COMPILAÇÃO: REALISMOS SURREALISTAS MODERNOS, CURTOS E
BOBOS – PARTE 1
(CENAS E DIÁLOGOS CURTOS)
1.
A
PESSOA MAIS LINDA DO MUNDO
1
Sabe aqueles dias que você acorda bonito?
2
Não sei. Como?
1
Aqueles dias que parece que seu cabelo está do jeito que
você sempre quis, que seu rosto parece estar mais jovem, com um semblante bom.
Aqueles dias que parece que você é a pessoa mais linda do mundo. Sabe? Que
parece que não existe limite pro brilho e pra suavidade da sua própria voz. Já
sentiu isso?
2
E esse dia supostamente seria hoje?
1
Exatamente. Esse dia é hoje.
2
Olha, você quer que eu seja sincero?
1
Claro.
2
Desculpa falar, mas seu cabelo tá meio zoado hoje. Já te
vi em melhores dias. Não é nada demais, mas acho que hoje não é o dia que você
está parecendo a pessoa mais linda do mundo. Já teve melhores, entende?
Desculpa falar.
1
Pois eu estava falando de você. Você parecia ter acordado como a pessoa mais linda do mundo.
(silêncio)
2
Ah.
(black-out)
2.
FRESCURA
1
Então quer dizer que você gosta de meninos?
2
Sim. Eu gosto. Eu os amo.
1
E o que te faz pensar isso?
2
Tudo o que eles fazem.
1
Não, o que te faz pensar que você prefere meninos do que
meninas?
2
Oras, você quer que eu detalhe?
1
Tudo bem. Mas você não acha que isso é alguma frescurinha
que daqui a pouco passa?
2
Você acha que seu gosto sexual pode ser alguma
frescurinha. Por que diabos eu me meteria nessa frescurinha de propósito?
1
Talvez o diabo mesmo.
2
Lógico. Muito lógico, senhor. Parabéns.
1
Alguma macumba, então?
2
Sem dúvida. Foi uma macumba que o diabo fez.
1
Você foi abusado quando era criancinha?
2
Pelas garotas. Quando era pelos garotos eu queria.
1
Talvez isso tudo seja algum vírus! Uma onda de
homossexualismo!
2
Sim. (espirra) Atchin! Sentiu alguma coisa?
1
Talvez seja um vírus sexualmente transmissível, então. É
isso! Só pode ser isso.
2
Claro, confesso que defendo a tese de que “quem
experimenta, repete”. Mas não acho que seja na base do vírus. É que é diferente
mesmo.
1
Frescura isso! Eu acho que é como um vírus e pronto
acabou. Seja o vírus do diabo, da macumba, ou sei lá o que.
2
Eu tenho uma ideia de como tirarmos a dúvida
1
Que dúvida?
2
De saber se isso é contagioso ou não.
1
E como?
2
Come.
1
Oi?
2
Você me come, e teremos a prova. Se você tiver vontade de
dar um repeteco a gente repeteca. Se não, eu não conto pra ninguém.
1
Vai se fuder, cara!
2
Ué. Tu não tem uma dúvida? Eu também tenho essa dúvida.
1
Você tá falando sério? Você quer que eu coma você?
2
Eu não tenho nada a perder. Só não me mate! Se não quiser
é só dizer.
1
Imagina, cara. Eu curto buceta.
2
Tudo bem, então. Então eu defendo que isso também é coisa
de deus, ok? É coisa que o homem também é. Não é anormalidade e nem desvio, é o
que é. Não é um vírus, é assim que é pra ser. É pra existir essa fase da nossa
existência, por ordem de deus. Nascemos todos livres de gostos. Dois garotos
crescendo numa ilha sozinhos, iriam trepar. Duas garotas que nunca tivessem
visto um garoto na vida, iriam se apaixonar. Todo mundo nasce livre de sexualidade.
E a sexualidade ainda está na lista do livre arbítrio, sem pré-julgamentos. Combinado
que não se discute mais isso?
(silêncio)
1
Você chupa também?
(black-out)
3.
UFO
1
Eu acabei de... moço, por favor... acabaram de me... eu
estou... olha, eu tô tremendo... eu juro que não é mentira... eu juro, eu
juro... ai, meu santo deus...
