ARTEIRO (OU ARTISTA) E O REGISTRO PROFISSIONALIZADO NO
SENTIDO EXISTENCIAL E POÉTICO DA COISA
MONÓLOGO EM TRÊS ATOS
PERSONAGENS
Ele
Participação de duas atrizes e um ator, combinados com
antecedência.
ATO I
ELE
Fechem a porra da porta da burocracia e sentem as bundas
por uma liberdade poética infinita! Agradeço a atenção, e o dinheiro da
bilheteria que vai pagar o meu pão de cada dia. Não, eu não sou bom em projetos
profissionais ou trabalhos sócios educativos. Não sou bom de lábia na papelada
burocrática, e na venda do produto – que nem é bem um produto, convenhamos. Eu
só queria colocar o meu cu aqui em jogo e ter gente pra vir assistir, sem
motivo algum, sem ter um porquê, sem precisar exceder as expectativas críticas
de vocês indivíduos de cabeças diferentes. Sem ter que pensar no amanhã, na
janta de hoje, no preço do buzão, no aluguel e na porra do maldito cigarro.
ELE
Eu tenho vivido de favor, por não saber lidar com esse
mundão. Por não querer ter um patrão, por ter medo de suar o sovaco com
trabalhos inúteis para a minha própria e intransferível ascensão espiritual e
existencial. Eu não consigo, eu prefiro morrer a pegar no batente. Vocês não
devem saber do que eu estou falando. Eu também me formei no papel, fui no
sindicato e coloquei meu registro numérico pra funcionar. Significou o quê?
Bosta nenhuma. Um artista que não é louco e consegue se enquadrar no meio
comum, tenho minhas dúvidas da sua capacidade artística e intelectual. “Oras,
eu preciso comer, ninguém enche a barriga com poesia.” Pois eu prefiro morrer a
calar a boca. Vocês, plateia, tem esse direito. Vocês tem esse direito de
levantar a bunda da cadeira e ir embora, ou de me dar um tiro pra calar essa
minha boca inútil e egoísta. Porra, por que só eu vou falar? Podem falar, podem
atirar coisas em mim. O idiota que inventou que isso daqui seria um show de
egocentrismo pra depois do espetáculo vocês virem me dar os parabéns pela minha
desenvoltura cênica merecia um murro na boca do estômago. Que bosta!
ELE
Antes, o teatro servia pra outra coisa. Não tinha essa
divisão. Não existe essa divisão, essa parede aqui, eu não sou o comandante
aqui. Isso daqui era pra ser uma festa, pra gente dançar juntos, pra eu apertar
a sua bundinha, pra gente se divertir. Pra você rir de mim, e eu rir de você,
pra eu te beijar e pra você ficar bêbado com esse vinho, e pra enfim, aprendermos
todos juntos alguma coisa. Mas não. Vocês vem, pagam a mixaria do ingresso,
sentam as bundas e ficam com medo de que eu mexa com vocês. Ficam torcendo pra
que eu consiga fazer vocês rirem, ou chorarem, ou torcendo pra que role algum
tipo de nudez, alguma coisa inovadora; mas tudo em ordem e progresso, sem mudar
muito as regras pra eu não me sentir incomodado. Sinto lhes informar, caros
colegas, mas tudo já foi inventado, tudo já foi feito em cena. Só dá pra gente
se divertir falando o que a gente quiser, sobre o assunto que rolar. Podia ser
uma comédia sobre sexo, uma comédia familiar, uma crítica política, uma dança
poética, um musical pra entretenimento, uma história baseada em fatos reais,
algum assunto social ou o caralho a quatro. Mas não. Eu decidi vir aqui, sentar
a minha bunda no canto desse palco e é essa a arte que eu vim pra mostrar. Gostem
ou não, é isso. Fim.
