ELE ERA UMA MENINA

ELE ERA UMA MENINA

PERSONAGENS
Anastácia
Zé Tadeu
Luana
Rubens
Tereza, João, Ana Maria e Augusto (um manequim de uma cor só; sem rosto, sem figurino, sem gênero definido; pode ser um ator/atriz ou não)


INTRODUÇÃO – ELES E ELAS

(os quatro personagens estão em focos simétricos e comportados; todos bem caretas e disfarçando um incômodo; ao fundo a silhueta de uma cidade com uma igreja matriz; eles cantam com drama, hora envergonhados, hora apaixonados)

TODOS
Um segredo que aconteceu
Tive medo, foi entre eu e deus
Na cidade aqui
Não existia alguém assim
Tava tudo bem
Mas, por favor, longe de mim

Meu amor era um Romeu
Com buceta, oh, meu deus!
Julieta na calcinha
Escondia um pingulim

Um desejo que me acometeu
Eu despejo, quem viu foi eu e deus
Nessa idade quem não se assusta assim?
Me deu nojo, quando eu lembro
Fica maior quando eu revejo o que eu senti
Melhor assim
Longe de mim

Meu amor
Acabou
Não deu
Foi o fim

Durou toda essa paixão
Até eu ver a verdade
Rasgou meu coração
E até hoje arde

ANASTÁCIA
De vergonha, eu não sei.

ZÉ TADEU
De medo da cidade.

TODOS
O que vão falar de mim?

LUANA
Desconhecimento, eu tentei.

RUBENS
Preconceito e vaidade.

TODOS
E um tanto de maldade sim...

Puto feito, perfeito
Deitado no meu peito
Puta santa, com um jeitinho
Uma voz que engana e encanta

Fingiu
Sorriu
Mentiu
Dormiu do meu ladinho
Comeu da minha janta
E puta que o pariu!

Eu gostei até saber
Eu gozei junto de você
A paixão era tanta
Eu pirava de prazer
Não dava nem pra perceber

ANASTÁCIA e ZÉ TADEU
Que meu amor era um Romeu
Com buceta, oh, meu deus!

LUANA e RUBENS
Julieta na calcinha
Escondia um caralhão!

TODOS
Que caralho! Foi embriaguez!
Lazarento ou lazarenta!
Mas eu lembro e você lembra
Me escondeu por mais de um mês
Estraçalhou meu coração
Olha o estrago que você me fez

(silêncio e quase escuridão; os quatro personagens demonstram grande dor por seus segredos)

TODOS
Meu amor
Longe de mim, por favor...
Meu amor
Vá embora
Vou embora
Tome agora.

(longo silêncio. Ao fundo, de repente a cidade transforma o clima de melancolia em uma grande festa junina/julina com bandeirinhas, luz e música caipira; os quatro não se divertem tanto, mas melhoram as fisionomias enquanto narram)

TODOS
Tudo começou numa época de festa.

ANASTÁCIA
No interior, em cidade pequena como a minha, São Pedro da Cachoeira, é assim que os romances começam. Na igreja ou em festas. Sempre! As histórias são quase sempre parecidas por aqui. Casamento e filhotes!

ZÉ TADEU
Vinha gente de tudo quanto é lugar conhecer a festa junina típica da cidade São Miguel das Dores também. Essas festas eram muito comum em cidades como a minha. Era bem famosa na região porque era festa por duas semanas seguidas.

LUANA
Duas semanas sem parar! Mas festa santa, festa do bem. Tinha bebida alcóolica sim. Santa Efigênia da Conceição, a minha cidade, já não era tão tão careta; tinha uns bêbados e até brigas também, mas nada além do normal. Vinho quente, cerveja e quentão! Ai, que delícia só de lembrar!

RUBENS
E casais apaixonados se beijando comportados – ou quase comportados – nos bancos da praça. Famílias com seus filhos comprando pé de moleque, churros e maçã do amor. Era tudo muito normal aqui em Santa Andorinha, como em qualquer cidade do interior.

TODOS
Pulando fogueira e andando na brasa por promessa à Santo Antônio. E os jovens solteiros paquerando. Ainda naquele estilo clássico, de mãozinha dada, andando em volta da praça central, pro resto do mundo ver.

RUBENS
“Fala pra sua amiga se ela não quer me dar um beijo atrás da igreja!”

ANASTÁCIA
“Fala pro seu amigo me encontrar no banco da praça perto da fonte!”

RUBENS
“Eu queria namorar com você!”

ANASTÁCIA
“Pede pro meu pai que eu digo sim!”

(os quatro suspiram em coro)

TODOS
Aaah...

LUANA
Mas sempre tinha os que não sabiam paquerar também. Os tímidos e os bobos. E também aqueles que iam só pra aproveitar a festa mesmo, dançar, comer, brincar...

ZÉ TADEU
Aqueles que iam só com o dinheiro do cachorro quente e que comiam disfarçando a invejinha de quem conseguia arrumar alguém pra dar uns beijinhos, dos casaisinhos recém-formados. Tudo porque não sabiam se adaptar e paquerar.

LUANA
Ou se aceitar como era por dentro. Com a autoestima levada longe pelo vento, pelos amigos, inimigos e pelo tempo...

ZÉ TADEU
Aqueles que sofriam de outros segredos ainda. Segredos estranhos pra lugares assim.

TODOS
Mas todos concordavam que eram duas semanas boas, que os pais guardavam dinheiro pra pelo menos os filhos poderem comer uma guloseima por dia. E quem não podia pagar, o padre Eugênio dava um jeito de arrumar. A minha cidade era uma cidade boa, de bom coração, cristã e de costume em caridades!

(as luzes escurecem um tanto sombrias)

ANASTÁCIA
Mas nem sempre tudo são flores pra todo mundo.

ZÉ TADEU
E é numa dessas mudas murchas que histórias estranhas com gente diferente têm início.

LUANA
Coisas que ninguém consegue prever.

RUBENS
Coisas que ninguém pede pra acontecer...

(os quatro se sentam em bancos separados e mordem um pedaço de pastel ao mesmo tempo; cantam de boca cheia)

TODOS
Ah, solidão
Falta um beijo, um quentão
Meu coração, queria mais que um pastel de queijo
Que uma maçã do amor, uma caipirinha de limão

Ah, solidão
Só um desejo, um adolescente em questão
Uma paixão, um beijo quente
E amanhã na manhã fria, um calor no cobertor
Alguém que saiba o que é o amor
Que a gente sente e nunca mente

Indiscutivelmente,
Não por acidente
Nem por medo
Ou por terror...

