CONTE COMIGO

CONTE COMIGO

PERSONAGENS
William
Bruna
Luana
Fernandão

CENA 1

(WILLIAM EM UM FOCO, CONVERSA COM ALGUÉM)

WILLIAM
Faz um favor? Escuta, eu tô precisando de uma ideia. É de uma ideia que eu tô precisando. A gente sempre esteve na parceria, preciso que me ajude a contar um negócio. Vale qualquer coisa, que conte comigo e mais uns três. Estamos na correria e precisamos só de uma ideia, uma base. Como é que eu posso dizer? Bem, um jeito novo de se contar algo pra alguém, entende? Algum novo assunto, uma nova teoria. Um novo testamento, sei lá! Precisamos revolucionar essa bagaça e não dá tempo de a gente ficar brincandinho de adolescente nessa porra mais. Sabe aquela coisinha mais ou menos que a gente costumava fazer? Já era.  Novos tempos, novas luas. É tão difícil organizar a cabeça e imagine só criar uma ideia! Quem vai pagar pra ouvir crise existencial de bicho grilo? Tudo o que a gente falar tem que estar embasado pra não ficar ridículo e pra depois não nos contradizermos na vida. Então nem adianta a gente pegar um trampo qualquer de SIPAT, teatro empresa, – por grana – pra falar e discursar sobre os malefícios do cigarro sendo que quando a gente sai de lá a gente fuma, dois maços por dia! Hipocrisia artística é a coisa que me deixa mais fulo! Tudo bem a gente ser hipócrita um pouco na vida, tudo bem, acontece, é normal, mas não faça uma peça que ensine reciclagem, sobre meio ambiente quando você nem separa seus lixos da vida. É um exemplo, entende? Então, sobre o que a gente pode falar? É tão difícil, a vida é tão... tão... relativa. Tão tosca e ao mesmo tempo impressionante. Não dá pra filtrar um assunto, principalmente se você for um louco varrido que encontra conforto em contar estrelas e tem o site da NASA linkado nos favoritos. Pra quê novelinha de novo, cara? Chega de novela! Você só sabe escrever moldurinhas da vida privada com aquele realismo dois mil e catorze que – se mal interpretada – pode ficar tosco pra caralho, escuta o que eu tô te dizendo. Cuidado com a hipocrisia do crítico, mas mais cuidado ainda com não parar no tempo. Dá medo de não ter nada pra falar, não dá? Não dá medo? Fale a verdade. Dá ou não dá? Quanto tempo você ficou sem escrever direito, como antigamente? Menos de um ano não dá pra ser considerado uma crise criativa. Foi uma pausa e agora bola pra frente! O que você tem pra nos dar?

(black-out)


CENA 2

(pode ser um filme ou uma cena)

BRUNA
Olha, você pode me pedir qualquer coisa. Mas menos isso.

LUANA
A gente não tem ninguém pra fazer, Bru! Por favor!

BRUNA
Luana, eu não sei brincar de fazer isso. Vocês tem facilidade, mas não é assim!

LUANA
Sua louca, pare! Por mim! Por favor! É bem pequeno! Tem poucas falas.

BRUNA
Chame a Renata. Por que você não chama a Renata?

LUANA
A Renata é ruim. Vai, Bruna! O que tem? Vai. A personagem é a sua cara.

BRUNA
Eu não gosto de aparecer em vídeo, eu não gosto de falar. Se vocês quiserem eu ajudo na maquiagem e na produção. Mas como atriz não.

(WILLIAM SURGE EM CENA E ACENDE A LUZ)

WILLIAM
Corta! Beleza, ótimo!

BRUNA
O que é isso? Como assim, vocês estavam filmando isso? Luana!

WILLIAM
É pra peça, relaxa.

LUANA
A gente queria alguém que estivesse falando naturalmente, entende? Sem cena, sem falsidade.

BRUNA
Ai, como vocês são idiotas.

LUANA
Pense bem! Vai rolar aquela dúvida na plateia de se ela realmente tava encenando ou se era uma conversa real.

WILLIAM
Sim! Tomara que a atriz seja boa. Dica pra direção.

