A CAMA É O PALCO


PERSONAGENS
ATOR
MESTRE AZEVEDO CASTRO


CENÁRIO: Um trono ao centro; uma cama e um microfone nas extremidades.


CENA 1

(temos a silhueta do Mestre, sentado de costas em seu trono superior; o Ator apresenta uma palestra em um retroprojetor, informalmente, com bastante realismo)

ATOR
Boa noite. Bom, como todo mundo sabe a minha pesquisa é sobre a Cia Teatral Transe em Terra do renomado Mestre Azevedo Castro. Pra fazer essa minha apresentação eu conversei com dois artistas que passaram pelo Transe em Terra e com base nessa conversa eu tentei dissertar sobre como funciona a produção e as escolhas artísticas do grupo. Como todo mundo sabe também, o Transe em Terra participa ativamente das lutas sociais aqui do Brasil e teve um trabalho incrivelmente importante durante a ditadura. O Azevedo Castro foi exilado, foi torturado e, artisticamente trouxe um novo jeito do fazer teatral para o Brasil. O Azevedo Castro acredita pra caramba no teatro ritual, no teatro da verdade que não engana o espectador. O espectador tem profunda participação nos espetáculos e - se você for assistir alguma peça do grupo - você se sente realmente acolhido e amado por um teatro que engloba a beleza do misticismo e dos rituais reais. Aí eu perguntei pra um dos atores que eu fiz uma pequena entrevista - o nome dele é Carlos Malta, eu conversei com ele por Skype -, eu perguntei: "Como funciona o processo de criação durante os ensaios?" Aí ele respondeu que eles chegam, eles bebem um vinho, fumam, dançam pras divindades, algumas vezes rola algum tipo de suruba – ele que disse – , e depois eles levam os trabalhos dos rituais para o espetáculo. Por exemplo, o teatro moderno muitas vezes cria suas encenações com partituras corporais estimuladas por inúmeros formatos de sensações físicas, já o Transe em Terra leva a crença de um teatro ritualístico e dionisíaco para a própria cena. Não existe mentira nas encenações do grupo, tudo é verdade. Aí como eu sou um grande admirador do Azevedo Castro e um grande fã do Terra em Transe, eu não pude deixar de perguntar: "Como eu faria pra fazer parte do grupo? Como funciona o processo de seleção?". E ele respondeu que havia um ritual de iniciação onde você precisava ter um contato físico e sexual com todo o elenco, pois segundo o Azevedo Castro só conhecendo o sexo do outro que você consegue ter uma troca real de energia durante a encenação.

MESTRE
(grandioso) A cama é o palco!

(o realismo da introdução termina e o Ator interpreta sensualizando em cima da cama)

ATOR
Eu sou um puto. Eu gosto de sexo. Acho que minha real vontade de estar na Terra é para experimentar o sexo. Talvez eu seja um viciado. Eu comecei transando com meninas e depois passei a trepar com homens. Eu sou um tipo de artista bem clássico, segundo os preconceituosos. Viado, putão. Como e dou, sem neurose. E sabe qual é o meu grande sonho como artista contemporâneo? Eu quero muito conhecer uma suruba. Sério mesmo. Quem julga? Melhor ainda se for uma suruba pública e política! Eu não sou mais nenhum muleque punheteiro, mas vão duas por dia se eu não trepo. Eu acredito fielmente que foi pra isso que eu nasci. Pra essa verdade: a verdade do agora, do gastar o dinheiro todo que você tem no agora, no prazer momentâneo de uma fumaça, de um lanche cheio de gordura. E se morrer, morreu gozando.  Eu não acredito em deus mais, óbvio, mas eu acredito no ritual, na força de um ritual de verdade! Onde mais que eu posso encontrar isso sem precisar virar ator pornô? Isso tudo é muito louco, pode crer, eu só não faço filme pornô porque sou um bundão com medo do preconceito, porque os caras pagam bem, bem melhor que a exploração publicitária da nossa cara desses comerciais de televisão, mas... é que é foda. (ele sai cantarolando pelo palco, rodando maravilhado) Eu acabei de assistir um espetáculo do Transe em Terra, gente.  Por isso que eu fico todo sexuado, sabe? Eu acho que eu tô apaixonado. O Azevedo Castro tirou a minha camiseta, vocês acreditam? Aí ele começou a lamber o meu mamilo. Fazia parte da cena, dando o texto. Aí a menina veio e me deu um beijão. Olha, fazia tempo que eu não beijava uma garota, mas eu vou falar pra você, viu... Genial. Eu voltei pra casa agora em catarse. Eu consegui sentir aquilo. Eu consegui sentir o poder dionisíaco emanando neles, você consegue entender? Você sente verdade nos atores, você percebe que há uma união sexual entre eles, você entende? Dá uma impressão, assim, que eles estão num nível mais elevado na existência, sabe? O Azevedo Castro tem uma presença corporal – que mesmo não tendo um pinto muito grande, porque o outro menino lá tem o pinto maior – ele demonstra uma grandeza, uma imponência, que não tem a ver com masculinidade, que tem a ver com intelectualidade. Eu realmente recomendo o espetáculo dos caras, mas vá preparado pra quebrar com os tabus, entendeu? Eu tenho uma amiga que não gosta muito, acha tudo um tanto meio gratuito, eu até briguei com ela uma vez. Mas você sabe que eu sou de uma geração de artistas bastantes caretas, né, então... Porque assim: eu entendo quando algo soa gratuito, sabe, mas é que com o Azevedo Castro eu sinto uma verdade no ritual, na força da energia de seres elétricos focados em uma única fonte de conexão, que é o teatro e o rito. E isso me fascina, porque eu realmente acredito que eu seja um pouco sensitivo, e eles me passam uma verdade nos corpos deles. (pausa) Ou talvez seja questão de gosto, mesmo. É disso que eu gosto e eu amaria fazer parte disso na minha vida. Eu daria tudo! Não, não tudo. Ah, daria tudo sim!

MESTRE
A cama é o palco!

