AQUELE ESPETÁCULO SOBRE VERSOS SUBVERSIVOS

(MONÓLOGO)


CENA 1

(um foco em Vini num microfone)

VINI
(um tanto sem vontade, recita com uma cola na mão)
"Ser criado, gerar-se, transformar
O amor em carne e a carne em amor; nascer
Respirar, e chorar, e adormecer
E se nutrir para poder chorar

Para poder nutrir-se; e despertar
Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir
E começar a amar e então sorrir
E então sorrir para poder chorar.

E crescer, e saber, e ser, e haver
E perder, e sofrer, e ter horror
De ser e amar, e se sentir maldito

E esquecer tudo ao vir um novo amor
E viver esse amor até morrer
E ir conjugar o verbo no infinito..."

("O Verbo do Infinito" Vinicius de Moraes; Vini finaliza ironicamente)

VINI
Pronto, gente. Eu acabei de recitar uma poesia famosa. Vinícius. Meu nome. Podem... sei lá, aplaudir. Ou podemos... sei lá, podemos bater um papo. Pula o aplauso. Voltar aqui pra vida real dos sem graças e sem açúcares do pé no chão, da luta diária. Açúcares. (pausa) Eu tenho um nojinho. Não gosto muito. Pra mim metáfora de cu é rola, sabe? Vamo conversar direto. Vamo fazer trabalho artístico direto! Né, não? Clareza no diálogo, molecada. Falar palavrão! Usar da voz do povão! Se povão gosta mais de rebolar até o chão, coloca gente rebolando nessa porra! Se não serve pra quê? Serve pra quê? "Ah, mas você está sendo subversivo demais, meninão! Você está dizendo que é um artista que não gosta de poesia, que não leu Pero Vaz de Caminha, que irá massacrar a cultura da criança, colocando o funk nas suas lembranças? Temos que preservar o velho Chico, e ensinar somente sobre música boa, não venha com Valeska Popozuda, venha com Demônios da Garoa". (pausa) Meu querido, eu dou aula numa periferia. A molecada tá pouco se fudendo pra ficar sentado numa sala de aula ouvindo eu falar pra ela uma coisa que não interessa e não fala da realidade dela. Aquelas crianças não andam de trem, se é que você me entende? O Chico pra ela é o cara da novela. Pra quê que elas vão querer me ouvir? Não tô dizendo que essas coisas não possam ser apresentadas pra elas em algum momento, mas eu tô dizendo que se você quer atrair a atenção do povo para a educação, para o ato artístico ou político, você precisa falar a língua dela. E a língua dela é tão bela e pura como a cultura que você julga digna de aceitação da alta sociedade. Vai ter funk no espetáculo e vai ter poesia de Vinicius de Moraes também, porra, por que não? Meu nome é Vinícius porque minha mãe adorava o cara. Acho que talvez seja essa a minha insistência no nojinho que eu tenho com aquele tipo de artista-poeta-careta, manja? É porque... Poesia sempre me perseguiu. Tenho dificuldades de acreditar de verdade...

(black-out rápido; em um telão vemos crianças com fome, cenas de guerra, violência homofóbica, etc; enquanto Vini canta)

VINI
"Não posso ficar
Nem mais um minuto com você
Sinto muito, amor
Mas não pode ser
Moro em Jaçanã
Se eu perder esse trem
Que sai agora às onze horas
Só amanhã de manhã

E além disso, mulher
Tem outra coisa
Minha mãe não dorme
Enquanto eu não chegar

Sou filho único
Tenho minha casa pra olhar

Bam zam zam zam zam zam
Quaiscalingudum
Quaiscalingudum
Quaiscalingudum"

("Trem das Onze" de Adoniran Barbosa)


CENA 2

(quando as luzes se acendem Vini está vestido como rapper americano)

VINI
"É som de preto, de favelado
mas quando toca ninguém fica parado.(2x)

