PARALELO

PARALELO

PERSONAGENS
Anabete
Jenifer
Olavo
Péricles
Zolinha
Rosivaldo, um senhor
Mula
Lelo
Camile, um bebê
Eva, mãe de Camile
(os mesmos atores interpretam os personagens seguintes)
Mãe de Péricles
Enfermeira
Médico
Faxineiro
Quatro pacientes de um hospital


INTRODUÇÃO

(ouve-se um capotamento de um carro; escuridão total; ouvimos o som do pós acidente; um choro, alguém tentando tirar outro alguém das ferragens; um gemido dos sobreviventes; realismo de um pós acidente)


CENA 1

(quando as luzes se acendem, há um fogo fora de cena, no carro capotado; Anabete está encostada em uma pedra, segurando o braço, machucada; Olavo meio que carrega Jenifer mancando pra outro lado; Péricles está caído deitado em um canto, recém arrastado, desacordado; Zolinha é quem chora desesperada e assustada)

OLAVO
Calma, gente. Calma, Zola, fique calma. Tá tudo bem com todo mundo.

JENIFER
Eu acho que eu machuquei minha perna.

OLAVO
Calma. Um celular.

(Anabete entrega pra ele rápido)

OLAVO
Tá sem sinal.

JENIFER
Mas pra emergência sempre tem! Sempre tem! Só emergência! Clica aí...

OLAVO
Não tá dando nem só emergência. Sem sinal total!

ZOLINHA
Peri!

OLAVO
Calma, Zolinha. Ele tá bem, ele tá vivo. Ele tá respirando.

JENIFER
Dá aqui o celular!

OLAVO
Não tá dando, eu já falei. (entrega) Tenta no seu Zola. Cadê o meu?

JENIFER
O meu também sumiu. (Olavo sai procurar o seu celular; Zola tenta no seu) Tá na minha bolsa! Cuidado com o carro, Olavo!

OLAVO
Achei.

JENIFER
O meu?

OLAVO
O meu.

ZOLINHA
O meu também tá sem sinal nem pra emergência.

ANABETE
Não tem um telefone de emergência a cada quilômetro nas rodovias?

OLAVO
Sem sinal.

JENIFER
Procure o meu!

OLAVO
Eu não sei onde tá sua bolsa.

(Jenifer sai procurar)

OLAVO
Cuidado com o carro, Jenifer! Jenifer! Cuidado com o carro!

ANABETE
Eu sei que tem um telefone de emergência a cada quilômetro. Olavo...

OLAVO
Aqui acho que não deve ter. Você não viu como que tá essa estrada?

ANABETE
Abandonada...

OLAVO
Como é que pode esses filhos da puta manterem uma estrada desse jeito?

ANABETE
Que liga duas capitais importantes ainda...

OLAVO
Você viu se tinha sinalização que aqui tinha uma curva? Tava sem sinalização, eu acho!

ZOLINHA
A gente tá no meio do nada! Ninguém vai achar a gente essas horas!

ANABETE
Não tá passando carro nenhum. Mas tá todo mundo bem, isso que importa agora.

OLAVO
(tentando acordar o amigo) Péricles! Péricles! Acorda, mano! Péricles! Alguém tem água! Ele tá respirando.

ZOLINHA
Peri! Peri! Acorda, titio.

(Jenifer entra)

JENIFER
Achei minha bolsa. Sem sinal também nessa bosta! Não era pra ter pelo menos pra emergência?

ANABETE
A gente tá muito afastado.

OLAVO
Você tem água aí?

(Jenifer tira uma garrafinha da bolsa e entrega; Olavo joga água no rosto de Péricles de levinho)

ZOLINHA
Peri? Peri?

OLAVO
Péricles! Mano! Acorda, acorda, caralho!

ANABETE
Alguém tem que ficar ali em cima perto da estrada, se algum carro passar não vão ver a gente caído aqui.

ZOLINHA
Peri! Péricles!

OLAVO
Calma, ele tá vivo, ó, sinta os pulsos... Tá sentindo?

ZOLINHA
Tá sangrando na testa.

JENIFER
Eu também tô. Bati a cabeça.

OLAVO
Eu também bati a minha.

(Péricles acorda tossindo com dificuldade)

ZOLINHA
Peri! Peri! Graças à deus! Ai, minha nossa senhora, Peri!

(eles se abraçam e depois Olavo o abraça também)

OLAVO
Mano... mano, porra...

PÉRICLES
Ai... (se senta)

ZOLINHA
Graças à deus, Pericles! Tá tudo bem!

PÉRICLES
Desculpa...

ZOLINHA
Não, não! Não tem que...

PÉRICLES
O que aconteceu?

OLAVO
A gente passou reto na curva.

PÉRICLES
Eu não vi placa. Tinha placa?

OLAVO
Eu não reparei também. Foi muito rápido.

PÉRICLES
Desculpa, gente... eu...

ZOLINHA
Não, para! Foi um acidente!

JENIFER
Foi só um susto, gente. Tá todo mundo bem. Isso que importa!

PÉRICLES
O carro do meu pai...

ZOLINHA
Péricles! Para!

JENIFER
Coisa material a gente arruma outro. Esquece, Peri!

ANABETE
A gente tem que dar um jeito de chamar alguém. Se a gente ficar aqui
embaixo ninguém vai ver a gente, até amanhecer.

ZOLINHA
Como a gente vai avisar o pessoal da festa?

PÉRICLES
Eu tô com frio da porra!

JENIFER
Eles vão tentar ligar, vão ver que aconteceu algo errado! Calma!

ANABETE
Toma meu casaco. Eu tô com outro por baixo. (dá o casaco para Péricles)

(passa um carro ali em cima na estrada)

ANABETE
Olha lá! Um carro! (grita) Aqui! Socorro!

TODOS
(pulam e gritam) Aqui! Aqui! Socorro! Aqui!

JENIFER
Eu vou subir. (ela vai tentar, mas cai por causa da perna) Ai. Cacete.

ANABETE
Deixa eu vou. Fica aqui.

(Anabete sai de cena subindo um morrinho)

ZOLINHA
Que susto, gente! (ri nervosa) Eu tô rindo, mas é de nervosa...

OLAVO
Calma, Zolinha, já passou...

ZOLINHA
Ainda bem que... tá todo mundo bem...

PÉRICLES
Graças à deus.

ZOLINHA
Eu acho que eu bati a cabeça só...

(o carro, fora de cena, tem uma leve explosão)

JENIFER
Ai, porra!

OLAVO
Se afasta! Se afasta!

PÉRICLES
Usa o extintor, La! Só cuidado!

(Olavo sai de cena)

ZOLINHA
Cuidado, Olavo! Pelo amor de deus!

JENIFER
Ouça! Escuta! Parem, parem! Chiu!

ZOLINHA
O que foi?

(silêncio; eles ouvem)

JENIFER
Parece um barulho de caminhão! (grita) Ana! Tá vindo um caminhão!

