OS ILUMINADOS
PERSONAGENS
Vadinho Tin; JOVEM ATOR
Voz; PRODUTOR(a) DE ELENCO
Penélope Castanho; AMIGA DE VADINHO
Diretor 1; EMPRESÁRIO DE CINEMA
Diretor 2; EMPRESÁRIO DE CINEMA
(pode ser encenado com dois atores)
CENA 1
(Vadinho entra em um foco, com um papel com seu nome,
altura e idade)
VOZ
Entra na luz, querido.
(Vadinho se ajeita)
VOZ
Levanta o papel.
(Vadinho obedece)
VOZ
Vadinho Tin.
VADINHO
Exato.
VOZ
Vadinho, já explicaram mais ou menos pra você o que é?
VADINHO
Olha, mais ou menos.
VOZ
Então, é o seguinte. Nós somos da Smart Casting Brazil,
nós fomos contratos para terceirizar um trabalho da Warner Bros. Pictures, e
estamos selecionando atores pra um longa-metragem de um diretor internacional
que vai fazer um filme aqui no Brasil no final desse ano, começo do ano que vem.
Ele tá buscando gente desconhecida pra um personagem bastante importante e de
destaque, por isso estamos buscando bons atores, e o filme vai ser gravado no
período de novembro a fevereiro do ano que vem. O cachê é de nove mil dólares,
por mês de gravação, inicialmente, com possível proposta de bônus, além da
alimentação e hospedagem. Além das cenas aqui no Brasil o seu personagem também
terá cenas em Pequim e em Londres, durante um mês, quinze dias em cada locação
nos períodos de dezembro e janeiro, incluindo réveillon. Você deverá estar
disponível em todas as datas, em todos os dias durante os três meses de
contrato e deverá ter sigilo absoluto com a imprensa sobre toda e qualquer
relevância do filme e sua produção. Você concorda e está disponível, Vadinho?
Ah, além disso é bom lembrar que existe uma cena de nudez frontal no filme.
Você concorda e está disponível por completo nas datas?
VADINHO
Tá de sacanagem, né?
VOZ
Não faz nudez?
VADINHO
Faço, claro que faço. Eu concordo, eu tô super de acordo.
VOZ
Bom, o teste que a gente vai lhe aplicar foi proposto
pelo próprio diretor.
VADINHO
Quem é o diretor? É famoso?
VOZ
Eu não posso dizer pra você. Essa produção está super
sigilosa com a imprensa e a gente não pode passar mais informações além das que
eu já te disse. Pra falar a verdade, eu também não sei direito. A gente
especula, mas eu também não sei.
VADINHO
Nossa. Tudo bem.
VOZ
Você tem dezessete anos de teatro, então?
VADINHO
Sim, faço dezoito em março do ano que vem. Vou virar
maior de idade no teatro.
VOZ
Hum. Legal. E conta aí o que você já fez.
VADINHO
Ah, bom. Nossa, eu tive um déjà vu agora. Desculpe. É,
bom, eu comecei a fazer teatro...
VOZ
Pode olhar pra mim, não precisa olhar pra câmera.
VADINHO
Desculpe, é que tá escuro. Bom, eu comecei a fazer teatro
com nove anos, na minha cidade natal. Aí depois eu me formei em Artes Cênicas
numa escola bem conceituada na América Latina numa outra cidade também do
interior – e nisso, antes, eu fiquei por dez anos no grupo da minha cidade,
antes de me formar tecnicamente na escola. Aí eu fundei meu próprio grupo, eu
tenho só problemas com visão empreendedora, mas às vezes sai alguma coisa aí e
a gente apresenta. Fiz alguns filmes, alguns curtas-metragens. Dirigi alguns
curtas também. Eu escrevo também, peças de teatro, disponibilizo todos os
textos no meu blog. Fiz publicidade, quatro comerciais. Fiz um longa com uma
diretora conhecida também, a...
VOZ
Tá chato.
VADINHO
Oi?
VOZ
Tá chato. Tá... chato. Desculpe, tá chato. Você não me
entendeu. O teste vai ser isso, entendeu?
VADINHO
Não, mais ou menos.
VOZ
Vadinho, é o seguinte. O misterioso diretor nos sugeriu
que a gente pré-selecionasse por foto uns perfis específicos de oito garotos.
Você é um desses oito que a nossa produção pesquisou. E a gente já leu a sua
auto apresentação cinco vezes pra ter certeza se você era um dos oito, aquela
que você coloca no seu blog. A gente já viu tudo o que tem sobre você na
internet.
VADINHO
Puxa.
VOZ
Dizem que é um diretor que já ganhou mais de um Oscar,
queridão. Isso aqui não é só mais um casting qualquer só pra tapar um buraco de
algum personagem na história; a própria diretoria deixou claro nos
questionamentos que eles estão procurando um novo queridinho brasileiro Warner
Bros. (lê) “The director
really care about the importance of this character to the cinematographic
world, and want to share and give the opportunity to someone who deserves this
honor.” Mais ou menos traduzindo, ele quer dizer que ele quer dar a
chance de lançar uma estrela. É isso.
VADINHO
Calma, peraí. Mas aí ele terceiriza isso?
Calma, peraí. Mas aí ele terceiriza isso?
VOZ
Desculpe?
VADINHO
Se é tão importante assim – esse tal presente que eu
estaria recebendo, que seria uma honra pra mim – ele terceiriza o serviço?
(silêncio)
VOZ
Você está fazendo cena ou realmente perguntando?
Você está fazendo cena ou realmente perguntando?
VADINHO
Eu estou realmente perguntando.
VOZ
(corta o assunto) É o seguinte, garoto, você tem quarenta
minutos pra contar a sua história. E você pulou dez anos da sua existência
naquela primeira companhia de teatro que você falou que participou, e já pulou
direto pra quando você se formou. O que aconteceu nesses dez anos, cara? Nós
temos cinquenta minutos pra cada candidato, a gente já leu a sua história, nós
queremos saber o seu profundo. Eu acredito que o diretor queira saber o que
você faz de importante e o que você ralou pra ter a honra – sim! – de receber
esse personagem, entendeu?
