoa não tem nada a ver com isso. Você que foi um nojentão escroto mesmo. 

BÊNE
O que que eu posso fazer agora?

(silêncio)

KEILA
Não sei. Suma. Queria dizer morra, mas digo suma.

BÊNE
Meu, puta tempestade.

KEILA
Você fala isso porque você não pode entender como é ser mulher.

BÊNE
(ri) Tá bom.

KEILA
Não tá bom. Tá péssimo.

(Flor repentinamente entra e atira em Bêne mais de uma vez com um revólver)

BÊNE
Ai... não... desculpe...

FLOR
Vocês não queriam que liberassem a porra do armamento? Então.

KEILA
Alô? Bêne? O que aconteceu? Bêne? Alô? Ué.

FLOR
(pega o celular) Alô?

KEILA
Flor? O que você...? Como você tá aí?

FLOR
Estou mais tranquila agora. Acho que eu me curei. (ela deixa o celular cair e sai)

KEILA
Flor? Flor, fale comigo? Ai, meu deus do céu, quer ver que essa menina fez uma idiotice?

(black-out)


INTERLÚDIO

(Alana em um foco)

ALANA
Não, não é sobre violência. Mas é. É sobre a violência de ambos os lados. O que foi apresentado agora não foi a realidade que aconteceu. Flor até queria, mas não tinha uma arma disponível, graças à deus. Isso foi um sonho que ela teve numa noite horrível de crise de pânico.

(Flor surge com um microfone; os outros personagens fazem coro)

FLOR
Não vou aguentar

CORO
Não, não, não

FLOR
O cara quis me matar

CORO
Ele se acha o machão

FLOR
Mamãe tentou falar, oh!

CORO
É guerreira demais

FLOR
Filha da puta não dá

CORO
Eles são todos iguais.

FLOR
Ele chegou bonitin’

CORO
Uh, uh, uh!

FLOR
E não parou de me beijar

CORO
Até fez um lálá

FLOR
Pediu meu telefone

CORO
Canalha demais

FLOR
E depois me fez chorar

CORO
Eles são todos iguais.

FLOR
Não me importa o que falam de mim
Eu que pensava que era fácil assim
Mas o mundo colorido
Morreu quando ele gozou de mim

Eu precisava falar!

CORO
Mas que macho escrotin’

FLOR
Estava legal, era romântico
Era um cara legal

CORO
Mas que macho escrotin’

FLOR
Eu disse não
E ele continuou o tormento

CORO
Mas que macho escrotin’

FLOR
Tentou passar, é
Por bom moço especial

CORO
Mas que macho escrotin’

FLOR
Um cara legal
Um cara legal
Com amor no coração

(black-out)


CENA 2

(Keila está ao lado de Flor, que chora com o celular na mão; silêncio dolorido)

KEILA
Flor...

FLOR
Não, Ké. Não. Eu mereço.

KEILA
Não. Para. Agora já foi. Você fez um problema, tudo bem, você pode resolver agora? Pode? Se não pode ergue a cabeça e segue a vida. Já foi. Não tem o que você fazer, você só pode se recuperar e bola pra frente. Única opção, essa.

FLOR
(ri chorando)

KEILA
Eu sei que você vai falar que é fácil eu dizer isso, né. Acho que eu só posso dizer isso mesmo porque não é comigo, eu sei. Mas também é a única coisa que eu posso falar como amiga.

FLOR
Desculpe, Ké, eu não quero tomar seu tempo...

KEILA
Não, pelo amor de deus, eu tô com você nessa, porra! Vamo esperar ela chegar e aí vocês precisam conversar.

FLOR
Eu fui muito filha da puta, não fui?

KEILA
Sua mãe não tem nada a ver com isso, Flor.

FLOR
É modo de dizer, Keila! E aliás minha mãe teve tudo a ver com isso. No final das contas ela me ensinou que eu devia ter ouvido ela. Pra não virar o que eu virei. Uma...

KEILA
Uma o que?

FLOR
Traidora.

