O SEGREDO E EXPERIÊNCIA DE UM VAMPIRO CANCERÍGENO E CANCERIANO

PERSONAGEM
Vampiro, com muitas espinhas e cadavérico
Enfermeira, clássica

CENÁRIO: Um altar feito de cigarros e remédios à direita.

CENA 1

(um foco destaca o rosto fantasmagórico do Vampiro na escuridão; por alguns longos segundos essa é a única imagem. Em vídeo rápido vemos diversas atrocidades pelo mundo; morte, fome, violência. O Vampiro reage com dor; ele está semi nu. Ao fim do vídeo o Vampiro tem uma ânsia muito forte e sai pra vomitar. Volta babando uma gosma verde. Ele sorri um pouco envergonhado pra plateia e sai vomitar novamente. Ao som do vômito, um choro de criança. O Vampiro entra carregando um bebê verde, todo melecado; o bebê se mexe. O Vampiro está espantado e tem uma cena materna rápida com o bebê; depois se comunica misterioso)

VAMPIRO
No início só havia o vazio. O verbo que transbordava possibilidades. Das quais você é uma delas. Quem? O quê? Quando? Enormes isótopos quânticos mecânicos. Física de possibilidades. Permissão para se mostrar existente. A mente suprema. O cérebro é capaz de milhões de pensamentos... uma rede neural. Cascata de bioquímicos misturado à memórias holográficas. A resposta emocional! Moléculas. O cérebro não sabe a diferença entre o que ele vê em seu ambiente e do que ele se lembra. Consegue figurar? Consegue por em imagem na cachola? Você está correndo e sentado numa holobase, nós estamos correndo e sentados numa holobase completamente digital! Nada é concreto e duro. Seja qual for o modo que observamos o mundo à nossa volta, sintam o gelado da minha pele. Eu os autorizo. Sintam o gelado, a forma que eu sugo o calor dos vossos corpos... porque não há ganho de frio, não tem como ganhar frio; o que há é sempre a perda do calor.

(pausa; o Vampiro volta ao bebê que continua chorando; ele canta ninando; o bebê se acalma)

VAMPIRO
"Olha os cavalinhos galopando, galopando, galopando
Vou andar de cavalinho
Vem comigo vem !

Vamos cavalgar sem parar
Ver montanhas e os bichos
Vou andar de cavalinho
Vem comigo vem !

Vou andar de cavalinho
Vem comigo vem !
Vou andar de cavalinho
Vem comigo vem !"

(a Enfermeira entra, acende uns cinco cigarros de uma vez e dá pro Vampiro que não fuma nenhum, mas que continua os segurando como fumante; a Enfermeira sai com o bebê cantarolando a música do cavalinho)

VAMPIRO
Uma coisa que eu tenho dificuldade de entender é: como é que a gente consegue ver isso que tá acontecendo aqui como realidade, se o self que cada um de nós está determinando aqui como real é intangível? "Incostável"? Consegue reparar na loucura dessa merda? A sua bunda não está encostada na cadeira, a cadeira está repelindo você. O quão fundo a gente está disposto de entrar no buraco da Alice? Depois que entra no buraco que cura a farsa, meus amigos, um vampiro, eu no caso, não é ficção científica. Há possibilidade e eu posso provar a minha existência!

(o Vampiro prepara uma máquina e um painel, uma cópia ilustrativa do Experimento das Fendas)

VAMPIRO
A física quântica! "Ah, mas cadê o sangue? É teatro de Vampiro! Teatro gótico! Tem que ter sangue, não coisa chata de matemática!" Cresça! Cresça! Vamos brincar com o lúdico e falando de coisa séria ao mesmo tempo! Por que estamos aqui? Qual é o propósito? Qual é o propósito? Qual é o propósito? Qual é o propósito? Qual é o propósito? Qual é o propósito? Qual é o propósito? Qual é o propósito? Qual é a pergunta certa à se fazer? Qual é o propósito? (pausa) O propósito está nas entrelinhas, como a DMT, a dimetiltriptamina, a tal molécula do espírito. E tinha de ser um bagulho alucinógeno, né, molecada? Tinha de ser. Graças à deus. Com D minúsculo.