ANABETE
(em off; grita) Eu tô ouvindo!

ZOLINHA
Graças à deus! Eu já tava achando que a gente ia passar a madrugada aqui.

(Olavo, fora de cena, apaga o fogo com o extintor, que invade a cena de fumaça; ao mesmo tempo o caminhão passa logo acima; pode-se ver os faróis passando no alto)

JENIFER
(grita) Para eles, Ana! Para eles! Grita pra eles!

(silêncio; o caminhão passa reto)

OLAVO
(entrando) Ana!

(mais silêncio)

ZOLINHA
Será que eles não viram ela?

OLAVO
(grita) Ana!

JENIFER
Passaram direto.

PÉRICLES
Às vezes não viram.

OLAVO
(grita) Ana! Porra!

(Ana entra, escorregando)

JENIFER
E, aí, menina? Eles não te viram? Você não acenou pra eles?

(Ana está respirando forte, assustada)

ZOLINHA
Fala, Ana! O que foi?

OLAVO
Ana...

ANA
Eles não me viram... (pausa) Não!

OLAVO
O que foi, Ana?

ANA
Não passou caminhão nenhum.

(silêncio)

JENIFER
Como assim não passou caminhão? A gente viu...

ZOLINHA
A gente viu o caminhão, Ana! Passou aqui em cima.

ANA
Não passou. Não passou caminhão nenhum.

(silêncio)

OLAVO
Mas a gente viu o farol passando, deu pra ouvir...

ZOLINHA
Aqui em cima! Eu vi!

ANA
Não tinha caminhão nenhum! Eu vi que passou a luz e também ouvi o caminhão passando! Mas não passou caminhão nenhum. Eu tô falando...

(silêncio estranho)

OLAVO
Eu vou lá pra cima.

ZOLINHA
Eu vou junto.

(Péricles geme de alguma dor interna)

OLAVO
Fica aqui cuidando dele, Zola. Eu vou.

ANA
Eu tô falando, caralho! Não tinha caminhão...

JENIFER
Não é possível, a gente viu passar...

ANA
Eu sei! Eu também vi! Eu tava no acostamento! Era pra eu ter visto!

JENIFER
Então por que você não gritou pra eles, Anabete, pelo amor de deus?!

ANA
Porque não tinha caminhão, Jenifer! Eu tô dizendo! Eu pensei que o caminhão ia fazer a curva, mas não apareceu caminhão nenhum! Eu ouvi também, eu vi a luz do farol iluminando a neblina, mas não tinha caminhão! Não passou nenhum caminhão. (pausa) Eu não tô ficando louca!

PÉRICLES
Sobe lá, Olavo!

(silêncio; Olavo sobe o morrinho e sai de cena)

ANABETE
Tem alguma coisa de errada acontecendo...

JENIFER
Não vem com essas merdas agora, Anabete!

ZOLINHA
(grita) Tá vendo alguma coisa, La?

OLAVO
(em off) Ainda nada! (pausa) Não tem placa mesmo!

PÉRICLES
Eu sabia que não tinha. Filhos da puta. Não foi culpa minha, gente.

ZOLINHA
A gente sabe, Peri. Tira isso da sua cabeça.

JENIFER
Acontece, Peri...

(ouve-se um barulho de um carro)

OLAVO
(em off) Tá vindo um carro! Tá vindo um carro!

(Péricles geme de dor no peito)

PÉRICLES
Aaaah!

JENIFER
Pode ter machucado por dentro, na batida.

ZOLINHA
(grita) Grita pra eles, Olavo! Acena! Pula! (Zolinha sai rápido de cena e entra com um pedaço vermelho do farol do carro capotado) Usa isso! (joga para Olavo fora de cena)

ANABETE
Não vai adiantar...

(silêncio; expectativa; o carro passa e vemos parte do farol passando por cima)

ZOLINHA
Grita! Grita, Olavo! (ela sai subindo o morrinho)

ANABETE
Não tem carro nenhum.

PÉRICLES
Você não viu o farol, Ana? Faça um favor, vá!

ANABETE
Tem algo diferente acontecendo...

JENIFER
(chama) Zola!

(inesperadamente Rosivaldo entra em cena; ele é um tanto macabro, com vestimentas velhas e empoeiradas; leve tensão entre os quatro presentes)

ROSIVALDO
O que tá acontecendo aqui?

JENIFER
Moço! Você pode ajudar a gente? A gente capotou o carro na curva aqui!

ANABETE
O senhor mora aqui por perto?

(Olavo e Zolinha retornam; eles se assustam com a nova presença)

ROSIVALDO
Tá todo mundo se sentindo bem?

ANABETE
Sim, tá todo mundo bem.

(Péricles geme outra vez)

JENIFER
A gente precisa ir pra um hospital. Você tem um telefone que pudesse nos emprestar? A gente tava indo pra uma festa e...

ROSIVALDO
Eu também sou viajante. Rosivaldo, meu nome. Talvez ele ainda tenha alguma chance. (aponta pra Péricles) Esperança, garoto. Torça pra que usem o desfibrilador o quanto antes!

PÉRICLES
Eu tô bem, eu tô bem... (tosse com dor e se contorce)

ROSIVALDO
Por estar desse jeito... Acho que o único. Já vocês outros aconselho que se acostumem e mantenham a calma. Vai ser um pouco tedioso, mas dá pra “viver” (faz o sinal de aspas e vai sair). Não é tudo o que falam, mas fazer o quê? Se a gente pudesse escolher tudo as coisas, né... mas não pode, infelizmente. Fiquem bem, cuidado com o tinhoso...

JENIFER
Espera! Quem é você?

ROSIVALDO
Rosivaldo, meu nome. Prazer em dividir uma época e esse espaço com vocês. (para Péricles) Boa sorte, garoto. Com vossas licenças. (sai)

JENIFER
Espera!

OLAVO
Quem era esse maluco?

JENIFER
(chamando) Moço! Rosivaldo! Qual é o posto mais próximo, pelo menos?

PÉRICLES
Surgiu aí de repente, o cara.

ZOLINHA
O que será que esse cara tá fazendo andando essas horas no meio do mato?

JENIFER
Rosivaldo.

PÉRICLES
Não sei. Só sei que foi estranho.

JENIFER
Foi muito estranho...

ANABETE
E o carro?

(silêncio)

OLAVO
Não passou carro nenhum.

PÉRICLES
Mas eu vi! Deu pra ver! Como não passou?

OLAVO
Não passou, não passou...

JENIFER
A gente viu o carro, Olavo!

ZOLINHA
Não tinha carro.

(silêncio)

ANABETE
Eu disse. Eu não tô ficando maluca...

