CIRANDA, FLORES E SOCÃO NA BOCA


CIRANDA, FLORES E SOCÃO NA BOCA
De Gabriel Tonin

(TEATRO DE RUA PARA CINCO OU MAIS ARTISTAS)


CENA ÚNICA

ARTISTA
Respeitável público de todas as cores, idades e gêneros! Peço a atenção de vossas senhorias para uma importante intervenção artística aqui no centro dessa cidade maravilhosa! Chamo todos para um evento de grande reflexão, treta ao vivo e também com um delicioso e nada careta entretenimento com lição de moral!

(TODOS CANTAM E DANÇAM EM FESTA; É UMA CIRANDA MISTURADO COM BRIGA)

TODOS
Cheguei (Quem é gay?)
E agora o bicho vai pegar (É bicha!)
Uma música fofa eu vou cantar (Hummm...)
Na sua cara eu vou jogar-ah-ah (Ah!)
Te arrebentar-ah-ah (Uh!)

Se não tem amor na vida
Aqui você não é bem vinda
Se não tem amor na vida
Aqui você não é bem vinda!

E vai ter socão bem na sua cara!

(A BRIGA TEM UMA VENCEDORA COM UM SOCO DECISIVO EM UM CARA)

TODOS
Uh!

CORONEL
Parou, parou! Parou a palhaçada! O que tá acontecendo nesse dia bonito aqui nessa praça maravilhosa?

ARTISTA 1
Ele falou pra ela ali que lugar de mulher é na cozinha!

TODOS
Oh!

ARTISTA 2
 E ela deu um socão no meio da fuça dele!

ELA
Aqui a gente resolve as coisas assim mesmo, coronel! No soco e ciranda!

ELE
(ATORDOADO) Vence aquele que ficar de pé. Mas ela tava certa, doutor. Mulher pode fazer o que quiser sim. Agora eu vejo. (SORRI SEM UM DENTE E DESMAIA DE NOVO)

ELA
Eu não volto pra cozinha, nem o gay pro armário e nem o negro pra senzala!

TODOS
Êêêê!

ELA
É na força do braço que a gente molda essa sociedade!

TODOS
Êêêê!

ARTISTA 
E na força da poesia também!

(ELES FAZEM CIRANDA EM VOLTA DO CORONEL)

TODOS
Ninguém é obrigado a nada
Ciranda esquerdopata
Todo mundo aprende
Com um socão na sua cara!

Ninguém é obrigado a nada
Ciranda esquerdopata
Todo mundo aprende
Com um socão na sua cara!

CORONEL
Mas precisa ter essas dancinhas e esse florido colorido? Vai no socão direto, pô! Já resolve de uma vez. Chega dessa palhaçada de teatro, isso que irrita!

ARTISTA 
Ô, seu coronel, a gente é gente boa! Ninguém aqui briga com ninguém se não for fazendo colorido e em clima de festa!

TODOS
Êêêê!!!

ARTISTA 
É tudo de brincadeira!

ARTISTA 
Isso que a gente faz é festa pra resolver nossos problemas.

ARTISTA 
É festa na treta, e treta na festa!

ARTISTA 
É tipo carnaval!

CORONEL
Mas não podia ir direto pro socão na boca? Já resolve com o soco e pronto! Não fica parando a vida das pessoas pra fazer festinha na rua assim. As pessoas tão indo trabalhar, vocês ficam enchendo o saco aqui...

ARTISTA
E que graça teria dar um socão na boca sem mensagem de amor antes, coronel?

TODOS
Oh!

ARTISTA
(APAIXONADO) Poetas!

ARTISTA
A gente resolve as coisas é no soco, mas pra ninguém sair falando por aí que somos monstros, a gente faz essa festa de brincadeira pra ficar um pouco mais paz e amor.

ARTISTA
E também pra nossa consciência ficar limpa, leve e solta!

CORONEL
Essa frescura toda é uma completa... viadagem!

TODOS
Oh!

GAY
Eeeepa! Parece muito mais uma frescura masculina heteronormativa e branca, isso sim.

CORONEL
Oras, não se ofenda, gay! Foi modo de dizer, porque vocês homossexuais são mais... frágeis, sensíveis.

GAY
Meu querido, frágil? Não tem nada mais sensível ou frágil que a masculinidade de um homem comum!

ARTISTA
Repare!

(ALGUÉM SURGE COM UMA CAIXA DE PAPELÃO ESCRITO: “CUIDADO, MASCULINIDADE FRÁGIL”; TODOS SE DIVIDEM EM CARREGAR A CAIXA, EQUILIBRANDO NUMA BRINCADEIRA DE QUASE CAIR)

TODOS
Ôôôô! Ôôôô!

ARTISTA
Todos os homens são machistas!

