A CRISE E OS VAGABUNDOS

A CRISE E OS VAGABUNDOS

PERSONAGENS
O POETA
O MILITANTE
O MARGINAL
A CRISE

O TEATRO É UM MUSEU DE ESTÁTUAS VIVAS. ENQUANTO A PLATEIA AGUARDA O TERCEIRO SINAL, OS TRÊS PRIMEIROS PERSONAGENS ESTÃO CADA UM EM UM PÚLPITO, COM UMA DESCRIÇÃO/EPITÁFIO EM UMA PLAQUINHA.

UMA PLACA DESCE TOSCAMENTE COM O TÍTULO DO PRIMEIRO ATO:
“O MUNDO DOS GUERRILHEIROS INJUSTIÇADOS E REVOLUCIONÁRIOS VAGABUNDOS EM TEATRO SURREALISTA”

NUM DEVIDO MOMENTO, O ESPETÁCULO SE INICIA NO SUSTO.

ATO 1

TODOS
“Nada o vagabundo vai tentar se alimentar-se-á
Nada o vagabundo vai tentar se alimentar-se-á
Nada o vagabundo
Nada o vagabundo
Nada
Nada”

(eles fixam o público)

TODOS
Quem fica pra história, também cagava. Os grandes homens. Em grandes privadas. Espremia espinha e se masturbava.

POETA
As santas, os santos e os Dumont!

MILITANTE
Os revolucionários e guerrilheiros dos direitos humanos!

MARGINAL
O Marquinho dono da biqueira do São Pedro.

TODOS
Nós fazemos parte da história. Eu, você. Você, eu e ele. Ele, eu e você. Você, nós, eles. Nós todos nesse caralho.

(um foco destaca a Crise, de costa para a plateia, em movimentos lentos; ela cantarola em uma aparição surreal)

TODOS
A crise bonita, dos cabelos coloridos, do rosto escondido, se anuncia em recitada poesia.

POETA
(se anuncia) É a minha área! Esse assunto é meu, eu domino!

(o Militante e o Marginal jogam poesias em papel para o alto)

POETA
De repente você nasce pelado, você nasce de dentro da vagina da sua mãe. Desculpe a indelicadeza, eu gosto de ser prático e direto. Aí ninguém avisa pra você que o mundo funciona desse ou de outro jeito, nenhum ser supremo aparece pra fazer alguma indicação real. Simplesmente nascido, cuspido, sem bula. Eu tento, mas eu não consigo me lembrar de nenhum manual de instruções confiável nessa vida, que desse pra tirar real proveito. Até tentam nos enfiar goela abaixo algumas indicações, algumas regras de normatividade, mas no mais, você olha pro alto e tá cheio de pontinhos brilhantes jogando a luz dessa energia cósmica na nossa cara, sem você querer palpitar. Elas simplesmente estão ali, observando indiferente a nossa existência, as estrelas, os planetas. Não importa se a gente tá se amando ou se explodindo, não importa. Nós humanos. A plantinha continua nascendo ali, eu querendo ou não, eu acompanhando o seu crescimento ou não. E é por isso que eu me tornei o que eu me tornei. Perco menos tempo cagando do que sentado na frente do papel, escrevendo, dissertando. Perco menos tempo dormindo do que tentando expressar minhas porcarias que ninguém nem gosta de ler, eu sei. E você me pergunta: “Pra quê então? Pra que serve? Pra que diabos você escreve se não tem espectador nenhum pra contemplar? O que você oferece para esse mundo? Qual é o seu produto?”.

MILITANTE E MARGINAL
“Não diga que você espera ganhar dinheiro com as suas poesias, meu caro. No mundo competitivo de hoje, não há mais espaço pra esse tipo de perda de tempo.”

(silêncio)

POETA
Os gênios em seu tempo sempre são subestimados.

(Militante e Marginal gargalham)

MILITANTE
Essa foi do fundo da humildade.

MARGINAL
Gênio!

(gargalham mais)

POETA
Eu também faço parte dessa história. Por bem ou por mal. Eu também estou vivendo a história rolando, molecada. E a crise existencial faz parte da alma do artista, aceitem isso. É melancolia mesmo.