(ambiente de suspense; os cinco amigos pensam por alguns instantes enquanto a música traz a escuridão total)


CENA 2

(um foco introduz Lelo e Mula grandiosamente; Mula está acorrentado em uma coleira; há uma ambientação de fogo)

LELO
Encontrei a terra ardendo
Tal batida de caminhão
Uma bolha d’água, queimou crescente
Virou ferida, depois carvão

E são tantos camaradas
Viajantes por precisão
Dentro da vala, um indigente
Ou gente amiga, um famosão

O final todo mundo conhece
Da jornada do homem então
Há muito espaço, que divide o tempo
De pés descalços, não sentir o chão

Ou flutuando, feito um fantasma
Um ectoplasma com coração

No acostamento, do chão não passa
Atravessando a escuridão

No acostamento, uma freada
Atravessando a imensidão

No acostamento, foi num capote
Atravessando as constelação.

(Mula aplaude empolgado e bobo; estrelas se confundem com átomos ao fundo)

LELO
Não se assustem, viajantes! Eu não sou o famoso tinhoso! Credo em deus pai!

MULA
Credo em deus pai!

LELO
Até mesmo a música eu trouxe comigo, debaixo do braço, no violão. É de outra época que ficou pra trás, mas tem o mesmo estilo mais ou menos, não tem? Práticas da vida que o indivíduo em sua jornada traz consigo pro resto da eternidade! Fisicamente explicada e sentida de outra forma que vocês não saberiam coodificar, compreender, ainda tendo pulso pulsando sangue vermelho e carne de biologia animal dentro de vocês. Difícil pra vocês entenderem, sem vos subjulgar, por favor. É outra parada, esse bagulho! Outra experiência! Outra sensação do resto da jornada. Que, pelo que me parece, não tem fim. Só é diferente. Diferente e sem fim, o depois! Mas consciente! Consciente sim!

MULA
Consciente! Consciente sim! Sim, sim, sim! (gargalha besta e bate na cabeça) Aqui! Aqui! Ali! Ali! Aqui de novo! Toda hora, todo lugar!

LELO
Se dói? A transição? Dói. Dói um pouco sim. Mas é rápido. Pior quem sobrevive. É tipo assim: desespero, “meu deus, eu vou morrer”, dor, dor, dor, dor, dor, “pelo amor de deus, para de doer! Jesus, me salva! Misericórdia!”, mais desespero, mais dor, medo, e finalmente você vai sentindo aquele alívio anestésico. Aí já não tem mais medo. É o que você realmente tá querendo, implorando naquela hora, naquele instante de agonia. Só fechar os olhos e dormir. “Acaba, dor, chega...”. E pronto. A hora que você viu, já foi. Como todas as coisas! É tipo tomar morfina na veia, mas pra não voltar mais. E aí pega suas coisas que sobraram e sai viajante! Mais um! Imagine a quantidade de viajantes e recém chegados perdidos por aí! Tentando se encontrar e descobrir o que aconteceu, e ainda depois ter que tentar descobrir o que fazer agora! É uma piração, essa nossa jornada! E a dúvida continua. E continua depois e depois e depois e depois!

MULA
Continua depois e depois e depois! E depois ainda continua! Depois e depois!

LELO
Morre, continua, morre, continua, morre, continua... Eu não estou falando de reencarnação, por favor! Eu estou falando do espaço entre os átomos e as estrelas, meu companheiro! No subtexto do que a gente enxerga! Há muito espaço entre uma mólecula de oxigênio e outra.

MULA
Até cansa de alcançar tudo, tudo, tudinho! Preguiça, viu! Daqui ali, ó. (faz sinal de canseira)

LELO
A gente que tem que dar a sensação de saga, aquela sensação de jornada. Porque no resto, é sempre tudo a mesma coisa ordinária de todos os dias. O sol surge, o sol vai embora! A gente aprende coisas novas e também aprende coisas velhas! Encontramos pelo caminho gente nova e gente velha. Gente do outro lado da galáxia se cruzando por conta de um alinhamento interplanetário ordinário qualquer.

MULA
Uma hora aqui, uma hora ali, uma hora aqui, uma hora ali, uma hora aqui, uma hora ali, uma hora aqui, uma hora ali, uma hora aqui, uma hora ali, uma hora aqui, uma hora ali...

LELO
Chega! É o grande mistério da ciência! Uma hora aqui, uma hora ali...

OS DOIS
E não para nunca.

MULA
“O tempo não para
Não para não
Não para!” (Cazuza)

LELO
Chiu! Há pessoas em cada lugar desses cantinhos. Consciências vivas, eu digo. Não pessoas seres humanos, exatamente. Coisa que a gente ainda desconhece como quase primatas, coisas que vocês não conseguiriam compreender, desculpe. E não estou subestimando a inteligência de vossas senhorias, mas é questão de realmente haver um abismo de compreendimento do que é a biologia com o real subatômico, e o que existe nas entrelinhas, no subconsciente da vida no geral. Claro que vocês não entendem. Não é possível entender ainda pra vocês, desculpe. E não estou usando de nenhuma metáfora mega blaster culta. Tô sendo bem claro, bem sucinto mesmo. Só é ainda impossível de sentir enquanto não vivenciar realmente. E meus caros, sinto em lhes informar que chegará para todo mundo o grande momento. É só aguardar... Pode ser tropeçando ali no degrau da entrada. Ou num acidente de carro indo para uma festa qualquer. A morte.

MULA
A morte! A morte! Cacetuda!

LELO
To be continued...


(black-out)


CENA 3

(dentro do carro, antes do acidente, com Péricles no volante e Zolinha no passageiro; Olavo, Jenifer e Anabete atrás; os cinco se divertem ao som de alguma música pop do momento; se divertem e fumam)

ZOLINHA
(grita fora da janela) Nós somos foda! (volta) Eu amo vocês, seus filhos da puta!

ANABETE
Eu não acredito que a gente tá fazendo isso!

OLAVO
Então! Foi muito em cima da hora!

PÉRICLES
Festa é festa, longe ou perto! Se a montanha não vai até você, você vai até a montanha. É assim mesmo o ditado, né?

JENIFER
Olha aquela lua, gente!

(eles olham uma lua cheia)

ZOLINHA
Nossa! Que linda!

(continuam observando a lua)

PÉRICLES
Tire uma foto.

JENIFER
Ah, com meu celular só sai um pontinho branco.

OLAVO
(grita) Olha o cachorro!

(uma freada brusca, desviando para o lado; todos se assustam; silêncio com o carro parado, todos ofegantes; ouvem o choro do cachorro)

JENIFER
Atropelou?

PÉRICLES
Achei que não. Eu não senti.

ZOLINHA
Desce ver, Olavo.

(o som do cachorro está próximo; Olavo desce do carro)

ANABETE
Fica no acostamento! Cuidado.

OLAVO
Não tô vendo cachorro nenhum.

ZOLINHA
Eu tô ouvindo ele chorar.

JENIFER
Eu tô ouvindo também. Vê se não tá embaixo do carro.

(todos descem do carro; o choro do cachorro continua)

OLAVO
Alguém tá vendo ele?

PÉRICLES
Eu não.

