UM BONEQUINHO DE MENINA TRISTE

 

UM BONEQUINHO DE MENINA TRISTE

De Gabriel Tonin Prata

 

PERSONAGENS

BONECO

VOZ DA MENINA

 

UMA ESTANTE INFANTIL GIGANTE.

 

(o BONECO está encostado imóvel no meio de outros brinquedos; ele tem uma aparência velha, remendada e triste)

 

BONECO

Pobre menina

Tão pequenina

Mas se ela era triste?

Não!

Triste era eu

 

Sofre de ouvir

Não tem orelha

E a sua voz foi ficando fraquinha assim

Mesmo se trocasse a bateria

Era velho demais

Mas se mexia

Também queria

Poder ser feliz!

 

Feito de linha de segunda mão

Nem foi bem feito com o coração

Até amável, recosturável

Velho e novinho

Cheio de cicatriz

 

Deixava a estante mais feia, mais triste, mais pobre!

A voz que não chega

A música sem rima

Mas se mexia

Também queria

Poder ser feliz!

 

Mesmo que eu sei que ela me ama

Assim do jeitinho que eu sou...

 

(ele faz uma dancinha engraçada e de repente trava a coluna)

 

“Joga fora! Já tá velho!

Esse boneco não vale mais!

Compra outro, manda fazer!

Brilhante, cantor e com dentes...”

“Não! Ele era da vovó...”

Ela amava a vovó

Chorava pela vovó

Tinha saudades da vovó

Até fazia uma oração

Só pela vovó

Pra lembrar da vovó...

Comigo na mão!

Não com a bola, não com um colar

Comigo na mão!

Não com um foto ou um celular

Nem com um pingente ou mesmo a piscina!

A recordação só acontecia

Com toda minha linha e nó

 

Mas mesmo eu sendo o boneco preferido da menina

Mesmo feio e velhinho

Na lembrança da historinha

Fica tudo muito triste

Pelo adeus que deus deu pra vovó...

 

(ele veste uma máscara e imita a mãe)

 

MÃE

Esse boneco velho e fedido! Essa menina não quer jogar fora, ou dar embora de jeito nenhum! Sempre que rasga um pedacinho, vai eu ter que costurar. Ela só ora se estiver segurando esse bicho feio! Já tá todo babado, todo nojento! Mas se eu falar de jogar fora ela faz um tedéu. Esse troço era da minha sogra. Minha sogra que deu pra ela quando ela nasceu. Ah, se eu pudesse ter jogado isso fora antes! A véia morreu, não deixou nenhuma herança pra menina, nem nunca gostou de mim, nem eu dela... mas o boneco tem que deixar aí, se não a menina é capaz de ter um treco. A única coisa boa que esse demônio faz, é fazer ela rezar pra deus. Pelo menos dá um pouco de alento e esperança, um pouco de fé; até... deixar de ser criança...

 

(o BONECO joga a máscara fora fazendo outra dancinha engraçada)

 

BONECO

Tem dia que ela gosta de inventar

Eu tenho várias roupinhas de encaixar

Roupinha de menino e de menina

Tem dia que ela pinta a minha cara

Coloca uma trancinha e um vestidinho de papel

“Ué, mas esse treco é boneco menino ou boneca menina?”

O pai pergunta.

E ela responde com toda inteligência das respostas e inocência das crianças:

“É só um brinquedo, pai! Pode virar o que eu quiser porque ele é meu!”

 

(ele dança como uma bailarina, com um vestido e uma peruca de papelão)

 

“Se o vovô visse um negócio desse... Um escândalo!”

Mas a menina não tinha conhecido o vovô, ele já tinha morrido antes mesmo de ela estar na barriga da mamãe, então ela nem ia ligar pro que o vovô achava.

 

(a voz da menina ecoa em uma oração; o BONECO fica imóvel)

 

VOZ DA MENINA

Papai do céu, cuida bem da minha vó. Faz a estrelinha brilhar bem forte no coração dela que tá lá no cemitério. Eu não gosto de ir no cemitério, avise ela pra mim. Mas não tem importância, né, papai? Porque ela tá aí com você, com um coelhinho e uma capivara, igual eu sonhei aquele dia, não é? Muito obrigada pelo meu dia e faz eu sonhar com a vovó, o coelhinho e a capivara outra vez, se puder. Por favor, pode deixar eu ser feliz amanhã de novo, tá bom? Obrigada e boa noite!

 

(as luzes focam no boneco; ele anda pelo palco meio torto e perdido)

 

BONECO

Mas então...

Quem é triste?

A menina ou o boneco?

Acho que a saudade dentro do boneco

Mas a saudade de uma lembrança feliz.

 

(ele volta à posição inicial)

 

FIM

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