MILITANTE
Você tem DRT?

MARGINAL
Tem registro profissional?

POETA
Artista não precisa da burocracia.

MILITANTE
E quer viver do que?

MARGINAL
Esqueceu que você também é um animal?

MILITANTE E MARGINAL
Você precisa se alimentar. Você precisa de proteínas. Não se compra nada com dinheiro de mentirinha, com seu jeito de vender poesia.

POETA
Eu não vendo as minhas coisas. Eu simplesmente escrevo. Não creio que eu tenha leitores. Ainda não consegui publicar.

(silêncio)

MILITANTE
Mas, então...?

POETA
É por isso que a crise me visita no meu quarto à noite. Devo a alma para ela. Ela tem me ajudado a pagar meu aluguel, a pagar as minhas contas, porque eu não consigo trabalhar no mundo real pra conseguir me sustentar. Tenho vivido de ganhar esmolas dos amigos, confesso. É uma fase, vai passar. 

MARGINAL
Vagabundo uma vez, vagabundo o resto da vida. Você é alcoólatra?

POETA
Se eu pudesse escrever, pintar, dançar por todos os segundos dessa minha curta existência eu ficaria feliz. É muito pedir isso?

MILITANTE
Meu deus do céu. Sem noção nenhuma. Rodinha de ciranda não muda o mundo, coração.

POETA
Muda sim! Pode acreditar que muda sim!

MARGINAL
Não muda não!

MILITANTE
Cu em teatrinho de porão contemporâneo não muda o mundo! Não adianta de porra nenhuma.

POETA
Muda sim, porra! Muda sim! Adianta sim! Você não tem noção de como muda, cara. 

MILITANTE
Seu produto é muito - como eu posso dizer? - efêmero, meu querido. Você não tem um produto vendável que seja palpável, consegue entender? Ninguém necessita realmente de poesia pra sobreviver.

MARGINAL
É verdade.

POETA
Na verdade necessita sim.

MARGINAL
Não necessita não. Eu, por exemplo, eu tô falando por mim, eu mesmo não necessito de poesia.

POETA
Precisa, necessita sim. Você é que não sabe.

MARGINAL
Se eu tô dizendo que eu não preciso quer dizer que eu não preciso. Eu que tô falando.

POETA
Se eu tô dizendo que você precisa, mas não sabe, quer dizer que você nunca vai assumir que precisa porque você acha que não precisa, mas eu como artista sei que você precisa da arte e a sociedade precisa também. 

MARGINAL
Você viaja.

POETA
Rap é poesia. Rap é poesia, por exemplo.

MARGINAL
(gargalha) Ah, cala a boca! Ó, o cara. "Rap é poesia"! Puta cara burro.

MILITANTE
Ele tem razão, Rap é poesia sim.

(longo silêncio; os três refletem sobre o que é poesia por um tempo; uma luz destaca a Crise novamente)

CRISE
(canta) “A gente faz música e não consegue gravar
A gente escreve livro e não consegue publicar
A gente escreve peça e morre antes de encenar
A gente tá por fora
Tê Mercedes não vai dar
Inútil. Nós somos todos inútil.”

TODOS
Inútil. Inutilizável. Substituível. Desnecessário. Lésbico. Negra. Periférico. Mão de obra mais barata. Amontoamento e controle militar à ferro e fogo.

MILITANTE
A mundo já é doente no centro, creio que todos concordam. Agora imagine que algumas crianças nascem e crescem numa borda dessa merda toda...

POETA
No lugar menos acolhido, esquecido.

MARGINAL
Como esperar por obediência? É de quem menos a gente pode exigir obediência, caralho!

MILITANTE E POETA
No último fio da margem. O marginal mais cruel é tão vítima quanto a sua vítima.

MARGINAL
(se anuncia) É a minha área! Esse assunto é o meu, violência eu domino!