2
Olha, se você não me explicar direito o que foi que
aconteceu eu não vou conseguir fazer o boletim. Seu nome, RG e CPF.
1
Carmem... é... Carmem Brizola. Carmem Brizola é o meu
nome. RG. Hum. Eu sei só o CPF de cor, eles pegaram minha carteira também. O
que diabos eles vão fazer com os meus documentos lá em Linasgarnórria943? Eu
tinha vinte reais, moço. Eles enfiaram um bagulho no meu braço.
2
O CPF, então.
1
333.
2
Uhum.
1
947.
2
947.
1
947 de novo.
2
Duas vezes?
1
Duas vezes.
2
Hum.
1
947 dígito 07.
2
Certo. 333.947.947-07.
1
Isso. Moço...
2
Telefone para contato.
1
Moço, pelo amor de deus, eles me levaram tudo. Enfiaram
um negócio no meu braço. Eu tô atordoada porque me deixaram em uma maca perto
de uma janelinha que me deixava ver a Terra se afastando, moço.
2
Teve violência corporal, minha senhora?
1
Moço, me levaram pra outro planeta.
2
O que foi que eles injetaram no seu braço? Você sabe me
dizer? Sabe diferenciar heroína de crack?
1
Moço, olha o meu estado. Você acha que eu ia brincar com
uma coisa dessas? Eu não estou drogada, eu estou em estado de choque. Eu acabei
de ser abandonada naquele matagal por uma nave do tamanho desse edifício, moço.
Uma nave que veio de fora da Terra, moço. O planeta deles se chama
Linasgarnórria943, eu ouvi, eles falam inglês. Eu não sou louca. Pelo amor de
deus, você precisa acreditar em mim. Você precisa fazer alguma coisa. Você tem
que deter essa organização interplanetária ilegal e tão desconfortante para a nossa
sociedade. Chame a ONU. A NASA. A ROTA, se você preferir. Telefone pra TV
Record, eu quero falar! Eu acho um absurdo que isso ainda continue a acontecer
nos dias de hoje. E se eu tenho um filho? E se eu tenho um filho alienígena
depois dessa abdução? Nem abortar eu vou poder, nesses casos – porque a porra
da lei é super mal estruturada, é isso? Meu cu pra essa porra de instituição
que só quer saber a porra do meu CPF. Moço, eu quero justiça.
(black-out)
4.
TIPO
FUMAÇA
1
O peido do meu pai é o peido mais fedido que eu já senti
na vida!
2
É por que você não sentiu o cheiro do peido do meu pai. O
peido do meu pai faz até o cachorro sair dar um rolê. Os pernilongos vaza tudo.
3
Olha, não sei se o do meu pai é mais fedido que o dos
pais de vocês, mas o peido do meu pai é visível, cara. Nem conte pra ninguém,
hein.
2
Como assim visível?
3
Visível, cara. Ele peida e a gente vê. O bom que dá pra
fugir.
1
Calma, eu não entendi. Como assim? A gente vê o peido?
3
Marrom. Assim, tipo fumaça.
2
Você tá brincando.
3
Não tô, cara. O peido dele é marrom mesmo. Peida e sai
fumaça.
1
Nossa. Mas então é tipo uma merda que sai, mesmo.
Gaseificada. É sério mesmo isso?
3
É sério, cara. É tipo um segredo lá de casa, isso. Não
vão contar pra ninguém, hein.
2
Mas, cara, ele peida e sai uma fumacinha, tipo isso?
3
Tipo isso.
1
Que bizarro. Nunca tinha ouvido falar disso.
2
Talvez todo mundo que tem essa habilidade fica em
silêncio e aí não se encontram parceiros e nem estudo sobre.
1
Mas todo mundo já deu algum peidinho em público, não deu?
E seu pai? Como ele faz nessas horas?
3
Ele... é...
1
Fala.
3
Ele usa tipo uma fralda.
2
O que? Seu pai?
1
Não acredito.
3
Pois é. Não vão espalhar, hein. Olha lá.
2
Não. Mas, cara, a fralda tipo filtra?