(os quatro avistam alguém; um foco apresenta o manequim em sua mais simples neutralidade; suspense)

ANASTÁCIA e ZÉ TADEU
Quem é aquele que ali vem?

LUANA e RUBENS
Quem é aquela? Será meu bem desse vez?

ANASTÁCIA e ZÉ TADEU
É tão bonito. Os braços fortes. Veio sozinho. Não é daqui. Ai, se alguém me ouve falando isso!

LUANA e RUBENS
Que gatinha linda. Olha que bundinha redondinha! Ai, se alguém me ouve falando isso! Mas é linda mesmo. E tá sozinha. Não é daqui.

TODOS
Será que eu chego pra puxar um papo?

ANASTÁCIA
Vou passar do lado dele e fingir que tropecei.

LUANA
Vou passar do lado dela e ver se ela gosta de meninas também. Ai, se alguém me ouve, meu deus do céu!

ZÉ TADEU
Ele é tão bonito. Eu queria pedir perdão por sentir isso, meu senhor. Mas eu não consigo. Se alguém descobre o que eu sinto, eu estou frito...

RUBENS
Vou comprar uma maçã do amor, chegar nela e falar “Ei, moça, você se machucou?”, e ela vai perguntar “Por que eu teria me machucado?”, “Quando você caiu do céu deve ter ralado pelo menos o joelhinho. Quer ganhar um beijinho meu pra ver se sara, meu anjo?”. Aí ela logo se apaixona pelo bonitão.

(os focos de Anastácia, Zé Tadeu e Luana se apagam e Rubens é o único que se mantém em cena com o manequim estático)


CENA 1 – RUBENS E TEREZA

RUBENS
Ela deve ter vindo da cidade grande. Por que será que está sozinha, sendo tão bonita? Uma moça assim desse tipo não deveria estar desacompanhada. Ao menos que esteja procurando um namorado. Nem mesmo uma amiga? Vou chegar e perguntar seu nome. Qual o problema? Perguntar o nome não machuca ninguém, né? (silêncio) Eu acho que eu nunca vi uma moça tão bonita aqui em Santa Andorinha. De onde será que ela veio? Deve ser parente dos Alencar. Os Alencar que tem essa feição de boniteza única. Ai, meu deus! Ela tá vindo nessa direção! Ei, Rubens, se controla! É só uma garota, como qualquer outra. (pausa) Não. Essa não parece ser como as outras. Ela tem algo de diferente. Acho que é no olhar, no jeito de andar. Se controla, Rubens, você acabou de ver a moça pela primeira vez e tá falando como se estivesse apaixonado. Larga a mão de ser panaca e vai logo perguntar o nome dela. Pronto. Aí vocês dão uns beijinhos, daqui duas semanas ela obviamente vai embora porque deve estar passando as férias aqui na casa de algum tio Alencar, e pronto. Pegou a mina, deu umas carcadas e todo mundo ficou feliz.

(silêncio; os outros atores passam carregando o manequim na frente dele, como se Tereza estivesse passando na frente de Rubens)

RUBENS
Ela tá passando, ela tá passando, eu vou falar, eu vou falar... (pausa; os atores deixam o manequim do outro lado e saem) Ela passou. (silêncio) Droga! Burro! Burro, burro, burro! Que tapado, Rubens, vai vir outro moleque trouxa e vai ganhar os beijinhos que ela tá guardando. Anda logo, seu idiota! Não posso perder tempo...

(Rubens se aproxima do manequim disfarçando; ele narra)

RUBENS
Eu cheguei e perguntei se ela tava afim de conversar. Ela sorriu e eu percebi que já tinha ganhado a mina, não ia precisar de muito esforço, graças à deus. Sorriu de primeira, um beijinho pelo menos ia rolar. O bonitão aqui tem sorte e se garante, o nervosismo é pura idiotice porque no final sempre dá tudo certo. Trouxa. Perguntei o nome dela e ela disse que se chamava Tereza. Terezinha lindinha do bumbum redondinho. Claro que eu não falei isso pra ela, né? Perguntei se ela queria uma maçã do amor. Essa funciona bem, sempre funciona muito bem. Ela disse que sim, mas disse que ia pagar com o dinheiro dela. Independente, olha que gracinha. Mas eu insisti, falei que fazia questão, “por favor, eu faço questão!”. Ela no final aceitou minha gentileza e aceitou dar uma volta comigo em torno da praça como pagamento. Rimos de algumas coisas bobas e conversamos sobre aquelas coisas comuns que se fala quando você está tentando conhecer e impressionar alguém. Sentamos em um dos bancos, quando ela disse que cansou de andar por conta do salto alto. Eu sabia que faltava pouco pro beijinho, porque sentar nos bancos era um sinal. Dito e feito. Quinze minutos depois estávamos nos beijando. Beijo de língua. Um beijo bem gostoso e demorado como eu nunca tinha experimentado de ninguém...

(a iluminação transforma o ambiente romântico em uma melancolia trágica; Rubens muda completamente o tom, furioso)