ELE
Quem julga o artista não deve sair falando mal depois,
deve vir e tacar me um murro na cara agora. Agora é a hora! Vir aqui e falar o
tamanho da merda que eu sou, e não sair espalhando críticas não construtivas ao
tipo e as escolhas de cena que eu fiz durante a apresentação. Vou ficar
desconcertado se alguém me interromper nesse momento? Claro que vou. Vou ter
que dar uma improvisada, porque isso daqui é dramaturgia, e tem começo, meio e
fim. Mas eu iria ficar tão contente. Que alguém viesse agora e me desse um tapa
na cara, ou um beijo na boca, que jogasse esse vinho na minha cara, ou roubasse
o vinho e fosse embora. O que for! Queria tanto chegar aqui nesse palco
burocrático de uma casa burocrática e que algum louco idiota batesse uma
punheta na minha cara e mostrasse que liberdade artística tá na mão do atuante
e na mão do espectador também. No mesmo nível de direitos! Não existe essa
divisão! Não existe essa porcaria de divisão. O mais engraçado de tudo isso, é
que se alguém tivesse me interrompido eu nem teria conseguido continuar com a
minha reclamação e teria que ter pulado todo esse primeiro texto, mas até agora
ninguém. É sempre assim. Rola um medinho do espectador.
ELE
Fiz parte de um grupo que tratava sua plateia como
serviçais. Que acreditava que o público estava ali para servi-los de elogios e
de maconha e de curtidas no Facebook depois do espetáculo. Eu odeio ser
elogiado, não me procurem no final dessa merda. Não me adicionem que eu não vou
aceitar se eu não te conhecer. Não babem no meu saco, não fiquem me bajulando,
porque eu cago igual a todos aqui dentro. Todo dia eu sento na privada e cago
igualzinho todo mundo. Não existe essa sensação de que o artista está num
patamar diferente, intocável e adorado. Eu prefiro dizer que eu estou aqui pra
servir vocês e não o oposto. Eu chupo pau, chupo buceta e peitinhos, dou o cu e
faço o que quiserem. Sou um artista escravo dessa minha plateia linda que pagou
pra me ver atuar, seus lindos. Não puxem meu saco, hoje é minha vez de fazer
isso com vocês.
(Ele distribui taças de vinho para a plateia)
ELE
Gostaria de pedir pra que todos fiquem a vontade, podem
tirar os sapatos se quiserem. Se quiserem tirar a roupa, fiquem a vontade
também. Não há limites aqui dentro desse espaço, estamos aqui pra todos
aprendermos alguma coisa e não só vocês. Vamos lá, gente, eu sou bastante
crítico, e quero que vocês me impressionem.
ELE
Tem gente aqui que nunca havia ido à um teatro antes?
Perigoso ter a primeira experiência com algo desse tipo, mas enfim, cada um tem
aquilo que merece. Algum artista profissional, com registro em carteira de
trabalho? DRT? Ótimo, lindo, grande bosta. Algum formado em academia? Mestrado
ou doutorado em artes? Hum. Medo de vocês. Algum amador amante sensual dessa
porra louquice teatral? Você é o meu tesão, caro amador.
ELE
Vou contar uma historinha. Certa vez um amigo que se diz
ator veio e me disse: “Cara, vamos montar uma pecinha, eu e você. Tô meio
cansadão de trabalhar com iniciantes e amadores. Quero algo com registro
profissional.” Eu cuspi na cara dele. Não, não cuspi, eu sou um bundão na vida
real, só tenho cu e coragem aqui nesse palco, na vida eu sou um merda. Mas
naquele dia eu percebi com quem eu quero andar nessa vida, com qual tipo de
artista eu não quero ter contato. Não, seus anos de experiência teatral não te
faz melhor artista do que o pequeno iniciante aqui. Isso não te dá o direito de
esculachar a arte dessa galera que tá começando agora; na verdade eu acredito
que ninguém tem o direito de esculachar com a arte de ninguém. Gostar é uma
coisa, esculachar é outra. Quantas vezes vi críticos dizendo o que devia e o
que não devia ser feito em cena. Porra, em arte? Em teatro? Claro que eu
entendo que se a proposta é um musical e nenhum dos atores cantam, óbvio que
temos o que apontar como falha. Mas em escolhas de temas e estética? Isso é
muita pretensão. Todo crítico, desses cínicos que se acham maiorais, não tem o
produto pra mostrar pra gente poder criticar em rebate. Um crítico é um cara
que não conseguiu pegar no batente e nem dar o cu à tapa aqui em cima de um
palco. Claro, existem momentos pra uma discussão da arte, do que deve ser
propagado e do que deve ser ignorado. Além dos gostos pessoais, claro que eu
entendo das discussões e da importância de se discutir o proposto. Mas nunca
desanime um grupo amador. Artista profissional tem o mal costume de se achar no
direito de ser escroto, de ser mesquinho e palpiteiro. “Mas você sabe quem é
Brecht? Você sabe quem é Meyerhold?” Meu cu, minha gente! Nunca tentem testar o
coleguinha. Isso é feio, é mesquinho. Às vezes o cara só tá começando, e todo
mundo já esteve no começo, porra!