JENIFER
Nem eu.

ANABETE
Não é possível...

ZOLINHA
Eu tô ouvindo o choro dele como se tivesse aqui do meu lado.

JENIFER
Eu ouço também.

(silêncio; ouve-se apenas o cachorro choramingando machucado e se distanciando até desaparecer)

ANABETE
Que coisa mais esquisita isso.

(silêncio)

PÉRICLES
Vamo continuar a estrada?

OLAVO
Vamo.

JENIFER
Fica de olho nas placas pra gente não perder a entrada de novo.

PÉRICLES
Tá bom, tá bom.

ANABETE
Muito estranho...

(eles entram no carro e seguem viajem em silêncio; agora com uma música um pouco mais melancólica)

ZOLINHA
Credo, gente...

ANABETE
Diz que essa estrada é mal assombrada.

OLAVO
Uau. Quem nunca?

ANABETE
Vocês não sentem um negócio meio estranho aqui? Como... como se tivessem olhando pra gente... como se a gente estivesse sendo observado.

ZOLINHA
Ah, tá.

OLAVO
Tá bom, então.

JENIFER
A sensitiva.

ANABETE
É sério! Vocês não sentem?

JENIFER
Não, amiga. Isso aqui é a vida real, dãr. Para de tomar LSD, doida.

ANABETE
Olha essas árvores. Tudo longe.

ZOLINHA
Faz quantos minutos que a gente passou naquela cidadinha já? Já faz mais de uma hora, não faz?

OLAVO
Faz. Faz mais de uma hora.

PÉRICLES
Quase duas já, acho. E a Ana é bruxa de verdade, não é, Aninha?

OLAVO
Bruxa bruxa, mesmo?

ANABETE
Vai se foder. Sou mesmo. Eu sou Wicca mesmo, tá bom? Não me enche.

ZOLINHA
Wicca é aquelas que gostam de pedrinhas?

PÉRICLES
Mais ou menos. Wicca é tipo Harry Potter.

(black-out; outra derrapada; a cena do capotamento rápido)
OLAVO
Vira! Vira!

ZOLINHA
AH!


CENA 4

(Rosivaldo está pedindo carona na estrada)

ROSIVALDO
Rodopiei na roda, no pneu. Passou duas vezes por cima da testa. Caminhão mesmo. Massa encefálica espalhada a mais ou menos uns quinze, vinte metros. Nem vi. Eu tava no acostamento, a hora que eu percebi eu já tava no acostamento de novo me perguntando mais uma vez de onde eu vim e pra onde eu tava indo. Peguei minha mochila e fui pra qualquer lugar. Nunca tive um objetivo final mesmo. Era só uma viagem temporária, sempre foi, eu era desse tipo, não fez muita diferença. Até a sede e a fome continuaram, mas isso se encontra fácil em matagal de estrada feito essa. Tem umas nascentes e mais ali pra frente tem umas frutinhas também. Esqueci o nome. É uma docinha, meio azedinha... esqueci. Enfim. Massa encefálica espalhada no asfalto e o existencialismo continua, igualzinho. Observando as estrelas um pouco mais de perto agora, somente, de tão diferente. E respondendo a grande resposta da vida com mais perguntas ainda. “Tá. Foi. Já era. Entendi. E agora vem o quê? De novo?” Com o tempo você vai se acostumando, o espaço vai se estreitando ao mesmo tempo que se expandindo. Sabe quando você não tem noção de quanto tempo tá se passando, ou porque você tá se divertindo demais, ou porque está entediado demais? É esse sentimento. Normal. Bem normal e natural, inclusive. Eu até preferiria que tivesse sido mais traumático, sabe? Que tivesse um TCHAM! Mas não. Dorme e acorda, dorme e acorda, dorme e acorda. Simplesinho. (pausa) Há quem diga que estamos em outro planeta, mas no mesmo planeta! (gargalha) Não é confuso essa teoria? Muito confuso, muito confuso, coisa de bar, de bebum, de maconheiro... É confuso pra porra tudo o que essas pessoas amedrontadas e perdidas inventam pra conseguirem seguir com a jornada em frente... (pausa) Em frente ou pra trás. Vai saber como funciona esse negócio do tempo, né? Parece que é pra frente que a gente tá andando, mas é que não há aquela clássica linearidade, entende? Óbvio que não entende, nem sei por que pergunto. Flashbacks, e papinho de fantasminha camarada, sonhos... vai pras listas de ficção, obviamente. Mas todo mundo aqui vai saber um dia do que é que eu tô falando... É só aguardar. Não aguardem com espectativas ou não tentem alcançar antes do momento certo, por favor! Deixem acontecer naturalmente porque isso tudo já faz parte da jornada de cada um e também da história natural da existência do tudo. Da existência do tudão! Historicamente falando sobre a energia geral que nos rege. (pausa) Deus? Não posso garantir. Mas não posso negar também...

(black-out)


CENA 5

(os cinco amigos caminham na rodovia, em meio de uma leve neblina; Olavo ajuda Jenifer andando, e Zolinha e Anabete ajudam Péricles)

JENIFER
Não ia adiantar nada a gente ficar esperando alguém surgir.

OLAVO
Tá bom, tá bom.

(Péricles pede para sentar; o grupo se acomoda mais ou menos no acostamento)

ANABETE
A gente precisa muito levar ele pra um hospital. Urgente.

JENIFER
Deve ter algum posto de gasolina em algum lugar, não é possível...

PÉRICLES
Eu sinto cheiro de hospital... (ele desmaia)

ZOLINHA
Péricles! Péricles! Olavo!

OLAVO
Peri! Mano! Abre o olho! (pausa) Tem pulso ainda.

ANABETE
Tá respirando? Vê se ele tá respirando!

OLAVO
Tá. Tá respirando.

ANABETE
Pode ter machucado por dentro...

OLAVO
Péricles! Abre o olho, amigão! Por favor!

ZOLINHA
Um carro de novo!

(silêncio; eles ouvem o carro se aproximar; na curva é possível ver os faróis do carro; o carro passa por eles, entre a neblina; não existe carro nenhum)

ANABETE
Como isso é possível?

(um som de desfribilador e Péricles acorda no susto, puxando ar)

ZOLINHA
Ai, meu deus!

PÉRICLES
Tô bem, tô bem...

OLAVO
Cacete.

ANABETE
Algum celular dando sinal?

JENIFER
(com todos os celulares) Tá tudo na mesma. Ó. Sem sinal, sem sinal, sem sinal...

PÉRICLES
Tinha uma enfermeira... ela... ela...

OLAVO
Ouçam! Silêncio!

(silêncio; eles ouvem alguém cantando longe)

ZOLINHA
É uma mulher.

OLAVO
Tá vindo na nossa direção.