(o Poeta e o Militante jogam papelotes de cocaína para o alto e aparecem com grandes armamentos)

MARGINAL
(vendedor) Cerveja, vinho, cocaína, maconha e loló! (explica) De repente você nasce pelado, você nasce de dentro da vagina da sua mãe. E a merda toda já começa quando o ator negro é o escolhido pra ser o marginal bandido traficante e dono de uma crueldade típica de vilão de quadrinhos de herói. Vejam bem, vocês podem me julgar, tô pouco me fudendo. Todo mundo tem o direito de fazer seu julgamento da vida, de querer dizer o que acha moral e imoral. Esses dias uma tia na rua me disse: “Menino, larga essa vida, vai fazer o ENEM.” “Ô, tia, eu nem terminei o ensino fundamental, não deu tempo pra perder tempo, morô?”. Minha mãe era puta, meu pai era crackeiro. Com dois anos de idade eu tomava chute se eu babasse o leite da mamadeira. A gente era em seis irmãos. Os mais velhos saiam cedo do barraco que a gente chamava de lar pra pedir dinheiro na rua pro meu pai poder comprar a droga dele. Eu não julgo meu pai, cada um tem sua história particular, a vida dele também foi uma merda. Minha mãe se prostituía porque era viciada, também não julgo, também pra comprar a droguinha do meu pai, que ela amava ele também. E aí não deu tempo de criar essa visão empreendedora do mundo, entende? Não deu tempo de pensar que trabalhar pra ganhar oitocentos contos por mês fosse a melhor e mais direita forma de me sustentar, entende? Nem deu tempo de abrir uma multinacional porque as duas pessoas que poderiam me dar algum suporte morreram antes de eu completar dez anos. E aí vida de orfanato pros seis coitados favelados, ranhentinhos. E depois foi tudo morar com a minha vó e uma tia. (pausa) Duas guerreiras. Nenhum dos meus irmãos fez a vida pra direita. (pausa) Aí eu arrumei um trampo uma vez. Um tiozinho me ofereceu cinquentão pra trabalhar carpindo uns terrenos pra ele. Eu tinha uns treze anos, catorze. Cinquentão pra passar a tarde toda no sol, queimando a cuca e criando calo de suor no sovaco. Aí na mesma época um parceiro de bocada me ofereceu duzentão por noite pra passar de aviãozinho de cocaína pros viciados do bairro. Duzentão por três horinhas de trampo, eu conseguia fazer. Noite de festa na cidade, dava pra tirar mais de mil, cara. Pra ajudar minha tia, ajudar uns irmão que tava preso, ajudar todo mundo, caralho! Aí a porra do playboy filha da puta vem me aconselhar pra eu mudar de vida e pra arrumar um trampo, que é mais digno eu me mijar de suor, matando frango, quebrando pedra, carpindo dez, doze horas por dia pra ganhar novecentos reais por mês, até o fim da vida e se aposentar sem ter conseguido nem ir pra Disney? Se liga, meu chapa. Que profissão seria melhor que essa que eu tenho, cara? Eu salvei minha tia e minha vó, porra. Salvei tudo os meus irmão. Por mês eu conseguia fazer a minha vida - quando a polícia não aparecia pra levar o meu dinheiro suado, claro. Porque havia um combinado, entendeu? Há um combinado entre os grandes e os pequenos. Chiu, não falo mais nada sobre isso. (pausa) Comprei motinha, carrinho, Xbox. Comprei namoradinha, levei meus irmãos mais novos em viagenzinha pro Guarujá, reformei a casa da minha tia, TV daquela fininha de parede. Porra, ENEM, tia? Perder tempo na frente do livro? Olha pra minha cara. Eu posso tomar um tiro amanhã e morrer, eu quero mais conseguir ter dinheiro também pra poder curtir a vida enquanto eu tô respirando aqui. Não dá tempo de pensar nas consequência, quando o pior já acontece na sua vida direto.

(silêncio; Militante e Poeta interpretam, talvez com máscaras)

MILITANTE E POETA
Desculpa de vagabundo, será sempre desculpa de vagabundo. Além de traficantezinho de merda, o garoto também roubava carros da Zona Norte. Ladrão!