(batem na porta; Keila vai abrir e Bianca entra segurando um desespero; elas ficam em silêncio enquanto Bianca acende um cigarro demoradamente, entra nos fundos e volta com uma garrafa de vodka)

KEILA
Eu vou deixar vocês sozinhas.

BIANCA
Não, fica. Estamos entre amigas agora. Fica porque eu tenho medo de fazer merda.

KEILA
Bianca, pelo amor de deus...

BIANCA
Não vem ficar falando, Keila. Fica, mas fica quieta. Eu quero ouvir dela. (pausa) E aí, Flor?

(silêncio)

BIANCA
Fala, Flor, pelo amor de tudo que é mais sagrado, fala.

FLOR
Desculpa...

(longo silêncio)

FLOR
Eu não sei o que você quer que eu fale...

(silêncio)

BIANCA
Eu pensei que você tinha nojo de massagear bolas enquanto dá o cu pra um cara.

KEILA
Bianca, tá todo mundo mal com essa história...

BIANCA
Tá todo mundo mal? Tá todo mundo mal? Mas é claro que tá todo mundo mal! Tá todo mundo em choque mesmo! E é pra tá! Ou não é? A gente tipo vai seguir a vida como se nada disso tivesse acontecido? Eu tô me sentindo traída mesmo, Flor, não como ex-amante, eu tô pouco me fudendo pra época que a gente ficou juntas. Eu tô doída mesmo, Flor, porque achei que a gente era mais do que ex-namoradas que continuou a vida no amor de uma amizade que eu julgava ser super madura, e com uma pureza, porque eu confiava em você!

FLOR
Desculpe, Bi...

BIANCA
(calma) Desculpe é a minha buceta, Flor. Desculpe é a minha buceta.

(silêncio)

KEILA
Eu vou no banheiro.

(Keila sai; mais silêncio)

BIANCA
Aconteceu mais de uma vez?

FLOR
Duas. Duas com o Bêne.

BIANCA
Eu sabia que você não é sapatão porra nenhuma. Você gosta mesmo é de macho, né, Flor? Fala.

FLOR
Não...

BIANCA
Quem mais? Tem mais alguém que eu conheço? Sabe uma coisa que eu acho? Eu acho que se eu tivesse descoberto essas suas merdas enquanto a gente tava junto, eu acho que eu jamais iria vir e te olhar na cara pra te questionar essas coisas. Acho que eu ia deixar você se desgraçar sozinha mesmo, ia seguir a minha vida. Mas é exatamente por a gente não estar mais juntas, porque eu te considerava a minha melhor amiga, parte da minha vida, parte da minha família, que me dói ter descoberto isso justo agora. Eu esperava isso de qualquer uma, menos de você, Flor. Por todo aquele tempo. Quem mais? Quem mais você massageou as bolas na minha cama?

FLOR
Nunca foi na sua cama, Bianca! Eu juro que eu jamais faria isso.

BIANCA
Nossa, ufa, estou muito mais aliviada. E você jurando? Claro que eu confio, claro. (pausa) Meu deus, só de pensar que eu chegava em casa e você recém gozada enfiava a minha cara... que nojo!

FLOR
Bi, eu sei. Eu sei. Eu só posso pedir desculpas. Me desculpa. (pausa) Me desculpa.

(silêncio; sem falar mais nada, Bianca se arruma e sai; Flor fica em silêncio mais um tempo; Bianca retorna e pega a garrafa de vodka)

BIANCA
Só pra se não tenha ficado claro, eu não posso mais ser sua amiga, ok? Fui eu quem comprei isso.

(Bianca sai; um foco destaca Flor)

FLOR
Sou eu que trago trevas num dia de sol
Tentei todos os dias
Eu queria falar
Serpente que está nas lembranças

Torço pra que eu não possa merecer
Toda essa ira do deus do lado de lá
E enquanto essa hora não chega
A que pariu

Veja bem
Mais perto
Não é alguém
É um feto

Sou eu, sou eu...