ATOR
Diz que rola uns testes normalmente em janeiro. Aí quando você entra no grupo você passa por um corredor com todos eles pelados e você tem que passar no meio deles com todo mundo passando a mão no seu corpo. Mas não é fácil de entrar porque o Azevedo Castro é bastante exigente. Tipo, obviamente que os protagonistas são amantes dele. Os principais, o Leonardo, o Simão e a Andréia. E não tem problema, né, se trepa com todo mundo qual o problema? Não é romance do tipo clássico, entende? Não é mamãe e papai, namorado e namorada. É algo maior. É algo voltado à espiritualidade. Eu tenho muita curiosidade de ter essa vivência, entende? De transformar tudo isso ainda em teatro, em luta política, é muito mais estarrecedor na sociedade do que uma bostinha de um ator contando seus causos pela jornada que é a vida.

MESTRE
A cama é o palco! Você estudou naquela bostinha de escolinha. Quem é você? (ecoa)

ATOR
Estava eu, deitado em minha cama, pensando na vida. Eu tinha acabado de me mudar pra São Paulo, eu morava na Ceilândia em Brasília, mas minha família é de Porto Alegre. Aí eu já tinha visto algumas peças deles inclusive essa que ainda tava em cartaz. E eu pensei: “acho que eu vou ver o Transe em Terra hoje”. Do nada, assim. Aí eu pensei melhor, eu quase não fui. Eu falei: “ah, não, que preguiça”. Eu quase não fui. Aí eu pensei de novo: “Vai sim. Vamo ver de novo”. E eu fui. Naquele dia eu saí até atrasado de casa e deu tempo. Cheguei em cima. Aí o espetáculo começou.

MESTRE
(se levanta grandiosamente mostrando um figurino extravagante) Respeitável público pagão do admirável mundo novo da poesia! E do sexo! E da embriaguez e dos prazeres mundanos que foram colocados à prova como único sistema de eloquência política e da energia elétrica de nossos corpos celestes em procrastinação social, e masturbação artística de um universo pscicodélico da arte! O teatro e a sua essência, que transforma a mentira em verdade, que não engana o espectador e que não faz essa diferença de endeusificação. O teatro da verdade! Que usa máscara para mostrar a sua verdadeira face! Que caga, que peida, que trepa, que tem pau, que chora...

(o Ator está aos prantos, emocionado; o Mestre enxuga suas lágrimas curioso)

MESTRE
Você é ator?

ATOR
Sou sim.

MESTRE
Volte aqui no dia de semana pra gente conversar.

ATOR
Tá bom.

MESTRE
(volta para a encenação; e tira a roupa por completo) O trabalho é a prostituição mais antiga do mundo! Somente o prazer salva a alma dos que vivem envolto à crises existenciais e à necessidade de gritar ao mundo: “Eu importo”! Gritem todos comigo: “Eu importo”! Vamo lá, todo mundo! “Eu importo”!

ATOR
Eu importo!

MESTRE
“Eu importo, eu importo”!

ATOR
EU IMPORTO!

(o Mestre tira a camiseta do Ator e começa a lamber os seus mamilos dando o texto)

MESTRE
Quem te serve? Quem me serve? Me serve pra quê? Tem que ter alguma coisa. As bactérias se roçam, se sarram. Eu e você e um mamilo ouriçado. O seu pau na minha mão. (ele apalpa o pau do Ator) A cama é um palco!

ATOR
(corta a cena) Isso tudo é muito excitante, se você não acha isso excitante eu não sei o que é excitante pra você. É um tipo de abuso artístico, político. Você entende? Você consegue entender? Em cena aqui eu não vejo problema nenhum, eu acho isso tudo muito ótimo. Eu sempre me amarrei nesse lance de um sexo em público. E vocês acreditam que uns anos antes, quando eu assisti uma peça deles pela primeira vez, e eu morava em Brasília ainda, eu disse assim pro meu amigo: “Imagina que legal se de repente você tá assistindo a peça e o Azevedo Castro fala assim: “vem participar com a gente, você tem o perfil do Transe em Terra, eu tenho um personagem super legal que é a sua cara”, imagina se ele fala isso. Eu acho que eu morria”. Eu juro que eu falei isso. E de repente, aconteceu. “Volte aqui no dia de semana”. E eu não morri, mas eu voltei pra casa extasiado depois da peça. Claro, né? O meu grande ídolo, minha inspiração teatral me chamou pra passar lá durante a semana do jeitinho que eu tinha imaginado pra gente conversar. É a lei da atração, gente. Eu tenho certeza absoluta que é. (ri) Eu fiquei com o mamilo ouriçado até umas duas da manhã nesse dia. Aí eu pensei assim. Eu não vou já na segunda-feira pra não parecer um atorzinho desesperado, eu já até que tenho que uma carreira, entende? Tenho que mostrar maturidade artística e profissionalismo. (brinca) Vou ver se tem alguma data na minha agenda. (pausa) Aí eu esperei uma semaninha.

(o Mestre volta ao seu lugar, toma um vinho e fuma no escuro)

ATOR
(música no estilo Disney de sonhador)
Eu vou fazer o que eu quiser
Eu posso até chegar no céu
É só sonhar a vida inteira e escrever no papel

Se eu quiser vou ser um rei
Um puta ator superstar
Pois tudo aquilo que desejo posso conquistar

E mesmo não acreditando em Deus
Eu faço todo um ritual
Pois acreditar em magia pode ser legal

Eu vou fazer o que eu quiser
Porque eu quero acreditar
Eu vou plantar uma bananeira e você vai gostar

O que eu sonhei
Eu conquistei
O que eu quis aconteceu
Eu parecia uma criança, mas agora a vida o sonho devolveu

O que eu sonhei
Eu conquistei
A mágica vai comprovar
Só basta eu querer direito, se for desse jeito, sempre vou ganhar."

(ele corre alucinado gargalhando pelo palco)

ATOR
Eu tenho uma importância! Eu estou em sintonia com o universo! Um garotinho do interior realizando seu mais grande sonho. Um dos grupos mais conhecidos internacionalmente! E agora eu faço parte. Eu, garotinho da geração da Xuxa na nave espacial, menininho que achou que seria ninguém, que sempre viveu inseguro com sua disposição artística, e que sempre se fez maior do que era. Finalmente, trabalhando com importância, sendo artista de verdade, com registro em carteira! Mesmo que o personagem que ele me dê seja pequeno, mas que se foda isso! Eu estive acostumado à fazer protagonistas nos outros grupos que eu participei, mas tudo por uma questão de perfil, a barba deixa uma cara moldável e havia uma dificuldade de homens querendo fazer teatro nesses lugares, mas não vai ser agora que pegar um personagem pequeno vá me abalar artisticamente falando. Tudo é aprendizado, o importante é estar aqui e ser aceito. Eu não vejo a hora de entrar no túnel dos pelados!