1
(gargalha) Tipo filtra! (gargalha mais)
3
Não tem graça, seu lazarento. Meu pai sofre com isso, tá
bom?
1
Desculpe. Desculpe.
3
Não sei o que faz, tá bom? Não quero mais falar sobre
isso.
2
Tudo bem. Tudo bem.
(ouve-se um peido)
1
Porco!
2
Foi ele! Eu vi! Eu vi! Você também tem isso! Eu vi
saindo!
3
O que?
2
Eu vi, cara! Eu vi seu peido! Uma fumacinha! É
hereditário! Eu sabia! Eu vi, cara. Que da hora!
3
Viu nada. Eu não tenho isso não.
1
Você viu mesmo?
2
Eu vi, cara, eu tô falando. Pode ser que você não saiba
que tem, manja? Tipo, você sabe com quantos anos seu pai descobriu que tinha
isso? Pode ser que você esteja na fase de descobrir.
3
Cale essa boca, cara. Você não viu nada. Você tá é me
enchendo o saco. Isso sim.
2
Eu vi, cara, eu juro que eu vi. Acredita em mim. Eu vi
uma fumacinha saindo da sua bunda, cara.
3
Mas eu tava sentado.
1
É, ele tava sentado.
2
Porra, mas eu vi saindo por trás, aqui. Saindo assim,
subindo. Eu vi, cara. Eu juro que eu vi. Ué, não pode ser uma coisa que
passaria de pai pra filho? Pode ser, cara. Se é possível existir isso, pode
acontecer de continuar existindo.
3
Mas acontece que eu inventei aquela história, tá bom? Meu
pai não peida visível, não. Eu só tava querendo inventar alguma coisa bacana.
1
O que? Eu sabia. Não era possível. (ri)
2
Você tá zoando. Por que você inventaria uma coisa assim?
3
Não tô. Eu inventei. Bobeira, ué.
2
É nada. Você tá falando isso pra se safar agora. Eu sei o
que eu vi.
3
Vá perguntar pro meu pai se ele peida visível, então.
1
Ixi, te pegou.
(silêncio)
3
Eu tenho que ir.
2
Cara, eu tinha certeza. Eu juro que eu vi uma fumacinha
marrom.
3
Pare de inventar asneira. Não é possível isso, você
imaginou.
1
É. Pode crer. Que bosta. Eu vou com ele. Meu pai vai
peidar na minha cara se eu chegar muito tarde.
3
Tchau. A gente se vê amanhã.
1
Até mais, cara.
2
Tchau. Até.
(2 fica sozinho; ele se mostra abatido)
2
Puxa vida...
(por fim ele solta um peidinho e uma fumacinha sai da
bunda)
(black-out)
5.
DE BOM
1
Ei sobrinho, o que você quer fazer de bom quando crescer?
2
Eu quero ser artista igual você, titio. Quero fazer
filme, escrever poesias, virar hippie, dar autógrafos. Vou prestar Artes
Cênicas na Unicamp. Quando eu fizer dezesseis anos eu já quero tirar o meu DRT
provisório, por que antes, quando eu fizer doze, eu já vou entrar no curso que
a prefeitura oferece. E aí eu vou ter material pra ser profissional antes mesmo
de um diploma. Porque ser artista é isso, tio. Lembrar de guardar as fotos e as
manchetes de jornais pra se comprovar na carteira profissional.
3
Se prepare pra aprender a gostar de tomar no cu, então. É
só isso que eu tenho pra falar.
(black-out)
6.
RELACIONAMENTO
MODERNO
1
Eu acho que eu quero terminar.
2
Você acha?
1
Não, quero terminar mesmo.
2
Terminar o que? Nós nunca tivemos nada.
1
Pois é. Sei lá.
2
Então quer terminar o que?
1
Nós.
2
Você quer acabar com nós?
1
Não acabar com nós. Acabar com o que temos.
2
E o que temos? Que eu nunca soube.
1
Sei lá. Isso. O sexo.
2
Eu pensei que por estarmos testando essa nova forma, a
gente fosse durar por mais tempo.
1
Ah, no fim das contas sempre foi igual, vai.