RUBENS
Se eu soubesse da verdade eu poderia vomitar agora. Foi uma sacanagem ela não ter falado nada. Uma enganação de gente filha da puta mesmo. Ela colocou aquela língua dentro da minha boca, sem dizer que era uma... que era um... Argh! Isso devia ser considerado crime! Enganar as pessoas desse jeito! Eu deveria estar protegido por legítima defesa, depois de tudo o que aconteceu. Mentirosa! Quem aguentaria uma vergonha dessa? A gente aqui não é acostumado com essas coisas, ela vem de longe e acha que a gente tem que aceitar... Não aqui, aqui é cidade tradicional, meu. Eu agi no calor do momento, na hora da raiva... (longo silêncio; ele se acalma um pouco) Sabe, não dava nem pra perceber. Ela escondeu direitinho, conseguia esconder sei lá como. Não sei como não percebi... (pausa) Ela não estava só passando as férias na cidade, ela tinha acabado de se mudar com os pais pra cá. Como é que um pai aceita um negócio desse? E a gente começou a ficar. Depois daquela noite da festa a gente começou a sair mais vezes e mais vezes. E a gente chegou a transar e tudo o mais, mas ela conseguiu fazer tudo direitinho pra que eu não percebesse que na verdade ela tinha... que na verdade ela não era... (silêncio) Eu nem me liguei! Eu fui um burro também. Eu estava com uma gatinha, que fazia um boquete gostoso e gostava de... (fala mais baixo) dar o cu pra mim. Porra! Sem eu precisar pedir. Eu ia reclamar do quê? Que homem reclamaria? Quem que ia achar ruim? (silêncio) Mas algumas pessoas da cidade descobriram o segredo da Tereza antes de mim. Em primeiro lugar que ela nem se chamava Tereza na vida real, e descobriram tudo antes de mim, sei lá como. Aí começaram a rir de mim nas minhas costas, sem eu saber o que estava acontecendo. De começo eu não estava entendendo nada. Quando a gente passava e as pessoas comentavam... Eu nem imaginava do que é que elas estavam rindo. Eu reparava que ela ficava bastante chateada com tudo isso, mas eu nem imaginei! Eu até arrumei uma treta uma vez que a gente passou de mão dada e um cara riu da minha cara. “Qual foi, maluco?”, eu falei pra ele. E ele só saiu andando. (silêncio) Aí um dia, a gente tinha ido na igreja – porque a lazarenta pra disfarçar ainda ia na igreja comigo, você acredita? Mesmo sendo contra as coisas de deus, ela disfarçava e ia. Aí um senhor virou pra nós dois e falou “Deus não gosta do que você é, você não devia ter coragem de entrar aqui! Você é coisa do capeta! Você não tem vergonha na cara de namorar com uma coisa dessa não, rapaz?”. Na hora eu empurrei o tio, falei umas merdas pra ele dentro da igreja – que deus me perdoe – , mas quem era ele pra julgar as pessoas? E eu pensei que ele tava falando porque a Tereza gostava de usar saia curta, salto alto, sei lá, não pensei que fosse porque ela era... porque ela tinha... (silêncio) Aí a gente saiu da igreja sem eu ter entendido ainda o que estava acontecendo; eu tava pagando uma de idiota na frente de todo mundo. Eu perguntei pra ela, eu ainda perguntei pra aquela filha da puta: “Por que será que ele falou aquilo pra você, Tereza?”. Ela respondeu: “E eu lá vou saber, Rubens? Inveja.”. Ela mentiu na minha cara. Teve coragem de mentir na minha cara! (longo silêncio) As pessoas depois de tudo o que aconteceu me perguntaram se eu nunca tinha colocado a mão na... na... na parte de frente dela, pra ter ficado meses com ela sem ter percebido. (pausa) Ela dizia que queria casar virgem e que não queria ser tocada ali e eu acreditei. (pausa) Ela me dava o cu, porra, do que eu podia reclamar? Eu nunca imaginei. Eu respeitei! Eu respeitava a decisão dela! Eu sempre fui de respeitar as opções das pessoas, se ela não queria que eu colocasse a mão na buceta dela eu não ia colocar. Fim. (silêncio; ele suspira) Mas era mentira. (pausa) O dia final de tudo, que eu descobri tudo e quando tudo acabou, foi quando a gente tava comendo um lanche no Marquinho e gritaram pra gente “Cuidado com o viadão e o traveco ali, gente!”. (pausa) Foi aí que eu liguei os pontos. A gente ficou os dois em silêncio no momento, mas eu já estava começando a entender o que todo mundo sabia, menos o idiota aqui. E que ninguém teve a coragem de vir contar, e que só ficavam rindo da minha cara, falando de mim pelas minhas costas, até os que se diziam amigos. Mas eu guardei a discussão pra quando chegasse em casa, dentro do quarto, entre quatro paredes, porque eu queria ter certeza no tato. Parecia que finalmente ela estava se preparando pra contar também, no fim das contas, já encurralada, claro, mas não deu tempo. Ordinária. Eu tranquei a porta do quarto e meti a mão dentro da calcinha dela sem pensar.

(longo silêncio; um black-out rápido transforma a cena narrada em ação; Rubens enforca Tereza/manequim no chão chorando e gritando ao mesmo tempo)

RUBENS
Você é homem, seu filho da puta! Você é homem! Eu beijei a sua boca, seu puto! Eu beijei a sua boca, a sua bunda! Seu filho da puta! Seu viado filho da puta! Seu viado filho da puta! Nojento! Seu nojento filho da puta!

(silêncio; Rubens mata Tereza numa cena dramática e violenta; ele desmonta o manequim em partes, jogando braços e pernas para os lados; ele se levanta cambaleando quando cansa; os outros atores entram observando o acontecido)

RUBENS
Olha o estrago que você me fez fazer... Julieta com um caralho, eu te amava, eu desejava você. Eu descobri e eu te estraçalho, agora eu te despejo numa vala, olha o que você me fez fazer...

(longo silêncio; Rubens arrasta os restos de Tereza até um canto do palco, joga gasolina em cima dela e acende um fósforo; um fogo feito de luz ilumina todo o palco)

RUBENS
Cadeia, mas honra. Eu não sou viado. Se ela tivesse avisado, ninguém tinha morrido. Mas morra, Tereza, morra, sua filha da puta! (silêncio) O nome dele de nascença era Rafael. (silêncio) Eu amei a minha Tereza, eu amei tanto a minha Tereza... mas só até eu saber, depois não...

(um foco destaca todos os personagens; eles remontam o manequim)

TODOS
Um desejo que me acometeu
Um despejo, quem viu foi eu e deus
Na cidade ninguém aguenta assim
Me deu nojo, quando eu lembro
Fica maior quando eu sinto o que eu senti
Melhor assim
Longe de mim

Olha o estrago que me fez fazer
Julieta com um caralho
Eu te amava, eu desejava você
Sem buceta eu te estraçalho
Tereza eu te despejo numa vala
Eu te amava
Olha o que me fez fazer...

RUBENS
De vergonha, eu não sei
De medo da cidade
O que vão falar de mim?
Desconhecimento, eu nem tentei
Preconceito e vaidade
E um tanto de maldade sim...

(imagens de uma cela de prisão finaliza a cena de Rubens, ainda de cabeça erguida)


CENA 2 – ANASTÁCIA E JOÃO

(os atores colocam o manequim em pé novamente e a festa recomeça)   

TODOS
Tudo sempre começa numa época de festa.

ANASTÁCIA
No interior, em cidade pequena como a minha. São Pedro da Cachoeira. Festa, casamento e filhotes!

ZÉ TADEU
Vinha gente de tudo quanto é lugar conhecer a festa junina típica da cidade São Miguel das Dores também. Era bem famosa na região.

LUANA
Santa Efigênia da Conceição, a minha cidade, já não era tão tão careta; tinha uns bêbados e até brigas também.

RUBENS
E casais de homem e mulher apaixonados se beijando comportados nos bancos da praça. Famílias de homem e mulher com seus filhos comprando pé de moleque, churros e maçã do amor. Era tudo muito normal lá em Santa Andorinha, como em qualquer cidade cristã de homem e mulher do interior. (pausa) Até alguma coisa de diferente acontecer...

TODOS
“Jovem confessa assassinato de transexual na pequena cidade de Santa Andorinha”.