(volta ao microfone)

ATOR
O que eu sonhei
Eu conquistei
O que eu quis aconteceu
Eu parecia uma criança, mas agora a vida o sonho devolveu

O que eu sonhei
Eu conquistei
A mágica vai comprovar
Só basta eu querer direito, se for desse jeito, sempre vou ganhar."


CENA 2

(o Mestre se aproxima)

MESTRE
O Carlos falou que você queria falar comigo.

ATOR
Oi. É que... você falou pra eu voltar aqui durante a semana. Na última apresentação, domingo passado.

MESTRE
Ah, sim. (se lembra) Sim, sim, sim. Claro. Venha aqui, vamos até a minha sala.

ATOR
(à parte) Cara, o Azevedo Castro tá me chamando pra entrar na sala dele! Eu odeio tietagem, mas eu tô parecendo um bebêzão tremendo na base. Eu vou cagar na calça! É o Azevedo Castro, caralho!

MESTRE
Eu só preciso terminar de organizar umas coisas, aí a gente vai lá pra minha casa, beleza?

ATOR
(à parte) Caralho! Eu vou na casa do Azevedo Castro! Puta que o pariu! Como eu posto isso no Facebook sem parecer mesquinho? Não, não vou postar nada.

MESTRE
Você fuma um baseado?

ATOR
Fumo sim. (pausa) Hoje não tem ensaio?

MESTRE
Hoje é a nossa folga. Você deu sorte, você quase não me encontra aqui. Escolheu o dia errado.

ATOR
Bota sorte nisso.

MESTRE
Mas tem maconha lá em casa. Você gosta?

ATOR
Gosto.

MESTRE
Legal.

ATOR
Legal.

MESTRE
Você curte música?

ATOR
Curto, curto.

MESTRE
Que tipo de música você curte?

ATOR
Ah, várias...

MESTRE
Caetano? Maria Bethânia?

ATOR
Eu gosto mais de umas paradas internacionais, também.

MESTRE
Hum.

ATOR
(à parte) Imbecil! Como fingir que você é mais culto do que é? Que estúpido! “Eu gosto mais de umas paradas internacionais”. Burro, burro! Eu não posso falar pro Azevedo Castro que eu gosto da Beyoncé. (volta) Eu adoro o Chico Buarque.

MESTRE
Hum. Eu tenho alguns CDs em casa. E qual música você gosta?

ATOR
Ah, vejamos... “Nós gatos já nascemos pobres, porém já nascemos livres...” Eu adoro o Saltimbancos, eu já fui o cachorro num teatro da escola.

MESTRE
(ri) E filmes? Gosta de filmes?

ATOR
Gosto. Adoro.

MESTRE
Você me lembra um pouco o Marlon Brando, sabia?

ATOR
Jura? Aquele que fez o Légolas do Senhor dos Anéis?

MESTRE
Não sei. Acredito que não.

ATOR
Acho que é sim. Marlon Brando. Mas ele não tem nada a ver comigo. O cara é um super gatão, galãzão.

MESTRE
Você também é super gatão. Sério.

ATOR
Para.

MESTRE
É sério. Você tem quantos anos?

ATOR
Vinte e três.

MESTRE
Tem cara de mais velho. Mais maduro.

ATOR
Obrigado. Bastante gente fala isso.

(silêncio)

MESTRE
E a sua tragédia?

ATOR
Oi?

MESTRE
Qual é a sua tragédia de vida?

ATOR
Como assim?

MESTRE
Vamos indo por aqui.

ATOR
(à parte) Aí a gente pegou um táxi e foi até a casa dele. Ele quis saber qual era a tragédia da minha vida, qual era a dor que me movia. Pelo que parece ele gosta de ouvir as desgraças da vida da pessoa. Eu contei que meu pai teve câncer, que morreu e deixou minha mãe comigo e com meus irmãos. Ele perguntou se eu era gay ou hétero. Aí falou que eu não parecia ser gay, que eu tinha cara de hétero. Eu até perguntei pra ele qual seria a cara de gay, porque isso é claramente um tipo de preconceito, não existe uma cara de quem é gay e de quem não é, eu só sou um gay cisgênero, mas é difícil você contestar um cara com a presença histórica do Azevedo Castro então eu deixei passar essa parada. Você fica meio paranóico de não ter cu pra discutir as suas convicções políticas e artísticas, manja? Perto de alguém como ele. E eu pensei melhor que aquele não seria um bom momento pra criar um problema, afinal eu queria mesmo era participar como ator do Transe em Terra, beijar a plateia na boca, trepar com as pessoas... enfim, estrear a minha carreira artística na cidade de São Paulo e mostrar o meu talento pras pessoas, finalmente. E ali estava eu fumando um baseado com o Azevedo Castro. Assim, não que eu seja o melhor ator do mundo, mas eu confio no meu taco. Não que eu seja um gênio, não que eu seja um puta artista criador, mas eu tenho minhas disposições artísticas em formação e uma ética pessoal, que eu não chamo de pudor, muito pelo contrário, que eu chamo de liberdade poética pessoal.

MESTRE
Você fez faculdade de teatro?

ATOR
Faculdade não.

MESTRE
Que bom. Creio que essas faculdades engessam os artistas de hoje em dia.

ATOR
Eu penso da mesma forma. Eu comecei a fazer teatro quando eu era criança ainda, lá em Porto Alegre. Mas eu fiz um curso. Um curso técnico de formação de atores. Todo mundo muito careta, por sinal, eu era um dos poucos que fumava um baseado.

MESTRE
Hum.

ATOR
Mas eu definitivamente acredito no desenvolvimento dado pela prática no palco. Sem dúvida nenhuma. A parte que eu mais gosto do seu trabalho, Azevedo, é que eu consigo perceber que...

MESTRE
E você trepa?

ATOR
Oi?

MESTRE
Você gosta de trepar?

ATOR
Ah, e quem não gosta, né?

MESTRE
Você sabe que no meu teatro nós condenamos o pudor, né?