MARGINAL
Roubei mesmo. Roubei e vou roubar ainda! E só roubo carro de rico, tá bom? Pobre que rouba pobre merece pau no cu. Só roubei carro de gente que tinha mais do que um. Pra que diabos uma família com três ou quatro indivíduos precisa ter oito carros na garagem? Oito carro pra três pessoas, porra! Aquilo existe pra juntar pó enquanto minha vó nem liquidificador tinha? Ela foi ter o primeiro liquidificador dela depois que eu comecei a colocar dinheiro em casa na mesa. 

MILITANTE
Síndrome de Robin Hood. Justiceiro do morro.

POETA
É você quem mede o valor do suor dos outros? A família de três indivíduos que possui oito carros conseguiu com o trabalho. Aposto eu que são todos louros. Bebem vinho e jogam baralho. 

MARGINAL
O valor do meu suor de criança faminta que tomava cacete de pais despreparados não foi levado em conta. Quando os direitos humanos e a assistência social veio tentar fazer alguma coisa pela comunidade, seus louros disseram que estavam tentando relaxar a barra de vagabundo, que assistência social acomoda o pobre. Porra, eu fui saber o gosto de um Danone só depois dos catorze! Caralho! Você tem noção que tipo de merda é essa e como foi que essa cabeça aqui se construiu? Porra!

POETA
A lei foi feita para ser cumprida.

MARGINAL
Se ela está do seu lado sim. Se ela está contra você não. Na rua a lei é da rua.

MILITANTE
Você nem é tão negro assim, cara. Podia sim ter escolhido outra vida. Todo mundo tem uma chance.

MARGINAL
"Você nem é tão negro assim"? Você tá tirando com a minha cara? Que tipo de argumento é esse? Eu nunca tive crise nenhuma pra me emprestar o dinheiro do aluguel, meus caros. Não tinha ninguém que olhasse por mim com dó, nem quando eu tinha nove anos de idade e experimentei maconha pela primeira vez. Eu era uma criança! Aí depois você vem me dizer que eu devia ter feito as escolhas direitas na minha vida pra não cair em desgraça? Eu já nasci desgraçado, sorte na vida de alguém como eu é virar traficantezinho de merda sim. Muitos morrem antes de conseguir o primeiro videogame. A crise pra mim é bosta, porque tudo é crise. Eu cago todo dia. Cagaram em mim literalmente porque onde eu morava não tinha saneamento básico. 

POETA E MILITANTE
Não é porque existe cachaçarias que as pessoas bebem cachaça, é porque as pessoas bebem cachaça que existe cachaçaria.

MARGINAL
Esse pensamento não é mais moderno. Se você perguntar qual o desejo, qual a felicidade de cada jovem nesse planeta, em cada lugar e cultura diferente, qual é a busca e a verdadeira felicidade desses jovens, a resposta será diferente pra cada um. Minha felicidade se dá pelo que dizem que é felicidade aqui nesse lugar que eu vivo. E os jovens da minha idade querem trepar, ir pra balada e jogar videogame fumando um baseado. Fim. Não pude deixar de ficar contente quando eu saí dar rolê com meu primeiro carro com o chassi adulterado. Se não fosse assim, eu teria que carpir e tomar sol na cuca por milhões de anos até conseguir comprar um fusca.

TODOS
Quem é o culpado da existência do marginal? A porra da ideia de felicidade que, infelizmente, só está no alcance de alguns. Dos que nasceram pré-avantajados e, ainda hoje, com menos melanina na pele.

CRISE
(canta) “A gente faz carro e não sabe guiar
A gente faz trilho e não tem trem pra botar
A gente faz filho e não consegue criar
A gente pede grana e não consegue pagar.
Inútil.”

TODOS
Inútil. Na margem. Preto. Pobre. Tomando chute de canalhas. Esquecido e trocado por um caviar. Julgado podre e desnecessário.

CRISE
O mundo precisa de militância! O mundo precisa de militância!

MILITANTE
(se anuncia) É a minha área! Esse assunto é meu, eu domino!