VADINHO
Ah, entendi. Desculpe, é que todas as vezes que a gente
vai fazer um teste, acho que todo mundo espera que a gente seja prático, entendeu?
Eu imagino que o agente de casting tá sempre buscando uma cara específica que
saiba dar bem um texto, sabe. Ninguém quer saber nada da gente, na real. Eu não
gosto muito de enrolação, aí eu pensei em ser mais prático no assunto eu.
VOZ
Pois é, normalmente é assim. Eu, particularmente, tô pouco me fudendo pra sua história, tô sendo sincero. Mas nós vamos selecionar pelas exigências listadas nesse papelzinho aqui na minha mão pela forma que você vai lidar com o teste, entendeu? Como você vai contar, entendeu? Se bater, é você, não importa o que eu ache.
Pois é, normalmente é assim. Eu, particularmente, tô pouco me fudendo pra sua história, tô sendo sincero. Mas nós vamos selecionar pelas exigências listadas nesse papelzinho aqui na minha mão pela forma que você vai lidar com o teste, entendeu? Como você vai contar, entendeu? Se bater, é você, não importa o que eu ache.
VADINHO
Entendi. Então vocês querem que eu dramatize.
VOZ
Não foi só aquilo que aconteceu em dezoito anos de
teatro, né?
VADINHO
Não. Aconteceu coisa pra caralho. (pausa) Mas quem dá importância
pro passado? (pausa; ele dramatiza lentamente) Eu ainda tô tentando me livrar
das sensações que algumas peças me davam. (pausa) Ó, eu até arrepio. Eu até
arrepio em lembrar de tudo. (realmente pensativo) Por que será que ele se
importa? Por que será que ele se importa? (silêncio; ele lembra de alguma coisa
surreal) Meu deus do céu, mas não é possível! Moço, desculpe, você não vai
acreditar, mas eu já escrevi sobre esse dia! Não é um déjà vu. Eu já escrevi sobre o dia de hoje, e eu não tô brincando! Eu
juro! Eu juro!
(silêncio)
VOZ
Exigência número em concordância. Como isso é possível?
(black-out)
CENA 2
(Vadinho e Penélope estão sentados no alto de um prédio
tomando sorvete no pote; ele já contou a notícia há algum tempo, eles estão no
meio da conversa)
PENÉLOPE
Você tá de zoeira.
VADINHO
Eu vou pular.
PENÉLOPE
Pare, idiota. Mas isso é incrível, Val. Não dá pra
acreditar.
VADINHO
Né?
VADINHO
Com o cara do “Iluminado”, cara, que sensacional.
VADINHO
Pois é. Insano, não é?
(silêncio)
VADINHO
Nega, além de tudo hoje eu entrei no Facebook do meu
irmão e três segundos depois ele me chamou pra conversar. Ele nunca me chama
pra conversar, Penélope. Esse mundo é... uma loucura
PENÉLOPE
Ontem que você me ligou também. Eu juro por deus que eu tava
discando pra você. Eu fui apertar o nove e você ligou.
VADINHO
Não, é? Maluquice, cara. Que absurdo.
(silêncio; eles riem)
PENÉLOPE
Nego, agora você vai ser um famoso, cara. Um famoso dos internacionais!
Nego, agora você vai ser um famoso, cara. Um famoso dos internacionais!
VADINHO
Pois é. Caralho.
PENÉLOPE
Caralho. Caralho mesmo.
VADINHO
Ai, ai.
PENÉLOPE
Não é possível isso, seu filho da puta. Não dá nem pra
acreditar. Com o Jack Nicholson. Incrível.
VADINHO
Não é possível mesmo.
PENÉLOPE
Dá raiva de saber que você já sabia, seu puto. Como
assim, gente?
VADINHO
Nega, para! Eu não consigo pensar nisso sem chorar. É
muita maluquice esse bagulho todo. Não é bem que eu sabia, talvez eu que
busquei isso, sei lá... ai, meu deus do céu!
PENÉLOPE
Você tem noção disso, Val?
VADINHO
Tenho e não tenho. Só dá pra rir, cara. Só dá pra rir.
PENÉLOPE
Seus últimos momentos de anonimato, bundão. Já pensou,
cara?
VADINHO
Ai, para, Penélope! Para!
PENÉLOPE
Parabéns, seu bixa.
VADINHO
Valeu. Agora a vida muda.
PENÉLOPE
Agora a vida muda.
(silêncio)
PENÉLOPE
Tome cuidado, hein.
VADINHO
Tome cuidado o que? Você acha que você não vai em todas
as festas em Hollywood comigo, então, queridinha? Você acha?
PENÉLOPE
Uh! Vai que você fica metido.
VADINHO
Eu sou um metido, Penélope, tanto é que há cinco anos
atrás eu escrevi um texto onde o protagonista – que era meu alter ego –
participava de uma seleção para um casting de um longa-metragem internacional
onde o diretor procurava exatamente pela história de vida daquele indivíduo, a
minha história de vida. A questão é: eu inventei o meu futuro, meu futuro já
estava destinado e eu só escrevi uma profecia, ou foi na sorte das
possibilidades?
(silêncio)
PENÉLOPE
Foi na sorte das possibilidades.
VADINHO
(faz cara de que não tem certeza)
(silêncio)
PENÉLOPE
Pode ser que outra pessoa esteja por trás de tudo isso?
VADINHO
Quem, Penélope? Quem mais pensa em mim se não eu mesmo?
Só eu posso ter movido os pauzinhos pra isso acontecer.
PENÉLOPE
A sua simpatia esconde o seu egocentrismo às vezes. Eu
esqueço disso.