O nosso som não tem idade, não tem raça
E nem vê cor
Mas a sociedade pra gente não dá valor
Só querem nos criticar pensam que somos animais
Se existia o lado ruim hoje não existe mais
Porque o funkeiro de hoje em dia caiu na real
Essa história de porrada isso e coisa banal
Agora pare e pense, se ligue na responsa
Se ontem foi a tempestade hoje vira abonança

É som de preto
De favelado
Mas quando toca ninguém fica parado." (2x)

VINI
Eu até vejo a minha mãe falando. "Ai, meu deus do céu, o Vinícius tá revirando no caixão! Ser comparado com essa porcaria na importância da música popular brasileira! Onde já se viu?" (pausa). Sub-versivo: SUB-VER-SI-VO. É um adjetivo que se originou a partir da palavra subversu, do latim, com o significado de desabado; que subverte; revolucionário, rebelião. Não pode? Pode sim. Não pode beijar na boca de meninos? Pode sim. Não pode falar palavrão? Pode sim, caralho, porra, buceta, cu, Michel Temer. Ação de subverter, virar de baixo pra cima; arruinar, afundar. Insubordinação; oposição a normas, autoridades, instituições, leis, poesias de gente do século passado que não falam sobre a minha realidade virtual e new age, do novo milêncio! Perturbação; ação ou efeito de perturbar o desenvolvimento normal de alguma coisa. Conjunto dos procedimentos que visam a queda de um sistema político, econômico ou social: subversão política. Stalin matou foi pouco. Destruição; ação de destruir, de aniquilar, de derrubar. Alteração ou aniquilamento de uma ordem estabelecida. Perversão de ordem moral. Não pode fumar maconha? Pode sim e pode fumar no palco sim. Porque eu nasci pelado nessa porra desse planeta e não participei da reunião que fizeram pra decidir o que eu posso ou não posso fazer. (acende um baseado; silêncio) E isso pode ser bonito também. Pode ter poesia comuflada, entende? Uma poesia camuflada na palavra cu, por exemplo. Por que não? Cu faz parte da vida, faz parte do corpo. Qual é o medo? Eu não consigo entender do que é que as pessoas estão fugindo, o que é que a gente está esperando.

(silêncio)

VINI
Aí de repente, como acontece com todo mundo, no meio da juventude você se apaixona. E aí fodeu. Tudo muda.

(ele se apaixona por alguém da plateia)

VINI
(canta) "Quando a luz dos olhos meus
E a luz dos olhos teus
Resolvem se encontrar
Ai que bom que isso é meu Deus
Que frio que me dá o encontro desse olhar
Mas se a luz dos olhos teus
Resiste aos olhos meus só pra me provocar
Meu amor, juro por Deus me sinto incendiar
Meu amor, juro por Deus
Que a luz dos olhos meus já não pode esperar
Quero a luz dos olhos meus
Na luz dos olhos teus sem mais lará-lará
Pela luz dos olhos teus
Eu acho meu amor que só se pode achar
Que a luz dos olhos meus precisa se casar."

VINI
Isso é muito louco, não é? Assim, sem mais nem menos você olha pra alguém e daí todos os poemas e rimas mais ridículos que você desprezava começa a fazer todo sentido. Aí você chora ouvindo Wando, você começa a gostar até daquelas músicas de sertanejo universitário mais brega que existe! Você vai firme naquele pagodão sofrido e na poesia sofrida desses corações incompreendidos que o ser humano insiste em cultivar. Os filmes que você odiava você assiste porque a pessoa que você ama gosta. Até mesmo os filmes do Adam Sandler, você assiste, puxa vida, Click é super legal! Se ela gosta de novela, você assiste. Se ela gosta de High School Musical você aprende o dueto do casal principal. Porque na hora do amor, poesia é o outro.

VINI
(se declara para o seu amor)
"Amo-te tanto, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude."