(eles ficam em silêncio enquanto a música se aproxima; leve tensão misturado a uma esperança; Eva entra carregando Camile, cantando)

EVA
Ao nascer
Eu vejo tão lindo o meu bebê
Ver crescer
Esperamos tão bem, mesmo em ruim situação

Quando perceber
Que essa jornada é sem final
Pois você
Só sabe daquilo que parece normal

Ao nascer
Eu vejo tão lindo o meu bebê
E ver crescer
Esperamos tão bem, mesmo em ruim situação

Quando perceber
A filha amada no funeral
Meu bebê
Esperamos tão bem, e a morte vem afinal

Natural
Pois tudo o que existe, existe igual
O bem e o mal
São só homenzinhos fazendo mingau

Ilegal
Dá um medo eu sei, não tem explicação
Não é sobrenatural
Está acontecendo em toda constelação

Espiritual
Ou alma virtual
Ou órgão comum de todo animal
De sangue, amor e coração

Ao nascer
Eu vejo tão lindo o meu bebê
E ao morrer
Eu vejo tão lindo o meu bebê.

PÉRICLES
Porra... essa mulher entrou cantando... que brisa.

EVA
Olá, viajantes!

ANABETE
Nós fomos abduzidos. É isso.

EVA
Recém-chegados. (olha para Péricles) Ah, que peninha. Acho que você não. Você vai ter que ir embora, parece. Pena. Sinto muito por vocês. Terão que dizer adeus a um amigo. É sempre muito triste isso.

JENIFER
Que mulher insensível!

ZOLINHA
Muito insensível! A senhora! Vai ficar tudo bem com todo mundo, tá bom?

PÉRICLES
A senhora canta.

EVA
Sim, meu anjo, pode ir. Tudo vai ficar bem.

ZOLINHA
Cale a boca! Com todo o respeito. Péricles, você não vá pra lugar nenhum, ouviu?

EVA
Me desculpe a insensibilidade.

(Camile começa a chorar)

JENIFER
A senhora sabe dizer qual é o posto mais próximo daqui?

EVA
Oi?

JENIFER
O posto mais próximo daqui? Posto de gasolina.

ZOLINHA
Sabe dizer se tem algum lugar que a gente possa pedir ajuda? Um telefone? A gente capotou o carro...

JENIFER
Nenhum celular tá com sinal...

ZOLINHA
A gente precisa levar ele pra um hospital.

EVA
Aqui é realmente muito distante... (sorri simpática e mantém um sorriso meio macabro por um tempo)

(silêncio)

ANABETE
A senhora não sabe de nenhum lugar? Pra gente usar o telefone. O nosso amigo tá precisando urgentemente de um hospital.

OLAVO
(baixo) Ela não vai nos ajudar.

EVA
Hospital? Querida, fique tranquila que está tudo bem com seu amigo. Ele vai ficar bem. Ele é o mais sortudo de todos vocês. O correto seria pensar em se entreter no meio tempo, entendeu? Se não, vocês podem se transformar num demoninho mal educado. Se entrete, se entrete, se entrete e não torra a paciência dos paralelos. Entenderam? Aviso-os, meninos, o tédio é uma doença. Vem de querer uma resposta, de querer que algo aconteça, quando, nós, como viajantes, devemos abolir da nossa supra existência esse tipo de pensamento. Não há um por quê. Só vai. Entendeu? Só vai. Deixa ir. Deixe estar. A negação da verdade é comum.

(um tanto hipnotizados, Olavo, Jenifer, Zolinha e Anabete se aproximam de Eva; Péricles, estranha)

EVA
Meninos, é hora de deixar ir. Me acompanhem...

TODOS (menos Péricles)
Há uma luz
Que brilha lá lá
Que vai fazer seus sonhos se acostumar

É só querer
Se enfeitiçar
Pra perceber que agora é continuar

E se entreter, lá lá lá lá
Não duvide nunca
De não acreditar

Algo em você
Vai despertar
O medo que te afunda
Nunca vai parar

Está além do sol
Ou dentro do seu quarto
Atrás de uma estrela
Ou dentro de um microscópio
Hoje estou aqui
Hoje eu estou lá lá
E na fantasia
Ser o real estar

E na fantasia
Ser o real pop estar.

(silêncio)

PÉRICLES
Que porra foi essa? (tosse)

ANABETE
Eu não sei, eu não sei! Eles são alienígenas, Péricles. Eu tenho certeza disso. Eu fui forçada a cantar jundo. Eu nem conhecia essa música, alguém conhecia a letra da música?

JENIFER
Eu nunca tinha ouvido.

ZOLINHA
Eu também nunca.

OLAVO
Posso cagar já?

EVA
Entretenham-se. É a única coisa que importa e que se tem pra fazer. O resto nada mais existe.

OLAVO
Hippie. Ela é hippie. Uma alienígena hippie.

EVA
Eu não sou uma alienígena e nem surda. Para de ficar rotulando as coisas, que coisa chata. Cara chato.

OLAVO
Você veio e deu uma moral em nóis aqui, fez um super poder seu aí de X-Men, alienígena, de hipnotização, fez a gente cantar com você a bela canção... E quer vir pra cima de mim...?

PÉRICLES
A gente não, eu não cantei...

EVA
Mais um sinal de que você terá que dizer adeus, muito em breve. Adeus, meu jovem. Pode ir, deixa ir...

ZOLINHA
Não vai, Péricles! Não vai!

PÉRICLES
Obrigado. Eu tô bem aqui.

EVA
É pior resistir.

ZOLINHA
Sai, dona! Ninguém vai morrer aqui! Vamo embora que essa maluca não quer ajudar a gente. Não quer ajudar não ajuda!

EVA
Eu dei uma canção pra vocês!

(silêncio)

ANABETE
Bruxa.

OLAVO
Bruxa!

EVA
Ainda não. Mas se deus quiser, um dia...

ZOLINHA
Então, dá licença pra gente passar. Por favor.

EVA
(abre caminho) Passem, viajantes, passem. Fiquem à vontade. Sou só mais eu e Camile. Só nóis duas. Podem continuar a jornada à seguir sem olhar tanto pra trás. Ou podem olhar se quiserem, mas não muito, é mentira que vira sal.

(os jovens passam por Eva devagar)

EVA
(para Péricles) Adeus, meu anjo! Não é culpa sua. Siga em frente que do chão não passa.

ZOLINHA
Sai! Demônia!

(Péricles tem uma convulsão momentânea; todos se desesperam)

OLAVO
Péricles! Péricles! Olha pra mim, parceiro!

ANABETE
Bruxa.

ZOLINHA
Ah, meu deus! Por favor, meu santo deus, misericórdia meu santo deus...

(Eva sai correndo com Camile)

JENIFER
(grita) Bruxa!

OLAVO
Filha da puta.

ZOLINHA
Que noite é essa?

ANABETE
Onze de agosto. Ontem foi dia dez, já é onze.

ZOLINHA
Não, não dia de assim...

(Péricles está morrendo nos braços de Olavo, com dor, tremendo, babando)

OLAVO
Peri! Meu amigão! Tá tudo bem! Você vai ficar bem.