ATOR
Sim, sem dúvida nenhuma. Eu sou muito fã do Transe em Terra. Eu sei que eu sou de uma geração de artistas bastantes caretas, mas... (o Mestre tenta roubar um beijo dele, que desvia em reflexo) Ai, desculpa. Desculpa. Eu fiquei nervoso.

MESTRE
Tá nervoso por quê? (o Mestre fica em pé deixando o pau próximo do rosto do Ator) Você com sua vidinha em Brasília, naquela bostinha de escolinha, não foi de conhecer muito essa liberdade paulistana do teatro dionisíaco?

ATOR
É que aqui só tá eu e você.

MESTRE
E qual o problema nisso?

ATOR
Eu não fico muito confortável...

MESTRE
Você não gosta de homens mais velhos?

ATOR
Até que gosto. Mas não é isso...

MESTRE
As bactérias se roçam, se sarram. Eu e você e um mamilo ouriçado. O seu pau na minha mão. (apalpa o pau do Ator)

ATOR
Espera um pouco! (empurra a mão do Mestre levemente)

MESTRE
O que foi?

ATOR
Mas aqui é a vida real. Tá me parecendo um pouco estranho.

MESTRE
Amado, isso aqui não é vida real. Tudo o que a gente faz é uma encenação dramática. Olha esse público aqui presente, pare um pouco de fingir. E eu venho lhe informar, meu novo amigo, meu novo amante – não sei se você sabe, mas – a cama é o palco. (tenta agarrar o Ator)

ATOR
Espera! Eu não sei se eu quero fazer isso. Não agora. Eu não consegui entrar no clima. Tá meio estranho. Não sei se foi assim que eu imaginei.

(o Mestre se afasta um pouco irritado)

MESTRE
Percebo que você é do tipo que está preso no passado. Nas experiências e ilusões passadas. O teatro do prazer vive o agora, menino. Você quer mais vinho pra se soltar?

ATOR
Tenho no copo ainda. É que eu não quero que depois as pessoas fiquem falando que eu só entrei pro Transe em Terra porque eu trepei com você, entendeu?

MESTRE
Percebo também que você vivencia tudo menos o instante momento. Que fica preso no futuro, no que os outros vão pensar. Você precisa se libertar, garoto.

ATOR
Eu acredito que eu seja bastante liberto, na verdade.

MESTRE
Eu vejo que não. Cheio de pudores.

ATOR
Não é pudores. Eu já trepei com homens mais velhos que você. Já trepei em banheiro de balada. Já chupei um homem e uma mulher no mesmo dia. É que eu não senti o clima.

MESTRE
Acho que você não está preparado ainda pra entrar no Transe em Terra. Aqui é a casa das experimentações...

ATOR
Pois quando tiver uma suruba, eu quero muito participar. O que eu achei estranho, Azevedo, você me desculpe, é que tá me parecendo um encontro desses comuns. Tente me entender.

MESTRE
E você esperava o que? Que eu soltasse fogo pelas ventas? Que meu pau tivesse vinte e quatro centímetros? Eu não tenho tanto tempo livre assim pra perder, amado. O que a gente está fazendo aqui?

ATOR
Como assim?

MESTRE
O que você quer afinal? O que você veio fazer aqui na minha casa?

ATOR
Você me disse pra eu voltar durante a semana. Eu voltei. Eu adoro muito o seu trabalho, é o tipo de teatro que eu queria muito fazer parte.

MESTRE
Acho que você não está preparado. Nós não somos mais amadores. Eu levo tudo com muita seriedade e profissionalismo. Mas você me fez ter uma boa impressão à primeira vista, quase como que uma paixão, um amor de verdade, e isso, essa sua defesa está me fazendo perder esse tesão pela sua figura, você entende? Essa sua atitude defensiva. Você estava certo em uma coisa, você vem de uma geração bastante careta.

(silêncio)

ATOR
Eu gosto muito de sexo. Mas eu não quero pagar a minha entrada no grupo com sexo. Eu já me prostitui uma vez, sabia? Algumas vezes. Cobrei cinquentão pra deixar um cara chupar meu pau. Acho que fiz umas quatro, cinco vezes isso. Não tenho vergonha de falar, eu achei super excitante, era pra comprar droga mesmo. Mas é que eu realmente gosto de teatro, e me importo com a minha carreira, me importo com a importância do Transe em Terra na história brasileira, e eu tô me sentindo desconfortável de não entrar por conta do meu talento...

MESTRE
Talento? O talento que me importa agora está dentro da sua cueca, meu amor. Simples assim.

(silêncio)

MESTRE
Acho que é melhor você ir embora, menino.

ATOR
Então... é isso?

MESTRE
Eu ganhei alguma coisa em troca pra dar esse presente à um jovem ator que ninguém conhece e que ninguém se importa com o que tem pra falar? Eu não acho que nós dois estamos sendo justos aqui. Há um abismo entre nós dois, amigo. Eu fiquei me sentindo perdendo, porque eu tomei um fora de mais um bonitinho.

ATOR
Me desculpa.

MESTRE
A vida é assim mesmo. Às vezes a gente desperdiça o nosso tempo com esses aspirantes.

(o Mestre volta ao seu canto)

ATOR
Eu voltei pra casa literalmente chorando. Chorando de verdade. O taxista até perguntou se tava tudo bem porque eu não consegui segurar o soluço. Um sonho meu que acabou em uma única noite. Um encontro com um mestre do mundo teatral brasileiro, transformado em teste do sofá barato. Eu poderia ter dado pra ele, ou ter comido ele. A questão não era essa. Foi que... ficou parecendo... ficou parecendo que não era certo. A coisa mais legal da minha vida é o teatro, e por dinheiro eu até me prostituo, mas por teatro eu acho que não! Ou então que fosse parte do ritual, que fosse em cena, que fosse parte do rito em grupo! (pausa) Como eu sou um idiota orgulhoso. Que orgulho imbecil. Eu só acabei de perder a oportunidade da minha vida por não querer dar uma gozada com um velho safado. (pausa) Eu preciso voltar lá! Isso não pode acabar assim!

(o Ator bate palma)

MESTRE
Quem é?

ATOR
Sou eu.

MESTRE
Ué. Voltou?