RUBENS
Apareci até na TV. Cadeia, mas honra.

(um foco destaca Anastácia dos outros; ela fica sozinha em um foco e o manequim, agora chamado João, em outro)

ANASTÁCIA
Ninguém nunca tinha visto aquele rapaz ali na cidade. Com certeza era algum turista de visita. Tava sozinho, sem nenhum amigo. Era forte, tinha os braços bem definidos, as costas largas. Com certeza era um desses que frequentava academia. Meu tipo. Mesmo eu não sendo muito fã de exercício físico. Ele era lindo de rosto também. Moreno dos olhos bem pretos e daquele tipo de olho pequenininho, sabe? Que parece que tá fazendo cara de safado o tempo inteiro. Um olho meio semi serrado o tempo inteiro. Um cafajeste na cara, tudo por causa daquele olhinho pequeno, mas que tinha uns trejeitos de cavalheiro. Era até um pouco afeminado, às vezes. Uma hora que ele passou eu reparei no bumbum dele e ele deu uma leve reboladinha. Bem de leve, eu juro! Eu cheguei a pensar “Ai, quer apostar que o bonitão é gay pra me ferrar? Bonitão e bem arrumado desse jeito só pode ser gay.” Mas ele olhou pra mim. Eu tava trabalhando de voluntária na barraquinha da pesca e ele passou umas três vezes olhando. “Huuum, gay não é, graças à deus.” Agora só faltava ele tomar coragem e vir falar comigo. Porque eu não sou dessas de chegar num cara, jamais! Eu perco a oportunidade, mas não me submeto mesmo. Eu sou do tipo clássica. O moço que chama a moça.

(os outros atores levam o manequim até perto dela)

ANASTÁCIA
Ele então comprou uma ficha pra pescar um presente. Na hora eu percebi que ele já estava tentando me paquerar, mas eu me fiz de desentendida e desinteressada, claro. Atendi ele normalmente, sem muita simpatia pra não ficar na cara que eu estava encantada com os olhinhos pequenininhos dele. De perto eu pude ver que ele tinha um rosto todo delicado. Era um anjinho de braços definidos e fortes. Uma barba bem feitinha, daquele tipo de pelo bem lisinho, com caimento tudo pra um lado só, sem falhas. Um anjinho todo forte e alto e de barba perfeita. (pausa) Ele jogou duas vezes a pesca sem falar muito. Na primeira vez ele ganhou um abridor de garrafas todo colorido. Aí ele me disse “Ah, que pena, eu nem bebo”. Ele nem bebe, que fofo! Aí eu sugeri que ele tentasse a sorte de novo, só pra ele ficar mais um pouquinho ali. Ele comprou mais uma ficha e foi aí que tudo começou...

(as luzes e a música ambientam um clima romântico; os atores entram carregando um urso de pelúcia bem grande)

ANASTÁCIA
Ele ganhou o prêmio máximo da noite. (ela encena) “Moço, você ganhou o maior prêmio de hoje! É um super urso gigante! Parabéns!”. Aí ele virou pra mim e disse: “Meu nome é João.”, “Prazer, João, Anastácia.”, “Que nome lindo. Nome de princesa da Disney.” Eu gamei. “Acho que eu vou dar esse urso de presente pra uma moça bonita que faz tempo que eu tô paquerando na festa hoje.”, “Jura? E quem seria essa moça?”, e ele me entregou o urso que eu quase não conseguia carregar sozinha. “Pra mim? Mas, moço, é o seu prêmio!”, me fiz de desentendida. “Se é meu, eu dou ele pra quem eu quiser, e eu estou dando ele pra moça mais bonita da festa de nome de princesa”. Hum. Xavequeiro. Mas eu amei! Eu fiquei vermelha da cor da camiseta dele. Eu ri, nós rimos, ele perguntou até que horas eu tinha que ficar na barraca, eu falei que até às dez, e aí saímos comer um lanche no Toninho, eu, ele e o urso gigante, que ele carregou pra mim, claro. O nome do meu anjinho de olhos pequenos era João Augusto Pereira. Parecia coisa de novela mexicana. João Augusto Pereira, dos olhinhos apertadinhos. (pausa) A minha grande sorte era que ele não estava turistando, ele tinha acabado de se mudar com os pais em São Pedro da Cachoeira porque o pai dele tinha arrumado um emprego na usina. (pausa) Então depois do lanche, não houve beijo porque eu não sou dessas de beijar no primeiro encontro. Teve um “nos vemos amanhã?”. Amanhã e depois e depois e depois e depois e depois! Claro que eu não respondi isso, né? Eu disse que ia pensar no caso dele. Voltamos pra minha casa a pé, eu morava pertinho, mas ainda assim ele carregou o urso até em casa. E a gente trocou Whatsapp. (pausa) Na primeira semana ficamos conversando quase toda hora, vários “bom dias” e “boa noites”, trocamos sugestões de filmes e músicas, passamos madrugadas trocando mensagens, falando sobre coisas bobas... Fomos nos conhecendo aos poucos. Na segunda semana nós saímos de novo, marcamos num restaurante japonês dessa vez. Aí sim, no fim dessa noite, rolou um beijinho. Um beijinho rápido, não muito demorado, na frente de casa. E eu beijei ele de olhos abertos porque eu queria olhar pra aqueles olhinhos dele bem de pertinho. Que coisinha mais fofa! Eu estava ficando apaixonada! Droga! João Augusto Pereira. Ele não era como os outros garotos, de longe. Não tinha nenhum papo que eu achasse imbecil, como sempre acontecia. Parecia que ele era sempre muito divertido e interessante. Era como se eu tivesse conversando com uma super amiga de tempos, não com um garoto que eu tinha acabado de conhecer. Às vezes ele nem parecia que era um garoto de tão lindo e tão maravilhoso e tão sensível... às vezes até parecia que ele era uma...

(a iluminação transforma o ambiente romântico em uma melancolia trágica; Anastácia muda completamente o tom, um tanto envergonhada)

ANASTÁCIA
Ele era.

(ela canta)

ANASTÁCIA
Um segredo que aconteceu
Tive medo, foi entre eu e deus
Na cidade aqui
Não existia alguém assim
Tava tudo bem
Até você surgir pra mim
Com os olhinhos ‘pequeninim’

TODOS
Ah, solidão
Só um desejo, um adolescente em questão
Uma paixão, um beijo quente
E amanhã na manhã fria, um calor no cobertor
Alguém que saiba o que é o amor
Que a gente sente e nunca mente

Indiscutivelmente,
Não por acidente
Nem por medo
Ou por terror...