(ele termina de organizar o experimento)

VAMPIRO
O Experimento das Fendas! Nós não vamos criar nenhum Frankenstein nem viajar através do tempo com esse experimento, mas vocês vão descobrir uma coisa muito louca sobre a nossa vida. Em meados do século 18, o físico, médico e egiptólogo britânico Thomas Young conseguiu refutar umas das afirmações de Isaac Newton: a de que a Luz era composta por “corpúsculos”, unidades quantificadas – o que hoje se chamaria de partículas subatômicas. Para fazer isso ele realizou um experimento muito simples: usando uma grande caixa fechada, ele inseriu um  visor e duas pequenas fendas por onde a luz do sol deveria entrar. Ao olhar pelo visor ele observaria a luz projetada do outro lado da caixa, refletida na parede interna oposta. Como estamos no século XXI essa minha máquina é uma máquina que envia partículas de luz para onde a direcionarmos, no caso, através dessas duas fendas. (pausa) Existem duas possibilidades de como a luz poderia passar pelas fendas: o elétron é composto ou como Isaac Newton afirmava: como bolinhas de luz sendo atiradas em partículas, que deixaria aqui nessa parede ao fundo o formato de duas fendas, assim como ela o é no painel. Ou ela atravessaria as fendas como ondas, fazendo ondulações que se anulam e se multiplicam, como quando a gente joga uma pedra em um lago e ela forma várias ondinhas por bater uma na outra; formando então aqui na parede do fundo várias marcas de fendas diminuindo na sua intensidade à medida que ela se afasta do ponto inicial. Conseguiram entender? Ou duas fendas de luz somente, agindo como bolinhas - pra exemplificar - , ou agindo como ondas, formando várias fendas aqui atrás. O que vocês acham? (ele faz uma votação rápida da resposta com a plateia) Bom, nós vamos usar essa lâmpada fluorescente pra ver o resultado.

(o Vampiro coloca um óculos e liga a máquina com bastante suspense; a máquina faz um barulho estrondoso e solta um pequeno raio de luz entre as fendas)

VAMPIRO
Agora vamos ver.

(ele vai até a parede do outro lado e acende a luz fluorescente; ve-se apenas duas fendas)

VAMPIRO
Duas fendas. Isaac Newton estava certo, caralho! Óbvio que sim. Quem aí duvidou do grande Isaac, porra? (pausa) Mas espere só um pouco. Não é essa a maluquice descoberta pela ciência, essa não é a grande parte da história! A grande maluquice que acontece é que as coisas ficam um pouco diferentes se não há ninguém observando. É isso mesmo que você ouviu. Se não houver nenhum ser humano olhando, essas partículas safadinhas de luz agem de forma diferente! Duvidam? Peço que todos se virem de costas e vamos fazer o experimento mais uma vez. Por favor, todo mundo. Não pode ficar ninguém olhando.

(ele faz com que todos virem de costas pra máquina)

VAMPIRO
Quando não há um observador, quando não há um ser que conteste a forma como a luz deveria agir, ela age do jeito que ela quiser.

(ele liga a máquina novamente; um raio rápido de luz)

VAMPIRO
Podem se virar.

(com a lâmpada fluorescente agora a luz agiu como onda e formou várias fendas da parede de trás)

VAMPIRO
Shazan! (pausa) Tem horas que ela escolhe agir como ondas e tem horas que ela escolhe agir como bolinhas. Obviamente que isso daqui tudo é ilustrativo, é tipo aquelas fotos de bolacha recheada que não se parece muito com a bolacha real, mas tá valendo. Não se esqueçam que vocês vieram ao teatro e não à uma feira de ciência. (apenas com o olhar ele tenta demonstrar o quanto o experimento foi grandioso) Captaram? Conseguiram figurar? Você-move-montanhas. Nós temos a capacidade de mudar e de nos confundir com a realidade ao nosso redor. O observador, seres que olham e julgam, tem total poder sobre o mundo físico. O deus com letra minúscula vive dentro de nós, porque NÓS SOMOS ELE!

(o bebê começa a chorar fora de cena)

VAMPIRO
Eu uso muito do tabaco pra me suportar. Eu coloquei o tabaco nesse pedestal aqui. É lógico que a coisa pudesse ficar verde. Mas vocês acreditam que eu sempre esperei? Eu nunca fumei tranquilo. Acho que tem gente que fuma com tanta tranquilidade que vai fumar até os noventa e tudo bem. Eu não. Eu nunca fui da turma dos tranquilos pra nada. Eu sempre soube que uma hora ia fuder, que uma hora ia dar merda. Eu devia ter pensado nos preservativos.