ATOR
A gente poderia conversar mais um pouco? Eu tô muito nervoso, deixa eu entrar.

(um foco inclui o Mestre na cena)

MESTRE
Pois não? (pausa) Você tava chorando?

ATOR
Eu fiquei pensando. Eu queria que você... que queria que você lesse um dos meus textos.

MESTRE
Você é escritor também?

ATOR
Eu gosto de escrever algumas coisas.

MESTRE
Hum. Você acha que pode me convencer a entrar no Transe em Terra por um suposto talento que você acha que tem.

ATOR
Eu pensei que você se importava com a sua arte, com o que pode acrescentar nela.

(silêncio)

MESTRE
Você é um cara muito corajoso, sabia?

ATOR
Corajoso por quê?

MESTRE
Você não baixa a bola. Você peita. Mesmo sendo uma criança ainda.

ATOR
Isso é bom ou é ruim?

MESTRE
Depende. Os garotos do seu tipo estão loucos para aparecer. Principalmente os aspirantes à modelos. Você se prendeu na sua convicção que não quer trepar com o diretor pra conseguir um papel na peça. Tem a sua força política e de convicção artística. Mas eu acho que você é burro, porque o que que você tem a perder? Quem é você hoje? Quem paga as suas contas pra você se importar com o que vão dizer?

(silêncio)

ATOR
Tudo bem.

MESTRE
Tudo bem o que?

ATOR
Acho que eu transo com você.

MESTRE
É mesmo, é? Eu pensei que você iria se segurar por mais tempo. Eu tenho um personagem que vai cair como uma luva, lindão... (ele começa a tirar a roupa e a beijar o pescoço do Ator)

ATOR
Espera um pouco.

MESTRE
O que foi agora?

ATOR
Tem que ser agora?

MESTRE
Você precisa se preparar? Eu não ligo, gato. Eu gosto do cheiro do suor.

ATOR
Eu queria mesmo que você lesse um texto meu antes.

MESTRE
Você tá falando sério?

ATOR
Pra eu ficar me sentindo melhor.

(silêncio)

MESTRE
(curioso) Vamos fazer o seguinte. Amanhã nós temos ensaio. Eu leio a porra do seu texto pra você mostrar o cu pra mim depois. Eu me importo com a minha arte o mesmo tanto que eu me importo com o meu pau, amado. Só pra você ficar sabendo. Depois do ensaio, será a sua chance.

ATOR
Ok. Muitíssimo obrigado, Azevedo Castro!

(as luzes deixam apenas o Ator em um foco)

ATOR
E definitivamente aquela foi uma semana de frustrações. No primeiro ensaio que eu participei, não foi nada daquilo que falavam. Não teve corredor de gente pelada, não teve maconha e nem vinho. Não teve ritual pra criação das cenas. Foi estranho, porque foi tudo praticamente muito comum. O teatro cenográfico de novo, do teatro marcado, passo por passo, três passos pra direita e dois pra esquerda. Repete-se uma única fala por mais de uma hora porque o ator não consegue falar na entonação que o Azevedo Castro pensa que é o correto, e muitas vezes eu até discordei dele, no formato da interpretação, achei tudo um tanto... falso. Eu não sei se foi porque eu tava ansioso e incomodado com a trepada que eu ia ter que dar logo mais, mas conhecer o backstage foi... foi mais frustrante do que ter que pensar que daqui a pouco eu iria ter que trepar com ele pra poder fazer parte disso, pra poder fazer parte de uma coisa que não parecia ser tão interessante assim vendo agora desse ângulo. As atrizes mais velhas mal olharam na minha cara, e os atores me olharam como concorrente. Uma ou outra pessoa me cumprimentou dignamente, mas os outros pareciam Procópios Ferreiras da nova geração. Um deles ficou cheio de frescura pra dar um beijo na boca de outro rapaz, e o elenco tirando sarro dele ainda, porque ele era hétero e tinha que fazer uma cena de beijo gay, numa clara homofobia disfarçada. Eu não entendi a graça. Porra! No Transe em Terra tem artista frescurento que não dá beijo gay, no Transe em Terra tem homofobia camuflada? Eu não consegui ser participativo e não consegui me apresentar pras pessoas naquele dia, mesmo com o Azevedo Castro tendo me incluído na roda final dando a entender que eu agora ia fazer parte deles, pra desgostos dos outros atores de mesmo perfil, e indiferença das madames primeiras atrizes. Eu os conheci eu como espectador e eles como personagens grandes e sensuais, era essa a visão que eu tinha dessas pessoas. Eu as coloquei num pedestal porque em cena eles era um arraso, eles eram grandes e poderosos! O Azevedo Castro era um arraso em cena, um filho de uma puta de um ator! Mas os vendo como pessoas normais como a gente que caga, que mija, que tem inveja e que também tem pudor, toda aquela magia se escureceu em um segundo, não existe pedestal nenhum! (pausa) Espere um pouco! Isso aqui é um teatro histórico! Quem sou eu pra contestar? Esses caras são bons pra caralho! Eu sei que eu tô sendo um mesquinho, eu sei que estou! Eu tô negando a oportunidade que o universo está me proporcionando por frescura em ética artística, por uma encanação barata! Quem se importa com essa ética pessoal e intransferível? Vai fazer que diferença no mundo, seu atormentado? (pausa) Puta, que merda! Que crise que eu fui me envolver! Tudo o que a gente sonha a gente pode conseguir, mas o universo não tem culpa se a gente não consegue ser específico todas as vezes. O que eu faço da minha vida agora?

MESTRE
Vamos lá pra casa, bonitão?

ATOR
Vamos sim. Você leu o meu texto?

MESTRE
Li sim. E me apaixonei mais ainda por você.

ATOR
Ah, cala a boca.

MESTRE
Tô falando sério. Eu estou apaixonado por você de verdade. Você é um grande dramaturgo.

ATOR
Você é bom de lábia, é diferente.

MESTRE
Você acha que é da boca pra fora. Minha vida inteira é pautada nos amores que eu levei pra dentro da cena, amado. Cada espetáculo que eu faço eu preciso do combustível de estar amando pra acontecer.

ATOR
Você só quer trepar, cara. Fala sério.

MESTRE
Juro que não. Não é assim que funciona comigo. Eu sou de outra geração, garoto.