(silêncio)
VADINHO
Ums personagem fala a mesma coisa naquela peça que eu
escrevi. Mais ou menos a mesma coisa. Ela fala assim: “Você é um egocêntrico
por dentro, Jorge. Se auto intitula simpático, mas não passa de um egocêntrico.
Eu não posso me esquecer.”
PENÉLOPE
Quem fala isso?
VADINHO
A amiga do personagem da peça. Do Jorge, meu alter ego.
PENÉLOPE
Tá de zoeira.
VADINHO
Juro por deus!
PENÉLOPE
Não, você tá de zoeira.
VADINHO
Tô falando sério, pô!
(silêncio)
PENÉLOPE
Eu morro no final, Vadinho?
VADINHO
Oi?
PENÉLOPE
No final da sua história, eu sobrevivo ou morro?
VADINHO
(ri) Não é bem assim que funciona.
PENÉLOPE
Como assim? Você tá me dizendo que escreveu há cinco anos
atrás que iria passar num teste super importante internacional, e aí cinco anos
depois você realmente passa, e que na mesma peça eu apareço dando o mesmo texto
que a sua personagem dá pro seu alter ego? É isso que você tá me dizendo?
VADINHO
Esse mundo é muito louco.
PENÉLOPE
Eu morro no final, Vadinho? Não precisa ter piedade, pode
falar.
VADINHO
Todo mundo morre no final, né?
PENÉLOPE
Mas eu devo me preocupar? Eu passo dessa noite?
VADINHO
Não é assim que funciona, Penélope. Eu já escrevi
diversos alter egos que se matavam no final e até agora eu não me matei.
PENÉLOPE
Eu sei, eu tô brincando.
VADINHO
Não é que eu previ o futuro, talvez eu só afirmei esse
sonho egocêntrico em papel pro universo tornar mais palpável. Entende? Talvez. Qualquer
um de nós acreditava ser coisa de se sonhar longe, não é? Puta sonho longe e
distante! E artisticamente infantil da minha parte, eu sei! A ideia de ser
famoso é idiotice, eu sei. Mas a questão é que independente de o sonho ser
fútil e imbecil, alguém teria que ocupar esse cargo de qualquer forma. Por que
não eu?
(silêncio)
PENÉLOPE
Você vai ficar metido. Mais ainda.
VADINHO
Me dê uns cascudos se eu ficar.
(ela dá uns cascudos nele)
VADINHO
Não agora! Não agora!
PENÉLOPE
Você já é metido. Imagine depois de dar entrevista no
programa do Jô.
VADINHO
Ah, não viaja. Eu não tenho culpa de as exigências do
diretor terem batido direitinho com a minha vida artística, oras. Isso eu não
tinha previsto nos detalhes.
PENÉLOPE
Tá, a número um foi o texto que você escreveu. O diretor
misterioso exigiu que o candidato dissesse que tudo aquilo era um déjà vu vindo de algum texto teatral do
próprio candidato. Coisa bastante
incomum de acontecer. No seu texto você já sabia que ia contracenar com o Jack
Nicholson?
VADINHO
Não, isso não. E isso eles também só me contaram depois.
Não, isso não. E isso eles também só me contaram depois.
PENÉLOPE
O que mais ele exigiu que bateu?
(black-out)
CENA 3
(Vadinho está no foco)
VOZ
Em deus. Você acredita em deus?
VADINHO
É complicado...
VOZ
Acredita ou não acredita?
VADINHO
Eu acredito que nós somos deus.
(silêncio)
VADINHO
O que foi?
VOZ
“We are
God. It ‘s complicated to undestand”.
“Nós somos deus, é complicado de entender”, está escrito aqui em inglês.
Você disse exatamente o que ele queria que você dissesse. Mas talvez você já
soubesse disso porque você escreveu tudo isso há cinco anos atrás, não é?
VADINHO
Ah, não. Eu já tinha arriscado a falar muito sobre deus em outros espetáculos e achei que esse assunto não se encacharia na história do Jorge, que era um ator em crise existencial, egocêntrico e ateu.
Ah, não. Eu já tinha arriscado a falar muito sobre deus em outros espetáculos e achei que esse assunto não se encacharia na história do Jorge, que era um ator em crise existencial, egocêntrico e ateu.
VOZ
Entendi.
VADINHO
Mas acho válida a questão, pois eu falei muito sobre a
busca de deus nos meus espetáculos. Não nesse em específico, mas já falei
bastante na maioria dos outros. E sobre sexo também, eu adoro colocar palavrão
e putaria em cena.
VOZ
Entendi.
VADINHO
Enfim.
(silêncio)
VADINHO
Eu também...
VOZ
Você canta?
VADINHO
Canto.
VOZ
Bom.
VADINHO
Vai ser um musical? Eu vou ter que cantar?
VOZ
Dá uma palinha pra gente ouvir.
VADINHO
Uma palinha?
VOZ
Isso.
VADINHO
Qualquer música?
VOZ
Sim.
(silêncio)
VADINHO
Já tá escrito o nome de uma música que eu devo cantar aí,
não é?
VOZ
Está. Realmente está. E todos nós estamos na curiosidade
de saber se você vai acertar mais essa. Nós duvidávamos que íamos encontrar
alguém com essas exigências tão específicas, mas aqui estamos, não é?
VADINHO
Eu sou o primeiro candidato a fazer esse teste?
VOZ
Vamos lá, cante uma música qualquer.
VADINHO
Mas assim fica difícil. A probabilidade de eu acertar
seria quase como mágica!
VOZ
Como assim? Você não escreveu sobre tudo isso antes,
cara? Você já deve saber se vai passar ou não, não sabe?
VADINHO
No meu texto Jorge passa no teste. Mas ele não tem que
adivinhar nenhuma música. E ainda estamos aqui, não dá pra termos certeza se
funciona igualzinho. Eu ainda não tenho a certeza se passei ou não, não é?
VOZ
Cante uma música. A primeira que vier na cabeça. Se for
pra ser você, você vai cantar a certa. Não duvido de mais nada nessa vida.