JENIFER
(grita desesperada) Socorro! Alguém?

ZOLINHA
Não vai, Peri! Não vai! Fica!

JENIFER
(grita) Socorro! A gente precisa de ajuda!

ANABETE
Cala a boca. Você quer mesmo encontrar mais alguma pessoa por aqui? Eu falei pra vocês. Esse lugar...

ZOLINHA
(chora) Ele tá morrendo...

OLAVO
Não! Não! Péricles, meu brow, fica, calma...

ANABETE
Tem algo de estranho acontecendo nesse lugar.

(Eva se esguia pra dentro da cena)

EVA
Só pra ficar mais dramático e clichê... (ela dramatiza) “Vocês todos vão morrer essa noite”. (ela gargalha feito bruxa do tipo clássico; tensão; ela quebra o clima) É brincadeira, piadinha boba, seus bobos. Fiquem de boa. Paz... (sai)

(Péricles morreu; todos estão em volta, Olavo e Zolinha aos prantos, e Jenifer e Anabete segurando a dor, sentindo quietas)

(black-out)


CENA 6

(um foco destaca Lelo segurando Mula pela corrente; ele recebe uma carta)

LELO
Para quem? Pra mim? Pra mim mesmo? “Para Lelo”? Não, não é pra mim não. Deve ser outro Lelo. Não devo nada pra ninguém e o que devo devo pra mim mesmo também porque somos tudo a mesma coisa, não tem dentro e fora e fora dentro. Deve ser outro Lelo, do outro lado do paredão. Faço o que tenho que fazer. Entretenimento. Com o medo. Paralelo à luta política há de se mover uma fantasia pra conseguir sobreviver. Quem que consegue? Eu não consigo. Dói ser inteligente. Você consegue, Mula?

MULA
Mula não consegue. Jeito de nada de nenhum Mula não consegue.

LELO
Mula não consegue o quê?

MULA
(pausa) O que cê falou aí agora.

LELO
Dói ser inteligente, Mula! Eu queria ser você! Mas a missão é de cada um fazemos o quê? En-tre-ter.

MULA
(canta bem) Não gosto quando cantam
Com parte poesia
Não vem com mensaginha de teatro santo!

Aqueles pós modernistas
Que vem de boca cheia

LELO
E por ter regra geral
Finge ter a sua própria veia
Artística!

MULA
Sou uma alma perdida

LELO
Mas a ciência explica!

MULA
Espelinho, espelinho
De onde veio esse espinho
Espelinho, espelinho
Esse rosto de quem é?

LELO
Você foi Bartolomeu
De Romeu à Zé Dirceu
E essa cara de carbono
É a que nasceu pra ter

MULA
Sou uma alma carente

LELO
Que a ciência explica

OS DOIS
Espelinho, espelinho
De onde veio esse espinha
Espelinho, espelinho
Esse rosto de quem é?

Esse é o rosto de deus
Ele fez os animal
Não tem nada de magia
É assim que é pra ser

Ah, vá! Pra aquele lugar!
Ah, lá! Neném vai chorar!

Ah, vá! Pra aquele lugar!
Ah, lá! Neném vai chorar!

(ouve-se o choro de Camile)

LELO
Esse lado de cá é muito macabro mesmo. O palco, eu digo. É quase mágico.

MULA
Mas a ciência explica.

(Eva entra cantarolando sem Camile, mas o choro do bebê ainda existe)

EVA
Oi, viajantes.

MULA
Oi, viajanta.

LELO
É viajante também, ô, sua mula!

MULA
Viajante também, ô, sua mula.

EVA
Viajante que tá com segurando a corrente na mão, você é do tipo que tá na bolha ainda?

LELO
Depende que tipo de bolha que você tá falando, mina.

EVA
Do tipo de não saber das coisas.

LELO
Ah, eu acho que eu sei bastante coisa já. Não sou do tipo da bolha.

EVA
Bom. Que bom. Tô cansada de ser moralista. Mas é uma função. Faço isso porque escolhi. Pós toda dor. Veio naturalmente. Pós toda dor.

LELO
Qual foi a toda dor?

EVA
Foi pneumonia com desnutrição. Eu deixei ela passar fome. Foi por isso. Aí pra mim eu usei uma corda só. Típico. Corda no cano do chuveiro. Não aguentei. De boa também.

LELO
Entendi. É das corajosas. 

(silêncio)

EVA
E você?

LELO
Eu o quê?

EVA
Como foi que aconteceu?

LELO
Faz muito tempo.

EVA
Muito tempo tipo cinquenta, quinhentos, dois mil.

LELO
Uns mil sim.

EVA
Mil?

LELO
É. Por aí.

EVA
Nossa. Bastante tempo. Deve ter sido curioso. Eu estava por aí também.

LELO
É. Você devia tá por aí.

EVA
Em outro canto. Observando por outro formato até virar humana, que foi bem, bem depois.

LELO
Interessante.

(silêncio)

EVA
Já fui uma tartaruga. Vivi cento e oitenta anos uma vez. Como humana tinha sido a primeira vez, essa. Foda pra caralho. Eu tentei ser artista.

LELO
Tem chão, mina. A história é sem fim. Desculpa o pai se fica um pouco cansativo às vezes. Fica de boa, fica de boa.

EVA
Eu tô de boa.

LELO
Artista você está sendo. Em cada cantinho. Mesmo no seu tempo de tartaruga.

EVA
Tem razão.

LELO
Falta um dueto final. De fim de saga.

EVA
Não existe fim de saga. É sempre o meio. Meio começo. Olha eu fazendo minha função de auto moralista. Perdão, é a função da personagem.

LELO
Digo no estilo. Esteticamente falando uma música de fim de saga, manja?

EVA
Entre eu e você?

LELO
Sim! Por que não?

EVA
Pra quê? Significa o quê?

LELO
A pergunta certa sempre é “por quê não?”.

(silêncio; Rosivaldo entra)

EVA
Rosivaldo! Rosivaldo! Você por aqui!

ROSIVALDO
E por aqui também!

EVA
Sim! Prazer em revê-lo, viajante.

ROSIVALDO
Prazer, Eva. E vocês são quem?

LELO
Lelo e Mula.

MULA
Mula. Eu. Mula. Lelo. (entrega uma flor para Lelo) Para Lelo.

ROSIVALDO
Bonitos. Há tanta referência, que fico na dúvida se é proposital.

EVA
O que?

ROSIVALDO
Nós. A ficção nessa mata observada. Eu vi uns jovens... há tantas almas jovens. Capotaram o carro.

(silêncio)

EVA
Rosivaldo sempre sendo Rosivaldo, né, Rosi? Êlaiá, de alma boa. O Lelo é de outros tempos, né, Lelo?

LELO
É, mas a gente vai se aprimorando sempre, né. Vai atualizando as atualizações que tem, ué. Quem não for assim volta a virar árvore.

EVA
Não que isso seja um desmerito, claro.