BRUNA
Posso não assinar meu direito de imagem.

LUANA
Pode parar de ser birrenta! Bruna! O que é que tem? É pra um trabalho, cara. Quando a gente começar a ganhar dinheiro com isso você vai receber a sua parte.

BRUNA
Pra fazer a maquiagem eu faria de graça, porque é uma coisa que eu gosto de fazer. Mas agora vocês me expuseram. Todo mundo tá olhando pra gente, agora. Eu quero meu cachê, se for pra eu aparecer tanto assim. Eu não tenho esse ego de artista como vocês tem. Eu prefiro mil vezes ficar no back-stage.

(silêncio)

LUANA
Ai, que saco, hein, Bruna. Poxa vida. Dá cinquentão pra ela, Will.

(WILLIAM OBEDECE E BRUNA PULA DE ALEGRIA)

BRUNA
Ai, valeu! Que dá hora! Ganhar cinquentão pra fazer nada. Agora sei porque escolheram isso como profissão.

WILLIAM
Não é bem isso...

(WILLIAM E LUANA DANÇAM UMA MÚSICA INTEIRA; BRUNA ASSISTE DESINTERESSADA)

WILLIAM
É mais do que isso! Vale bem mais! Vale todo uma vida! Vale morrer por ser vagabundo assim! Por dar valor à outros tipo de pensamentos! Vale ser imbecil num mundo de direitos! Vale dar a cara a tapa pros preconceitos e mostrar o cu pros espectadores! Vale ser idiota e falar mil asneiras nesse mundo artístico que está tão coloquial! (RÁPIDO) Perereca, mastodonte, Coca-Cola, frigorífico, rocambole, Roosevelt, Galinha Pintadinha! Não precisa ter sentido pra ser bonito. Basta um corpo presente fazendo coisas de criança, ter a coragem de se expor. Vale voltar a ser bicho. E que xinguem de macaco e vai tomar no meio do cu! Seu preconceito bate no meu direito à existência – focado nas milhões de galáxias ao redor – e não deixa me abater. Se for pra morrer que morra com dignidade. Se for pra se impor, faça isso intelectualmente. Braço, qualquer idiota tem. Sangue, qualquer idiota tira. Quero ver ser especial! Quero ver valer a pena a curta existência! E é pra isso que estamos aqui, não é? Você pra aprender a sua e eu pra aprender a minha e talvez um dia quem sabe chegamos na lua, caralho! Quem sabe chegamos na lua. Quem sabe chegamos na lua. Montar uma peça no buraco de uma cratera olhando pra Terra e pra vocês idiotas. Que terão meu brilho sobre suas casas, e vocês agradecerão a maré dos meus discursos e pensamentos infantis. Vocês agradecerão. E enfim ainda não terá sentido nenhum. Porque a inutilidade de qualquer bosta é eterna.

(ELES PARAM CANSADO)

WILLIAM
Mas a própria inutilidade chega a ser tão curioso que não dá pra ficar quieto. A Terra só quer se expressar em diversos serezinhos pensantes. E é nosso dever não deixar isso ser maçante.  

LUANA
É.

(black-out)


CENA 3

(FERNANDÃO ENTRA EM CENA COM UM VIOLÃO E UM MICROFONE)

FERNANDÃO
Boa noite. Respeite os artistas.

(ELE CANTA ALGUMA MÚSICA ATUAL BREGA; ELE SE ENTREGA E PEDE APLAUSOS QUE DEVEM ACOMPANHAR A MÚSICA; A MÚSICA PODE FALAR DE QUALQUER ASSUNTO AVULSO; EM AGUNS MOMENTOS ELE SE MOSTRA IRRITADO COM ALGUÉM QUE ESTÁ NA PLATEIA; ELE ATÉ MANDA O CARA CALAR A BOCA PELO MENOS UMA VEZ, MAS CONTINUA NA EMPOLGAÇÃO; ELE TERMINA A MÚSICA E AGRADECE UM TANTO MAL HUMORADO)

FERNANDÃO
(COMO SE DISCUTINDO) Não interessa! Porque não interessa! Cale essa boca! Cale essa boca! Foda-se, cara! Foda-se, foda-se, foda-se! Não interessa! Não me interessa! Não quero saber! Você é um caluniador! Caluniador é o que você é! Simpatia é o meu caralho! Não interessa! Artista tem que ser simpático um murro na sua cara! Vai tomar no cu! Eu canto o que eu quiser aqui nessa porra!