(o Poeta e o Marginal surgem com cartazes com frases de direitos humanos)

MILITANTE
Eu fiz USP. Meu pai paga meu aluguel. Meu pai pagou tudo nessa vida. Tenho conta poupança desde que nasci. A barba de vagabundo é consequência do curso que escolhi. Fiz filosofia. Maconheiro filosófico. Eu podia ter me tornado um empadinha, um enroladinho, defendendo a minha classe de nascença, defendendo o meu direito de não ter que dividir o aeroporto com a probaiada. Eu podia ter me acostumado com as injustiças dessa vida, já que a minha vida particular não era nada injusta. Meu bercinho de ouro ainda está guardado no porão de casa. Tive tudo. Playstation e Xbox. Fiz aula de piano, inglês e teatro. Fui pra Disney duas vezes. A vida me deu vantagem pelo suor de herança. Meu avô foi militar. Meu pai defende a volta da ditadura, claro, pra ele aquela época foi boa. Pra mim, posso dizer que realmente foi boa também, tive tudo de mão beijada por causa da pensão do meu avô. Eu não sou negro, não sou gay, não sou pobre, não sou mulher, não tive motivos pra me revoltar com essa vida, com a forma como sou tratado desde sempre. Eu podia ter ficado quietinho aceitando os milk-shakes e as baladas VIPS que a vida me proporciona todo dia. Mas eu quis ser revoltadinho. Eu chorei com as mortes na Candelária, e eu tinha cinco anos naquela época. Meu pai bravejando que vagabundo tinha que morrer e eu me perguntando por que eu tinha o direito de tomar Danoninho todo dia enquanto tinha criança morrendo na sarjeta pela mão do estado. Me chamam de esquerda caviar. Playboyzinho que defende o que não vive. Depois da maconha e dos meus livros de poesia não consigo mais colocar a cabeça no meu travesseiro de penas e dormir sossegado sabendo da injustiça que isso é. Da injustiça e da falta de oportunidades iguais. “Pois então pegue o seu Iphone e doe pra um mendigo, pegue o seu carrinho e troque por leite pelas crianças da favela.” (ri) O mundo tá cheio de idiotas, e eu tive tudo pra me tornar mais um. Eu não fiz um voto franciscano, não fiz um voto de pobreza, eu não acho que todos tenham que ser pobres, pelo contrário. Eu acho que há prosperidade para que todos gozem da vida com o mínimo de dignidade.

POETA E MARGINAL
Tá com dó? Adote um marginal.

MARGINAL
Me adote, tio. Eu me contento com um Danone por dia.

POETA
Você pensa que vai fazer revolução com seus posts no Facebook, Playboy? Sabe quem tá ligando pro que você pensa?

MARGINAL
Dá um real aí, tio.

POETA
Você pode até ser simpatizante de alguma causa, mas o protagonismo é de outras pessoas. Você é protagonista de historinhas de monarquia, meu caro. E você está no posto de rei, mesmo com essa barba.

MILITANTE
Eu não tinha como ter escolhido a vida que eu tive. Quando eu percebi, eu já tinha tudo.

(o Poeta e o Marginal gargalham)

MARGINAL
Quer trocar?

POETA
Mas mesmo que tivesse tido escolha, aposto que teria escolhido o papai e a mamãe de Higienópolis, né?

MILITANTE
Qualquer um que tivesse escolha escolheria isso. Todos queremos conforto. Eu só quero dizer que eu não me tornei um mercenário que quer lutar por mais e mais e mais. Eu não me tornei no clássico reaça que acha que todo mundo que não cresceu na vida é vagabundo.

POETA
Pois então reparta, Jesus!

MARGINAL
Comece repartindo comigo! Eu nunca andei de avião. Tomei geral a única vez que eu tentei me aproximar de um aeroporto. “Vagabundo não viaja de avião!”, gritaram.

MILITANTE
Eu não sou o culpado das injustiças desse mundo. Eu também nasci pelado.

POETA
Com correntinha e chupeta de morango e chocolate.

MARGINAL
Sem goteiras e córrego cheio de merda como vizinho.

POETA E MARGINAL
Você não muda o mundo sendo o pivô das injustiças. Se você tem o dobro, você tem o dobro pra quê?

MILITANTE
É culpa do meu pai, é culpa do meu avô!

POETA
Fácil colocar a culpa nos progenitores.

MILITANTE
A culpa de você ter se tornado um marginal também é de seus pais. A culpa de você ter se tornado um poeta também. É tudo culpa das gerações que passaram, nós somos vítimas dessa porcaria de sistema!