Sou eu que trago trevas num dia de sol
Sou eu que trago trevas num dia de sol
Sou eu que trago trevas num dia de sol
Só eu, sou eu, só eu...

(black-out)


CENA 3

(Bianca e Tiago estão bebendo)

BIANCA
Nojento, né. Fala a verdade.

TIAGO
Ela falou pra Nê que era mentira o negócio da massagem no saco.

BIANCA
Ah, mas não interessa! Tava dando pros caras depois vinha sentar na minha cara. Argh!

TIAGO
Nojento. Eca. Pelo menos ela dava o cú.

BIANCA
Aff, isso não é pelo menos.

(silêncio)

TIAGO
Bicha, dois anos...

BIANCA
Dois anos passada de trouxa. A gente nem imaginava! Ninguém imaginava uma coisa dessa! Justo a Flor, Tiago, justo a Flor?

TIAGO
É, né? Ela com aqueles textão...

BIANCA
Meu! Né?! Quem é a Flor, Ti? Eu não acredito que a gente não conhecia a Flor, Ti. Essa menina é uma... uma completa... complexada, mentirosa, psicopata. Essa menina não presta, Tiago. Ela podia ter me passado alguma doença. Ela fazia tudo muito escondidinho, Tiago, eu não consigo lembrar de um evento que eu tenha desconfiado que ela tava dando mole pra macho.

TIAGO
Eu também não. Doideira.

(longo silêncio)

TIAGO
Sabe uma outra coisa que me dá mais raiva nessa história também? Indo com o assunto pra outra dimensão.

BIANCA
O que?

TIAGO
O Bêne.

BIANCA
Eu tô pouco me fudendo pra esse babaca.

TIAGO
Não, sim, claro. Eu digo... repare. Repare numa coisa. Dois seres humanos, o Bêne e a Flor, ambos traíram suas namoradas da época, ambos foram traidores e nojentos ...

BIANCA
Ela falou que com ele foi só duas vezes. duas vezes.

TIAGO
Sim, calma, mas foi o print com ele que espalhou.

BIANCA
Tá.

TIAGO
Dois seres humanos traíram seus parceiros, suas parceiras.

BIANCA
Tá.

TIAGO
Em cima daquele negócio que a gente sempre fala da força do subconsciente coletivo...

BIANCA
(impaciente) Tá. Tá bom.

TIAGO
Pense comigo uma coisa. A mulher, no caso a Flor, sempre sai mais desgraçada na história. Repare.

BIANCA
Isso é claro, a sociedade julga muito mais a mulher, Tiago, isso é óbvio. Não tira a minha raiva mais dela.

TIAGO
Não, não, calma. Eu quero falar sobre como o poder do coletivo pode destruir uma pessoa e também erguer uma pessoa no topo. Meu irmão conhece o Bêne e diz que ele ganhou na loteria esses dias.

BIANCA
O que?

TIAGO
O cara ganhou na loteria. Simples assim. Não milhões, acho que foi uns sessenta mil, parece.

BIANCA
Uma bolada!

TIAGO
Pois é. E a Flor?

(silêncio)

TIAGO
Pois é.

BIANCA
Nossa, credo.

TIAGO
A mina é sempre a que tenta o suicídio.

BIANCA
Já falei que ela não tentou se matar, Tiago. Ela tá fazendo cena pra se recuperar da culpa, eu sei disso.

TIAGO
De qualquer forma o próprio ato da cena me parece doloroso. Ela largou o emprego, tá na casa da vó dela, a mãe não quis assumir a bronca. Tá destruída. Não quer nem ir atrás do negócio do INSS lá. Com o histórico das crises dela ela podia tentar o auxílio doença, mas não. Só parou de ir trabalhar, não foi mais. Diz que fica andando pela casa igual um zumbi, diz que tentou se matar. E o Bêne comprou um carro novo.

(silêncio)

TIAGO
A força do coletivo cria a realidade, pra mim isso é muito lógico, naquilo que a gente sempre conversa.

BIANCA
Sim. Eu entendi.

TIAGO
Pode crer.