(a Enfermeira entra com o bebê)

ENFERMEIRA
Ele precisa mamar.

VAMPIRO
Claro que precisa. Agora eu sou a mãe dessa coisa! Caralho.

ENFERMEIRA
Proteínas. Se a gente não fizer alguma coisa ele vai acabar com você.

VAMPIRO
Me dá ele aqui. Coisinha nojentinha da mamãe.

ENFERMEIRA
(ela obedece) Podemos iniciar a aplicação, se o senhor quiser.

VAMPIRO
Podemos sim, querida. Obrigado.

(demoradamente ela prepara alguns instrumentos em Vampiro; longa cena de preparação)

ENFERMEIRA
Posso começar? Você vai perder o paladar, a saliva, o prazer da degustação. Chocolate vai ter gosto de bosta e pizza vai parecer que você tá mastigando borracha queimada. Por quarenta dias e quarenta noites, irônicamente você ficará de jejum, como Jesus no deserto. Sua língua irá se partir e seu pescoço queimará no fogo dos infernos. Você sentirá o cheiro da comida, lembrará de como um lanche bem filho da puta de gostoso com batata-frita e Coca-Cola é a coisa que você mais ama e não irá conseguir comer nadinha de nada porque a sua garganta vai estar em carne viva. Todo mundo ao seu redor vai cozinhar de tudo e você vai ter que ver e sentir apenas saudade, se corroendo de raiva por conta do cheiro delicioso que entra pelas suas narinas. Escondidinho de carne-seca, lasanha de quatro queijos, batata recheada com bacon, brócolis e cheddar, e mousses e brigadeiros e até mesmo um simples pão com ovo e um arroz com feijão. Tudo virará saudade. Jejum involuntário. Assine aqui, por favor.

VAMPIRO
Por favor, eu prefiro morrer...

ENFERMEIRA
Não seja bobo, meu amor. É da agonia que aprendemos o nosso maior valor quântico.

(ela o força a assinar o contrato)

ENFERMEIRA
Isso. Assim. Certinho. Deus com D minúsculo vai te curar agora.

(ela liga o equipamento e o Vampiro e o bebê sofrem horripilantemente, como se estivessem em uma cadeira elétrica)

VAMPIRO
Um lanche bem filho da puta de gostoso com batata-frita e Coca-Cola ! Nããããão!

(black-out; longo silêncio; a Enfermeira aparece em um foco sozinha)

ENFERMEIRA
Tudo o que você mais precisa nesse momento é de arte por distração. Entertainment, baby.

(ela canta e dança toscamente)

ENFERMEIRA
"Vendo os pôneis passeando
Vi que o rabinho faz (pish, pish, psih)
Vi que a patinha faz (tlok, tlok, tlok)
Vendo os pôneis passeando

Vendo os pôneis passeando
Vi que o rabinho faz (pish, pish,psih)
Vi que a patinha faz (tlok, tlok, tlok)
Vendo os pôneis passeando"

Gratidão.

(black-out)


CENA 2

(um foco destaca o Vampiro sorridente vestido de cigana; a Enfermeira repousa sorridente ao lado; um banquete está servido)

VAMPIRO e ENFERMEIRA
(cantam)
"Não sei o que fazer pra mudar o que você pré julga de mim
Não sei pois julgar, contestar, observar, adaptar é seu jeito e o meu jeito enfim
Carpinteiro do universo inteiro eu sou
Carpinteiro do universo inteiro eu sou

Estou sempre pensando em aparar os cabelos de alguém
E sempre tentando mudar a direção do trem
A noite a luz do meu quarto eu não quero apagar
Pra que você não tropece na escada quando chegar

Carpinteiro do universo inteiro eu sou
Carpinteiro do universo inteiro eu sou

VAMPIRO
O meu egoísmo é tão egoísta que o auge do meu egoísmo é sofrer por você

Mas não sei porque nasci pra querer ajudar a querer consertar o que não pode ser
Não sei pois nasci para isso e aquilo e o enguiço de tanto querer

Dá-lhe, Raul!