(LUANA ENTRA)

LUANA
Calma, lindão. Fique calmo. Desculpa, gente.

FERNANDÃO
O cara tava indagando a escolha da minha canção. Falou que eu sou um vendido. Vendido é sua mãe, aquela puta, seu desgraçado!

LUANA
Para, Fê. Chega. Vamo pra lá, vai.

FERNANDÃO
O que tem se eu não tenho nada pra falar, Luana? E se eu sou só mais um idiota querendo só falar? Só falar, pô. É pra isso que estamos aqui, seu corno!  Deixe eu fazer o meu número nesse espetáculo, pô. É muito pedir isso? É muito pedir respeito? Eu vou ganhar só cinquentão por essa aparição, pô. Eu também quero falar e foda-se o assunto! Você veio, entrou como todo mundo e ninguém amarrou ninguém aqui! Vou cantar o que eu quiser e só por masturbação artística porque eu adoro a minha voz nessa música. E a Luana agora vai fazer um dueto comigo, porque todo mundo adora dueto. (LUANA SE ARRUMA EMPOLGADA) Vendido é seu cu! Fácil falar mal dos vendidos da TV Globo quando você não faz parte desse meio! Vendido é a porra do seu cu, malandro!

LUANA
Fer, você tá brigando com ninguém.

FERNANDÃO
Me deixa terminar, esse cara não cala a boca.

LUANA
Fer, não tem ninguém aí. Você tá discutindo sozinho, não é, gente?

(SILÊNCIO)

LUANA
Mas vamos pro dueto.

(WILLIAM ENTRA)

WILLIAM
Tá bom! Valeu, pessoal.

(WILLIAM ENTREGA CINQUENTÃO PRA CADA UM; ELES SAEM CONTENTES CONVERSANDO)

WILLIAM
Difícil de achar bons números hoje em dia. Parece que tudo já foi inventado. Precisamos dar um gás nessa companhia. Essa dramaturgia tá caminhando pra desgraça. Nós somos muito amadores. (TEM UMA IDEIA) Já sei!

(black-out)

CENA 5

(EM VÍDEO, TODOS OS PERSONAGENS APARECEM COMO UMA REUNIÃO VIA SKYPE)

FERNANDÃO
Pode começar, Will.

WILLIAM
Tá todo mundo me ouvindo bem?

LUANA
Sim.

BRUNA
Sim.

WILLIAM
Fico agradecido de ter aceitado o convite, Bruna.

LUANA
Tive que subir o cachê pra oitenta.

FERNANDÃO
O meu também, né?

LUANA
Não vai dar, Fernandão!

BRUNA
Eu tive que abandonar o inglês pra poder ensaiar. E a Luana falou que eu vou ter só três falas, hein!

LUANA
Quatro, Bruna!

WILLIAM
Olha, vamos focar em outra coisa. Eu sei como é difícil a gente se encontrar e temos que dispor de todo o tempo quando isso acontecer. Então, creio que devamos fazer isso por aqui, todos com as portas trancadas, beleza?

LUANA
Beleza.

BRUNA
Eu tô um pouco preocupada. Talvez a gente devesse fazer isso juntos. E se der merda?

WILLIAM
Só vai aguçar a nossa criatividade, é só isso.

BRUNA
Eu tenho medo de ficar louca.

LUANA
Bruna, pelo amor, vai. Relaxa, meu. Vai ser legal. Portas trancadas aqui.

FERNANDÂO
Aqui também.

WILLIAM
Bruna?

BRUNA
Aqui também.

WILLIAM
Aqui também. Então vamo lá. Foquem na criatividade.