ANASTÁCIA

(ela conversa com João) “Me desculpa. Eu aprecio a sua sinceridade, mas eu não posso. Eu não sei lidar com isso, isso tudo é muito novo numa cidade como essa, João. Ou Joana. Nem sei como eu tenho que te chamar. (pausa) Eu sei que você é um homem agora, mas é que seu nome verdadeiro não é... (pausa) Tudo bem, tudo bem, desculpa, eu consigo entender isso, você já me explicou, mas as pessoas aqui não vão entender, João! (pausa) Não, não importa só eu e você não. Todo mundo importa! (pausa) Claro que eu me importo com o que os outros vão pensar! Quem diz que não se importa tá mentindo! Eu me importo e me importo muito sim! E você não conhece essa cidade, as pessoas aqui não são iguais de onde você veio, elas não aceitam esse tipo de coisa com tanta facilidade assim. (silêncio) Eu gostei de ficar com você, claro que eu gostei, mas é que... (pausa) Me desculpa. Eu me sinto errada... eu sinto que eu tô indo contra o que é certo... eu não sei! (pausa) Eu sou igual meus pais sim, eu também acho que isso é contra as leis de deus sim, tá bom? Deus fez homem e mulher... (pausa; grita) Não precisa gritar comigo, é só a minha opinião! Eu tenho o direito de ter a minha opinião e eu sou católica sim, com muito orgulho! É nisso que eu acredito. Pra mim o que tá escrito na bíblia é a verdade, você me desculpa, mas é o que eu acredito! (pausa) É isso mesmo, eu sou conservadora e puritana, se é isso que você quer que eu diga. (pausa) Tá bom, tá bom. (pausa) Me desculpa. Mas eu não posso mais ficar com você. (pausa) Eu tava gostando porque eu achava que você era um menino! (pausa) Lógico que tem diferença, tem muita diferença!”

TODOS
(gritam) “Só porque eu não tenho um pinto? Há dois dias você disse que me amava e agora porque descobriu que eu não tenho cem gramas de um músculo no meio das pernas tudo mudou? Como pode ter mudado se você disse que era amor? (pausa) Então nunca foi amor. Era piada pronta de menina carente.”

ANASTÁCIA
Não...

TODOS
“Era piada pronta de menina carente...”

(silêncio)

ANASTÁCIA
É complicado... Me desculpa, João, eu não tenho nenhum preconceito contra pessoas do seu tipo. Eu até que respeito. Eu quero que você seja muito feliz. Mas eu não consigo... não consigo fazer isso...

(Anastácia sai correndo de cena; João, o manequim, fica sozinho em um foco fraco por alguns instantes)

TODOS
Cem gramas de músculo e desiste do amor
Quem ama o prepúcio só tá pensando no tesão
É verdade, é só um pau

Amor devia pesar mais que a religião
Quem reza de verdade ama mais com o coração
Que merda essa cidade
E essa tradição
De povo mau

Ninguém é igual
É tudo animal
Nesse planeta
Mulher já nasceu homem
Homem nasceu mulher
Mulher sem buceta com um pinto no lugar
E homem sem pau com vagina pra gozar
Se os dois se comem
Trepam, fodem
É o que eu sinto o que é amar
Mulher nasceu homem
Homem nasceu mulher
Que cada um seja o que deus e ele mesmo quiser

E mais amor
Por favor
Tente entender, querido e querida
É um clamor
Do coração
Tem menina que é menino
Tem menino que é menina

(black-out)


CENA 3 – LUANA E ANA MARIA; ZÉ TADEU E AUGUSTO

(festa junina/julina; todos dançam e cantam no estilo mais clássico do gênero)

TODOS
Brasil terra de toda gente
Brasil terra de muita fé
Terra onde toda semente
De todo tipo transforma em pé

Aqui não é terra de rico
É terra de trabalhador
Aqui eu nasci e eu fico
Mesmo com medo de tanta dor

Dizem que não é preconceito
Respeito, dizem ter amor
Nem tudo aqui é perfeito
Mas coisas novas são como um filme de terror

(eles fazem uma coreografia de musical clássico; um tanto brega, um tanto bem feito)

Jesus Cristo está no ar
Ele mora na igreja
As velhinhas a rezar
Depois bebem uma cerveja

Tem cidade menos dura
Que já aceita as diferenças
Mas um limite continua
Ninguém muda tanto as crenças

(refrão) Senhor, aceitamos o amor
Senhor, aceito de coração
Mas tem coisa que é difícil
Tem coisa que não dá não!

(eles batem palmas em continuação da música, no ritmo do refrão)

(refrão) Senhor, aceitamos o amor
Senhor, já tem gay e sapatão
Travesti já é mais difícil
É complicado a aceitação!

(batem palma novamente no ritmo)

Travesti é mais difícil
É complicado o perdão
Travesti é mais difícil
É complicado a aceitação
Travesti é mais difícil...
(vão finalizar grandioso; sapateiam antes do grand finale)
Vai contra a religião!

(eles finalizam a música em uma pose tosca e alegre, como se dissessem as coisas mais normais e felizes do mundo; de repente a iluminação cai e a música se transforma em um drama sério)

LUANA e ZÉ TADEU
Meu deus me ensinou, eu sou filhote de cristão
Estou no caminho certo, eu nunca coloquei em prática o assunto em questão
Até agora, foi só na imaginação
A culpa é sim dessa cidade que nunca demonstrou compaixão
Pois não interessa o que a gente acredita, bastava só compreensão
A gente esquece que as pessoas, todas tem um coração

TODOS
Na cidade aqui agora já está quase tudo bem
Todo mundo já ouviu falar
E tá aprendendo a respeitar
Afinal, por mal ou por bem

LUANA e ZÉ TADEU
Curiosidade, eu confesso que eu tenho um pouco também
Ai, se alguém me ouve! É segredo, eu não sou gay!
O que vão pensar? Foi coisa que eu inventei
De sonhos que eu sonhei, de coisas que imaginei
Eu nunca pratiquei!
Senhoras e senhores, eu juro que eu tentei
Eu juro que eu tentei, eu juro que tentei...
Mas não é assim que funciona as nossas vontades...

(os dois choram encolhidos; Anastácia e Rubens vestidos de freira e padre os consola)

ANASTÁCIA e RUBENS
Filhos queridos, não chorem não
Ser gay até que tudo bem
Deus perdoa
Deus viu na televisão que ser gay é ser normal também
Antigamente a gente não sabia
A gente achava que deus não permitia
Mas deus perdoa
Não tinha telefonia, nem internet tinha
Depois de muito estudo
Agora a gente entendeu
Que ele não faz acepção de pessoas
Deus ama as sapatões e os gays também
Amém?