(Vadinho se prepara)
(black-out)
CENA 4
(Vadinho e Penélope continuam com o pote de sorvete)
VADINHO
(canta)
“Não sei por que nasci
pra querer ajudar a querer consertar
O que não pode ser...
Não sei pois nasci para isso, e aquilo,
E o inguiço de tanto querer.
Carpinteiro do universo inteiro eu sou.
Carpinteiro do universo inteiro eu sou.”
PENÉLOPE
E aí você vai e canta Raul Seixas num teste de um diretor
internacional, e era essa a música que ele queria que você cantasse! Pode parar
de graça, Vadinho.
VADINHO
Tava escrito no papelzinho.
PENÉLOPE
Você tá inventando essa porcaria toda, não é possível.
VADINHO
Te juro, menina. Você pensa que meu cu não caiu naquele
palco? Eu parei, respirei e pensei: foda-se. Cantei a primeira música que veio
na cabeça, como ele sugeriu. Tô te falando, Penélope, se era pra ser eu, era
pra ser eu.
PENÉLOPE
Mas esse tal do diretor foi avulso na criação das
exigências ou ele já estava buscando por você? Isso que eu não consigo
entender. Quem é esse cara?
(silêncio)
VADINHO
Uma coisa não anula a outra, acho.
(silêncio longo; eles pensam)
VADINHO
Eu sou foda, cara. Não sou? Puta que o pariu. O universo
conspira pra minha vida, só pode.
PENÉLOPE
Já sei! Obviamente que ele já leu aquele seu texto. Ele
não tá no seu blog? O texto não tá no seu blog pra todo mundo ler?
VADINHO
Tá.
PENÉLOPE
Ele já leu o seu texto. É isso.
VADINHO
Não sei...
PENÉLOPE
Só pode ser isso, Vadinho!
VADINHO
Um diretor internacional que lê em português? Não sei...
PENÉLOPE
Um diretor internacional que queria que você cantasse
Raul Seixas? Não sei! Tô tentando procurar um sentido nisso tudo também. Quem
mais saberia tudo sobre você?
(silêncio)
VADINHO
Realmente, tem uma opção de traduzir os textos no blog.
Realmente, tem uma opção de traduzir os textos no blog.
PENÉLOPE
Viu?
VADINHO
Até daria. Dá pra ler em inglês, mas fica com algumas
falhas do tradutor automático.
PENÉLOPE
Ele já te conhece, Vadinho. Aquilo não foi um teste.
Obviamente ele leu alguns dos seus textos, gostou, aí ele viu alguma setlist sua, ou algum comentário que
você é fã do Raul pela internet, que é ator e fã de cinema. No Google se acha
tudo o que envolve seu nome, Vadinho. Obviamente é isso. Ou é alguém conhecido
seu.
VADINHO
Não sei, parece ser mais estranho que isso... acho que as
estrelas...
PENÉLOPE
Óbvio que parece ser estranho até a gente começar a ligar
os pontos na razão.
VADINHO
Mas ele então queria o que com tudo isso? Nesse caso, se
ele já havia me selecionado pela internet, por que diabos ele daria o trabalho
de terceirizar uma agência de casting, fazer elas me caçarem até me acharem e
fazer tudo parecer como se fosse pela sorte da vida? De qualquer forma, como
foi que ele me achou na internet? Claro, se você jogar meu nome vai ter
bastante coisa sobre mim mesmo. Mas como ele chegou no meu nome? Como?
(silêncio)
PENÉLOPE
Sei lá, né. Talvez o teste e o lance da agência tenham
sido tudo uma encenação. Realmente talvez pra você acreditar na força do
universo, ou sei lá, pra você entender outro tipo de coisa. Esses diretores são
todos pirados nessas viagens.
VADINHO
Mas pra quê? Não era mais fácil me mandar um e-mail
falando que me quer no filme dele?
PENÉLOPE
Ué, sei lá. Cada um com suas iluminações, poxa.
VADINHO
Só se for pra eu pirar que isso tá acontecendo, não é?
PENÉLOPE
Sei lá. Às vezes as coisas são maiores do que a gente
imagina. A gente nem imagina o que tem por trás das coisas boas que acontecem
com a gente.
(silêncio; o sorvete enfim acaba)
VADINHO
Esse sorvete é uma delícia, não é?
PENÉLOPE
É. Muito gostoso.
(silêncio)
PENÉLOPE
Você viu que eu cortei o cabelo?
VADINHO
Será que ele sugeriu aquele teste já me conhecendo? É
incrível de qualquer forma, se ele gostou dos meus textos. Se ele me contratou
porque gostou dos meus textos, é melhor ainda!
PENÉLOPE
E se for mentira?
VADINHO
O que?
PENÉLOPE
E se for mentira, Vadinho? Pense bem. Não é grandioso
demais pra ser verdade? É muito estranho isso. Tô te expondo as possibilidades
do acontecimento, só isso.
VADINHO
Mas eu não entendi, como assim mentira?
PENÉLOPE
Sei lá, e se são uns caras que te pegaram pra te zoar?
Vai que eram uns otários fazendo uma pegadinha. Vai saber, você tem o telefone
da empresa? Nem sabe o nome do diretor.
VADINHO
Não tenho telefone, não peguei. Mas não pareceu, pareceu
bem sério o negócio. Eles falaram que era pra eu esperar que ele ia me ligar
pessoalmente.
PENÉLOPE
Pegadinha é pra parecer de verdade. Essa é a graça.
Quando eu era pequena eu ligava na Raízes FM pedindo música, sabe.
VADINHO
Eu também ligava.
PENÉLOPE
Aí de vez em quando eu ganhava ingresso pra cinema, pra
shows e tal. Uma vez ligaram de volta falando que eu tinha ganhado uma viagem
pra Europa com tudo pago e um acompanhante.
VADINHO
Puta, que da hora!
PENÉLOPE
Adivinha? Pulei de alegria a tarde inteira e esperei eles
retornarem a ligação até minha mãe falar que devia ser um trote, obviamente.