(ELES BEBEM UM LÍQUIDO GROSSO E NEGRO; TODOS FAZEM CARA DE GOSTO RUIM)

FERNANDÃO
Nossa, isso tem gosto de m...

(COM CORTES, VEMOS PASSAGEM DO TEMPO; ELES BRISAM DE FORMAS VARIADAS; COMEÇA LENTAMENTE E LOGO FICAM COMPLETAMENTE LOUCOS; ESQUECEM QUE ESTÃO SENDO FILMADOS E DANÇAM; RIEM, GARGALHAM; CONVERSAM COM A CÂMERA SOBRE ASSUNTOS AVULSOS; ALGUNS PODEM CHORAR; POR FIM, O NEGÓCIO COMEÇA A FICAR SÉRIO E VIOLENTO; ALGUÉM BATE A CABEÇA NA PAREDE E DESMAIA; ALGUÉM SE CORTA COM UMA TESOURA; ALGUÉM GARGALHA E WILLIAM SE MATA COM UM TIRO)

(O CORPO CAI NO PALCO; OS VÍDEOS DESAPARECEM; ELE FALA MORTO)

WILLIAM
A linha entre a realidade física e a loucura da filosofia ao extremo não existe. Por mais que busquemos respostas e busquemos criatividade, o fim será um só. O drama choca. Nós nos vendemos pra ganhar atenção. E pagar nosso cigarro. Pra depois dar tiro na cabeça. Foi tudo tão inútil que dá vontade de ver de novo, se deus quiser. Pra fazer a coisa acontecer basta qualquer coisa. Basta ter coragem de contar de qualquer jeito. Que eu fale em uma língua ou preferência e que você fale na sua. Que você dance enquanto eu só interpreto. Que nossas linguagens se contracenem na vida e crie mais inutilidade para a NASA, para a lua. E que respeitem o suor que não se mede.

(black-out)

CENA 6

(FERNANDÃO ENTRA ACOMPANHADO DE BRUNA)

FERNANDÃO
Você viu que estão enviando um foguete tripulado para Marte?

BRUNA
Sério? Daqui a pouco a gente vai ter de contar histórias da Terra em outro planeta, né? Adoro esses assuntos.

FERNANDÃO
É, a gente não, né? Quem sabe nossos bisnetos.

BRUNA
É.

(SILÊNCIO)

FERNANDÃO
Você falou de contar histórias, eu tava pensando em fazer um projeto de contação de histórias pra crianças, sabe.

BRUNA
Eu odeio trabalhar com criança. Eu já fui aquelas monitoras de parque recreativo, sabe? Criança é duro. Além de paciência tem que ser inteligente pra saber passar exemplo. Eu não sou um bom exemplo nessa vida pra ninguém.

FERNANDÃO
Nem eu. Mas eu tô precisando ganhar uma grana. Cansei de cantar em boteco.

BRUNA
Eu tenho uma entrevista essa semana. Pra trabalhar de recepcionista. Descolei pela internet.

(SILÊNCIO)

FERNANDÃO
Eu não sei fazer outra coisa se não...

BRUNA
Brincar? Mentir? Fingir?

FERNANDÃO
Falar. Pensar.

BRUNA
(GARGALHA)

FERNANDÃO
Ué, o que esperar dessa vida contemporânea? Vamos conversar, é o que tem pra fazer. E falar merda, discutir merda. Porque nenhuma estrela tá se importando com a gente.

BRUNA
Mas e se tiver?

FERNANDÃO
Oi?

BRUNA
E se alguma coisa se importa com a gente? Acho que é muito esquisito a gente pensar que não tem sentido nenhum. Eu acho que eu acredito em Deus, não faz sentido não acreditar.

(FERNANDÃO SE LEVANTA DECEPCIONADO)

BRUNA
O que?

(FERNANDÃO FAZ QUE VAI DIZER ALGO, MAS DESISTE)

FERNANDÃO
Foi mal, gata. Não quero discutir isso.

BRUNA
Tenho culpa de ser fraca no existencialismo?

FERNANDÃO
Mas então você reconhece!