2
Como assim?
1
Era aberto, mas não deixava ser um compromisso. No fim
das contas, era pra você que eu tinha que contar depois.
2
É. Era pra mim. E é isso que você decidiu que não quer
mais, então?
1
É. É isso. Amizade, se você quiser.
(silêncio)
2
E por que? Por que decidiu quebrar essa parceria que
tanto dava certo? Pra que se você pode ficar com quem você quiser a hora que
você quiser?
1
Existe por que pra essas coisas?
2
Lógico que existe. Se eu tô perguntando é porque existe.
1
Sei lá. Eu não queria estar tendo essa conversa. Era mais
fácil a gente seguir pra frente e esquecer.
2
(ri)
1
Do que você tá rindo?
2
É você quem está terminando comigo. Dói menos do seu
lado.
1
E por que doeria se todo esse tempo a gente deixou claro
o que isso significava?
2
E o que significava?
1
Nada. Eu te disse lá no começo. Não era isso? Deveria ser
assim do seu lado também.
2
Pois bem. Não é. Uma das pessoas sempre se fode nesses
casos.
(silêncio)
1
Eu avisei pra levarmos de outro jeito.
2
Realmente. No fim das contas era bem igual mesmo. Sempre
foi. Igualzinho.
(silêncio)
1
Eu tô afim de ter outra pessoa como parceira número um.
2
Eu imaginei. Você tem razão. Foi bom ter sido seu fuck friend. Você é uma pessoa
maravilhosa.
1
Ah, mas não precisamos levar isso como uma despedida.
2
Como não? Você não tá acabando com o “nós”?
1
Sim, mas nenhum de nós dois está morrendo. Podemos ser
amigos ainda.
2
Ah, claro. Certo.
1
Não quer ser meu amigo?
2
A gente já era amigos.
1
Sem sexo, eu digo. Amigos normais.
2
Hum.
(silêncio)
2
A única coisa que vai mudar é que não vamos mais trepar?
1
Exatamente. E o fato de que se formos tentar uma amizade
próxima, você terá que andar comigo e com a pessoa que eu conheci. Porque essa
outra pessoa já existe. Não sei se você se sentiria bem...
2
Mas você vai ter um relacionamento comum com essa pessoa?
É sério agora?
1
Não. É aberto também. Não consigo ficar sem trepar com
desconhecidos.
2
Mas comigo não vai mais poder rolar?
1
É. Não.
2
Entendi. Bom, sem sexo eu não quero.
1
É. Eu não sei se eu ia conseguir brincar de casinha
também.
2
Eu também.
1
Ok.
2
Ok.
1
Ok.
2
Um beijo pra você.
(silêncio; cada um sai para um lado)
(black-out)
7.
PAIS
E FILHOS
1
Pai, você quer que eu seja sincero ou que eu seja um
filho bacaninha?
2
Como assim?
1
Você quer que eu seja sempre sincero com você ou prefere
que eu te faça de idiota e te engane te dizendo o que você quer ouvir?
2
Eu quero que você seja sincero. O que é isso?
1
É quando você fala a verdade sempre.
2
Ah, vá! Você tá me tirando? Que merda que você fez,
moleque? O que foi que aconteceu?
1
Então, eu tô te perguntando. Tô jogando na humildade. Eu
posso ser sincero, ou posso falar o que você quer ouvir.
2
Mas fala logo de uma vez, caramba.
1
Não sem antes saber o que você prefere.
2
Eu não prefiro nada! Tá de castigo por causa dessa
palhaçada.
1
Ótimo.
2
Fala logo.
1
Eu já tô de castigo.
2
Fala se não vai piorar.
1
Eu não vou mais falar.
2
Então tá bom. Eu descubro e aí você vai ver.
1
Descobre o que?
2
Sei lá. Mas quer apostar que eu descubro?
(silêncio)
1
Eu não quero mais fazer Direito. Eu vou fazer Engenharia
Eletrônica. É isso. Eu vou trocar de curso.
(silêncio)
2
É isso?
1
É. Eu sei que você queria que eu fizesse Direito, mas eu
me vejo mais trabalhando com máquinas.