CORONEL
(GRITA FORA DE SI) NÃÃÃÃO!!! NEM TODOS!!! NÃO GENERALIZA!

GAY
Quer sair no soco comigo, coronel? Vamo lá, queridinho. Vem ver a frescura de viado, vem.

CORONEL
O que vocês estão fazendo aqui é subverter as nossas criancinhas! Se for pra dar socão na cara do outro não precisa fazer dancinha e nem flores coloridas e nem lição de moral barata!

ARTISTA 1
Eu já acho que antes de dar um socão a gente tem que ganhar primeiro é na batalha musical!

CORONEL
Mas é a minha opinião!

ARTISTA 1
E é a minha opinião também!

CORONEL
E como a gente resolve isso?

TODOS
Socão na boca e música bonitinha!

(ELES CANTAM E DANÇAM AO REDOR DO CORONEL; O ARTISTA 1 E O CORONEL FICAM AO CENTRO SE PREPARANDO PARA LUTAR)

TODOS
Está em qualquer poesia
Um murro que você dá no outro
Pode ser uma chave de pescoço
Ou então vem com uma rasteira
E tem karaokê ou capoeira
Depende da manifestação
Pode ser uma briga de irmão
Um soco que vem do coração
A gente tira as diferenças
Na paz, no amor e no socão
Está em qualquer poesia
A luta de todo dia
Está em qualquer poesia
A luta de todo dia!

(O CORONEL SACA UMA ARMA; TODOS SE ASSUSTAM)

CORONEL
Acabou a palhaçada, tá ok? Se querem brigar então vamo fazer a coisa à direita! Sem música gostosinha!

(O CORONEL TOMA UM MURRO NA CARA E CAI DESMAIADO; ALGUÉM ESCONDE A ARMA)

ARTISTA 
Murro de esquerda!

ARTISTA
Aqui é treta de paz e amor, tá ligado?

(A MOÇA SURGE)

MOÇA
Esperem, esperem! O que é isso? O que vocês estão fazendo?

CORONEL
(ACORDA TONTO) Oh, querida, eu aprendi a minha lição. Rodas de ciranda e flores com soco funciona sim. (DESMAIA DE NOVO)

MOÇA
Machucaram o coitado!

ARTISTA
Isso é uma manifestação artística!

ARTISTA
E briga de rua ao mesmo tempo!

ARTISTA
Pra resolver as nossas diferenças!

MOÇA
E vocês resolvem as diferenças no grito, com violência?

ARTISTA
No grito não! É no soco mesmo!

ARTISTA
Tem que chegar na voadora!

ARTISTA
O cara sacou uma arma, fia! Você queria que eu desse um abraço nele?

ARTISTA
Colocar uma flor no bico da pistola?

ARTISTA
Nós somos pela paz e pelo amor, porém há um momento de dançar um funk da hora, há um momento de textão no Facebook, e há um momento que só um socão mesmo resolve, na poesia disso tudo.

MOÇA
Eu sou contra qualquer tipo de violência! Em qualquer ocasião.

ARTISTA
O que?

MOÇA
Em nenhum contexto, razão ou circunstância eu acredito que a violência resolve alguma coisa!

TODOS
Oh!

ARTISTA
Nenhum, nenhum?

ARTISTA 1
Mas nós somos seres violentos, minha querida! É o nosso instinto.

ARTISTA 2
Ei, eu não acredito nisso não. Eu acho que estamos em evolução pra não sermos violentos!

ARTISTA 1
Você está errado.

ARTISTA 2
Você é que está. Eu brigo, mas eu brigo pra acabar com a briga.

(O ARTISTA 1 DÁ UM MURRO NO ARTISTA 2; O ARTISTA 1 VENCE A DISCUSSÃO)

ARTISTA 1
Pois bem. Como eu disse, o ser humano é um ser violento por instinto!

ARTISTA 2
(ATORDOADO) Ele tem razão.

MOÇA
Falem por vocês! Eu não sou nenhum pouco violenta não, não tenho dentro de mim. Eu não gosto de brigas e nem de violência! E acho uma hipocrisia quem faz violência pra combater a violência.

TODOS
Oh!

MOÇA
E eu não vou bater em nenhum de vocês não pra defender o que eu acredito.

ARTISTA
Mas então vai apanhar! (AVANÇA NA MOÇA, ALGUÉM IMPEDE)

MOÇA
Se eu apanhar pra mim não vai fazer diferença nenhuma. Eu apanho, mas não mudo de opinião.

TODOS
Oh!

ARTISTA
Ela está subvertendo nossos princípios! Sua... progressista!

MOÇA
Como resolveríamos esse entrave? Se eu for contra a violência, como resolveríamos essa situação sem soco?

TODOS
Oh! Sem soco?

ARTISTA
Nem um tapinha?

ARTISTA
Nada, nada, nada?