BRUNA
Você me entendeu errado. Eu não acredito no deus que você tá pensando que eu acredito. Eu acredito que existe uma força maior, que eu denomino como deus, porque é esse o nome que deram pra força maior que a gente acredita, entendeu? Não é o mesmo deus.

FERNANDÃO
Você tá falando sobre física, né? A minha religião é a ciência, gata.

BRUNA
Gato, tem um ponto da filosofia mais brisante que só a ciência, sabia? A ciência chegou num patamar que não dá pra onde buscar desculpas. É o que é. E vamos então sonhar, queridão! Não tem pra onde corrermos mesmo. Basta que sonhemos e espalhemos os sonhos.

FERNANDÃO
Sonhos?

BRUNA
Sonhos e sonhos, gostosão! É disso que o espectador precisa! De brisas! Viagens!

FERNANDÃO
Que bosta de teatro moralista e educativo.

BRUNA
É que a palavra “sonhos”, assim como “amor”, já é batido. Principalmente em português.

(black-out)


CENA 7

(WILLIAM E LUANA ESTÃO SE PEGANDO)

LUANA
Eu pensei que você tivesse morrido.

WILLIAM
Foi cena.

LUANA
Você convence bem. Você vai bem no drama.

WILLIAM
E na cama.

LUANA
Cacetudo?

WILLIAM
O que?

LUANA
Eu gosto de homem cacetudo.

WILLIAM
Olha, veja bem...

(FERNANDÃO ENTRA)

FERNANDÃO
Vendidos é o caralho! Só porque a gente vai colocar putaria em cena quer dizer que a gente se vendeu? Se vendeu pra quem? Pra quê precisa ter embasamento pra falar a palavra “cacetudo”, porra? Deixa ela falar. O corpo é dela, regras dela. Não precisa ter desculpa pra todas as nossas masturbações. Quantas gozadas você já não deu gratuitas, porra? (PARA O CASAL) Podem continuar, queridos. Quero ver esse palco pegar fogo hoje. (SAI)

LUANA
Só vou dar se ele for cacetudo. Aí eu dou na frente de todo mundo e não tô nem aí. Não se é puta sem ser artista e vice e versa. A cama pode ser considerado o maior palco de todos os tempos!

WILLIAM
Meu cacete é normal, talvez você considere ele de médio pra pequeno.

(SILÊNCIO)

LUANA
Gosto de homens sinceros.

WILLIAM
Acho que devemos nos focar em contar alguma história. Talvez o compadre ali esteja certo e pode ser mesmo que a gente esteja se vendendo por atenção. Todo mundo adora teatro com gente pelada.

LUANA
Mas qual o problema de teatro com gente pelada, Will? Acho que a gente tem que revolucionar essa bagaça. Fazer seu pinto aparecer duro!

WILLIAM
(RI)

LUANA
O que foi?

WILLIAM
Já fizeram isso antes, Luana. Já tem gente fazendo tudo. Não dá pra ser inovador hoje em dia. Só não vamos apelar por mais esse ponto. Já não basta toda a estupidez de até agora.

LUANA
Ai, Will, o que tem? Eu tô no maior tesão.

WILLIAM
Não acho legal a gente apelar, Luana. Isso é querer parecer cult e não realmente ser. Quando a gente quer ser cult a gente não é, entendeu?

(LUANA RAPIDAMENTE TIRA A ROUPA COMPLETAMENTE)

WILLIAM
Luana! Eu falei que não! Puta que o pariu, Luana!

LUANA
Quer apostar que nosso público triplica na sessão de amanhã?

WILLIAM
Mas quais são os motivos disso, caralho? O que você vai falar pra eles disso amanhã.

LUANA
Não vou falar nada. Porque um corpo pelado não precisa falar nada. É bonito por si só, e todo mundo adora ver os segredos sexuais dos outros. Me examinem.