2
Entendi. Você está dizendo o que eu supostamente gostaria
de ouvir.
1
Não, você não ouviu? Eu estou sendo sincero. Eu quero
mudar de curso!
2
Mentira! Eu sei que tem outra coisa! Pode falar, moleque!
Eu vou dar um murro na sua cara, hein.
1
É isso mesmo, pai. Eu juro! Eu estou sendo sincero.
Quando eu minto você acredita, quando eu falo a verdade você acha que é
mentira.
2
Então quer dizer que você mente pra mim! Pode falar. Você
não vai sair daqui enquanto não falar o que tem pra falar.
1
Não era mais fácil ter escolhido a sinceridade? Que você
me compreendesse fosse qual for o caso?
(silêncio)
2
Moleque, fala logo essa porra.
1
Eu tô fumando maconha.
(silêncio)
2
É isso mesmo?
1
É. Dessa vez é.
2
Olha, se você...
1
Eu juro! Eu tô fumando. Pode pegar nas minhas coisas ali.
2
Eu sei que tem outra coisa. Você tá falando as coisas
mais amenas pra se safar. Eu sei disso.
1
Tudo bem eu fumar maconha, então?
2
Não, não é tudo bem! Mas pode falar o que é aquele
negócio! Eu sei que era pior, menino, você não me engana. Você pode enganar
suas “negas”, mas eu você não engana!
1
Tá bom, pai. É que eu sou gay. Era isso que eu queria
falar. Não existe “negas”, são “negos”.
2
Ah, tá bom. Agora tá inventando frescuras? Pode falar,
menino. Pode falar!
1
Eu matei uma pessoa.
2
Que mais?
1
Eu cheiro cocaína também.
2
Uhum.
1
Semana passada eu fique de segunda à quinta na Santa
Efigênia na rua fumando crack.
2
E aí?
1
Eu já peguei no seu pau enquanto você dormia.
2
Que mais?
1
Eu vi que você come a tia Valquíria!
2
Não adianta, menino! Enquanto você não falar a verdade a
gente não sai daqui.
1
Caralho.
(black-out)
8.
TIRO
1
Cara, eu acho que eu tomei um tiro.
2
O que?
1
Olha. (mostra sangue saindo da perna)
2
Como assim, cara? Puta que o pariu.
1
Nem senti. Senti uma apertada só.
2
Meu deus do céu. É tiro mesmo. Caralho, olha esse buraco.
1
Caramba. O que a gente faz, cara?
2
Tá doendo?
1
Não. Na verdade minha perna tá meio que adormecida, sabe?
2
Chama a polícia.
1
A polícia? Foi bala perdida. Melhor chamar uma
ambulância.
2
Tá jorrando sangue.
1
Vixi. Eu sabia que ia dar merda ter vindo aqui. Bem que
minha mãe falou pra eu não sair hoje.
2
A gente nunca ia saber, né? Não mexe muito. Melhor você
sentar.
1
Não. Chama a ambulância aí.
2
Senta, cara. Você tá ficando pálido.
1
Sério? Melhor eu sentar, então. Chame alguém pra poder
ajudar.
(alguém passa)
2
Ei. Você tem um telefone pra emprestar? Meu amigo acabou
de tomar um tiro.
3
Sério?
1
Sério.
3
Caralho, cara. Deixa eu ver. Vixi. Tá doendo?
1
Não muito.
3
Você tem que chamar uma ambulância, cara.
(alguém aparece)
3
(puxa a pessoa nova) Venha ver! Olhe isso. O cara tomou
um tiro.
4
Sério, cara? Como foi isso?
1
Eu tava andando e daí eu senti uma apertada aqui.
2
Bala perdida, a gente acha.
4
Meu deus. Que perigo. Sorte que foi na perna, né?
3
(chama outra pessoa) Você viu que esse cara tomou um
tiro? Olha isso.
5
Deixa eu ver. Nossa, cara! Tá jorrando sangue. Alguém já
chamou uma ambulância?
6
Você tomou um tiro, cara? Como foi isso?
3
Bala perdida.
7
O que tá acontecendo aqui?
2
Ele tomou um tiro na perna.
7
Caralho, sério?