("Soneto do Amor Total" de Vinícius de Moraes)

VINI
Só que aí, pode acontecer de a pessoa ter outras intenções. Às vezes pra ela era só uma trepada. É bonito também, mas não é amor. Devia soar poético, afinal cu também pode ser poesia, né? Mas dói. E coisas que rimam com dor faz ficar mais brega e clichê ainda. Aí me volta aquele pequeno nojo. Sabem? Aquele nojinho por não acreditar em poesia de verdade. Me soa tudo um tanto falso, dá pra entender o que eu quero dizer? Tem que ser bom pra caralho pra você me convencer de que você está sendo sincero nas palavras. Não é só pegar rimar amor com dor e dizer "pronto, sou poeta". É bem mais lá na fundo. (pausa) Aí a pessoa vai embora. (zoando) E no calor do seu amor, a dor não perdoou, e fez flor de cocô no coração desse senhor que aqui estou. Amor e Dor. De Vinícius. Eu. Minha primeira poesia original.

(ele se entristece)

VINI
"Vai, minha tristeza, e diz a ela
Que sem ela não pode ser
Diz-lhe, numa prece, que ela regresse
Porque eu não posso mais sofrer

Chega de saudade, a realidade é que sem ela
Não há paz, não há beleza
É só tristeza e a melancolia
Que não sai de mim, não sai de mim, não sai

Mas, se ela voltar, se ela voltar
Que coisa linda, que coisa louca
Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos que eu darei na sua boca

Dentro dos meus braços
Os abraços hão de ser milhões de abraços
Apertado assim, colado assim, calado assim
Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim

Que é pra acabar com esse negócio de viver longe de mim
Não quero mais esse negócio de você viver assim
Vamos deixar desse negócio de você viver sem mim

("Chega de Saudade" de Vinícius de Moraes)

VINI
Depois de um fim de relacionamento conturbado com você ouvindo Adele ao nescer do sol, e passando o tempo de ler aqueles poemas que sua mãe falava pra você ler, você quer mais é curtir a nova fase de solteiro agora! Putaria é poesia sim!

(enche uma camisinha como um balão e desenha um coração)

VINI
(canta ouvindo a música original)
Então mama,
Pega no meu grelo e mama
Me chama de piranha na cama
Minha xota quer gozar,
Quero dar, quero te dar

Mama,
Pega no meu grelo e mama
Me chama de piranha na cama
Minha xota quer gozar,
Quero dar, quero te dar"

("Mama" Valeska Popozuda)

VINI
Acabou! Minha mãe tentou, minha professora tentou, a sociedade tentou! Mas eu prefiro ver um filme do Homem-Aranha do que assistir um filme chato do Woody Allen ou do Clint Eastwood. Eu prefiro ir no Playarte da República do que ir no Itaú Cultural. Eu prefiro ler toda a saga do Harry Potter de novo do que ler A Moreninha ou o Primo Basílio. Não tô julgando a importância dessas coisas, não tô dizendo que o Primo Basílio não deve ser uma história legal! É que não dá tempo mais de ver tudo e todos de todas as eras existentes. Tem que haver um filtro pessoal, cara, do gosto pessoal. E acontece que eu sou da geração Pokémon, da geração Power Rangers, porra! Eu dancei Chiquititas! Dancei! Minha velocidade é outra! A hora que eu tiver um tempo eu assisto, eu escuto essa música do Chico que você tá falando que é ótima e que todo mundo que é inteligente tem que conhecer. Depois! Eu tenho os meus gostos pessoais e eu não vi nenhum cajado divino dizendo que tal cultura é superior à outra. Cadê? Não quero poesia avulsa nos meus espetáculos! Eu acho que poesia cansa a juventude! (pausa; ofegante) Muito obrigado. (ele sai)

(black-out)


CENA 3

(Vini está focado em seu notebook; no telão, vemos que escreve no Facebook: "Eu acho que a poesia cansa a juventude! Muito obrigado."; ele posta)