(silêncio)

BIANCA
E aí num mundo que o macho puto é garanhão, e a fêmea puta é galinha...

TIAGO
Exato. No mundo do macho, não só o poder que a gente pode ver, o poder do braço mesmo, tem influência na violência contra a mulher. No âmbito do poder maior, no poder de deus, no poder do universo, vocês mulheres estão fadadas a sofrerem sempre mais.

BIANCA
Cacete. Que coisa horrível, Tiago!

TIAGO
Buceta. Muda pra buceta quando for falar. Não fala mais caralho, cacete. O falocentrismo ajuda nesse super poder, eu tô dizendo.  

BIANCA
Buceta não combina com xingamento. Buceta é vida!

TIAGO
(ri) É, pode ser.

BIANCA
E qual seria a possível solução pra gente conseguir reverter essa maldição genética da Eva que chupou a serpente, Tiago Profeta?

TIAGO
Acho que a única solução pra reverter essa maldição que tá enfiada nessa nossa cabeça é com vocês lutando juntas mesmo. Só isso. E mesmo eu, viado, não confiem tanto assim. É tudo homem também.

BIANCA
Tem diferença.

TIAGO
Pouca. Acredite. A sorte é só que não precisamos lidar, eu e você, com a tensão sexual que existe entre duas pessoas que se atraem sexualmente.

BIANCA
Sorte mesmo.

TIAGO
Dou graças a deus, hoje em dia.

BIANCA
Eu também.

(silêncio um tanto constrangedor)

TIAGO
Acho que por conta dessa história toda, a Flor merecia mais compaixão que o Bêne, no fim das contas.

BIANCA
É. Não sei. Não sei se tem muito a ver essa sua teoria aí, viu. Mulher também é filha da puta, só pra você saber. Às vezes é carma.

TIAGO
Mas é óbvio que é carma! E o homem vence! Por que o carma não atingiu ele? Duas semanas depois de publicamente ter sido exposto como traidor o cara ganha na loteria? (pausa) Porque não existe o peso da culpa, porque a falsa liberdade sexual da mulher ainda faz com que a culpa não aceite, ou atrase a recuperação, ou sofra sempre mais! Está dentro de vocês mulheres essa perspectiva sobre sexo, porque o coletivo impôs isso, claro. Só a Flor pode voltar a se empoderar e é isso que eu tô querendo dizer: mulheres precisam ser sempre muito mais fortes que os homens em tudo pra conseguir uma vida tranquila. A culpa do pecado de Eva ainda habita dentro de vocês, parafraseando.  Diferente com o Bêne, que saindo como garanhão da história, traz o prêmio do universo de sessenta mil caralhos de reais!

BIANCA
Ai, Tiago, esse negócio aí de loteria... é coinscidência...

TIAGO
Tá, pode até ser.

BIANCA
É um caso, Tiago. Não dá pra criar uma estatística sem uma observação geral, com um único caso.

TIAGO
Eu sei, mas é que você sabe, a gente sempre conversa, eu vejo esse negócio do poder o tempo inteiro.

BIANCA
Sim, você é o meu Profeta.

TIAGO
Sou.

(silêncio)

TIAGO
Bom, agora sobre você. Se você quer ficar em paz...

BIANCA
Eu quero.

TIAGO
Perdoa ela. Deixa ir embora. Não pensa mais nisso. (se levanta) Vou fazer xixi.

(Tiago sai; Bianca fica pensativa, se negando em pensamento)

BIANCA
(pra si) Fácil falar. (pausa) Doido.

(por um tempo ela reflete sobre tudo com pesar e negação; Tiago entra)

TIAGO
Eu sei que é fácil eu falar, eu, não sendo você. E é mesmo. Em teoria tudo é perfeito. (pausa) Credo. Mas quem me dera.