ARTISTA
Um tapinha nem dói, vai!

ARTISTA
Não existe solução para nossos problemas se não for chegando na voadora bem no meio do peito da pessoa. É verdade!

TODOS
Éééé!

MOÇA
Pois eu acho que existe sim.

ARTISTA
E eu acho que não existe não!

MOÇA
Existe sim!

ARTISTA
Não existe não!

MOÇA
(GRITA BRAVA) EXISTE SIM, CARA...MBA!

TODOS
Uh!

MOÇA
Eu... é... desculpa...

ARTISTA
Viu, só? Sem grito, sem violência não dá pra resolver nada. Como é que você quer resolver uma diferença se o outro não está disposto a pensar igual você?

MOÇA
Eu...

ARTISTAS
Socão na boca. É na dor a solução, na força do braço que a melhor ideia vence.

TODOS
Éééé!

ARTISTA
Guerra pra terminar a guerra!

TODOS
Éééé!

MOÇA
Não, isso está errado!

ARTISTA
Vamo sair no soco pra ver quem ganha, ué.

MOÇA
Não. Eu não acredito nisso. Mesmo se eu perdesse eu não mudaria minha opinião!

ARTISTA
Então eu venci!

MOÇA
Tá bom. Você venceu. Parabéns.

ARTISTA
Então isso quer dizer que agora você concorda com a gente.

MOÇA
De jeito nenhum! Eu ainda acho que não precisa de violência e não vou mudar a minha opinião.

ARTISTA
Mas isso está errado!

MOÇA
Eu acho que está certo.

ARTISTA
A maluca aí acha que ciranda e flores vai resolver alguma coisa nesse Brasil, gente. Às vezes só um murrão na boca mesmo, moça. Não é pessoal? É ou não é? É real isso, é fato.

MOÇA
Não acredito nisso.

ARTISTA
Quando a polícia parar essa apresentação aqui, entrega uma flor pra ele pra ver se ele deixa continuar! Canta uma musiquinha pra ver.

ARTISTA
Tem que pegar no pedaço de pau mesmo! Ué, eles vem com cecetete!

MOÇA
Eu acho que violência não resolve nada e pronto e acabou!

(ALGUÉM DÁ UM MURRO NA CARA DELA)

TODOS
Oh!

ARTISTA
Você perdeu!

ARTISTA
Na força das ideias, a ideia de que não é necessário violência, acaba de perder no soco!

MOÇA
Eu não mudo de opinião. Vocês podem me bater, me matar, mas eu nunca vou revidar e nunca vou acreditar que vocês estão resolvendo alguma coisa. A minha ideia continua viva.

ARTISTA
Mas você perdeu. Se perdeu tem que aceitar. Entenda!

MOÇA
Não. Não entendo, não aceito.

ARTISTA
Afrontosa!

ARTISTA
Quem você pensa que é?

ARTISTA
Tá bom, garota! E como a gente vai resolver esse conflito agora? Hein? Hein?

(COM UM FUNDO MUSICAL ROMÂNTICO, A MOÇA DISTRIBUI FLORES E CANTA)

MOÇA
Ciranda bonitinha
Vamos todos cirandar
Ninguém volta pra cozinha
Nem a guerra vai voltar

Por isso, meu querido
Não precisa vir no grito
Diga um verso bem bonito
Pro amigo, diz agora!

(A MOÇA COLOCA DOIS ARTISTAS EM CONFRONTO)

ELA
É... o que é pra eu fazer?

TODOS
Soco na boca!

MOÇA
Não! Diz um verso bonito. Fala pra ele.

(TODOS RIEM E DEBOCHAM)

MOÇA
Calma! Calma! Vamos refletir. Qual é a treta de vocês?

ELA
Ele acha que todo político é bandido!

ELE
E ela acha que nem tudo é batata do mesmo saco, que tem político que faz certo! Eu não acho.

ELA
Mas eu acho!

MOÇA
E como a gente resolve essa discussão?

(OS DOIS ARTISTAS VÃO COMEÇAR A BRIGAR)

TODOS
Aê!

MOÇA
Não! Não assim!

ELA
Então como, garota?

MOÇA
Diz uma poesia pra ele.

ELA
Poesia?

ARTISTA
Ai, que vergonha!

MOÇA
Vai. Qualquer poesia.

ELA
Batatinha quando nasce
Espalha a rama pelo chão...

(SILÊNCIO)

ELE
Não tô sentindo nada. Nada mudou. Ainda tô com raiva. Tudo corrupto!

MOÇA
Tem que vir do coração!

ELA
No meu coração só vem a vontade de dar um murrão na cara dele mesmo.

ELE
Pode vir, pode vir! Eu acabo com a sua raça!

ELA
Racista!

ELE
Politicamente correta!