VINI
"Você tem que ser macho". Jamais, meu bem, eu já gostava de música da Disney muito antes de Let It Go, tá bom? "Você tem que acreditar em deus". Jamais, meu bem, não faz sentido você me pedir pra provar que ele NÃO existe. Primeiro prove que ele existe. Dãr. E segundo que eu não sou obrigado por nenhuma força sobrenatural. "Você então tem que ser amante do dinheiro e agradecer aos policiais heróis pela proteção contra a marginalidade". Jamais, meu bem, eu já tomei tapa da polícia, eu sou a margem também, vim de família pobre - não miserável, graças ao acaso - e é exatamente por isso que eu sei que não é trabalhando que se fica rico não, é explorando mão de obra alheia e tendo cães de guarda. "Ah, mas então o que você quer da sua vida? Pixar muro?" Eu quero a divisão da terra em comunidades, comunidades que façam comunhão, grupos de seres humanos vivendo juntos e dividindo a riqueza natural por igual pra cada cidadão, não em competição de quem é o mais bam-bam-bam! Quer me perseguir? A gente já tá se acostumando com isso. "Você tem que ao menos arrumar um emprego." (se irrita) Eu tô trabalhando aqui! Eu tô suado! Eu cantei, eu recitei, eu tô trabalhando como qualquer outra pessoa aqui! "Mas você tá aí no Facebook." (grita) E o que é que tem isso, porra? Você também! (pausa) "Ah, vá pra Cuba, seu comunistinha viadinho de merda!"

(Vini faz uma careta de muita raiva, ele quase explode de ódio)

VINI
Eu tive um câncer por causa de treta do Facebook. Eu me envolvo muito. Eu tive que pixar um muro de verdade pra liberar essa energia ruim que cresce dentro de mim com esse mundo nojento. Por exemplo, a pessoa quer ter o direito de palpitar se é certo ou errado eu dar o meu cu sendo homem, porque homem no caso só poderia transar com mulher, e ele ainda espera que eu respeite essa opinião dele sobre o meu cu, eu tenho que ficar calado ainda. Sobre o meu cu ele quer ter uma opinião e eu tenho que ter respeito sobre a opinião dele que é sobre o meu cu. Faz sentido uma coisa dessa?  Eu tenho ou não tenho o direito de rebate? Eu também sou totalmente contra a violência, mas, como eu já disse, eu também não acredito na luta com poesia e rimas e coisas lindas e cheirosas sem falar da verdade e da dureza bruta que é a vida, sem falar da merda que a gente caga, das milhões de crianças que vão dormir na rua na noite de hoje - detalhe: nenhuma delas é cubana, tá bom, queridinhos? - , e das inúmeras injustiças cometidas todos os dias contra os negros, contra as mulheres, contra as crianças. Fere-se o outro por conta da sexualidade dela, mata-se o outro por causa de coisas materiais, escraviza um ser que respira pra diversão e prazer de poucos... E querem que eu entregue flor pra policial na Paulista? Que eu recite uma poesia na cara do governador? Vai mudar o quê? A gente tem que ser SUB-VER-SI-VO. Aquele abaixo do verso. Que não dá o primeiro bote, mas se me atacá eu vou atacá! (pausa) Stalin matou foi pouco.

(um aviãozinho de papel entra em cena voando)

VINI
Olha. Que bonitinho. Quase poético. Um avião de papel. (ele abre) Ah. Uma poesia. Pro final do espetáculo. Fofo. Eu não sou aquele todo frio também, sabe. Minha questão aqui é hoje é tirar um tipo de cultura de um pedestal que não existe. Não existe o pedestal e a ordem divina da verdadeira arte. Gosto é que nem o quê que todo mundo tem o seu e que cada um deveria cuidar somente dele? Exatamente. O cu. (lê o aviãozinho) ""O Velho e a Flor" de Vinicius de Moraes. Assinado: Mamãe."

"Por céus e mares eu andei,
Vi um poeta e vi um rei
Na esperança de saber
O que é o amor.

Ninguém sabia me dizer,
Eu já queria até morrer
Quando um velhinho
Com uma flor assim falou:

O amor é o carinho,
É o espinho que não se vê em cada flor.
É a vida quando
Chega sangrando aberta
em pétalas de amor."

(ao fim do poema um funk proibidão termina o espetáculo enquanto Vini rebola até o chão)

FIM



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