Liguei na Raízes pra ter certeza e essa é a história. Eu nunca fui pra Europa ainda.
(silêncio)
PENÉLOPE
Eles não te deram nenhum contato?
VADINHO
Eu tava tão chocado, eles também estavam de ter me
encontrado... Eu não tava pensando nisso, tava todo mundo perplexo, parecia até
uma cena combinada, e eu só tava pensando em como esse universo é imprevisível
e maluco.
PENÉLOPE
Ou só as pessoas que são idiotas e maldosas. E na verdade
ninguém tá ligando pra ninguém.
VADINHO
Você realmente acha que pode ter sido uma zoeira? Não
pareceu zoeira, eu assinei um contrato.
PENÉLOPE
Você leu o contrato, Vadinho?
VADINHO
Oi?
PENÉLOPE
Você não leu o contrato, Vadinho?
VADINHO
Ah, eu li as primeiras páginas, mas é que...
PENÉLOPE
Meu, você é burro? Não se assina um contrato sem ler,
cabeçudo!
VADINHO
Mas, nega, o pessoal da produção estava me dando os
parabéns. Nas paredes do estúdio tinha uns cartazes de filmes, do... daquele...
do Gladiador, do Oitavo Passageiro, Clube da Luta, do Batman que o Jack
Nicholson é o Coringa, sabe? Não tava dando tempo de pensar muito, eu tava
envolvido no calor daquele momento, poxa. E só depois que me falaram que eu
passei que eles revelaram que eu ia contracenar diretamente com o Jack. Imagine
a minha cabeça, nega! (pausa) Para de falar que é mentira! Não é possível que
fosse uma pegadinha. Pra que aquelas pessoas iriam perder tempo comigo? Eu não
conheço elas. Você conhece aquelas pessoas? Eu não conheço nenhuma delas pra
elas me zoarem desse jeito.
PENÉLOPE
Eu não sei também, Vadinho. Eu tô tentando ajudar a
entender que porra é essa. Jogando as possibilidades pra ver se você entende.
VADINHO
Talvez o universo seja muito louco mesmo. Eu escrevi
sobre isso, nega.
PENÉLOPE
Ou talvez não seja nada disso e daqui alguns dias você se
decepcione quando eles não ligarem mais.
(silêncio)
VADINHO
No momento de agora prefiro pensar que eu sou um sortudo.
Que ele tenha me conhecido pela internet, ou que eu seja exatamente o que ele
procurava pelo destino dos deuses. Não quero pensar que tenha sido um trote,
porque também é improvável na mesma porcentagem que as outras possibilidades.
(silêncio)
PENÉLOPE
É, tudo é improvável até ser real. Se você estiver certo,
pelo amor de deus, pergunte pra esse tal diretor que mandinga foi essa que ele
fez.
VADINHO
Vai ser a primeira coisa que eu vou fazer.
(o celular de Vadinho toca “Cowboy Fora da Lei” do Raul)
VADINHO
Eita.
PENÉLOPE
Desconhecido?
VADINHO
Desconhecido.
PENÉLOPE
Atende!
(com suspense, Vadinho leva o telefone até a orelha)
VADINHO
Alô?
(black-out)
CENA 5
(Diretor 1 e Diretor 2 estão sentados em uma mesa grande,
com muitos papéis; eles leem e carimbam alguns; conversam monotonamente)
DIRETOR 2
Eu fui tomar um café no Starbucks hoje.
DIRETOR 1
Eu gosto. É caro.
DIRETOR 2
É caro. Eu gosto também.
(silêncio; eles continuam o serviço)
DIRETOR 2
Que horas você almoça?
DIRETOR 1
Lá pelo meio dia, uma hora.
DIRETOR 2
Quero ir comer naquele restaurante vegano que tem ali na
esquina.
DIRETOR 1
Sei, eu amo queijo de búfala.
(silêncio)
DIRETOR 2
Vamo comer lá?
DIRETOR 1
Não vai dar. Eu combinei com o Jorge de ir no Mac.
DIRETOR 2
Putz, eu comi no Mac ontem.
DIRETOR 1
Entendi.
DIRETOR 2
Tudo bem.
(silêncio)
DIRETOR 2
Já decidiram quem vai dirigir? Tava tenso a discussão.
DIRETOR 1
Ainda não. Mas isso é o que menos importa. Por mim, pode
ser qualquer um.
(silêncio)
DIRETOR 2
Entendi.
(silêncio)
DIRETOR 2
E aquela esquisitinha do chá? Não veio ainda?
DIRETOR 1
Mudou de cargo. Tá trabalhando na seleção de elenco
agora. Vão contratar outra.
DIRETOR 2
Aquela menina é simpática, né? Prestativa. O melhor café.
Pena que mudou. Essa tem futuro. Troquei a maior ideia sobre filmes cults com
ela, uma vez.
DIRETOR 1
É.
(silêncio)
DIRETOR 2
E o Jack? Se decidiu?
DIRETOR 1
Sim, ele vai fazer. Já assinou o contrato.
DIRETOR 2
Puta, que bacana! Ainda bem. Eu sempre quis conhecer ele.
Vai ser legal. Graças à Warner Internacional.
DIRETOR 1
Graças.
DIRETOR 2
Graças mesmo. Realizando sonhos.
(silêncio)
DIRETOR 2
E a mocinha?
DIRETOR 1
O que tem?
DIRETOR 2
Já escolheram quem vai fazer aquela personagem?
DIRETOR 1
Cara, depois do Jack Nicholson, por mim pode ser qualquer
uma. O resto do elenco agora é de menos. Vão contratar qualquer um que aceite
receber pouco.
DIRETOR 2
Tanto é que é a menina do café que ficou com o serviço de
selecionar o resto do elenco, né?
DIRETOR 1
Pois é. Pra você ver como estão as coisas por aqui.
(silêncio)
DIRETOR 2
Mas o Jack segura.