ELE
Outra coisa que eu odeio é esse tipo de diretor que
precisa mostrar seu poder com estupidez. Claro que as cagadas em um processo de
montagem são fundamentais, mas tem gente que passa dos limites na ignorância.
Tem gente que parece que não tem poder nenhum na vida pessoal, e aí desconta
seu mau humor e sua falta de sexo na vida dos companheiros artísticos. Porra,
gente, arte não é matemática. Tem as suas técnicas, mas tem muito mais vida e
tesão do que uma porra de uma papelada acadêmica. “Ah, então você tá querendo
dizer que o artista não precisa estudar, não precisa de técnica?” Lógico que
não é isso. Um artista parado no tempo vai continuar cometendo os mesmos
deslizes. Mas o que eu abomino é indiferença para com os amadores. Já está no
nome, meus amigos. Eles são amantes e nós transformamos a arte em burocracia.
Porque eu estou com meu numerozinho que o estado comprovou que eu sou artista,
depois que eu paguei os quatrocentos e sessenta reais pro sindicato. Então eu
não preciso comprovar nada mais em cena, é só eu abrir a minha carteira de
trabalho e viver a porra da vida. Vejam. DRT: 38613. O estado me aceitou como
artista. Vejam como eu sou um fodão. Vejam como eu mereço ser aplaudido no fim
dessa merda, porque o estado é quem está dizendo, e quem são vocês pra falarem
que não. E o amador? O amador tá ali fazendo por mais tesão ainda. Me lembro
que quando eu ainda tava começando eu fiquei puto uma vez porque um grupo
profissional que foi se apresentar na minha cidade nem comemorou no fim do
espetáculo. “Porra, como assim eles não comemoram no fim do espetáculo? Eles
não ficam felizes?” Naquela época, quando eu apresentava qualquer porcaria era
um tesão descomunal que me fazia perder o sono. Hoje eu entendo um pouco do que
aquele grupo tinha. Eles apresentavam aquilo todo final de semana, oras, não
tinha mais o que comemorar, a vida era aquela, normalzinha. Quando a arte vira
burocracia e vira a necessidade financeira, o amor, o amante teatral, o tesão
do falar alguma coisa, desaparece e todos nós ficamos chatos e práticos e se
achando no direito de ser melhores que vocês, doce plateia do meu coração. Não
se assustem quando ouvirem de alguém que está envolvido com arte dizer que o
ator/arteiro/artista é melhor e mais inteligente do que quem não é da área.
Isso é uma mesquinharia clássica da nossa gente, peço desculpas desde já por
isso. Mais vinho?
(ele serve pra quem pedir)
ELE
Enfim. Não sei pra que tá servindo tudo isso, mas não
interessa também. Se vocês quisessem uma historinha qualquer, com conflitos e
desenlaces, ficassem em casa assistindo novela. Eu não vim aqui pra isso. Eu
vim aqui pra gente prosear, pra gente poder discutir essa porcaria da
necessidade de só eu falar nessa merda. Talvez seja porque eu tô bebendo há
mais tempo que vocês. Daqui a pouco vocês se soltam. Alguém aí fuma um
baseadinho? Artista careta é o ó, hein? (ri) Com licença.
(Ele vai acender um baseado; a Atriz interrompe)
ATRIZ
Olha, você vai ter que me desculpar, mas essa casa
burocrática segue as leis do estado. Você pode trabalhar profissionalmente como
artista, pode ter o direito de se achar no direito de fazer o que quiser, mas
fumar maconha em um local privado ou público ainda é contra a lei. Me
desculpem. Eu sou responsável pelo local, não posso arriscar.