(silêncio)

ATOR
(à parte) Espere um pouco. É pior do que eu tava pensando. Ele está tentando me convencer de que tudo isso ainda é romance. Romance? Jura? (retorna) Eu achei que você fosse do tipo poligâmico.

MESTRE
Eu já estou velho, rapaz. Meus amantes me trocaram e me trocam o tempo inteiro por outros amantes.

ATOR
E eu acho isso muito legal, com bastante liberdade.

MESTRE
Eu já me carburo e me sustento com o meu amor, o amor do meu momento... Acho que você está aos poucos entrando nessa lista.

ATOR
(à parte) Ele deve tá zoando com a minha cara. Ele deve achar que eu sou um moleque que pensa que é artista, desse tipo que quer virar celebridade. Claro que eu quero ficar famoso, que eu quero ser reconhecido pelo meu trabalho! Mas eu quero mesmo é discutir teatro, eu quero trabalhar, eu quero me expressar, eu quero dançar, eu quero cantar. Eu não sei se eu aguento essa chantagem emocional. Amor? Jura que ele tá jogando esse joguinho de amor?

MESTRE
A cama...

ATOR
(grita) É o palco! É o palco! Todo mundo já ouviu!

(silêncio; o Mestre acha curioso a empeitada do Ator)

MESTRE
Eu adorei o seu texto. Eu quero experimentar o teu sabor. Eu adoro um jovem atormentado.

ATOR
(à parte) Quem ele pensa que é pra brincar com a minha vida desse jeito? Eu tava quieto no meu canto.

(o Mestre se ajoelha frente à ele e abre a sua calça; ele realmente chupa o pau do ator)

ATOR
Eu acho que devia ser proibido uma pessoa passar por uma chantagem emocional desse nível. Eu estou consentindo, mas ao mesmo tempo que não. Me sentindo abusado, porque que idiota perderia uma oportunidade dessa? Que idiota... perderia... uma oportunidade... dessa... (ele goza; o Mestre sai cuspir e volta)

MESTRE
Foi difícil pra você?

ATOR
Não.

MESTRE
Bem vindo ao Transe em Terra, menino!

ATOR
(desgostoso) Obrigado, Mestre Azevedo Castro. Muitíssimo obrigado pela oportunidade.

(black-out; quando as luzes se acendem, o Ator canta como se estivesse em um show)

ATOR
Não teve suruba nenhuma
Ninguém partilha a maconha
Há competição de quem é o melhor
Ator tendo vergonha de dar um beijo gay

Que careta que eu sou
Que caretas que eles são

Que careta, é mentira, não é um ritual
É um teatro fake, o meu é igual
Que mentira,
Meu deus, que mentira!
Cadê a expectativa?
Que careta...

ATOR
Eu não vou ter outra oportunidade dessa na vida. Eu vou aguentar pelo menos por um tempo, eu preciso me lançar em cena. É difícil conseguir um edital pra ficar tranquilo com grana e trabalhar com isso que a gente gosta. É tudo muito difícil nessa nossa vida.

(black-out)


CENA 3

(a luz se acende em um foco)

ATOR
(vai até um espectador, tira a camiseta dele e começa a lamber os seus mamilos dando o texto) Quem te serve? Quem me serve? Me serve pra quê? Tem que ter alguma coisa. As bactérias se roçam, se sarram. Eu e você e um mamilo ouriçado. O seu pau na minha mão. Posso? (pede para o espectador se ele pode apalpar o pau dele)

MESTRE
(entra gritando) Posso? Que posso? Que “posso” é esse?

ATOR
Eu senti a necessidade de pedir licença, porque...

MESTRE
Isso aqui é teatro, meu amor! A plateia está passiva à você, você tem que entender isso.

ATOR
Eu não me sinto ativo contra o público. Eu me sinto... igual. Eles tem o mesmo poder de acabar com essa apresentação a hora que eles quiserem. Você viu o que aconteceu com aquele cara que tava montando o musical do Chico e foi interrompido no meio da peça? Então. Eles têm esse poder também...

MESTRE
Cara, você contesta muito, sabe? O ator, ele não se justifica. Anote isso. Um ator não se justifica nunca.

ATOR
Mas é que...

MESTRE
Não. Não se justifica. Pronto e acabou.

ATOR
Não tem essa de pronto e acabou.

MESTRE
Você fala demais cara. Fala demais e faz pouco trabalho.

ATOR
Você tá voltando essa cena há duas horas já. Eu acho que do jeito que eu falei soou mais natural do que o jeito que você falou pra eu falar. Soa piegas demais daquele jeito. E você tá pegando no meu pé por birra. É por outra coisa...

MESTRE
Fala sério.

ATOR
E eu acho que eu tô fazendo uma enganação com o cara se eu apalpar o pau dele sem pedir. O que você acha sobre isso, cara? Eu perguntar pra você se eu posso não é mais confortável? (pergunta para o espectador; pode haver alguma improvisação para a resposta dele)

MESTRE
Mas acontece que o diretor do espetáculo aqui sou eu. Quem é você, cara? Quem é você? Quem disse que a plateia tem que ficar confortável? Quem é você? Eu pergunto.

ATOR
Eu não sou ninguém. Eu cago e eu mijo. Você não? Você caga cheiroso? Eu cago fedido.

MESTRE
Quem se acha o cagador de perfume aqui é você. Você tá me contestando demais.

ATOR
Eu tô assim, cara, porque eu era apaixonado por tudo isso enquanto eu era espectador. E agora sabendo que não tem putaria nenhuma, não tem ritual, as pessoas aí nem gostam de mim, tem uma síndrome de Procópio Ferreira, e três passos pra cá e três passos pra lá, eu tive que deixar você chupar meu pau pra estar aqui... isso não tá sendo fácil de digerir, entendeu? Se eu não tô trepando com ninguém por prazer real porque que o coitado do cara que pagou pra entrar aqui vai ter que receber uma passada de mão no pau gratuitamente?

MESTRE
Porque eu sou o Azevedo Castro. Você pode ir lá fazer o seu teatrinho, se você quiser. Eu te passo até um modelo de projetinho pra ver se você consegue um patrocínio sozinho.

(silêncio)

MESTRE
Vai abrir mão?

ATOR
Por que só eu tenho que vir ensaiar na sua casa? Por que os outros não precisam?