DIRETOR 1
O Jack segura.
(silêncio; eles continuam o trabalho de revisar e
despachar algumas folhas)
DIRETOR 2
Eu sempre peço o Cheddar MacMelt.
(silêncio; longo silêncio)
(black-out)
CENA 6
(Vadinho atende o celular)
VADINHO
Alô?
PENÉLOPE
Alô?
VADINHO
É você sua idiota!
(ela gargalha)
PENÉLOPE
Aqui quem fala é a diretora misteriosa internacional.
VADINHO
Besta. Quase fez meu coração sair pela boca, sua tonta.
PENÉLOPE
Não desliga, vamos conversar, seu lindo.
VADINHO
Para de graça.
(ele desliga)
PENÉLOPE
Ah, eu queria falar mais sobre nós. Sobre eu e você.
Sobre o filme.
VADINHO
Pare de ser tonta. Minha cabeça tá muito cheia e você aí
tirando sarro. Você me encanou seriamente de isso tudo ter sido uma pegadinha.
PENÉLOPE
Vai que é, né? As possibilidades desse acontecimento são
infinitas. Ou pode ser outra coisa que você nem imagina.
VADINHO
Não é não! O que foi que aconteceu foi que finalmente
reconheceram meu talento. Foi isso que aconteceu. Uma hora ou outra isso iria
acontecer, disso não existe dúvida.
PENÉLOPE
Pode ter mais gente por de trás disso, né. Às vezes mais
do que a gente imagina.
VADINHO
Que cada um pense no próprio cu e nas próprias
iluminações e milagres divinos.
(silêncio)
PENÉLOPE
Sim, que cada um pense no próprio cu sempre.
(black-out)
CENA 7
(Penélope entra em um foco, com um papel com seu nome,
altura e idade)
VOZ
Entra na luz, querida.
(Penélope se ajeita)
VOZ
Levanta o papel.
(ela obedece)
VOZ
Penélope Castanho.
PENÉLOPE
Isso.
VOZ
Você não é atriz, é?
PENÉLOPE
Na verdade não. Eu ando com artistas e gosto de tirar
fotos. Tô fazendo um cursinho de cinema também. É isso que eu faço da minha
vida.
VOZ
Você tem experiência em quê?
PENÉLOPE
Olha, eu fiz um pouco de tudo nessa vida, já, viu. Eu já
trabalhei até de faxineira. Mas já fiz figuração em dois comerciais. Um da Tele
Sena e outro de uma rede de óculos. É que me falaram pra vir fazer esse teste
porque era o meu perfil. A Sarah que me falou.
VOZ
Acho que confundiram. Estamos buscando uma garota bem
bonita, na verdade. (acrescenta) No estilo Gisele.
PENÉLOPE
Entendi.
VOZ
Você é muito bonita, mas é que...
PENÉLOPE
Eu entendi.
(Penélope vai sair)
VOZ
Espere! Desculpe, não me entenda mal.
PENÉLOPE
(segurando o choro) Não tem problema, moço. Eu sei como
funciona essas coisas.
VOZ
Mas nós estamos buscando alguém que trabalhe aqui na
produção com a gente também. A gente tá precisando de uma assistente pra galera
aqui. Você tem interesse? Você não tá fazendo faculdade de cinema? Um estágio!
PENÉLOPE
Não precisa ficar com dó de mim, não, viu. E é só um
cursinho.
VOZ
Você acha que eu ia inventar uma vaga de trabalho por dó?
A gente tá realmente precisando de alguém que não se importe de ajudar a varrer
o estúdio, por exemplo.
PENÉLOPE
Não, eu não me importo mesmo.
VOZ
Então. R$1200 reais por mês. Mais vale alimentação e
transporte. Tem interesse? Mas tem que entregar café e chá pros chefinhos, vez
ou outra.
PENÉLOPE
Tenho, tenho interesse sim. Eu já segurei o boom em um
curta-metragem uma vez, na prática. E já fui personagem de uma peça de teatro. Não
me importo de entregar café, vez ou outra.
VOZ
Ótimo.
PENÉLOPE
Ótimo.
VOZ
Você começa hoje mesmo, então. Gostei de você.
PENÉLOPE
Eu sou uma pessoa bastante prestativa. E acredito no
destino das coisas. Uma porta se fechou, mas outra se abriu logo em seguida.
(silêncio)
VOZ
É. Pois é. Pode começar levando essas bolachinhas lá pra
dentro.
PENÉLOPE
Seria um enorme prazer.
VOZ
Pode parar com isso também.
PENÉLOPE
Sem problemas.
(black-out)
CENA 8
(Vadinho e Penélope estão no prédio; ele anda na beirada
do edifício enquanto ela bola um baseado)
VADINHO
Eu não sei mais o que pensar. Vamos ver e deixar
acontecer.
PENÉLOPE
Sim. Mas não se empolgue tanto pra você não se
decepcionar. Às vezes as coisas não são tão sérias como parecem. Ou elas
acontecem diferente do que a gente espera só pelo ego.
VADINHO
Tem razão. Se tiver sido só uma pegadinha, não tem
problema também. É tudo pra aprender alguma coisa.
PENÉLOPE
Sim. E se for verdade, também pode ser que eles cancelem
o filme, sei lá. Acontece. Um monte de coisa pode acontecer.
VADINHO
Um monte de coisa pode acontecer.
PENÉLOPE
Um monte de coisa pode acontecer que a gente nem imagina.
(silêncio)
VADINHO
Mas tomara que dê certo, né? Já imaginou, nega? A vida
vai virar do avesso. Tomara que eu ganhe algum prêmio, né? Que eu seja indicado
pra um Oscar.
PENÉLOPE
Pode ser que seja só um personagem pequeno também.
VADINHO
Ah, mas nem que eu tenha só uma fala.
PENÉLOPE
Sei.
VADINHO
Só de contracenar com o Jack Nicholson. Puxa vida. Mas eu
vou participar de três meses de produção, então, sei lá...