VAMPIRO e ENFERMEIRA
Carpinteiro do universo inteiro eu sou
Carpinteiro do universo inteiro eu sou

VAMPIRO
Carpinteiro do universo inteiro eu sou
No final,
Carpinteiro de mim!

(versão livre de "Carpinteiro do Universo" de Raul Seixas)

ENFERMEIRA
Entretenimento, bebê. Entretenimento.

VAMPIRO
Exato. E um gorduroso e sanguinário e energéticamente vegano jantar. Depende da sua preferência e do seu nível evolutivo! Eu ainda sou um macaco. Uh-uh-ah-ah! E você, linda?

ENFERMEIRA
Proteínas, carboidratos e ácidos ribonucleicos.

VAMPIRO
DMT. Ayahuasca...

ENFERMEIRA
Marijuana!

VAMPIRO
É o nome da minha mãe!

ENFERMEIRA
Da minha também!

(eles se abraçam como num final feliz)

VAMPIRO
Eu nasci no último dia de câncer. Dia vinte e um de julho a gente estreou, eu nem estava completamente recuperado ainda. Pode ser que tudo isso estivesse escrito nas estrelas também.

ENFERMEIRA
Como pode ser que não.

VAMPIRO
Como pode ser que não.

ENFERMEIRA
Como pode ser só o acaso.

VAMPIRO
Sim, sim. Mas que o acaso não deixa de ser quânticamente obra de um dos destinos possíveisl!

ENFERMEIRA
Exatamente!

VAMPIRO
Exatamente!

ENFERMEIRA
Exatamente! Puta que o pariu! Eu tô ficando maluca com essa experiência!

VAMPIRO
Eu sei, eu sei. Com tanto jejum e tanta provação física, e dor e desconforto, você para pra pensar em alguma teoria correta pra essa porra-louquice toda. Foi tipo uma experiência budista, manja?

ENFERMEIRA
Manjo, manjo.

VAMPIRO
Uma coisa que teve noite de eu viajar no subconsciente mesmo, sabe! Coisas e sensações que se eu fosse só mais um pouquinho ignorante do que eu sou, eu poderia dizer que aquele deus com letra maiúscula falou diretamente comigo. Juro. Diretamente que eu digo é diretamente mesmo, com claras palavras ecoando no meu ouvido canceriano. Com o segredo revelado pude me libertar, pude sair do armário quântico de uma só vez. Mas há um problema. Nós estamos muito bem inseridos nesse sistema e muito bem confundidos pra conseguirmos chegar no nirvana e compreender qual é a realidade vigente todo o tempo. Existe mais do que uma realidade? O que é mais provável, uma cobra falante ou viagem no tempo? Eu aposto cinquenta por cento pra cada uma das possibilidades, porra! Então é difícil sair do sentimento físico, entende? Eu sei que é difícil. É difícil em cada segundo que você tenta colocar a teoria na prática. Tem hora que a crença de que nossos sonhos podem se realizar a qualquer momento se disfazem com uma gotinha mínima de tristeza química em nosso sangue biológico. A gente precisa começar a ver a biologia de uma outra forma.

ENFERMEIRA
Concordo cem por cento. A biologia bruta é pura enganação.

VAMPIRO
Eu creio que nós somos seres completamente digitais! Este é o meu segredo de carne e osso. Exposto. Em entretenimento pra vocês se lambuzarem. Vocês estão servidos? Essa mesa é pra todos nós. Podem se servir, fiquem à vontade.

(eles repartem o banquete com a plateia)

VAMPIRO
Por favor, saboreiem devagar. Todas essas delícias são da "Nome da Lanchonete/Padaria/Restaurante" que patrocinou o nosso espetáculo. Muito obrigado por incentivar a arte teatral e a culinária como arte. (pausa) Percebam todos que a língua de vocês com as glândulas do paladar é quem envia a sensação de prazer para o cérebro, separando o doce do salgado, o quente do gelado, o seco e o suave. Não passa de uma sensação cerebral do toque de dois conectores químicos. E tudo isso é lindo pra porra!

(eles terminam de comer em silêncio; Vampiro vai perdendo a sua alegria aos poucos; em dado momento ele se dirige até o altar de cigarros; em vídeo vemos as mesmas imagens das atrocidades do mundo; morte, fome, violência)

ENFERMEIRA
"Olha os cavalinhos galopando, galopando, galopando
Vou andar de cavalinho
Vem comigo vem!"