(Poeta e Marginal gargalham)

POETA
Vitimismo com Toddynho.

MARGINAL
Chupeta com glitter.

POETA
Você é o pior dos vagabundos, queridão.

MARGINAL
Seu suor vale mais que o meu de nascença.

MILITANTE
Eu confesso. Eu sou mesmo um vagabundo. Mas eu quero usar da minha vantagem que eu tenho de nascença pra impedir que exista cada vez mais injustiças.

POETA
E você vai virar o que? Político? Vai se candidatar a deputado pra mamar mais ainda nas tetas da sociedade?

MARGINAL
Ou prefere ser um guerrilheiro da luta armada? Pegar na metralhadora e paçocar a cabeça da polícia e do estado fascista. Não existe revolução sem violência, meu amigo. Se eu ficasse quieto no meu canto, eu já tinha morrido simplesmente por ser quieto e preto. “Muito quieto, muito preto, inútil”.

(silêncio)

MILITANTE
Eu não sou negro, não sou gay, não sou pobre, não sou mulher, não sou artista. Mas eu sou militante de todas essas causas e eu vou defender até o cu do burro pelo direito dessas pessoas.

POETA E MARGINAL
Simpatizante sim. Protagonista não.

MILITANTE
Eu aceito a coadjuvância.

(finalmente a Crise se vira para o público; suspense; seu rosto é indefinido)

TODOS
A crise da juventude abandonada e desesperada. É bonito e digno sofrer pelas injustiças do mundo. Revolução não parece revolução enquanto está na fase da batalha. Terá os que dirão que somos vagabundos, que queremos luxos e conforto sem suar. Terá também os que tentarão nos matar. Terá os que dirão que é perda de tempo porque o mundo já está na merda, que só temos que aceitar as condições. Mas não dá pra dormir em paz. Desenvolvimento de uma nação não é prédios e economia estável. Desenvolvimento de uma nação é bem estar social para os que estão vivos e respirando agora, nesse instante. Todos. Eu e você. Eu, você e ele. Você, ele e eu. Ele, eu e você.

CRISE
Vocês querem saber o que a crise acha?

TODOS
(se ajoelham desesperados) Sim! Sim! Queremos saber! Todos queremos a crise de bom humor e participativa! Ninguém aqui pensa em suicídio, pelo amor de deus!

(silêncio)

CRISE
Vocês já fazem parte da história, meus queridos. Tá vivo? Tá no mundo? Tá no cu do mundo? Faz parte da história. O lado que vocês escolherem defender vai dizer qual reencarnação de parte da sua alma vai continuar existindo. Ninguém lê o que você escreve, mas algum dia alguém lerá. Ninguém se importa com o pobre morto na operação policial, mas seus filhos lembrarão. Ninguém quer saber o que o maconheirinho revolucionário de merda quer dizer pro mundo, mas você ainda vai fazer alguém pensar. Tentar dói e é sofrimento na certa. Mas tentem. Só tem essa vida, só tem essa chance. Não custa tentar. Mudar o mundo é muita utopia, muita coisa de sonhador babaca? Foda-se.

TODOS
Foda-se!

CRISE
É clássico falar que os gênios são inúteis. Todo mundo é taxado como bosta antes de morrer. Mas se o problema é o medo de ser esquecido, sinto em avisá-los que esse é o destino de todos. Nenhuma estrela tá se importando com os nossos amores e as nossas guerras.

(silêncio; a Crise sai de cena quieta)

TODOS
“Nada o vagabundo vai tentar se alimentar-se-á
Nada o vagabundo vai tentar se alimentar-se-á
Nada o vagabundo
Nada o vagabundo
Nada
Nada”

POETA
Poesia não alimenta barriga.

MARGINAL
Tiro na cabeça mata em dois segundos.

MILITANTE
Utopia é coisa de vagabundo.

(as luzes caem em resistência; black-out)


ATO II

UMA PLACA DESCE TOSCAMENTE COM O TÍTULO DO SEGUNDO ATO:
“UTOPIA BABACA EM TEATRO REALISTA”

(quando as luzes se acendem o Marginal está com duas metralhadoras aguardando clientes; o Poeta e o Militante entram ao mesmo tempo)

MARGINAL
O que querem?