LELO
Claro! Não um desmerito. Mas não é pra mim mais. Eu tô querendo ficar maior. Super estar!

EVA
Amém. Que deus te ouça em inglês também!

ROSIVALDO
A gente podia cantar uma bela canção. O que acham? A música esteve sempre conectada. Meio final de saga. Da poesia...

EVA
A gente tava falando disso agora! Parece que não é necessário, mas no fim, o que é realmente necessário, não é mesmo?

LELO
É exatamente isso, garota! Toca logo a porra desse som!

(a música inicia)

TODOS
O grande final
É só beijar de língua
E pensar na moral

Não tem pra onde ir
Se você quer ter vida boa
Você tem que insistir

No auto entrenimento
Poder suportar
Ser auto confiante
Ser um super estar

Quando vir sofrimento
Sentir o luar
Tudo o que é semelhante
Tá no mesmo lugar

No meio do mar
No meio da escola
Ou na vida falsa escolar
Não tem pra onde ir
Se você quer a vida boa
Você tem que insistir.

Eu tô te vendo, como se quer
Cê tá me vendo, como deus quiser
Eu tô te vendo, como eu te quero
Eu tô me vendo, como deus quiser!

E eu existo, como se quer
Você existe, como deus quiser
Você existe, como eu te quero
E eu existo, como deus quiser.

Não tem mensagem!

(eles dão um beijo de língua em três)

TODOS
Ou tem. Vocês quem sabem. Nós que sabemos...

(cada um sai pra um lado; black-out)


CENA 7

(os cinco amigos estão na mesma posição do início do espetáculo)

ANABETE
Parece que a gente tá rodando em círculos. Eu tenho a impressão de já ter passado por aqui.

OLAVO
O palco é giratório...

(silêncio)

ZOLINHA
Eu acho que a gente morreu. Essa é a minha teoria. No acidente. A gente morreu no acidente.

JENIFER
E o Péricles morreu morto?

ZOLINHA
Não sei, não sei...

ANABETE
Eu acho que é esse lugar. Há lugares que são tipos portais do inferno...

ZOLINHA
Para de fazer isso, Ana! Para de piorar as coisas.

ANABETE
Eu tô procurando explicação, garota. A gente viu uns caras esquisitos que gostam de cantar, carros que não existem, cachorros que não existem... O acidente... o Péricles...

JENIFER
Tem de haver uma explicação lógica pra tudo isso.

OLAVO
Se não perde a credibilidade.

ZOLINHA
Credibilidade? Credibilidade de quê, Olavo?

(Olavo aponta para a plateia; é a primeira vez que os personagens percebem que estão sendo assistidos por uma plateia)

ANABETE
O que é isso? O que é que tá acontecendo aqui?

OLAVO
A gente tá numa peça de teatro. Um musical, ainda por cima. Gospel. Espírita.

ZOLINHA
A gente morreu no acidente de carro. É o mais óbvio, o mais lógico. Ninguém sabe o que vem depois pra dizer que não é isso. E o depois a gente sabe porque a gente morreu. E é isso o depois. Entenderam?

JENIFER
Tá, mas e o Péricles? Ele morreu depois de morrer.

ANABETE
Não. (entende) O Péricles foi o único que sobreviveu.

JENIFER
O que?

ANABETE
Hospital. “Sinto cheiro de hospital”. Ele conseguiu se salvar.

ZOLINHA
Ah, meu deus!

JENIFER
Que viagem! Impossível!

OLAVO
Não tem nada de impossível, não. Tudo é possível.

JENIFER
Já vai começar com aquele negócio de viajantes você também.

ZOLINHA
A moça tava tentando ajudar o Peri...

JENIFER
Vocês estão ficando loucos porque eu estou me sentindo muito, mas muito bem que viva, tá bom?

OLAVO
“A negação da verdade é comum”.

JENIFER
Parem de falar que a gente morreu! A gente não morreu! A gente é real, ó! Sinta a carne! É de verdade.

OLAVO
A gente só conhece aquilo que a gente já experimentou.

JENIFER
(grita) Para! Para, Olavo!

OLAVO
Você quer que eu minta pra você do que eu acho? Eu estou sendo sincero somente.

ZOLINHA
Eu também acho que... nós morremos no acidente. É um final razoável. “Jovens morrem em acidente na BR66”.

ANABETE
Acho que já até existe um filme assim. Dois filmes.

OLAVO
Três.

ANABETE
Três. Tá todo mundo morto no final. Bacana.

OLAVO
Quatro.

ZOLINHA
Quatro mesmo!

(silêncio)

JENIFER
Cinco. Cinco filmes, eu lembro.

OLAVO
Eis como a realidade se acaba. Nada de novo.

ZOLINHA
Como? Quando fecham as cortinas?

OLAVO
Hoje nem fecha mais cortina, nem precisa.

JENIFER
Depende da estética. O negócio de precisar ou não.

OLAVO
É verdade.

ZOLINHA
Mas nem é real real mesmo, é? Pense bem. Essas coisas de fantasmas não existe. Pense aqui comigo.

ANABETE
E se a gente já morreu várias vezes?

ZOLINHA
E a gente tem que viver descobrindo o que veio antes e o que vem depois!

OLAVO
Entreter. Entreter-se. Se auto entreter. Entreter os outros. No paralelo.

LELO
(em off) Pra mim? Pra mim não!

OLAVO
Nas dimensões do subtexto e do sub-ar. Sub-moléculas. Subconsciente. Subatômicas. Tem espaço no meio...

JENIFER
Alma virtual.

ANABETE
E orgânico, ao mesmo tempo.

ZOLINHA
O virtual é orgânico!

TODOS
É! É orgânico o virtual!

(eles estão entusiasmados e eufóricos; o tempo faz cair aos poucos um senso de realidade neles todos; eles vão se entediando na nova vida aos poucos; há uma grande passagem de tempo, Péricles desaparece, há talvez uma pequena troca no figurino e/ou maquiagem dos personagens, barbas e cabelos diferentes)

TODOS
Oh,
Porque o céu é azul
Eu me apaixonei
Porque o céu é azul

Porque eu me apaixonei
Que o céu é azul
Porque eu me apaixonei

Você está muito bem
Eu me apaixonei
Você está super bem

Eu posso depois das dez
Seiscentos e sessenta e três
Eu posso depois das dez

Se de um átomo aproximar
Por de trás há outro lugar
Que nós não podemos imaginar
A história é assim, na verdade não é um fim
É dar continuação...

Sem nóis precisar
Usar deus
Ou mágica, é?
Há como explicar que Zeus foi
Um astronauta, então

Nóis ainda era boi
Mais ninguém

Sem nóis precisar, enfim...

(um pouco mais de alguma rotina quase robótica acontece)

OLAVO
Tédio.

ANABETE
Fuja!

ZOLINHA
É duro.

JENIFER
É difícil.