VAMPIRO
Tem hora que a crença de que nossos sonhos podem se realizar a qualquer momento estão no ápice. Parece até que você é dono da maior fé do mundo. Você sente o calor saindo da sua mão e a positividade é tudo o que você tem! E você é feliz mesmo só tendo o sol! Mesmo não tendo nada, mesmo você estando doente, mesmo vendo a violência, mesmo passando fome, mesmo perdendo quem você mais ama, mesmo você presenciando e vendo a morte em carne e osso e sangue. Você sorri, porque acredita que tudo aquilo vai melhorar. E se não melhorar, histórias tristes costumam ser histórias magníficas, então está tudo bem também! (gargalha e destrói o altar de cigarros) Se tudo der errado e acontecer de eu morrer amanhã, ainda assim essa foi a história que era pra ser. Improvisa, porra. Improvisa naquilo que você tem agora.

(o Vampiro se senta em uma cadeira de rodas e a Enfermeira sai com ele para um passeio)

ENFERMEIRA
Você vai continuar com aquele sonho?

VAMPIRO
Oi?

ENFERMEIRA
Mesmo nessas condições, você continua pensando naquele sonho.

VAMPIRO
Aquele sonho? Aquele aquele?

ENFERMEIRA
Aquele. O de sempre. O fantástico, magnífico.

VAMPIRO
É a única coisa que eu tenho que eu posso dizer que é meu de verdade.

ENFERMEIRA
Não é muito pro seu caminhãozinho, não?

VAMPIRO
O que é o grande e o que é o pequeno? Na probabilidade da vida tem muita coisa grande que é pequena e muita coisa pequena que é grande. Tudo é muito relativo.

ENFERMEIRA
Ai, você só fala bosta. Será que você aguenta até quando, hein, colega?

VAMPIRO
Até quando eu quiser.

ENFERMEIRA
Mas você é um vampiro de verdade, lindo. Você chupa o sofrimento dos outros de verdade. E nem adianta falar pra você usar preservativo que você não usa, eu sei que você não usa. Logo, logo você tem um bebê de novo. Escreva o que eu tô dizendo.

VAMPIRO
Deus me livre!

ENFERMEIRA
Eu sou totalmente contra o aborto, saiba disso.

VAMPIRO
Se o corpo é meu e eu quiser abortar eu vou dar um jeito, com sua aprovação ou não.

ENFERMEIRA
Eu sou contra. Faço porque dá dinheiro, mas eu sou contra.

VAMPIRO
Entendo.

ENFERMEIRA
É verdade, ué.

(silêncio)

ENFERMEIRA
O que você não pode é ficar esperando sentado com essa bunda parado sem querer fazer nada.

VAMPIRO
Por que não posso?

ENFERMEIRA
Porque eu tô falando que não pode.

VAMPIRO
Mas pois então pare de fazer as regras da minha vida. Porque se não é tipo maldição. O que você fala pra mim também constrói quem eu sou, você também tem o poder de ditar as regras. E até de poder me levar a óbito!

ENFERMEIRA
Não é tão assim que funciona. Eu não estou te maldizendo, eu estou te alertando.

VAMPIRO
Me alertando que é possível que eu não alcance os meus objetivos se ficar aqui sentado porque é uma das possibilidades. Eu sei disso. Mas por que você não me alerta que eu posso conseguir por magia cósmica? É a mesma probabilidade, colega! Por que escolher o negativo? Por que pensar logo em ficar doente se você tomar um sereno, há a possibilidade de que você não pegue doença nenhuma no dia seguinte!

ENFERMEIRA
É difícil pensar assim. A segurança não existe, a gente tá em perigo o tempo inteiro.

VAMPIRO
Eu antigamente tinha medo de andar de carro na estrada. De carona, porque eu não dirijo. Morria de medo de estrada. Aí eu ficava a viagem toda na estrada tenso, com o pescoço duro, sofrendo em cada ultrapassagem, em cada freada mais brusca. Eu eu nunca sofri nenhum acidente, como sabe, mas chegava em todos os meus destinos finais todo doído e saído de horas de tortura com dores físicas pelo corpo e mente. O que eu concluí? Concluí que se fosse pra ter algum acidente, pra acontecer alguma coisa, eu estar nervoso ou não com aquilo não ia impedir que acontecesse, e que além do sofrimento que deve ser de ficar preso entre as ferragens, ou de morrer tragicamente decapitado ou queimado, eu ficava sofrendo o tempo todo na espectativa do então acontecimento antes mesmo de alguma coisa acontecer. Então... se for pra acontecer, guarde energia pra quando acontecer, entendeu? Vai ser inevitável as coisas acontecerem na nossa vida, entende? Mas agora, a espectativa do sofrimento, essa sim é evitável. Agora eu durmo que nem um urso quando eu pego estrada. Capoto e só chego na alegria.