ELE
Mas na casa do artista pode tudo. Isso faz parte da minha
cena. Tava na dramaturgia, minha querida. Faz parte desse meu personagem fumar
maconha.
ATRIZ
Os vizinhos podem chamar a polícia. Alguém pode se
incomodar aqui. Ao menos que seja maconha de mentira, eu não posso autorizar.
ELE
Mas o Zé Celso fuma maconha o quanto ele quiser. Se
chamarem a polícia eles botam a polícia pra correr. Eu assumo esse risco, eu
assumo a bomba.
ATRIZ
Bem, você não é o Zé Celso. E ele tem o teatro que é
dele. De propriedade dele.
ELE
Porra, mas como eu posso continuar sendo podado desse
jeito? Isso é censura! Ninguém falou que tinha limites aqui nessa porra.
ATRIZ
Você não precisa apelar pra fazer esse tipo de
intervenção artística. O que você quer falar com essa maconha em cena? Que todo
artista é louco drogado? Eu também sou atriz e nem por isso sou uma descabeçada
irresponsável.
ELE
Eu tenho os meus motivos existenciais e poéticos. Pode
não ser importante pra você, mas é importante pra mim.
ATRIZ
Isso daqui tá fazendo parte da cena, no fim das contas?
Era isso que você esperava, não era?
ELE
Mas é claro que não! Eu só queria fumar meu baseadinho. O
resto que se foda!
ATRIZ
Pois fume lá fora, depois que você acabar o que tem pra
falar aí. Aqui dentro não. Desculpem.
(silêncio; a Atriz se retira discretamente)
ELE
Gente, me desculpem. Fui interpelado e não do jeito que
eu achei direito. Eu queria uma intervenção externa, algo que fugisse do
roteiro, mas não que me podassem. Eu não sou artista pra ser podado, entende?
Não paguei os quatrocentos e sessenta reais pra ser impedido de fazer ou falar
alguma coisa, entende? Não é justo limite artístico pra ninguém nessa vida.
Brochei. Dá um black-out aí produção. Valeu. Calma, faz um black-out em
resistência. Isso. Valeu, pessoal.
(black-out)
(em um vídeo, vemos algumas participações do ator em
alguns curtas-metragens ou trabalhos em áudio visual)
ATO II
ELE
Música pra descontrair o ambiente. Vamos voltar a poesia
e à estética teatral. Me mandaram entrar aqui e listar os meus problemas, expor
pra encontrar uma solução. Escrevi essa canção pra eu poder me explicar, só o
violão que tô aprendendo, ok?
“Me mandaram entrar
aqui e listar os meus problemas
Expor para
encontrar uma solução
Escrevi essa canção
pra poder te explicar
Só o violão que tô
aprendendo
Os meus princípios
otimistas
Não sei onde é que
foi parar
O meu discurso
pessimista foi mais fácil de arrumar
E eu só vejo nesse
mundo um destino de fuder
Pra mim e pra você
E não tem “mas”
Não sou sincero
sempre
Quando digo que não
estou bem
Não quero que venha
me abraçar
Legal seria se
dinheiro você pudesse me emprestar
E eu te diria amém
O mundo então vai
ficar bem
“Se deus criou a
rota mata”
Mas aí tá tudo bem
Não tenho dinheiro
pra pagar o aluguel
E nem pra comprar
um Marlboro
Já tá acabando a
minha maconha
E tô devendo pro
mundo
Que vergonha,
inseguro
Vou ter que ligar
pro tio Raimundo
Nem quero ver o que
ele vai dizer
A minha alma pro
capeta agora eu vou ter que vender
Então eu decidi uma
peça montar
E achei que teria
patrocínio
Mas nessa vida de
artista não tem como se safar
Eu sou um grande
amante do ócio
E não veio ninguém
Não vou negar
Com a grana só deu
pra pagar o buzão
Quase não deu pra
alimentação
Eis o meu dilema
Será que a morte é
a melhor e única saída para meus problemas”
ELE
Palmas, caralho! É música de outra peça, mas foda-se. Tá
no Youtube se alguém quiser baixar pra ter no celular. Compartilhem e curtam.