(UM FOCO DESTACA LUANA NUA; WILLIAM DESAPARECE; POR ALGUNS LONGOS SEGUNDOS A CENA É O CORPO DE LUANA)

(BLACK-OUT)


CENA 8

(EM VÍDEO, TODOS OS PERSONAGENS APARECEM NUS EM CENÁRIOS DIFERENTES; ELES DANÇAM)

WILLIAM/NARRAÇÃO
Conte comigo. Um, dois, três... Vai, conte comigo. Quatro, cinco, seis... Milhões. Bilhões. Trilhões de vezes infinitas formas de se contar uma história. E a gente decide o que a gente quiser. Você decide ouvir e ver o que quiser. Todos decidimos as importâncias das nossas vidas, então não desmereça um jovem ator ou um grupo amador. A boniteza nisso tudo está na liberdade poética. No usar do corpo como escultura moldável pra explicar seja lá o que for! Pra que ter explicação de tudo sendo que não sabemos de nada? Basta deixar se aconchegar. Deixar se aprofundar nos pensamentos. Deixar se levar pela onda que é a lua quem controla. Pode ser pelado, pode ser surrealismo, ou um pseudo-intelectual. Pode ser musicado, pastelão, novela ou técnico. Pode ser da alma, como pode ser do bolso. Pode ser do jeito que quiser, em vídeo, em texto, em corpo. Pode ser. Conte comigo pra ajudar no “pode ser”. Conte pra mim o que deve contar, nunca se esconda! Não dá tempo de ficar se escondendo das convenções de classe. Todo artista é egocêntrico e crítico, mas dance. Só dance, mesmo se sua plateia não for composta de leigos. Só dance.


CENA 9

(A DANÇA DO VÍDEO TERMINA NO PALCO COM OS QUATRO PERSONAGENS VESTIDOS; OUTRO VÍDEO TOMA LUGAR ENQUANTO ELES DANÇAM; NESTE MOMENTO DEVEM-SE APRESENTAR VÍDEOS DE HISTÓRIAS REAIS CONTADAS POR PESSOAS REAIS; HISTÓRIAS CURTAS DE PESSOAS NORMAIS; OS VÍDEOS PODEM SE INTERCALAR; PODE SER GENTE FALANDO POESIAS OU CONTANDO FATOS DA VIDA, SEM ENCENAÇÃO; FINALIZA EM UM PONTO ONDE AS HISTÓRIAS ESTÃO MESCLADAS A PONTO DE NÃO SEREM MAIS COMPREENDIDAS SEPARADAS)

(BLACK-OUT COM OS CORPOS AINDA FRENÉTICOS)

WILLIAM
Faz um favor? Escuta, eu tô precisando de uma ideia. É de uma ideia que eu tô precisando. É só uma ideia.


CENA 10

(QUANDO A LUZ SE ACENDE, OS QUATRO ESTÃO ABRAÇADOS EM RODA; ELES PERMANECEM POR ALGUNS SEGUNDOS)

WILLIAM
Obrigado, gente. Valeu a tentativa.

FERNANDÃO
Valeu a tentativa o meu cu! A gente arrasou. Parabéns, pessoal. Nós somos lindos.

WILLIAM
Seria melhor se eu fosse capaz de contar uma história sozinho. Mas enfim...

(SILÊNCIO)

BRUNA
Calma aí, o que você quis dizer com isso, Will?

LUANA
Tá tirando com a nossa cara, é?

WILLIAM
Desculpem a sinceridade, mas eu não vejo nada artístico nisso que fizemos. Posso apontar um monte de falha dramatúrgica e de iluminação. E a nossa interpretação deixa a desejar. Eu ainda não sei o que eu espero da vida.

BRUNA
Porra, mas agora eu tô percebendo que o maior crítico aqui é você, cara. Você que tá fudendo com a nossa criatividade e força de vontade.

WILLIAM
É diferente quando se está criticando a obra própria.

BRUNA
Mas essa obra não é só sua, é minha também. Eu também fiz parte disso tudo. Todo mundo aqui ajudou, eu também tô suada!

WILLIAM
Você tá aqui por causa de cinquentão, garota. Oitenta! Por causa de oitenta pila.

LUANA
Eu tô aqui porque eu achei que a gente tava querendo fazer alguma coisa bacana.