(o 1 começa a passar mal; ninguém repara)
4
Assim, no meio da rua. Olha que perigo. Podia ser seu
filho, cara. Imagina se acerta na cabeça!
8
Quem foi que tomou o tiro?
3
O cara ali.
8
Tá sangrando muito? Eu não gosto de ver sangue.
4
Ele tá ficando roxo, já.
1
Alguém podia, por favor, chamar uma ambulância?
(a pessoa número 4 é atingida por um tiro na cabeça; ela
cai morta)
(longo silêncio; todos olham num segundo de susto)
(de repente, todos, até mesmo o cara que tomou o tiro na
perna, sacam seus celulares e filmam o corpo abatido)
(black-out)
9.
AMARULAS
1
Eu te amortadela. Muito. Você me amacia? Eu sei que me
amarantes um dia. Mas não tanto como eu te amolo. E como te amolestei. Tudo bem.
Eu te amostro mais que tudo nessa vida ainda. Te amordo sim, eu juro, e sempre
te amorderei! Queria que você me amamentasse por igual. Sei que é pedir demais.
Mas nunca é demais implorar por amarulas. (pausa) Se eu te amórbido, você devia
me amartelar. Só não me deixe conviver com esse amorfético sozinho. Se você me
amatasse, eu ficaria feliz só pela importância da sua necessidade de se
misturar amor com amorte. Eu te amortadela, e muito.
(black-out)
10. ÓTIMO
1
Cara, eu nunca soube seu nome verdadeiro. Fala aí.
2
Você não vai querer saber.
1
Se eu tô perguntando é porque eu quero.
2
Te juro. Não precisamos disso.
1
Como assim, cara? É só seu nome.
2
Então foda-se, poxa. É só meu nome.
1
Tá bom. Ótimo saber que você é assim.
(silêncio)
2
Enfim...
1
Mas é foda conhecer alguém só pelo apelido, cara. Fala aí.
O que é que tem?
2
Por que é foda? É normal. É o meu sub nome. Vale igual.
1
A gente cria uma expectativa a partir do nome do sujeito.
É importante a gente saber.
2
Por isso que eu tô dizendo que você não ia querer saber o
meu nome. Exatamente por isso.
1
Mas eu quero. E aí?
2
Mas eu não vou falar. Talvez você me pré-julgue diferente
se eu falar.
1
Nossa, cara, mas seu nome é tão feio assim? Tudo bem,
então. Não quero mais saber, não precisa falar.
(silêncio)
2
Ótimo.
1
Ótimo.
2
Eu tô te dizendo...
1
E de Momô você gosta? Eu acho super tosco Momô.
2
Oi?
1
Momô é melhor que seu nome, cara? É Momô de que? Moisés? É
Moisés, seu nome, é isso?
(silêncio)
1
Tá bom, então, cara. Não fale, se você não quer.
2
É Ótimo, eu já disse.
1
Ótimo, então. Fechô. Puta cara paranoico.
2
É o meu nome.
1
O que?
2
Meu nome é Ótimo.
(silêncio)
1
O que?!
2
Viu?
1
Seu nome é Ótimo?
2
Sim. Ótimo Gomes Junior. Pode rir.
1
É sério?
2
Sério. Pode rir, cara. Não tem problema.
1
Não, imagina. Nossa. Ótimo. Que diferentão, né?
2
Momô é menos pior. Concorda?
1
Pode ser.
(silêncio)
1
Ótimo. Não é tão feio assim, vai. Até que é bom.
2
Bom, não, né? Ótimo.
(black-out)
11.
VOVÓ
1
Mamãe, a vovó disse que não é pra você se preocupar que
tudo vai ficar bem.
2
O que?
1
A vovó tá lá na cozinha e disse que você pode ficar
tranquila que ela cuida do feijão. Ela sabe que você gosta da novela.
2
Menino, você pare de graça.
1
O que foi? Também eu não falo mais nada!
2
Você sabe muito bem que a sua vó já morreu. Não tem graça
essas brincadeiras.
1
E eu tenho só uma avó, mãe?
2
Você sabe que as duas morreram, menino! Pode parar de
graça! O que você tá querendo?