POETA
Maconha.

MILITANTE
Eu também.

POETA
Uma só.

MILITANTE
Me vê duas.

MARGINAL
Esperem aqui.

(o Marginal sai; o Poeta e o Militante se cumprimentam timidamente)

MILITANTE
Tá de boa hoje aqui?

POETA
Não sei. Eu vi uma viatura quando eu tava chegando, mas acho que tá tranquilo.

MILITANTE
Eu vi também. Dei um tempo antes de subir.

POETA
Eu também.

(silêncio)

MILITANTE
Só fuma maconha?

POETA
Só, só. Eu gosto de escrever. Maconha me dá inspiração.

MILITANTE
Escritor?

POETA
Poeta. Eu escrevo poesias.

MILITANTE
Legal, cara.

POETA
E você?

MILITANTE
Eu estudo na USP. Faço filosofia.

POETA
Legal.

MILITANTE
É. Feminista, maconheiro, abortista e vagabundo.

POETA
(ri) E petralha também, aposto.

MILITANTE
É o que tem pra defender na altura do campeonato.

POETA
Pois é. Entendo bem.

(silêncio)

POETA
Bom seria se a gente pudesse plantar, né? Morro de medo de ter que ficar vindo aqui.

MILITANTE
É. Mas vagabundo não tem vez, né? Coisas de vagabundos tão em segundo plano.

POETA
É, pois é. (pausa) Quem será que foi o merda que decidiu isso, né?

MILITANTE
Isso o que?

POETA
Que isso é liberado e isso é proibido. É tão absurdo essa merda.

MILITANTE
Pode crer. Sociedade hipócrita do caralho.

(o Marginal retorna)

MARGINAL
Tá aqui. Dez seu. Vinte seu.

(eles pegam e pagam)

POETA
Valeu!

MILITANTE
Valeu, fio!

(eles vão sair, mas param; o Marginal continua na sua pose com as metralhadoras)

MILITANTE E POETA
(começam a falar juntos) Viu...?

MILITANTE
Pode falar.

POETA
Não, por favor. Fala você primeiro.

MILITANTE
Não, por favor, aposto que o que você tem pra dizer é mais importante.

POETA
Imagina, eu sou só um poeta vagabundo.

MILITANTE
E eu um playboyzinho de merda. Pode falar.

MARGINAL
Qual é, caralho? Isso aqui não é reunião social. Pica mula.

(silêncio)

MILITANTE
Eu tenho uma proposta pra vocês dois.

MARGINAL
O que? Proposta de quê, maluco? Pirou?

MILITANTE
Você tem a arma, eu tenho o dinheiro e ele tem a sensibilidade artística. Eu acho que a gente podia fazer alguma coisa pra mudar essa porcaria.

POETA
Puxa vida, cara! Eu acredito muito naquele negócio de que as pessoas não se encontram por acaso, sabe? Eu não ia vir hoje, eu ia deixar pra vir na sexta, mas alguma coisa me fez subir pra comprar esse baseado nesse exato momento por algum motivo. Eu não sabia o que era, mas agora eu percebo. Essa nossa reunião não é por acaso. Eu super concordo com você.

MARGINAL
Mandei picar mula, molecada! Isso aqui não é bala de borracha. Vocês estão me cansando.
MILITANTE
Escuta, desculpe. Você também deve estar cansado das injustiças do mundo, não está? Você mais do que ninguém deve saber que merda é crescer rodeado de violência e sangue. Eu sou um nerd filho da puta que sonha demais, mas eu acho que a gente podia unir as nossas forças e combater de frente esse mundo. De mão armada mesmo e com um pouco de sensibilidade artística. Aí minha participação seria com o dinheiro do meu pai. Tipo o Batman, sabe? Formar um trio de super heróis justiceiros, sabe?

POETA
Eu concordo. Não dá pra gente mudar essa porra só levantando bandeirinha de paz. Você levanta a bandeirinha de paz e faz manifestação pacífica e ninguém dá atenção. Tem que quebrar tudo mesmo. Tem que fazer bagunça pra que essa porra desse mundo acorde de vez.