PENÉLOPE
Se for realmente verdade, né...
VADINHO
É. Se for realmente verdade. O que eu espero.
(silêncio)
VADINHO
Eu sou foda, cara. Não sou?
PENÉLOPE
Você é foda.
(silêncio)
(Vadinho e Penélope se atropelam no início de outro
assunto)
VADINHO/PENÉLOPE
E como anda.../ Você sabe...
VADINHO
Ah, pode falar.
PENÉLOPE
Não, pode falar você.
VADINHO
Fala, caralho.
PENÉLOPE
Pode falar você.
VADINHO
Fale o que você ia falar.
PENÉLOPE
Não, fale você.
VADINHO
Ah, eu já esqueci. Não era nada importante.
PENÉLOPE
Eu também. O meu também não era nada importante.
VADINHO
Então tá bom.
PENÉLOPE
Tá bom.
(silêncio)
VADINHO
E seu trabalho lá na produtora?
(silêncio)
PENÉLOPE
Vai bem.
VADINHO
Ainda entregando cafezinho pro chefe?
PENÉLOPE
Sim, minha principal função, Vadinho. Vai que um dia eu
viro diretora, né?
VADINHO
É o que tem por hora, né?
PENÉLOPE
É o que tem por hora.
VADINHO
Já faz quanto tempo?
PENÉLOPE
Não quero nem pensar!
VADINHO
Entendo. (pausa) Por que você tá sendo grossa?
PENÉLOPE
Eu tô sendo grossa?
(silêncio)
PENÉLOPE
Sabe o que eu acho, Val? Eu acho que a gente não pode dar
crédito somente ao nosso trabalho nas nossas conquistas. Todas as coisas ao
redor fazem parte disso, eu acredito. Por exemplo, eu acredito que eu faço
parte do seu sucesso e que mereço o mesmo crédito que você merece.
VADINHO
Pelo meu sucesso?
PENÉLOPE
Exato, pelo seu sucesso, entendeu? Por que eu faço parte
disso, da sua vida, entendeu? Faz quantos anos que a gente se conhece?
(silêncio)
VADINHO
Você tá com medo que eu esqueça de você depois que eu
ficar famoso, é isso?
PENÉLOPE
Não, você não entendeu...
VADINHO
Você vai comigo, sua idiota. Você vai pra onde eu for.
PENÉLOPE
Por que não pode ser o contrário? Você vir pra onde eu
for? Por que você tem que me levar e não o contrário? Você sempre tratou a
nossa amizade assim, Vadinho, como se eu fosse o pega-migalhas.
(silêncio)
VADINHO
Como assim, Pe? O que você tá querendo dizer?
PENÉLOPE
Nada, Vadinho, nada.
VADINHO
Nada uma ova. Eu não entendi, pode falar.
PENÉLOPE
Eu quero dizer que você chegou onde chegou não só pelo
próprio suor e sorte, entendeu? É isso que eu quero dizer.
VADINHO
Cara, como assim? Fui em quem escrevi o meu destino cinco
anos atrás...
PENÉLOPE
Para. (ela se levanta e vai sair)
VADINHO
Ué, não vai fumar?
PENÉLOPE
Você só pensa em você, Vadinho. Tudo é eu, eu, eu. Você
só sabe falar de você, que o universo conspira por você, que as melhores
situações acontecem com você, que você é o foda, o iluminado por deus. Pra sua
informação eu não entrego cafezinho lá na agência faz bastante tempo. Eu tenho
mais importância que os próprios chefes naquele lugar agora! Choque! Você acha
que o Jack Nicholson vai fazer parte do filme porque ele faz parte desse
projeto? Errado! Ele vai participar contratado diretamente com o agente dele,
por um cachê que o seu parece centavos perto. Negócios, Vadinho! É um filme de
negócios! Ninguém tá ligando pra ninguém! Eu sou a única interessada em você e na
porra daquele filme! Mas a direção não serve de merda nessas produções. Já
ficou bem claro isso.
(silêncio)
VADINHO
Calma, eu não entendi, do que você tá falando, Penélope?
PENÉLOPE
Você não precisa entender. Acredite no seu ego e na força
do seu pensamento para mover os pauzinhos.
(ela entrega o baseado para Vadinho e sai)
VADINHO
Mas que caralho. O que foi que eu disse?
(black-out)
CENA 9
(Diretor 1 e 2 estão tomando um café e fumando um
cigarro)
DIRETOR 1
A indústria cinematográfica tá muito chula nos dias de
hoje.
DIRETOR 2
Também acho. Se importam mais com efeitos especiais do
que a pureza de alguma história.
DIRETOR 1
Não digo nesse sentido. Digo mais no sentido que levaram
a parte artística pra um comércio pessoal, entende? Esses jogos de casamentos
entre atores e produtores. Daí que saem as fofocas, viu. De decepções
trabalhistas envolvendo assuntos pessoais.
DIRETOR 2
Entendo. Entendo bem.
(silêncio)
DIRETOR 1
Imagine um bando de gente sensível trabalhando junto com
objetivos financeiros. Só vinganças e discursos de moralidade.
DIRETOR 2
É, pelo menos temos Jack Nicholson pra garantir
bilheteria. Graças a deus.
DIRETOR 1
Pelo menos. Faltou dinheiro pra contratar um bom diretor,
mas quem se importa? Vamos ver onde é que isso vai parar. Tomara que dê o
retorno que a gente espera.
DIRETOR 2
Gosto daquela garota. Talvez ela nos surpreenda. Tem
gente que tem talento de natureza.
DIRETOR 1
O importante é ter um bom cara na edição. A direção é o
de menos. E ainda mais que ela aceitou assinar a porcaria praticamente de
graça.
DIRETOR 2
Fator importante na altura do campeonato.
DIRETOR 1
E eu também acredito um pouco no carma, rapaz.
DIRETOR 2
Como assim?