(black-out)


INTERLÚDIO

(Alana está em um foco)

ALANA
Carma. Eu acredito muito em carma. Acho que todo mundo deveria acreditar na justiça divina, porque aí não precisaria pensar em vingança. Não tem como a gente matar e também não tem como a gente salvar. E não porque eles não querem salvação, mas porque eles não podem ser salvos. Tá na cabeça. Maldição genética. Na cabeça do pênis. Acredito muito em carma e sei que deus é justíssimo! Deus não tem nada de cruel quando mata a vida, é simplesmente justiça divina e o ciclo da vida numa matemática vingativa que até os mais fãs de dramas de ficção ficariam surpresos! Quando uma mulher se recupera, como ela precisou tirar mil vezes mais força do cu da alma do que um homem pra se reerguer de uma depressão, ela se reergue a rainha dessa porra toda!

(um foco mostra Flor vomitando em um balde, destruída)

ALANA
Tempo. Pode demorar um pouco, mas chega. O tempo cura tudo.

(o foco de Flor se apaga)

ALANA
Ou às vezes não. Você decide.

(com transições lentas, é apresentado várias cenas de Flor lidando com homens, com Bêne fazendo todos os personagens abusadores/assediadores; cenas comuns de machismo e abuso, apresentado em quadros musicados; em todas os pequenos quadros, Flor não reage às situações; na última imagem, Flor repentinamente agarra Bêne pelo saco dentro da calça)
                             
FLOR
Massagem? Cafuné? Na cabecinha?

BÊNE
Por favor... ai! Solta!

FLOR
Não puxa que eu finco a unha!

BÊNE
Tá bom, tá bom.

FLOR
Não, não tá bom, não. Se tivesse bom não existiria essa cena.

BÊNE
Mas nem todo homem...

FLOR
Nem todo homem é a minha buceta!

(Flor arranca o pau de Bêne e o chacoalha como um troféu; Bêne cai morrendo, ensanguentado; Flor grita vitoriosa; todos os personagens entram)

TODOS
Ria, vingança divina
Sente, sensação deliciosa
Cê vai tomar no cu
O nome disso é carma
Justiça iluminou
Tarda, mas não falha

ALANA
Como salvar um escroto? Primeiro. Se você não quer ter um filho pra criar ele meia boca pra depois todo mundo sofrer com o seu filho mal criado e indesejado, aborte-o. Não crie mais machos indesejados que se tornarão indesejáveis. Ainda crime ou não, dê um jeito. Segundo. Se você ama um macho escroto, pare de amar. É simples. Não tem segredo, você não pode salvar ele, não é sua função. Sua missão na Terra não é essa, foi um homem quem inventou isso, obviamente. Agora, se você tem pena, como eu, por simplesmente saber que nós mulheres estamos por natureza à frente na evolução, se você sente que há homens que são só bobos, e burros, e fracos, se você tem um irmãozinho que você amava e que virou um adolescente machista e escroto, e por viver no mesmo planeta você se sentir realmente na obrigação de tentar salvar um macho escroto que merecia ir pra vala, aí único jeito que a gente tem pra fazer isso mesmo, em teoria... é... O único jeito em teoria pra se salvar um escroto seria... (pausa) Não sei. Desculpem, mas eu não sei.

(black-out)


CENA 4

(Bêne e Flor estão frente à frente)

BÊNE
Oi.

FLOR
Oi.

BÊNE
Você é muito gata.

FLOR
Você também é.

BÊNE
Vamo fechá?

FLOR
Fechou.

(eles se beijam mecanicamente)

BÊNE
Eu não gosto muito desse batom, parece batom de puta.

FLOR
Tá.

BÊNE
Sua mãe gosta mais da sua irmã, não sei porque a gente tem que ver ela toda vez.

FLOR
Vamo na próxima semana então.

BÊNE
Vai todo mundo ficar te olhando com esse mini vestido aí. Mas você que sabe.

FLOR
Vou de calça.

BÊNE
Você que sabe.

FLOR
Vou de calça.

BÊNE
Amigo? Ele é seu amigo? EU sou seu amigo, Flor!

FLOR
Vou falar pra ele parar de dar amei nas fotos.

BÊNE
Você era mais carinhosa quando a gente se conheceu.