ANABETE
Vai ter a bolha seguinte e depois a seguinte e depois a seguinte... e sempre houve alguma bolha... e dá uma canseira só de pensar na eternidade de bolhas e planetas e quanto vai demorar pra gente chegar num paralelo que seja realmente diferente, entende?

JENIFER
É por isso que eu ainda espero pelo “descanse em paz”. Tá, tá bom. A gente morreu e o pós morte é num universo paralelo, que tá emaranhado, conectado, com a realidade. É mais ou menos isso, né?

OLAVO
Mais ou menos isso. Emaranhado não é a palavra, mas continue...

JENIFER
Eu sinto falta do grand finale. Meu grand finale não foi o acidente de carro. Vai acontecer mais um milhão de coisas ainda. Eu não sei se eu gosto dessa ideia da eternidade.

ZOLINHA
Você quer dizer que a morte pra você é um desejo?

JENIFER
Uma necessidade! Pra poder dar sentido. Pra poder ter linearidade. Pra poder ter um fim, no final de tudo. Eu quero descansar em paz.~

OLAVO
É você quem deve fazer a sua paz.

JENIFER
Ok, viajante

OLAVO
Ok, viajanta.

JENIFER
Não existe essa palavra.

OLAVO
O que não existe é o tal “não existe isso”. Eu falei. Existe. Se eu falei existe. Se eu falei e você entendeu, existe, porra.

JENIFER
Chega, por favor. Paz. Paz. Por favor.

OLAVO
Busca a sua.

JENIFER
Tô tentando.

ZOLINHA
Tô tentando também.

ANABETE
Eu também.

OLAVO
Eu também...

(eles ficam por um breve silêncio, incomodados, rotineiros; Rosivaldo, Eva com Camile e Lelo com Mula entram e se acomodam cada um em um canto; eles repartem a cena em silêncio, cada um em sua rotineira eternidade)

(a escuridão cai em resistência; ve-se apenas um planeta girando, no silêncio; o planeta se duplifica, espelhado, “emaranhado” em si mesmo)

(black-out)

CENA FINAL

(Péricles está desacordado em uma cama de hospital; a Mãe, que é a mesma atriz que fazia Eva, está adormecida do seu lado; Péricles acorda de um susto no pulo; a Mãe acorda)

MÃE
Alguém! Alguém! Meu filho acordou! Minha Nossa Senhora, meu filho. Obrigada, meu deus! Muito obrigada, meu lindo, meu bebezinho. (chora; a Enfermeira entra e inicia um procedimento básico) Tá tudo bem, meu amor. Tá tudo bem, você está bem.

PÉRICLES
Que cheiro de hospital...

MÃE
(ri) Você está num hospital, meu amor. Graças à deus, minha nossa senhora! Agora está tudo bem, calma, está tudo bem...

PÉRICLES
Você...

(a Enfermeira é a mesma pessoa que interpretava a Mula)

ENFERMEIRA
Tá tudo bem, amigão. O pior já passou. Vou religar o soro pra você, tá bom? Você tá com dor?

PÉRICLES
Um pouco.

ENFERMEIRA
De zero à dez?

PÉRICLES
Cinco. Seis.

MÃE
Você acabou de acordar, meu amor. É normal se sentir assim...

PÉRICLES
O Olavo, a Zola...

(silêncio)

MÃE
Calma, filho. O importante agora é que você acordou! Você vai ficar bem, tá tudo bem agora.

PÉRICLES
Foi culpa minha.

MÃE
Não! Não! Chiu! Não pense nisso! Você está bem, é isso que importa!

PÉRICLES
Não tinha placa...

MÃE
Eu sei! Todo mundo sabe! Não se preocupe agora, meu amor.

ENFERMEIRA
Agora vamos pensar na recuperação, amigão. Se esforça pra me ajudar, que eu vou te ajudar. A gente tá aqui pra isso.

(silêncio)

PÉRICLES
Mãe. Há um outro lugar...

MÃE
O que filho?

PÉRICLES
Mas aqui mesmo. Um lugar aqui mesmo...

(silêncio)

ENFERMEIRA
É normal se sentir meio atordoado depois de sair de um coma, Péricles. Fique tranquilo. Tenta se acalmar. Eu vou colocar um calmante que tava prescrito aqui pra você.

MÃE
Você teve alguma experiência durante o sono, filho? Dessas que o povo fala? Você ouvia a minha voz? Eu fiquei aqui do seu ladinho o tempo inteiro.

(silêncio)

PÉRICLES
Eu não me lembro de nada. Não tive experiência nenhuma.

(o Médico entra, é o mesmo ator que interpreta Lelo)

MÉDICO
(didático) O nosso cérebro é capaz de inventar um monte de coisa no subconsciente, garoto. É normal se sentir assim. Não fique preocupado. Práticas da vida que o indivíduo em sua jornada traz consigo pro resto da eternidade dentro do seu cérebro físico! Fisicamente explicada e sentida de outra forma que vocês nós seres humanos comum, não sabemos ainda coodificar, compreender, ainda tendo pulso pulsando sangue vermelho e carne de biologia animal dentro de nós. Difícil pra vocês entenderem, sem vos subjulgar, por favor. É outra parada, esse bagulho! Outra experiência! Outra sensação do resto da jornada. Que, pelo que me parece, não tem fim. Só é diferente. Diferente e sem fim, o depois! Mas consciente! Consciente sim!

PÉRICLES
Doutor, mas tem alguma coisa de real nessa parada toda?

MÃE
Como assim filho?

PÉRICLES
Aconteceu o que aconteceu na minha cabeça. Eu entendo isso. Eu codifico isso. Mas...

MÉDICO
Só porque isso aconteceu na sua cabeça, isso quer dizer que não seja real?

(silêncio)

PÉRICLES
Tem razão. Que doideira...

ENFERMEIRA
O remédio é um pouco anestésico. Dá uma lerdeada. É normal.

MÃE
Vai ficar tudo bem agora, filho. Meu deus. Eu rezei tanto...

PÉRICLES
Obrigado, mãe.

(a luz vai caindo em resistência, dando um final grandioso de saga para o espetáculo; inesperadamente os outros personagens entram em cena; Rosivaldo é agora um faxineiro do hospital, e os amigos de Péricles são pacientes do hospital; todos cantam, inclusive Péricles)

TODOS
Encontrei a terra ardendo
Tal batida de caminhão
Uma bolha d’água, queimou crescente
Virou ferida, depois carvão

E são tantos camaradas
Viajantes por precisão
Dentro da vala, um indigente
Ou gente amiga, um famosão

O final todo mundo conhece
Da jornada do homem então
Há muito espaço, que divide o tempo
De pés descalços, não sentir o chão

Ou flutuando, feito um fantasma
Um ectoplasma com coração

No acostamento, do chão não passa
Atravessando a escuridão

No acostamento, uma freada
Atravessando a imensidão

No acostamento, foi num capote
Atravessando as constelação.

(black-out)

FIM




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