WILLIAM
Mas a gente já percebeu que a gente não tem nada pra falar, Luana! Se você fosse escrever uma sinopse pra esse espetáculo, o que você iria escrever? “Crise existencial chata com nudez”. Não temos nada pra discutir. No momento político que estamos vivendo, parece que todo mundo já falou tudo, ou pelo menos usou de todos os meios de se expressar. Vamo criar uma página no Youtube, vamo filmar um curta, vamo fazer uma peça! O que mais a gente quer? Onde é que a gente vai chegar? Todo mundo já inventou tudo e não há espaço pra quem quer se expressar com sucesso agora.

BRUNA
Nem todo mundo é um fudido como você, William. As pessoas não são burras.

WILLIAM
E eu vi que não adianta de merda nem fazer sucesso.

LUANA
Vai tomar no cu, viu. Ingrato.

FERNANDÃO
Eu aposto em você, Will.

(SILÊNCIO)

FERNANDÃO
Eu aposto em nós.

LUANA
Não tem mais “nós”.

(LUANA SAI; BRUNA A SEGUE EM SILÊNCIO)

FERNANDÃO
Você cagou no pau, hein.

WILLIAM
Eu amo um dramalhão.

FERNANDÃO
A gente já tá contando uma história, Will.

WILLIAM
É, eu sei.

FERNANDÃO
Não, você não entendeu. É maior entende. Eu tenho a impressão que estamos o tempo todo sendo observados, você não sente isso?

WILLIAM
Desde a hora que o espetáculo começou. É a plateia.

FERNANDÃO
Exatamente. É muito estranho isso tudo. A nossa história já tá sendo contada e as pessoas pagaram por isso. E ao mesmo tempo tão inútil. Tão ordinário, tão comum. Não faz sentido mesmo estarmos aqui. Isso tudo é muito louco.

WILLIAM
Você um dia entenderá a minha crise, Fernandão. Um dia você vai entender.

FERNANDÃO
A sua crise não é maior que a minha e nunca foi. Só pare de ser o clichê de um ator. O egoísmo já tá fora de moda. Vamo ser louco junto.

(LUANA E BRUNA ENTRAM COM UM VIOLÃO E UM MICROFONE; FERNANDÃO ASSUME O INSTRUMENTO)

WILLIAM
Ah, não, gente, mais brega que isso impossível. Agora a gente termina com uma bela canção? Gente, brega, por favor, muito brega.

LUANA
O que é brega?

BRUNA
Você é um idiota, mas a gente te ama, seu bundão.

WILLIAM
Ah, não! “Amor” não, gente. Tudo menos “amor” nesse final, vai.

BRUNA
Todo mundo já entendeu a metalinguagem e todo mundo se esforçou pra gostar da sua história. Fim. Acabou.

LUANA
Quem disse que é o final?

WILLIAM
De qual história que você tá falando mesmo? A gente não contou nada no fim das contas.

LUANA
Já sei que sinopse podíamos dar pro espetáculo!

FERNANDÃO
Fala.

LUANA
“Pensamentos e obra de um artista egoísta que busca um jeito de se contar uma história qualquer”.

FERNANDÃO
Louco.

BRUNA
Simples. Curto e reto.

WILLIAM
Eu sei que eu sou um egoísta, mas cada um que cuide do próprio cu, não é? Não dá tempo de cuidar do cu de todo mundo nessa vida.

LUANA
O que eu gostaria de saber é: qual o seu medo de experimentar um jeito – mesmo que isso seja clichê e comum, William? Por que tanto problema em ser considerado pelos críticos e professores moleque das artes? Foda-se os outros, Will. Moleque é quem acha qualquer intervenção artística, por mais bosta que ela seja, que não deve ter mérito. Arte também é dar a cara a tapa de falar, de cuspir...

BRUNA
De gozar!

FERNANDÃO
De cagar! Palmas pra nós pela delicadeza que expusemos o assunto! Pela sutileza e inovação! Palmas!

WILLIAM
Vocês são fodas. Vocês deviam dar um pé na minha bunda. Mas parem de pedir por mais aplausos no final. Já chega. Eu tô ficando envergonhado. Isso tudo é muito ridículo. Estamos bloqueados, isso é fato.