LUANA e ZÉ TADEU
Amém!

(Luana e Zé Tadeu acordam de um sonho)

LUANA e ZÉ TADEU
Foi um sonho que deus me deu. Um sinal! Obrigado, Senhor! Obrigado!

(o clima muda para um suspense em acusação)

RUBENS e ANASTÁCIA
De repente o mundo muda mais uma vez
De novo, outra vez, mais pra baixo, pela trigésima vez
Gente que em um segundo rebola a bunda mais do que simplesmente ser gay
Com Mulher-Maravilha sendo mais macho que o Superman
E vice e versa também, darling, meu bem!
Homem de vestido querendo ficar lindo
Feito a Gisele
Raspando a perna, a bunda
O saco e o sovaco com gilete
Se vestindo e querendo parecer a Giovanna Antonelli
E tem também aquela filha da Gretchen!

LUANA e ZÉ TADEU
Eu já não sei se entendo as regras novas que vem
Eu já não sei se eu me daria bem
Eu já não sei se entendo as regras novas que vem
Eu já não sei se eu me daria bem

TODOS
Eu já não sei se entendo as regras novas que vem
Eu já não sei se eu me daria bem.

LUANA
Santa Efigênia da Conceição, já não era tão careta. Até aceitava gay e sapatão. Aqui era cidade do interior também, mas era um pouquinho maior. Tinha até McDonalds, só pra vocês saberem. E até uma balada gay, meio escondido, meio na saída da cidade. (pausa) Ninguém sabia de mim. Eu não fazia parte desse universo. Eu tentei contar pra uma amiga só, mais ou menos, quando eu tinha uns dezesseis anos. E ela se afastou de mim, com medo que eu tivesse querendo outra coisa com ela. Acho que ela estava certa, essa era a verdade mesmo, no final das contas. (pausa) Aí eu nunca mais contei pra ninguém, além da Vanessa a minha psicóloga, claro. Então de vez enquando eu tinha que aceitar beijar uns meninos nas baladas, pras minhas amigas não desconfiarem. Tive a sorte de a minha melhor amiga dos dezesseis anos pelo menos ser de confiança e de não ter ficado de bico calado. Pelo menos parecia que ninguém desconfiava. Mas eu odiava ficar com garotos. Na verdade eu odiava tudo neles, tudo. Desde o cheiro até o papo. Sempre achei meninos muito idiotas, e que não valia a pena perder um segundo do meu tempo com qualquer um deles. Teve uma vez que eu achei que tinha encontrado um carinha meio diferente. Ele era sensível, gostava de me ouvir falar, era bonitinho, delicado... até eu falar que não ia dar pra ele porque eu ainda era virgem. Pronto. Sumiu o encantador e sensível rapaz. Chegou me chamar de putinha até, que fez graça a noite inteira e agora não queria dar pra ele, como se fosse uma obrigação minha por ele ter sido gente boa durante a noite inteira e pagado a porra de um lanche de vinte reais. (pausa) Não adianta. Não consigo. Garotos me irritam. Homens adultos pior ainda, me dão nojo. Eu não tenho culpa disso, eu simplesmente sinto que não foi feito pra mim. Não tenho interesse nenhum de saber como é um pênis de perto, só de imaginar me dá vontade de... argh!... vomitar. Fazer o quê? O que se explica nisso tudo? (pausa) Eu sou lésbica, óbvio. Bem lésbica. Eu já sei disso faz tempo, mas eu ainda não consegui sair do armário. Minha cidade é até que de boa com essas coisas já, tem as turminhas LGBT e tudo, mas meu ciclo de amizade ainda não teve ninguém que se assumisse. Aí eu fico nessa. Presa nessa bolha porque... porque... Poxa, a primeira e única pessoa que eu pensei em contar e que eu achei que era minha melhor amiga ficou com medo de mim quando soube e cortou vínculos. E se o resto da galera fizer o mesmo comigo e eu de repente ficar... sozinha?

ZÉ TADEU
Aqui na minha cidade mataram um gay dois anos atrás. Eu namorava uma menina na época, nem passava pela minha cabeça que eu também pudesse ser... enfim. Ai, se alguém me ouve dizer! (pausa) Eu fui começando a perceber que eu tinha curiosidade. Eu gosto de mulher, gosto bastante na verdade, me satisfaz bem, curto legal. Não todo tipo de mulher, eu sou bastante seletivo e tal. Mas eu também acho uns caras bonitos, tenho curiosidade em... (pausa) Ai, se alguém me ouve falar um negócio desse! Mas que se foda! Eu tenho curiosidade em saber o tamanho, se é igual o meu, comparar. Entendeu? Não sei se eu quero realmente fazer sexo, é uma curiosidade um tanto... peculiar. (pausa) Talvez eu seja o que o povo chama de bi. Aqui numa cidade como essa ninguém entenderia. É viado e pronto! Não tem meio termo, não tem meio gay, quase gay. (pausa) Teve uma vez na escola que um garoto foi pego olhando por um buraco que tinha na cabine do banheiro. Hoje o cara é casado e tudo, com mulher, filho! Mas ainda assim a fama perdura até hoje. Todo mundo conhece o Tomas Manja Rola. (pausa) Coitado. Teve um outro cara há uns meses que se matou numa cidade aqui do lado. Vazou um vídeo dele na internet dando pra um cara de quatro. Tinha namorada e tudo. Já viu, né? Se fodeu na mão dos caras. Se enforcou no ferro do ventilador. Só porque queria gozar. E ainda chamaram ele de covarde. “Precisa se matar? Deu o cu tem que aguentar a zoação! Quer o quê? Quer dar o cu e que ninguém ligue pra isso? Quer dar o cu e ficar por isso mesmo?”. (silêncio) Ué. Achei que a vida era individual. Não é?

LUANA e ZÉ TADEU
Homem com homem
Eu já aceitei
Mulher com mulher
Já está tudo bem
Ah, meu deus!

Não me largue sozinho aos quatro ventos
Eu tentei e eu juro que não aguento
Não me mate, me dê um pouco mais de tempo
Eu não consigo sem você
Mas eu queria um novo experimento também
Eu queria experimentar ao menos um momento gay
E ter certeza cem por cento
De quem eu sou por dentro
De quem é você
De quem eu sou por dentro
De quem é você...

(luzes angelicais invadem o palco, como se deus desse a autorização que eles esperavam)

TODOS
Tudo sempre começa em época de festa santa!