ENFERMEIRA
Essa alegria me irrita um pouco. Eu acho que a gente precisa ser um pouco pé no chão também. Pensar na possibilidade de dar merda, pra não se decepcionar.

VAMPIRO
Colega, em nenhuma hora eu disse pra se criar espectativas também...

ENFERMEIRA
Disse sim. Você é do tipo fudido que quer falar que tá tudo bem o tempo todo. O positivista.

VAMPIRO
(se irrita) Eu acho que as coisas fluem melhor se você estiver bem no presente. Porque o presente é a única coisa que importa! É isso que eu tô querendo dizer! Entretenimento é o agora! É o agora. Eu gastar meu tempo com vocês contando essa história, vocês gastando o tempo de vocês pra ouvir e sentir. Esse é o sentido da existência.

ENFERMEIRA
O que? Arte? (ri)

VAMPIRO
É. Arte.

ENFERMEIRA
Saúde, educação, segurança é muito mais importante do que cultura, meu amor.

VAMPIRO
Você não sabe o que está dizendo. Um completa o outro, meu amor.

ENFERMEIRA
Entretenimento, amigão! História de vampiro! Não tem tanta importância quanto comprar outra máquina de quimioterapia.

VAMPIRO
Você não sabe o que está dizendo...

ENFERMEIRA
E tem? Você acha que sua arte é mais importante do que alguém que está morrendo nesse instante por conta de um câncer?

VAMPIRO
Nem mais e nem menos...

ENFERMEIRA
Você é muito egocêntrico mesmo!

VAMPIRO
Você está distorcendo as importâncias!

ENFERMEIRA
Eu estou colocando os seus pés no chão, colega. Eu estou colocando os seus pés no chão. Acabou!

(a Enfermeira sai; o Vampiro fica por um tempo esperando que ela volte; ansiosamente ele espera)

VAMPIRO
(canta toscamente romântico)
"Meus pés não tocam mais o chão
Meus olhos não vêm a minha direção
Da minha boca saem coisas sem sentido
Você era o meu farol e hoje estou perdido

O sofrimento vem à noite sem pudor
Somente o sono ameniza a minha dor
Mas e depois? E quando o dia clarear?
Quero viver do teu sorriso, teu olhar

Eu corro pro mar pra não lembrar você
E o vento me traz o que eu quero esquecer
Entre os soluços do meu choro eu tento te explicar
Nos teus braços é o meu lugar
Contemplando as estrelas, minha solidão
Aperta forte o peito, é mais que uma emoção
Esqueci do meu orgulho pra você voltar
Permaneço sem amor, sem luz, sem ar"

(Música "Sem Ar" do D'Black)

(o Vampiro vive um instante ordinário de sua rotina; ele arruma algumas coisas em cena ordinariamente; uma cena de tédio, mas de aceitação)

VAMPIRO
Só o amor, ou a perda dele faz a gente se descaracterizar. (ele tira os dentes de vampiro e o ator vai desconstruindo o personagem)

ATOR
Era ficção sim. Boa parte. Não o silêncio. Não a saudade. No fim das contas tudo o que a gente quer é ser amado do jeito que a gente é.

(ele toma um grande gole de um copo e inicia uma música batucada com o copo; a Enfermeira entra cantando)

ENFERMEIRA
"Trago um bilhete, vamos viajar
Lanche com batata pra acompanhar
Ter prazer em ser o que você quiser ser
Vamos já, agora, vamos já

E depois, e depois
Não importa o que vem depois
Se é feijão com arroz
Ou costelinha de boi
Não, não importa o que vem depois

E depois, e depois
Não importa o que vem depois
Se vai morrer amanhã
Melhor que deixe pra amanhã, pois
Vamos sair hoje só nós dois."

(black-out)

FIM





Nenhum comentário:

Postar um comentário