DIRETOR 1
A mocinha do café virou diretora de cinema. Pense se não
é um bom merchandising?
DIRETOR 2
Um ótimo merchandising.
DIRETOR 1
E acredite, hoje em dia, a assinatura da direção é só
comércio.
DIRETOR 2
A direção é o de menos. Um bom cara na edição resolve
qualquer parada.
DIRETOR 1
A alma do negócio tá na edição.
(black-out)
CENA 10
(Penélope está em um foco)
PENÉLOPE
Eu tenho oito amigos atores que eu gosto muito, que eu
tenho apreço pela história de vida. (pausa) Eu comecei pequena na vida. Comecei
varrendo o chão do estúdio mesmo. Mas quando você quer alguma coisa você vai
atrás da coisa, não importa por onde você vai ter que passar. (pausa) Juro por
deus que eu não estava testando a amizade dos meus colegas, não a amizade
deles. Eu talvez estivesse testando pra ver quem merecia dividir comigo esse
momento tão especial da minha carreira, que talvez eu pudesse dar uma guinada
na carreira de ao menos um deles também. Mas como saber quem merece? É muito
difícil julgar merecedores e não-merecedores do sucesso. De repente Jack
Nicholson assinou o contrato de um filme que eu estou à frente e nada mais
justo que eu divida esse momento grandioso com pessoas que fizeram parte da
minha vida, não é assim? Mas como julgar, se todos esses meus amigos acreditam
somente na própria sorte e no próprio talento. Não me sinto bem quando me
deixam fora dos créditos dos seus feitos.
(música e iluminação grandiosa; Penélope carrega na mão
um Oscar; ela agradece falsamente aos prantos)
PENÉLOPE
Thank you! Thank you! Eu nem tenho como agradecer.
(Vadinho entra; tudo desaparece)
VADINHO
Caralho, Penélope, mas eu não sabia! Eu ia imaginar que
você virou diretora de uma noite pra outra?
PENÉLOPE
Não foi de uma noite pra outra, Vadinho. A questão é que
não foi de uma noite pra outra. Você só olha pro seu próprio cu!
VADINHO
E agora você vai me tirar do filme, então? É isso? Porque
eu não adivinhei que era você.
PENÉLOPE
Não leve como uma vingança. Leve como um aprendizado de
vida.
VADINHO
Penélope, eu não tô acreditando que você vai fazer isso
comigo.
PENÉLOPE
Quando o filme lançar e começarem a me chamar pras
festas, eu juro que eu te levo, Vadinho.
VADINHO
Penélope!
PENÉLOPE
Ué, o que foi?
Ué, o que foi?
VADINHO
Você tá sendo infantil!
PENÉLOPE
Eu tô sendo infantil, Vadinho? Agora há pouco você ia me perguntar
alguma coisa, e a gente começou a falar juntos, e você falou que não era nada importante
e que tinha esquecido! E aí logo depois, porque eu não perguntei nada também,
você faz a primeira pergunta sobre mim, sobre a minha vida durante todo esse
tempo que a gente conversou! O que eu concluo? Que eu não sou nada importante
na sua história, é isso o que eu concluo, Vadinho.
(silêncio)
VADINHO
Penélope, mas que paranoia é essa?
PENÉLOPE
Não sei se é paranoia não. Mas e se for, que cada um
fique com a sua.
VADINHO
Poxa, desculpa.
(silêncio; Penélope suspira)
VADINHO
E quem foi que passou no teste, então?
(Penélope se irrita novamente)
PENÉLOPE
Você não conhece ele. Por incrível que pareça, eu tenho
mais amigos do que você conhece, Val.
VADINHO
Pe, pelo amor de deus! Me deixa fazer uma ponta, pelo
menos! Eu não acredito que você vai dirigir um filme com o Jack Nicholson e vai
me deixar por fora disso.
PENÉLOPE
Eu dei a chance de você conhecer as possibilidades de um
agradecimento sincero, Vadinho. Inventei tudo aquilo pra ver quem iria se
lembrar de mim nessa história. E não, você agradeceu até as estrelas, mas nada
de me agradecer. Passamos por diversas possibilidades do que poderia ter
acontecido e em nenhuma delas você me incluiu.
VADINHO
Porra, mas depois sou eu que só penso em mim, é isso
mesmo? Eu não sabia!
PENÉLOPE
Pois é, pois vai pra puta que o pariu, Vadinho. Eu também
tenho o direito de ser egoísta.
VADINHO
Penélope! E eu ia imaginar tudo isso? Puta reviravolta!
PENÉLOPE
Me deixa em paz, Vadinho. Eu já fiz a minha escolha.
Diretores de cinema são malucos e cheios de manias. E a gente busca mais do que
uma carinha bonita que saiba dar bem o texto, sabe. Digo, bons diretores de
cinema. O que eu pretendo filmar, vai ser único, mesmo com os produtores não
dando a mínima pra tudo isso.
VADINHO
Nada mais fácil do que ter um Jack Nicholson como muleta,
né.
PENÉLOPE
Vai se fuder. Vai embora. Eu já te dei a sua chance de
ser menos egocêntrico, mas você é um bundão. Onde já se viu alguém escrever uma
peça de teatro na função de ser uma profecia para um acontecimento do futuro?
Piada, né?
VADINHO
Onde já se viu amigos abandonarem amigos em oportunidades
tão únicas?
PENÉLOPE
Vaza, Vadinho. Um dos meus oito amigos está pulando de
alegria na casa dele nesse momento. Tente pensar na alegria dele pra se
reconfortar.
VADINHO
Entendi.
(silêncio)
VADINHO
Valeu.
(Vadinho sai lentamente cabisbaixo)
PENÉLOPE
Cada um que olhe pra sua iluminação própria, afinal.
(num telão vemos um Trailer Teaser de algum filme com
Jack Nicholson e um desconhecido; por fim vemos o escrito: DIRIGIDO POR
PENÉLOPE CASTANHO)
(black-out)
FIM
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