FLOR
(beija-o)

BÊNE
Desculpe, não vai acontecer de novo.

FLOR
(beija-o)

BÊNE
Eu não quero que você tenha amizade com esse cara.

FLOR
(beija-o)

BÊNE
Desculpe, não vai acontecer de novo.

FLOR
(beija-o)

BÊNE
Eu tava bêbado. Todo mundo erra. Você me irrita às vezes!

FLOR
(beija-o)

BÊNE
Eu prometo que eu vou melhorar! Eu tô aprendendo muito com isso tudo, em como ser menos machista – porque eu sei que você não gosta. Eu tô tentando evoluir. Mas é que tá aqui dentro, tá dentro da gente, e você irrita às vezes...

(black-out rápido; barulho de um tapa forte; as luzes retornam e Flor está com a mão no rosto)

BÊNE
Desculpe de novo, não vai acontecer de novo. Eu vou melhorar...

(longo silêncio; um foco destaca Bêne; ele parece que vai começar um monólogo, fica tentando começar um assunto, mas sempre desiste; por fim, ele sai sem falar nada; Alana aparece)

ALANA
Não tem que ter voz pra falar nada não. Desculpar é a buceta! É o contrário, tem que se culpabilizar sim! Fez merda? Se auto culpabilize, porra! Assuma! 

(Bêne retorna)

BÊNE
O que ela quis dizer foi que nós homens não podemos ter voz. Nossas desculpas valem zero aqui, nessa peça. O homem não deve se desculpar, tem que se culpar, é o contrário! Se fez merda, assuma! Se auto culpabilize, porra!

(silêncio)

ALANA
Eu acabei de falar isso. Foi redundante essa sua fala.

BÊNE
Eu quis explicar melhor, pros homens entenderem.

ALANA
Mas foi exatamente o que eu falei. Foi a mesma observação.

BÊNE
Com palavras diferentes.

ALANA
Mas você falou uma coisa que eu tinha acabado de falar. Não acrescentou nada pra peça. Foi até um tanto incoerente você falar que sabe que não devia falar.

BÊNE
Eu tô tentando ser participativo.

ALANA
Não tente, você é homem, só sai merda dessa sua boca, mesmo tentando, você não consegue.

BÊNE
Nem todo homem...

ALANA
(grita) AH! Não! “Nem todo homem”... Não!

(silêncio)

BÊNE
Alana, você não me engana, cê pode até ter cortado fora, mas pra mim continua sendo homem. Que moral você tem pra narrar essa história de mulheres protagonistas? Você nasceu do mesmo jeito que eu.

(black-out)


INTERLÚDIO

(com excessão de Alana, todos estão em cena)

TODOS
A voz do homem que não quer tentar aprender
Aceite o desafio, tudo vai melhorar
O sexo da guerra, esperança

Sei que parecia tudo estar certo
Parecia bom, é fácil de falar
Enquanto a mulher lava a louça
Você me ouviu?

Veja bem
Mais perto
Não é alguém
É um feto

E ela que era ele que virou mulher?
Por dentro é menina, precisou operar
E ela, onde é que ela entra?

E ele que era ela e ainda é sapatão?
Foi virar viado, mas só ama mulher
E ela, onde é que ela entra?
Você me ouviu?

Vida de quem?
É tanto porém
Uns mil e quinhentos
É alguém ou um feto?
Quem é quem
No incerto?

(Alana entra)