1
Só que você sabe também que a vovó, mãe do papai, era
espírita, não sabe?
2
E o que é que tem isso, menino? Você tá me deixando
nervosa.
1
Ela sabia que podia voltar pra dar algum testemunho ou
alguma força. Entende? Às vezes ela tem alguma mensagem.
2
Ah, é? Então você tá dizendo que a sua vó está na cozinha
cuidando do meu feijão, é isso? A sua vó, mãe do seu pai, que teve um aneurisma
e uma hemorragia no pulmão lá em dois mil e sete, que eu vi morrer, que vi
sendo enterrada, que chorei junto também, agora está segurando a porra da
válvula da minha panela de pressão, é isso? É isso que você tá me dizendo,
moleque?
1
Exatamente isso, mãe. Difícil?
2
Bom, então você fale pra ela deixar que eu mesma cuido
das minhas coisas, tá bom? Que eu mesma sei cozinhar o meu feijão e cuidar do
filho dela, que por algum motivo que eu não sei ainda não chegou. Você poderia
falar isso pra ela, por favor?
(a vó entra)
3
Você cuida? Cuida mesmo? Essa é a terceira vez que você
deixa queimar o feijão só essa semana. Meu filho está passando apuros na sua
mão, coitado. Todos sabemos o motivo da demora. Deus me livre querer agourar
maldição pra sua vida, mas espero que você deixe de ser essa mesquinha e que acredite
nas palavras das pessoas que te amam. Caralho.
(ela sai)
(silêncio)
1
Viu?
(black-out)
12. O
FIM
1
Veja bem. Temos cinco minutos. O que dá pra fazer? Cozinhar
um miojo, fazer uma ligação. (pausa) Cozinhar um miojo. Se eu tivesse um miojo,
se ainda tivesse bateria no meu celular. Quando ficaram sabendo foi uma
loucura. Todo mundo correu pros supermercados pra fazer um estoque. (pausa) Não
vai adiantar, viu. O negócio vai cair e todo mundo vai virar pó. Longe de mim querer
ser pessimista, mas no fim das contas, esse é o tão esperado fim. (pausa) Há
dois meses descobriram que um meteoro estava se aproximando da Terra. E o que
foi que o povo fez? Correu. Correu pra onde? É o que me pergunto. Correu pros
confortinhos. Pras convençõezinhas. Pras mentirinhas e historinhas pra boi
dormir. “Vamos todos morrer unidos, morrer com a família, abraçados num
cantinho em posição fetal! Vamos todos morrer juntos até o fim!” Pff. Não tive
tempo pra pensar no sentimentalismo da dor humana. Eu só consegui pensar na
pena que iria ser. E nem conseguimos chegar num fim bacana pra nossa história.
Era bactéria, dinossauro, primata, nós e pó. Essa foi a historinha desse
planeta de possibilidades infinitas. E daqui cinco minutos foda-se o que foi
disso tudo porque não teremos mais observadores para comentar sobre. Uma pena.
(pausa) Eu ligaria pra uma colega que tive na faculdade, se eu ainda tivesse
bateria. Foi triste não ver um bom desenlace. (pausa) Acho que temos mais
alguns minutos. Não achei que eu fosse ficar tão calmo. No fim das contas,
eu...
(black-out; um estrondo)
(silêncio)
(200 anos depois; dois astronautas entram)
2
Veja. O que será isso? (pega um celular envelhecido)
1
Talvez algum microchip que os antigos habitantes desse
planeta usavam.
2
Consegue fazer funcionar?
1
Vamos ver.
(eles testam alguns fios no celular; de repente ele
acende)
1
Veja. Consegui.
2
Dá pra saber o que é isso? Será que é algum tipo de
armamento? Ouvi dizer que eles eram bastante violentos.
1
Não. Acredito que isso servia como forma de telepatia,
onde eles se comunicavam com pessoas à distância. Antes do meteoro cair.
2
Sério? Como sabe disso?
1
Suponho.
(de repente, o telefone toca um funk dos mais bregas e
popular)
2
Veja! Além de tudo eles cultuavam boas músicas.
1
Até aqui, meu deus? Até aqui?
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