MESTRE
Eu tenho a minha nova paixão, eu preciso dela pra me inspirar.

ATOR
Você de novo com isso.

MESTRE
Você acha que eu tô sendo xavequeiro, você não tá acreditando, mas esse seu jeitinho me deixou muito curioso. Eu juro mesmo. As pessoas aceitam tudo o que eu falo. Porque eu sou essa figura, eu sou o Azevedo Castro, nesse imagético, nessa imagem que fizeram de mim. Você não. Você é diferente.

ATOR
Que mimado que você deve ser, né?

MESTRE
É difícil de fazer uma amizade ou de encontrar um amor verdadeiro nesse caminho, garoto. Exatamente por causa disso. Todo mundo quer me impressionar. A maioria arreganha logo o cu já dentro do meu escritório, antes de beber um vinho em casa. Muitos deles eu enrolo e depois nem fazem parte de espetáculo nenhum ainda.

ATOR
Isso é muito cruel. É brincar com o sonho das pessoas.

MESTRE
E os meus sonhos? Não contam? Eu não sou um galã, tô velho. É o jeito que eu tenho de trepar, moleque. Eu sou carente de romance mesmo, você me pegou.

(silêncio)

ATOR
Eu não quero parecer que eu tô tentando ser melhor que você, Azevedo. É que eu sou uma pessoa difícil. Você fica falando de paixão, de amor... tem a minha carreira profissional em jogo, que é a minha vontade de estar aqui... isso tá me deixando... me fazendo sentir pressionado, sabe?

MESTRE
Você é só um molecão mesmo. Que eu já amo de verdade desde aquele domingo.

ATOR
Você não ama nada. Isso é besteira! Para de falar isso.

MESTRE
Eu amo sim. Você pode não acreditar, mas eu tô pegando no seu pé porque eu amo você. Você tá muito nervoso hoje, cara. É dinheiro? Se você quiser dinheiro, eu te dou dinheiro. Dinheiro não é problema.

ATOR
Não é dinheiro...

MESTRE
Então vamo viver o agora. Você fica muito preocupado, muito atormentado.

ATOR
Mas a sua arte não tá mais me soando verdadeira! É isso! Eu sinto que você é um mentiroso depois que eu te conheci!

(silêncio)

MESTRE
(se irrita) Então tá bom. A porta da rua é serventia da casa. A gente tá quase pra estrear o espetáculo e a pior cena é essa sua, mas mesmo assim vai ser muito duro não se lembrar dessa pisada de bola do aspirante à gênio teatral, porque o coitadinho tá se achando abusado sexualmente pelo diretor malvadão e (imita) “Ninguém me entende! Ninguém entende a minha ética artística! As pessoas são falsas. As pessoas são mentirosas! O que eu sonhei, eu conquistei!  Só eu sei como fazer um teatro de verdade, mas eu tenho vinte e cinco anos e eu não sou ninguém ainda! Oh, vida! Oh, céus!” (silêncio) Você me machuca e eu te machuco. Eu sou mais experiente que você em romance de gato, e inclusive com o teatro. “Me alimentaram. Me acariciaram. Me aliciaram. Me acostumaram.” Você desiste ou tem cu pra aguentar a vida real?

ATOR
Eu tenho cu.

MESTRE
Então faz a cena de novo e aí você vai pegar no pau dele sem pedir.

ATOR
(à parte) E quando você não acredita na arte que tem que se submeter, seja por motivo que for, seja por pudor ou por convicção, ou por divergência artística ou política? Seja por motivo que for! O que fazer? Se vender sem o menor prazer?

MESTRE
Vamos começar pelo começo!

(black-out)


CENA 4 

(luz)

ATOR
Boa noite. Bom, como todo mundo sabe a minha pesquisa é sobre a Cia Teatral Transe em Terra do renomado Mestre Azevedo Castro. Pra fazer essa minha apresentação eu conversei com dois artistas que passaram pelo Transe em Terra e com base nessa conversa eu tentei dissertar sobre como funciona a produção e as escolhas artísticas do grupo. Como todo mundo sabe também, o Transe em Terra participa ativamente das lutas sociais aqui do Brasil e teve um trabalho incrivelmente importante durante a ditadura. O Azevedo Castro foi exilado, foi torturado e, artisticamente trouxe um novo jeito do fazer teatral para o Brasil. O Azevedo Castro acredita pra caramba no teatro ritual, no teatro da verdade que não engana o espectador. (pausa) No teatro que não engana o espectador. Que não engana o espectador, que não mente. Do teatro da verdade, que fala a verdade. Que fala a verdade do que sente. Que não engana o espectador. Um teatro da verdade. Que vende o que se sente. E vende um sonho. Um sonho da verdade. Que não engana o espectador. Que não engana o espectador mesmo sendo teatro. Mesmo sendo encenação. Um teatro que não engana o espectador. (pausa) Mas espere um pouco. É claro! O culpado disso tudo no final das contas sou eu mesmo! Eu sou o culpado porque a arte é uma coisa pessoal e intransferível. Se você não quer se submeter então você precisa dar o seu pulo, você precisa dar o seu pulo de artista sozinho pra falar o que pensa! Ele inventou que ele era um mestre e que ele podia, e aí a fé nisso fez as pessoas darem o mérito – merecido por sinal, muito bem merecido –, porque ele é um bom enganador porque ele é realmente um bom ator! E eu não posso viver lambendo as bolas de ninguém, não desse jeito, na pressão, fingindo que tô de pau duro quando não tô. Eu também não nasci pra isso, pra falar uma coisa que eu não acredito de verdade. Eu percebi que eu não consigo, que eu sofro muito. Mesmo sendo tachado de mesquinho por muitos, porque obviamente eles lá do elenco devem ter rido, comentado dessa minha tentativa orgulhosa em se sentir superior pra poder dizer pros outros o quanto eu sou um fodão que eu ATÉ tive a coragem de negar a oportunidade de brilhar num espetáculo do internacionalmente famoso Azevedo Castro! Não é isso. (pausa) Eu fiz duas temporadas com o Transe em Terra, que foi muito importante pro meu crescimento artístico e pessoal. Principalmente de cunho pessoal. (pausa) Mas no fim das contas tudo o que eu queria na verdade era que tivesse um tunel de gente pelada. Isso era tudo o que eu mais queria, na real. O sonho é mais bonito aqui dentro da cachola. Eles se realizam mesmo, acontece igual nos filmes mesmo, nas músicas e nos livros de auto-ajuda. Tudo o que você quiser pode acontecer. Mas ele é mais bonito enquanto é expectativa. O pedido ao universo tem que ser um pouco mais específico na próxima. Pra gente não se frustrar, porque esse é um dos piores finais felizes que alguém pode ter.