ZÉ TADEU
Vinha gente de tudo quanto é lugar conhecer a festa junina típica da cidade São Miguel das Dores também. Essas festas eram muito comum em cidades como a minha. Era bem famosa na região porque era festa por duas semanas seguidas. E romances que podiam durar muito mais do que isso depois, se você tivesse sorte!

LUANA
Duas semanas sem parar! Mas festa santa, festa do bem. Tinha bebida alcóolica sim. Santa Efigênia da Conceição, a minha cidade, já não era tão tão careta; tinha uns bêbados e até brigas também, mas nada além do normal. Só às vezes que o normal já não era o normal tradicional. E eu acho isso maravilhoso só de lembrar! Mas não precisava ser tão tão tão anormal assim, né? Mas enfim.

(Luana e Zé Tadeu estão sentados em bancos separados, um tanto meio deslocados, incomodados)

RUBENS
(se aproxima de Luana) O que essa moça bonita está fazendo sozinha?

LUANA
Só pensando mesmo.

RUBENS
Me daria a honra de uma dança?

LUANA
Não, moço, muito obrigada. Eu acabei de comer. Desculpe...

RUBENS
E por quê não? Só uma dança...

LUANA
Eu acabei de comer, moço. Obrigada mesmo assim.

RUBENS
Ah, que desculpa esfarrapada!

LUANA
Eu não quero dançar agora, moço. Desculpe.

RUBENS
Pra que se fazer de difícil, moça? Tá aí sozinha mesmo. Qual o problema?

LUANA
Eu tô sozinha porque eu quero. E não estou me fazendo de difícil, só não estou interessada mesmo, moço. Obrigada pelo convite mesmo assim.

RUBENS
Ah, moça. O que é que tem? Só uma dança, sem compromisso...

LUANA
Eu já disse que não, moço! Obrigada. Dá licença, por favor?

RUBENS
E por que não? Eu sou feio por um acaso?

LUANA
(cansada) É. É isso mesmo. Eu não quero dançar com você porque você é feio. Pronto. Agora me deixe em paz, por favor.

RUBENS
Nossa, hein? A gente vem todo educado e toma uma dessa...

LUANA
Ai, meu santo! Você quem perguntou, moço.

RUBENS
Tá bom, então. (vai sair, mas volta) E você acha que é a gatinha do rolê? Vai demorar muito pra isso acontecer, garota. Só se suas amigas forem uns tribufús pior do que você pra te acharem a gatinha no meio delas.

LUANA
Eu não quero saber, moço. Dá pra dar licença, por favor?

RUBENS
Vai morrer pra titia, garota. Mal comida.

LUANA
Eu não estou interessada, já falei. Quem estava interessado era você.

RUBENS
Mal comida! (sai)

LUANA
(como se estivesse xingando também) Seu... Homem do tipo comum!

(Anastácia senta-se ao lado de Zé Tadeu; ela sorri pra ele, mas não fala nada; Zé Tadeu fica meio envergonhado, contribui o primeiro sorriso, mas depois tenta evitar os olhares da menina que claramente investe no garoto pra que ele inicie um papo; ela insiste em silêncio, comendo uma maçã do amor um tanto fazendo graça pra ele; Zé Tadeu disfarça o olhar e se mostra incomodado com a presença dela; depois de algum tempo dessa paquera mal sucedida, Anastácia percebe que Zé Tadeu não está afim e sai irritada, pisando no seu pé e deixando ele sozinho)

ZÉ TADEU
Ai! Doeu!

ANASTÁCIA
Desculpa, foi sem querer. (ela sai)

(a luz mostra Augusto/Ana Maria, o manequim)

ZÉ TADEU
Quem é aquele que ali vem?

LUANA
Quem é aquela? Será meu bem desse vez?

ZÉ TADEU
É tão bonito. Os braços fortes. Veio sozinho. Não é daqui. Ai, se alguém me ouve falando isso! Quantos centímetros será que ele tem? Será que o dele é maior que o meu? Ai, que bobo que eu sou! Mas fiquei curioso. Será que eu vou?

LUANA
Que gatinha linda. Olha que bundinha redondinha! Ai, se alguém me ouve falando assim! Mas é linda mesmo, de bumbum bem redondinho, narizinho arrebitadinho. Que fofinho aquele sorriso. E tá sozinha. Não é daqui. Queria ter coragem de experimentar beijar uma menina, beijar o corpo dela todinho...

(silêncio; os dois imaginam coisas e suspiram)

LUANA e ZÉ TADEU
Será que eu chego pra puxar um papo?

LUANA
Vou passar do lado dela e ver se ela gosta de meninas também. Ai, se alguém me ouve, meu deus do céu!

ZÉ TADEU
Ele é tão bonito. Eu queria pedir perdão por sentir isso, meu senhor. Mas eu não consigo. Se alguém descobre o que eu sinto, eu estou frito...

LUANA e ZÉ TADEU
Eu tentei e eu juro que eu não aguento, mas eu queria um novo experimento também. Eu queria experimentar ao menos um momento gay e ter certeza cem por cento de quem eu sou por dentro.

ZÉ TADEU
E pra minha surpresa, foi ele quem chegou puxando assunto.

LUANA
Na hora que ela viu que eu tava olhando, ela logo deu um sorriso.

ZÉ TADEU
Eu nem acreditei. Ai, meu deus, ele reparou que eu sou gay também? Bi! Eu sou bi!

LUANA
“Oi”, eu falei.

ZÉ TADEU TADEU
“Oi”, ele falou.

LUANA
“Ana Maria”, ela disse. “Luana”, eu respondi.

ZÉ TADEU
“Augusto”, ele disse. “José Tadeu, mas pode me chamar de Zé, ou de Tadeu, o que você achar melhor.”

LUANA e ZÉ TADEU
Os dois não demoraram pra perceber que estava rolando um clima. Meu coração acelerado, porque era a minha primeira vez sendo um gay além da imaginação. Ninguém podia ver, ninguém podia saber. Qualquer coisa somos amigos/amigas. Agora dessa vez parecia que seria pra valer. Finalmente alguma coisa ia realmente acontecer!

(a iluminação transforma o ambiente romântico em uma melancolia trágica, assim como das outras vezes; os dois repentinamente ficam neutros)

LUANA e ZÉ TADEU
Todo mundo já percebeu que estamos todos falando de gente que não se reconheceu com o gênero que nasceu. Que então escolheu mudar o sexo que deus por hora lhes concedeu. Homens e mulheres transexuais, esse é o assunto do espetáculo; sem mais. Em nossa história, que pareciam ser as duas mais modernas, que parecia que ia trazer glória pro final da peça afinal, não foi tão legal assim com parecia que podia ser. (pausa) Porque nosso romance também era igual ao assunto principal; na sigla LGBT tinha a também a ver com a letra Tê. Nosso romance quase aconteceu com uma pessoa transexual.