ALANA
Eu sou uma mulher. Eu nasci uma mulher. É assim que eu quero ser considerada, porque é assim que eu me enxergo. Quem pode falar de mim melhor do que eu mesma? Eu sei que esse mundo pode ser muito confuso, é pra mim, e deve ser pra todo mundo, mas acho... acho que não custa, sabe? Acho que não custa mudar alguns costumes pras pessoas poderem ser felizes como elas são. Só não custa nada. Não custa nada parar de usar “filho da puta” como xingamento porque a mãe de ninguém e puta nenhuma merece ter um filho merda. Ou uma filha merda. Ou uma pessoa merda. (pausa) Eu sei o quanto tudo isso pode parecer muito confuso, mas eu realmente acho que no mundo certo, no mundo correto, nem deveria ter divisão de homem e mulher pro lugar onde a gente defeca os nossos dejetos naturais. Isso é uma estupidez, precisar dessa divisão pro local de defecação. Mas eu entendo. Homens estupram. Mesmo no local de defecação. (pausa) Talvez eu entenda que tenham que me rotular. Sim, travesti. Transexual, é a palavra. Por hora, contento-me com mais divisão ainda porque ainda é hora de precisar ser sublinhada mesmo. Precisa de visibilidade mesmo. Pra esses artistas héteros preocupados com a liberdade de expressão numa época que travestis e transexuais não querem mais ser representadas por eles, eu preciso urgentemente dizer uma coisa. (pausa) Não custa. Custa? Custa tanto assim? Custa não querer ajudar que pessoas que estavam na margem da sociedade tenham um momento de elevação pra que a gente atinja um dia a igualdade? Poxa, cara, não custa. É só ego de artista essa sua fala de censura aí. Isso é só por um tempo. A gente precisa aprender a ceder, às vezes. Pelo bem maior.

BÊNE
O que ela quis dizer, gente...

ALANA
Ah, não!

BÊNE
É que esses teatros querem ensinar sexo pras nossas crianças! Eles fizeram um Jesus travesti já! Eles fizeram um Jesus beijando homem na boca! Quer usar o mesmo banheiro das nossas mulheres! Das nossas filhas!

ALANA
Mas banheiro é feito pra cagar! Só macho psicopata vai pra banheiro pensando em outra coisa! Mulher vai no banheiro pra cagar e mijar!

BÊNE
Mas você é meio homem, cara.

ALANA
Eu sou uma mulher, Bêne!

BÊNE
Você tinha pinto, cara. Vai pagar uma de mané, rapaz? Vem pra cima de mim, não!

(uma mudança de cenário)

ALANA
Me paga que eu vou embora.

BÊNE
Não vou pagar porra nenhuma! Você falou que era mulher!

ALANA
E fez diferença? Você gozou. Pronto, paga.

BÊNE
Traveco é tudo puta interesseira, né.

ALANA
É a única coisa que sobra pra fazer no mundo, seu viado. É. Você é viado mesmo. Me comeu agora é viado também.

BÊNE
Você não me irrita, cara, não me faz perder a paciência...

ALANA
Mas é, cara. Não tem como desfazer o fato de a gente ter transado. Se eu sou um homem, você transou com um homem e agora é um belo de um homossexual!

(Bêne pula no pescoço de Alana; um quadro musicado mostra Bêne matando Alana)

BÊNE
(esmurrando Alana) Um hétero... pode... fazer... papel... de travesti sim!

(black-out)


CENA FINAL

(quando as luzes se acendem é re-apresentado os quadros do espancamento do início da peça; Alana está morta do outro lado)

TODOS
A sua piada de todo dia
Só um comentário de um sexo grosseiro
E como cê trata a moça pelada
É interesseiro seu beijo molhado
Por curvas que existem só na imaginação

E ela que era ele que virou mulher?
E ele que era ela e ainda é sapatão?
E ela, onde é que ela entra?
Você me ouviu?

Vida de quem?
É tanto porém
Uns mil e quinhentos
É alguém ou um feto?
Quem é quem
No incerto?

FLOR
Foi tanta mulher inocente
Que ninguém ouviu, que o mundo calou
Que agora é hora de, infelizmente
Homens sentirem o retorno divino
Porque se infelizmente existir um homem que será injustiçado por uma mina canalha
Por tanto homem canalha ter se dado bem desde sempre
Eu acho que eu vou acreditar na história da mina canalha, pelo peso das injustiças que tanto se cometeram no passado.

ALANA
Não é sobre violência. Mas é. Infelizmente é. Não foi a gente que começou. A lei do retorno só começou, meus queridos escrotos.

(black-out)

FIM






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