(WILLIAM SAI)

BRUNA
Esse drama que ele faz é cena, não é possível.

LUANA
Eu me preocupo com ele.

FERNANDÃO
Relaxem, das crises vem os melhores resultados.

BRUNA
Eu não sei mais onde ele quer chegar com essa linguagem dramatúrgica.

LUANA
Pode se esperar qualquer coisa.

(BRUNA DESPENCA NO CHÃO)

BRUNA
Ai!

LUANA
O que foi isso?

FERNANDÃO
Você tá bem?

(LUANA TAMBÉM DESPENCA)

LUANA
Ai! Tava escrito na rubrica! Filho da puta!

(FERNANDÃO TAMBÉM)

BRUNA
Caralho! Ele tá fazendo de propósito.

LUANA
Todos levantam juntos.

(TODOS LEVANTAM JUNTOS)

BRUNA
Ele tá de sacanagem.

LUANA
Meu, é possível uma coisa dessas?

FERNANDÃO
Adoro teatro.

(TODOS DESPENCAM NOVAMENTE)

BRUNA
Para! Seu filho da puta! Para!

LUANA
Machuquei meu tornozelo.

FERNANDÃO
Relaxem, meninas, relaxem! “Fernandão rodopia”. Sou eu!

(FERNANDÃO RODOPIA)

LUANA
Ah, não, isso não!

BRUNA
Bruna e Luana se beijam babando.

LUANA
Não! Não, não, não...

(BRUNA E LUANA SE BEIJAM BABANDO)

BRUNA
Para! Para!

LUANA
Ai, meu deus!

FERNANDÃO
(GARGALHA) Eu sou uma marionete! Marionete é o que eu sou!

(A MÚSICA SOBE E A LUZ CAI EM RESISTÊNCIA)

(BLACK-OUT)


CENA 11

(WILLIAM ENTRA EM UM FOCO)

WILLIAM
Faz um favor? Escuta, eu tô precisando de uma ideia. É de uma ideia que eu tô precisando. A gente sempre esteve na parceria, preciso que me ajude a contar um negócio. Vale qualquer coisa, mas de preferência que seja um monólogo. (PAUSA) Pode me estuprar em cena. Faz qualquer coisa comigo. Me vire do avesso. Eu preciso ser virado do avesso, entendeu? Use de efeitos especiais. Arranque a minha cabeça fora que eu quero ver. Quero sentir e ver minha cara ser outras personas, em outras realidades paralelas, com um rabo. Quero que seja palpável as outras possibilidades do “eu”, de mim. Quero saber como seria ser outra pessoa, foi por isso que eu escolhi essa profissão e isso é uma baita de uma responsabilidade, sabe. (PAUSA) Também é difícil ser egoísta. Ao mesmo tempo que você demonstra segurança, você é o maior inseguro desse mundo. E sozinho. (PAUSA) Eu quero que você me estupre em cena na próxima vez, sem pudor. Contar o que tiver que contar mesmo que isso seja fútil. Conte comigo pra sua inútil futilidade.

(FERNANDÃO ENTRA COM O VIOLÃO ACOMPANHADO DAS MENINAS; ELES CANTAM UMA MÚSICA DE FINAL FELIZ QUE NÃO PRECISA TER A VER COM A HISTÓRIA, E SE EMOCIONAM TOSCAMENTE COM O REENCONTRO; ELES SE ABRAÇAM E SORRIEM PARA A PLATEIA, COMO SE FOSSE O FIM DE UMA GRANDE SAGA; A MÚSICA TERMINA E ELES AGRADECEM)

(BLACK-OUT RÁPIDO; QUANDO AS LUZES ACENDEM OS ATORES ABANDONAM OS PERSONAGENS E AGRADECEM PELO ESPETÁCULO, EM ALGUM MOMENTO TODOS CAEM NO CHÃO, MAS LOGO REVELAM SER MAIS UMA BRINCADEIRA)


FIM


TEXTO DE GABRIEL TONIN



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