Ajude os artistas sem fomento ou patrocínio cultural. Por que diabos alguém paga pra ver um panaca
fazer macaquices? Essa é a minha grande dúvida existencial. Vocês tem o direito
de pedir o reembolso se vocês não gostarem do que viram, e eu tenho o direito
de não devolver. Cada um tem aquilo que merece. Algum motivo pra estarmos aqui
hoje, existe, não tenha dúvida disso. Nada acontece por acaso.
(o Ator se levanta da plateia, vai até o palco e beija
Ele na boca; eles se beijam por alguns segundos)
ELE
Caralho. Isso sim é inesperado.
ATOR
Tem certeza que a gente não combinou isso antes?
ELE
Se combinou ou não, não interessa. O que interessa é essa
sensação. Meu personagem não esperava por isso, ao menos eu devo fingir que
isso foi espontâneo. Eis a lindeza da magia teatral.
(o Ator volta pro seu lugar na plateia)
ELE
Mais alguém? Façam fila, amados. Tenho beijos e saliva para
todos.
(se tiver mais alguém, ótimo, se não, tudo bem)
ELE
Bom, enfim, ótimo, delícia. Agora é a hora de falarmos
sobre deus, deuses e deusas. Para isso, necessito repetir uma cena de um outro
espetáculo que fiz. Nada se cria, tudo se copia. Só que vou cantar uma música
gospel enquanto preparo o meu chá dessa vez.
(em um liquidificador ele despeja algumas coisas
estranhas misturadas; ao mesmo tempo canta alguma música brega de Jesus)
ELE
Bom apetite! (ele bebe a mistura)
ELE
Crises existenciais artísticas: o que não pode faltar?
Sexo, drogas, estrelas, eu e deus. É o básico do meu estilo teatral. Só vamos
esperar fazer o efeito, já que drogas ilícitas estão proibidas nesse local.
(Ele retira toda a roupa, ficando completamente nu; em
vídeo vemos o universo; ele dança ao som de uma música frenética, ensandecido)
ELE
Foda-se o seu pudor. Corpo nu não é proibido em local
público e/ou privado. Isso é um planeta redondo rodeado por pontinhos
brilhantes de energia. É só um pinto, galera. Não se espantem tanto.
(o vídeo termina com a imagem de uma carteira de trabalho)
ELE
38613. Sindicato dos artistas e técnicos em espetáculos
de diversão. Diversão de quem? Eu tô nesse mundo pra tentar entender alguma
merda. Merda, artistas! Merda! Caralhos e bucetas para nossa alegria!
ELE
Alguém quer trepar? Não precisa ser aqui em cena, pode
ser aqui escondidinho.
(uma das Atrizes se levanta da plateia e sobe no palco)
ELE
Para os iniciantes eu tenho um conselho. Vida de artista
é tipo prostituição. Você está aqui pra vender a sua cara e o seu corpo para o
público. Venha, querida. Vamos ali no cantinho.
(eles saem de cena; black-out)
ATO III
(quando as luzes se acendem, a Atriz volta pro seu lugar
se arrumando discretamente; Ele volta com algum figurino grandioso de um
espetáculo de época)
ELE
Desnecessário. Podia ter feito de outro jeito. Sem
embasamento teórico. Escrachado. Exagerado. Gratuito. Pervertido. Copião.
Clichê. Paga pau. Canastrão. Amador. Falso moralista. Pseudo intelectual.
Dramaturgia contemporânea? Isso tudo era texto pré estabelecido com começo,
meio e fim? Que porra de contradição é essa? Cuidado, artistas de terceiro
grau! Todos viemos ao mundo se achando julgadores com um cajado divino da
verdade absoluta do que se deve ou não fazer. Vou fazer a pergunta mais óbvia para
discussões do tipo: o que é arte? Ah! O que é arte, meu deus do céu? O que é
arte nessa porra? Vou explicar já.
(ele sai e volta com um quadro em branco)
ELE
Vejam bem. Arte não é matemática. Vou fazer um único
ponto nesse espaço em branco.