ZÉ TADEU
Um homem trans.

LUANA
Uma mulher trans.

(o foco no manequim fica mais forte e sublinhado; na parte onde devia haver o sexo do manequim, uma projeção pulsa entre um pênis e uma vagina de vários formatos e tamanhos, com muita confusão)

ZÉ TADEU
A gente começou a ficar, escondido de todo mundo, claro. Naquela mesma noite ele me levou pra um motel. Homens gays são assim mesmo. Eu não pensei duas vezes, a vontade de experimentar já estava transbordando. Ele disse que preferia transar de luzes apagadas. Eu nem desconfiei. Eu estava nervoso, eu não estava controlando nada, eu só estava fazendo o que ele me mandava. (pausa) Ele me comeu. Sei lá como ele fez isso, mas ele me comeu e eu nem reparei. E eu gostei. E a gente durou por algumas semanas num romance maravilhoso que era fofinho e sexual. Até ele me contar...

LUANA
Meu romance durou só um dia porque ela foi sincera logo na primeira vez. A gente deu um beijo no carro dela e ela logo me contou. “Eu sou uma mulher transexual”. (pausa) Eu congelei. Eu fiquei tão feliz de finalmente ter conseguido ficar com uma menina e de repente meu mundo se despedaçou em dois segundos. Aquilo que estava acontecendo comigo não era... não podia ser... normal. Parecia ser meu carma! Eu não estava preparada pra depois de tudo, depois de tanta frustração ficar com uma mulher que tinha pau. Eu tive que chorar, não consegui me segurar, e fiz na frente dela, não consegui nem esperar chegar em casa. Ela então chorou também, tentou disfarçar, mas eu consegui ver. E eu fiquei pior, eu fiquei mais mal ainda. Só consegui imaginar que pra ela, tudo isso, toda essa história devia estar sendo desde o começo um filme de terror afinal. E eu digo do começo da vida mesmo, e não do começo da noite como foi comigo. Eu fui uma egoísta sofrendo por algo idiota! Ela era uma menina tão bonita...  

ZÉ TADEU
“Mas se você já era mulher, por que você quis virar homem pra no fim das contas ficar com homem do mesmo jeito?” Eu perguntei. E pareceu que a pergunta ofendeu. Ele respondeu que era coisa entre ele e deus, que não tinha explicação. Ele era como eu, um homem gay, em experimentação. “Mas você tem... você tem vagina. Seremos um casal hétero, então?”.

TODOS
(gritam) Não!

ZÉ TADEU
Ele respondeu. “Eu sou um homem, eu não sou uma mulher. Será que você ainda não entendeu? Foi eu quem te comeu, Zé.” (pausa) Tudo aquilo era muito difícil de compreender. Eu estava confuso. Eu estava mais tranquilo com Jesus porque no fim das contas eu não tava cometendo pecado nenhum, se você pensar bem, no fim das contas ele era uma menina...

TODOS
Não!

ZÉ TADEU
Sim! Ele nasceu uma menina. Se ele tinha uma vagina, ele era uma menina! Eu estava saindo com uma pessoa que dizia ser um cara, mas que eu sabia que era uma mulher. Talvez eu podia unir o útil ao agradável, talvez!

TODOS
Esse é o pior tipo de covarde que existe. Não seja esse tipo de pessoa.

ZÉ TADEU
Mas meu problema ainda era a cidade. Se ele não contasse que era um homem trans pras pessoas, ninguém ia perceber. Todo mundo ia achar que mesmo assim eu era gay. E ele não estava disposto a gritar pro mundo que era um homem trans só pra serem menos preconceituosos comigo porque ele tinha vagina.

TODOS
Homem que fica com homem trans também é gay, sim, senhor, amigão.

ZÉ TADEU
É mais ou menos gay.

TODOS
Super gay. Não tem meio gay, quase gay. Gay é gay. Homem que fica com homem trans é mega gay, hiper gay, super, blaster, monster gay.

ZÉ TADEU
Sendo assim, antes de a gente completar um mês, eu com medo dessa exposição super, blaster, monster gay que estava quase começando a ficar inevitável, eu terminei. Eu disse: “Me desculpe, Guto, mas eu não tô preparado pra assumir de uma vez, pra sair do armário assim. Eu não sou gay, eu só estava curioso... era curiosidade... e eu descobri coisas demais de uma só vez. Transexualidade é demais pra mim.”

LUANA
Ela era tão bonita... e eu nem consegui dar uma chance pro nosso romance de uma noite acontecer.

TODOS
Eis que trazemos uma verdade que vai soar dolorida: A homossexualidade é tão careta e limitada quanto a heterossexualidade, querida!

LUANA
O que? Não! Não pode ser!

TODOS
Pessoas são pessoas. Cada um tem sua história, sua idade de vida e suas vontades. Cada um com suas memórias vividas e sonhadas. Das imaginadas, as queridas, as desejadas, e as de verdade, as reais, as acontecidas. Um pedaço de carne a mais ou menos não devia impedir a gente de querer conhecer alguém. Isso limita as chances de você viver um grande romance.

(num grand finale musical, os quatro terminam o espetáculo envergonhados)

TODOS
Você com suas histórias
Você com suas memórias
Eu queria ter o prazer
De conhecer você de verdade
Mas eu sou limitado
Um santo imaculado que vive em piedade
Um bicho enjaulado inventando quem você é

Devia amar as pessoas
Amar as pessoas
Sem ver se é homem ou mulher
Devia amar as pessoas
Amar as pessoas

Nunca mais perder a chance
De viver um bom romance
Nunca mais perder a chance
De amar as pessoas
Só amar as pessoas
Amar as pessoas
Nunca mais perder a chance

Pode ser
Eu e você

Ninguém é igual
É tudo animal
Nesse planeta
Mulher já nasceu homem
Homem nasceu mulher
Mulher sem buceta com um pinto no lugar
E homem sem pau com vagina pra gozar
Se os dois se comem
Trepam, fodem
É o que eu sinto o que é amar
Mulher nasceu homem
Homem nasceu mulher
Que cada um seja o que deus e ele mesmo quiser

Tem menina que é menino
Tem menino que é menina
Tem menina que é menino
Tem menino que é menina

Nunca mais perder a chance
De viver um bom romance
Nunca mais perder a chance
De amar as pessoas
Só amar as pessoas
Amar as pessoas
Nunca mais perder a chance
De amar as pessoas
Amar as pessoas
Amar as pessoas...

Pode ser
Eu e você.
 
(black-out)


FIM






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