(o Marginal debocha gargalhando)

MARGINAL
O que é que tá acontecendo aqui? Vocês são surdos ou o que? Mandei vazar. Vaza!

MILITANTE
Meu amigo, veja bem.

MARGINAL
Vaza, caralho!

MILITANTE
Vamo assaltar um banco! Vamo lutar pelos direitos! Você só precisa entrar com as armas e a guerra e a gente faz o resto.

POETA
Eu fico com a parte sensível da coisa. Eu fico com o marketing e a criação das nossas teorias.

MILITANTE
E eu entro com o dinheiro. Meu pai tem muito dinheiro.

MARGINAL
Vocês querem assaltar, é?

MILITANTE
Não que eu precise. Talvez por uma síndrome de Robin Hood. Vamo começar assaltando o meu pai. Roubar o que o rico deve para a sociedade, porque ele tem demais, ele tem sobrando, enquanto tem gente que não tem nada.

POETA
Somos todos taxados de vagabundos mesmo. Não ia mudar nada. Estamos no mesmo barco.

MARGINAL
E vocês querem entrar na luta armada, então? Querem se aliar, é isso?

MILITANTE
Vamos fazer o nosso. Não por grana, por ideologia.

MARGINAL
Em que mundo vocês vivem?

(o Militante retira sua roupa/disfarce e por baixo ele veste alguma roupa clássica de super herói)

POETA
Não acredito.

(o Marginal gargalha)

MARGINAL
Tá de sacanagem.

(o Poeta também faz a mesma coisa e mostra sua roupa de herói)

MARGINAL
Ah, não! Você também!

POETA
Eu estive pensando nisso faz muito tempo. A gente tem que acabar com esses filhos da puta, com os verdadeiros vagabundos e a verdadeira bandidagem desse mundo.

MILITANTE
A elite que dorme bem enquanto outros não têm o que comer.

POETA
Isso!

MARGINAL
Vocês estão assistindo filmes demais.

MILITANTE
Talvez sim.

POETA
Mas não é novo mudar o mundo com arte.

(silêncio; o Marginal pensa contrariado, mas finalmente também revela sua identidade de herói)

POETA
Eu sabia! Eu sabia! Nada acontece por acaso!

MARGINAL
Eu ia numa festa a fantasia hoje.

POETA
Nada acontece por acaso!

MARGINAL
Seu pai tem carro?

MILITANTE
Tem. Meu pai tem carro que ele nem usa. Carro parado e empoeirado na garagem.

MARGINAL
E depois?

POETA
Depois a gente vai atrás dos grandes. Dos que possuem as fortunas.

MILITANTE
E daí a gente joga dinheiro pra comunidade do helicóptero do meu pai. Tipo Robin Hood mesmo.

MARGINAL
Vocês tão ligados que isso daqui tá parecendo um sonho de criança, né?

POETA
E o que nesse mundo não veio de um sonho de criança?

(silêncio)

MARGINAL
Odeio poesia.

POETA
Você pensa que odeia.

MARGINAL
Não, eu odeio mesmo. Vocês tão ligados que a gente vai mexer com as piores pessoas desse mundo, né? A gente vai fazer os piores inimigos do mundo, mexendo com gente rica. Eles estão blindados pelo estado e por todo armamento dos militares.

POETA
Por isso os disfarces.

(silêncio)

MARGINAL
Ai, ai. Eu não tenho nada a perder. E vocês?

MILITANTE
Eu não consigo mais dormir a noite.

POETA
Eu só escrevo sobre injustiças sociais.

(silêncio)

MARGINAL
Ok. Aceito.

(Com uma música de ação eles fazem alguma pose clássica de um trio de super heróis; como se esse fosse o final do espetáculo, eles terminam orgulhosos pelo plano de revolução que tiveram. Inesperadamente os três são metralhados por alguém fora de cena; os corpos caem e ficam mortos por um longo silêncio. Finalmente, a Crise entra vestida de Mulher Gato com metralhadoras)

CRISE
Crises existenciais infantis merecem ser podadas na raiz! Fim do espetáculo!

(black-out)

FIM



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