(ele pinta um pontinho no quadro)
ELE
Obviamente, eu não vou conseguir responder a uma pergunta
tão complexa, mas não existe ponto final nessa discussão, então está tudo
certo. Vejam o que eu desenhei nesse quadro. Alguns dirão: "Não é nada, é
só um pontinho num quadro em branco”. “Isso é arte? Esse cara quer vender esse
quadro pra alguém? Que porcaria de artista esse cara pensa que é?” Gente, pra
mim, esse único pontinho pode significar o tamanho da minha existência nesse
universo entre tantos universos existentes, pode significar o tamanho que eu me
sinto nessa vida de uma folha em branco, nessa loucura da vida, pode significar
até mesmo a minha idiotice como artista cabaço, uma merda qualquer que qualquer
um poderia fazer, mas isso não tira o meu mérito. “Porra, mas ele demorou dois
segundos pra fazer essa merda.” Não interessa isso! Arte não tem a ver com o
seu gosto ou com o gosto de terceiros, arte não precisa ter plateia, eu dei a
opção pra vocês irem embora lá no começo do espetáculo. Eu sei que eu não me
alimento de poesia, que eu preciso ganhar dinheiro de alguma forma pra me
sustentar, mas mais do que isso – porque eu prefiro morrer a fazer outra coisa
da vida – estamos aqui pra nos expressar, seja essa expressão a coisa mais
estúpida e inútil nessa vida. E não vai ser a opinião de um qualquer que vai me
tirar o mérito, e nem a opinião na carteira de trabalho do estado que vai me
dar o direito de ser chamado de artista sim senhor! Eu não vou julgar o seu
trabalho, posso não me envolver com ele, mas eu jamais irei julgar, porque de
julgadores da grande verdade poética o mundo está cheio.
ELE
Eu subi esse morro porque preciso falar com deus. Deus
tem uma mensagem para todos que querem ouvir. Precisei tomar um chá ativador da
mente pra conseguir ser tão brisado assim, mas enfim, quem nunca? E ele me deus
os dez mandamentos do artista moderno. Eis aqui para toda a noção, e para todo
o sempre.
(no telão, vemos os mandamentos um a um)
ELE
1 - Nunca despreze a arte que você não pratica.
2 - Nunca diga "esse filme/peça é uma bosta".
Diga: "gostei" ou "não gostei".
3 - Nunca menospreze o trabalho dos iniciantes.
(Lembre-se, você já foi um)
4 - Nunca questione a escolha do tema de alguma obra. Ela
pode não ter sido feita pra você.
5 - Nunca teste seu colega artista pra ver quem sabe mais
sobre devido assunto.
6 - Nunca menospreze os "não-artistas".
7 - Nunca tente parecer cult. (Não se é cult tentando
parecer cult)
8 - Nunca jogue seus estudos universitários na cara das
pessoas (no nosso ramo existem diversos outros fatores para a definição do
artista, tanto nas experiências práticas como nas acadêmicas, ou como na vida)
9 - Aceite que existe público pra todo tipo de
manifestação nesse mundo.
10 - Não esconda a sua singularidade.
ELE
Foda-se o seu registro profissional, cara! Conheci tantos
e tantos amadores que mandam bem melhor em cena do que você. Carimbo não diz
nada nessa nossa área, então não se preocupe com isso. Seja um eterno amador do
teatro! Ultimamente tenho visto tanta gente que odeia tanto tudo isso, porque só
quem odeia uma coisa é que se torna um crítico desses pé no saco. Tenha
consciência que gosto não é dono da verdade, e seja justo e paciente nos
comentários sobre. Vamos dar as mãos, um, dois, três, e vamos deixar o mundo
ser bonito do jeito que é, mesmo com o feio. Se for pra ser piegas, vamos ser
piegas! Se for pra ser chulo, vamos ser chulos! Deixe acontecer naturalmente,
eu não quero ver você chorar. A vida é bela, é bela a vida! Amor, amor,
caralhos e bucetas e poesia sem rima! Nada de limitação, pelo amor dos deuses e
das deusas! Chega de chatices acadêmicas e sistemáticos de plantão. Arte é
outra coisa, mas eu também não sei realmente dizer o que ela é. (pausa) Obrigado.
(black-out)
FIM
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