ELA
Sou mesmo!

ELE
Eu vou acabar com você!

ELA
Nem todo político é bandido! Essa é a verdade! Tem gente boa!

ELE 
É tudo farinha do mesmo saco, sua burra!

(ELES COMEÇAM A BRIGAR; OS OUTROS AO REDOR FAZEM FESTA)

TODOS
Briga! Briga! Briga!

MOÇA
Parem! Parem com isso!

(A MOÇA SEPARA A BRIGA)

ARTISTA
Não tem outro jeito de resolver, moça.

MOÇA
Isso está errado. Tem que ter! Tem que ter!

ARTISTA
Mas a coisa... é que não tem mesmo.

(SILÊNCIO GERAL; TODOS REFLETEM ENVERGONHADOS; ELES CANTAM MELANCÓLICOS)

TODOS
Não, não tem
A guerra é justa à quem convém
Pra bater
De frente com alguém
Você pode até aprender.

ANCIÃO
Mocinha! É no choque das estrelas que surgem os mundos! Se não fosse o caos, nada disso existiria!

MOÇA
Eu não queria. Eu acho que poderia ter um outro jeito.

ANCIÃO
Tem. Mas tem hora que não tem.

MOÇA
Então quer dizer que todo mundo aqui é violento de natureza?

(OS ARTISTAS OLHAM PARA A PLATEIA)

MOÇA
Quer dizer que ninguém consegue resolver as coisas no diálogo? No mínimo de civilidade?

ARTISTA
Os caras não conseguem nem tomar um pé na bunda que eles já matam as namoradas aqui nesse Brasil. É esse o mundo que vivemos, infelizmente.

ELA
E se pra sobreviver eu tenho que revidar, olha, minha querida, eu morro, mas eu mato um antes!

MOÇA
Mas é aí que morre todo mundo!

ELA
E vou morrer só eu?

MOÇA
É tão difícil. Vocês não acham difícil? A gente normalizar a treta, a gente fazer música falando de briga e violência? Isso... é horrível.

TODOS
Guerra, planeta da guerra, Terra
Guerra, planeta da Terra, água, guerra
Azul soco na boca...

(SILÊNCIO; TODOS ESTÃO PENSATIVOS; ELES AGORA DECLAMAM SEM MÚSICA, SÉRIOS)

TODOS
A legítima defesa!
É claro que se você estiver numa situação de perigo
Num confronto com um inimigo
Que você se defenda
Que você use o braço
E também a razão e o coração
Que você seja de aço
Pra se defender numa ocasião
O que não pode é romantizar o socão na cara
Que toda reação tenha que ser violenta
Que a violência vire tara
Às vezes por histórias que o povo inventa
Às vezes pra impôr uma ideia rara.
É mesmo um paradigma:
Pra ser contra a intolerância, é preciso ser intolerante à intolerância.

JORGE DA FISCALIZAÇÃO
Parou, parou, parou! Eu sou o Jorge da Fiscalização e esse grupo de teatro não tem autorização pra fazer esse espetáculo subersivo e violento!

ARTISTA
Violência é cultura nacional, tá ok?

JORGE DA FISCALIZAÇÃO
Acabou o espetáculo. Vai. Todo mundo circulando, todo mundo pra casa. Vamo trabaiá, povo! Vamo trabaiá!

ARTISTA
Jorge da Fiscalização, a gente precisa dar um final. Já tava acabando.

MOÇA
Tá quase acabando, moço, tá no final já.

JORGE DA FISCALIZAÇÃO
Não. Sem autorização, sem mamata pra artista vagabundo!

MOÇA
Mas...

JORGE
Nem más e nem boas. Acabou, tá ok?

(A MOÇA DÁ UM MURRO NA CARA DE JORGE)

MOÇA
Eu quero um final feliz!

TODOS
Oh!

MOÇA
(EXPLODE MANIFESTANTE) E a liberdade de expressão?!

TODOS
Éééé!

MOÇA
Somos à favor da paz e do amor sim! Mas se você tá vindo pra acabar com a nossa paz e com o nosso amor, bom, eu tenho que confessar...

TODOS
Eu morro, mas levo um comigo!
Eu morro, mas levo um comigo!
Socorro, se estamos em perigo!
Se o seu inimigo deu um soco na sua boca

Eu vou dar um socão na boca dele!
Eu vou dar um socão na boca dele!
Você quer o direito de tirar o meu direito
Eu vou dar um socão na sua boca!

Eu vou dar um socão na sua boca!
Você quer se armar
E a gente quer se amar
Mas se cê vir bater
Cê também vai apanhar
Você começa a guerra
E a gente termina ela!

Você começa a guerra
E a gente termina ela!

(OS ATORES FINALIZAM COM POSE DE LUTA; ELES AGRADECEM)

FIM






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