(o Mestre entra com outro figurino grandioso; o Ator está como espectador novamente)

MESTRE
"O que eu sonhei
Eu conquistei
O que eu quis aconteceu
Eu parecia uma criança, mas agora a vida o sonho devolveu

O que eu sonhei
Eu conquistei
A mágica vai comprovar
Só basta eu querer direito, se for desse jeito, sempre vou ganhar."

(o Mestre agradece ao público no final de sua apresentação; ele se desmonta do personagem; o Ator se aproxima um pouco tímido)

MESTRE
Oi, amado. Que surpresa. Você veio.

ATOR
Eu vim.

MESTRE
Quanto tempo, hein. Você tá bonitão. Cada vez mais.

ATOR
Obrigado.

MESTRE
Gostou da peça?

ATOR
Se eu percebi as indiretas, Mestre? Percebi sim.

MESTRE
Indiretas? O que?

ATOR
(para a plateia) Dois meses depois que eu decidi sair do Transe em Terra eu fui ver o novo espetáculo deles e aí eu senti que havia várias indiretas pra mim no meio do espetáculo porque ele sabia que eu viria. Eu não ia deixar de falar que eu percebi, porque... porque eu sou bocudo e porque eu não sou obrigado. Ao mesmo tempo que eu me senti importante eu fiquei com muita raiva.

MESTRE
Você tem clara mania de perseguição. Deveria maneirar na maconha de vez em quando, garoto. Maconha faz isso mesmo. O mundo não gira em torno do seu umbiguinho, amado.

ATOR
Pode ser. Ou pode ser que não.

MESTRE
Você não quis acreditar no meu amor. E ainda volta pra ficar jogando na minha cara o quê? O que você quer? O que você veio fazer aqui?

ATOR
Na verdade eu acreditei sim. No tal do seu amor que você dizia. Eu acreditei que você realmente estivesse falando de amor mesmo. E foi exatamente por isso que eu decidi fugir de você.

MESTRE
Como assim?

ATOR
Porque, se você pensar bem, não era você que estava se aproveitando de mim se o seu amor por mim era tão verdadeiro como você diz. Quem estava se aproveitando de alguém nesse caso era eu. (silêncio; o Mestre entende com seriedade e incômodo) Aproveitando da sua celebridade pra me lançar no meio teatral mesmo eu acreditando em uma arte diferente, mesmo eu não sentindo nem um pingo do amor que você diz que sentia por mim. Eu não podia continuar fazendo isso com você. Eu estaria sendo egoísta e abusador...

(um silêncio)

MESTRE
Hum... Você diz... Uma arte diferente...

ATOR
Me desculpa.

(silêncio)

MESTRE
Você é um lazarentinho. E o pior é que é exatamente isso o que eu gosto, gostei em você.

ATOR
Desculpa. (retira um pacote com um texto de uma mochila) Meu pedido de desculpas. Escrevi um texto de ficção pensando nessa nossa experiência... Espero que não se ofenda.

(o Mestre pega o pacote de papel e guarda em silêncio)

MESTRE
Explica aí que arte é essa sua especial?

ATOR
Oi?

MESTRE
Que arte diferente é essa sua que você tanto fala? Qual é a sua tão maravilhosa e intransferível arte, garotão? Que você não se encaixou comigo, que você me "negou" o amor?

ATOR
É pessoal... complicado.

MESTRE
Mas você precisa de um público, não precisa? Não precisa?

ATOR
(pausa) Será que preciso?

MESTRE
Será que não precisa? Mostre pra mim. Me cative que eu vejo se você vale o preço da venda.

ATOR
Como assim?

MESTRE
Faz aí!

ATOR
Tipo agora agora?

MESTRE
Tipo agora agora. Você não sabe chorar?

ATOR
Então tá.

(o Ator se posiciona no microfone empoderado)

ATOR
Uma cena que tenha suruba
Entretenimento pra dar
Que ninguém se ache o melhor do melhor
Nem tenha vergonha pra dar um beijo na boca

MESTRE
Que careta que eu sou

ATOR
Que careta que você é

MESTRE
Que careta que você é

ATOR
Que careta que eu sou

ATOR E MESTRE
Que careta, é mentira, é tudo igual
Nada se cria, não é ilegal
Que mentira
Tudo se copia!
E a expectativa?
Que careta...

(eles entram em uma sintonia de simpatia um pelo outro)

MESTRE
No meu tempo foi igual, menino. Alguém também fez o favor de ser grosseiro comigo, de dizer que eu não servia pro teatro. Alguém abusou da minha juventude também. E eu trouxe isso pra cena, eu não fiquei choramingando pelos cantos, igualzinho o que você tá fazendo aqui agora. Igualzinho esse pedido de desculpas. Isso é muito impressionante. Os amores e os desamores se refletem na arte, na minha, na sua. Sua ética política e sua vontade de se expressar é a obra que vai ser exposta afinal. É assim que funciona, garoto. Você é uma pessoa. E eu também sou uma pessoa. E é assim que a gente segue.

(silêncio)

ATOR
Foi mal.

MESTRE
Tudo bem.

ATOR
Você sai pra um lado e eu saio pro outro então?

MESTRE
Beleza. Se você achar melhor...

ATOR
Beleza.

MESTRE
Então tá.

(eles vão sair)

ATOR
(volta) Ah! O Marlon Brando não é o cara que fez o Legolas, não. O Legolas é o Orlando Bloom. Eu fiz confusão.

MESTRE
Legal.

ATOR
Eu nasci nos anos noventa, né?

MESTRE
Eu sei. É claro.

ATOR
Até mais, então. Parabéns.

MESTRE
Até. (pausa) Parabéns também...

(eles se cumprimentam e cada um sai para um lado, black-out)


FIM





Nenhum comentário:

Postar um comentário