A
DEPRESSÃO DE VERÃO DE UM PADRE
De Gabriel Tonin, inspirado na história da morte de
Jorge Lafond.
PERSONAGENS
VERA
PADRE
PRODUTORES
ENFERMEIROS
CENÁRIO: O QUARTO DE UM PADRE, O CAMARIM DE UM
PROGRAMA DE TELEVISÃO E UM LEITO DE HOSPITAL.
CENA
1
UM FOCO APRESENTA O PADRE, COM UMA VELA, EM TOM
FÚNEBRE EM SEU QUARTO. O ÁUDIO DA GRAVAÇÃO DO PROGRAMA PODE ESTAR COMO FUNDO, E
LOGO SE TRANSFORMA EM UMA MÚSICA INTRODUTIVA MELODRAMÁTICA. O PADRE ESTÁ MAGRO,
FRACO, COM UMA BÍBLIA NA MÃO. ELE SE SENTA EM UMA CADEIRA E CONVERSA COM O
PÚBLICO.
PADRE
Essa história não é a minha. Por um tempo eu achei
que fosse, que essa história fosse sobre a minha pessoa, sobre quem a minha
figura representa. Mas hoje eu sei que o protagonista nunca fui eu. (pausa)
Deus deve sempre estar no centro dos nossos pensamentos. O amor de Jesus, o
amor do pai que entregou seu filho por nós. O pai de toda criação que pede o
bem, as coisas boas, o carinho, a compaixão. É desse amor que a gente não pode
esquecer nunca. E mesmo se acontecer de um dia esquecer, no outro dia lembra de
não esquecer de novo. Nós somos fracos, meus amados. (pausa) Tudo aquilo que a
gente semeia, vai ser aquilo que a gente vai colher, todo mundo sabe disso. E
deus é justo. A gente aprende colhendo as nossas próprias sementes ruins.
(pausa) A gente aprende. Ô, se aprende!
OUTRO FOCO APRESENTA VERA, TRAVESTI, NEGRA, SEM
ROUPA DE SHOW, UM POUCO MULHER, UM POUCO HOMEM. ELA CANTA PARA O PADRE, COM
LEVE IRONIA.
VERA
E
ainda se vier noites traiçoeiras
Se
a cruz pesada for, Cristo estará contigo
O
mundo pode até fazer você chorar
Mas
deus te quer sorrindo.
(TRECHO DA MÚSICA “NOITES TRAIÇOEIRAS”)
PADRE
Mais uma noite, Vera?
VERA
Mais uma noite, Padre. Estamos aí, querido.
PADRE
Eu preciso tomar o meu remédio. Pega ali pra mim, na
gaveta.
VERA
E a fé, Padre? (PEGA O REMÉDIO)
PADRE
É, minha filha, a fé tem que ser forte, mas nem
sempre a gente consegue. Obrigado.
VERA
De nada, Padre.
(ELES FICAM EM SILÊNCIO ENQUANTO O PADRE TOMA O
REMÉDIO)
PADRE
Eu atrasei um minuto pra tomar e você apareceu.
VERA
Se quiser eu vou embora, flor. É só pedir pra ir que
eu vou, não precisa todo esse drama masculino comigo, querido. Toda grande
mulher sabe bem o momento de ir. Homens que atrapalham tudo.
PADRE
Mulher. Sim.
VERA
Ué. Vai discordar ainda, colega? Você está em
posição de discordar, Padre? Eu, hein! Não aprendeu nada depois de tudo?
PADRE
Não, não. Tô concordando com você. Como que era? (IMITANDO
BRINCANDO) “Eeepa, bicha não, eu sou uma quase...” Fala aí!
VERA
Meu bem, depois de morta eu não sou mais quase ninguém, não. Eu sou inteira!
Inteiríssima! Sem comparações agora. Mulher quando eu quero, Padre. Ninguém
pode decidir por mim e o medo dos outros não me afeta mais. A vida real não é
comédia escrachada não, é tragédia.
(SILÊNCIO)
PADRE
Peço desculpas. Eu estou pagando, acredite.
VERA
É, meu bem, essa nossa aventura que a gente chama de
vida parece um dramalhão saído da cabeça de um maluco! É ou não é? É! A justiça
restaurativa do universo, ou de deus, não falha nunca, Padre. Olha pra você.
Emagreceu, engordou e agora emagreceu de novo! Parece uma sanfona.
PADRE
No final das contas, deus faz certo por linhas tortas,
filha. Foi um ensinamento.
(SILÊNCIO)
VERA
Hum. Depende um pouco do ponto de vista, né, Padre.
Vamo conversar aqui. Foi um ensinamento pra você, né? Na sua história, a nossa
história pode ser o certo por linhas tortas, afinal você ainda tá vivo, né,
queridão? Na minha história, a nossa história é a tragédia da minha vida. E
calma, Padre, também não precisa se desesperar. Esse tipo de coisa é muito
comum na nossa sociedade, Padre. Você não foi uma excessão nesse mundo, não se
preocupe. Nós quase nos acostumamos, até. É uma bosta, mas é, ué.
PADRE
Eu me preocupo sim. Eu me preocupo.
VERA
Tarde. Pra mim não importa mais. Agora já foi.
(SILÊNCIO)
PADRE
Quer que eu faça um chá?
VERA
Tem vinho? Prefiro vinho, se vamos beber. Padre toma
vinho, né, Padre?
PADRE
Toma. Padre toma.
VERA
Com álcool, Padre?
PADRE
Com álcool. Só um pouquinho.
(O PADRE COLOCA VINHO EM DUAS TAÇAS)
VERA
Eeee, Padre, hein? Vou falar pra você, viu. Esse
mundo está realmente perdido nas drogas lícitas.
PADRE
Ah, poxa, verdade, não posso misturar com o remédio.
Vou fazer um chá pra mim.
VERA
Ah, Padre, que isso! Um remedinho com um vinhozinho
uma vez ou outra não faz mal pra ninguém. Às vezes a gente precisa um pouco de
um sossego mais forte, sabe? Ninguém aqui vai te julgar, meu bem. Tem alguém
julgando alguém aqui? Não tem! Vamo brindar! Vai, deixa de viadagem!
PADRE
Viado não, eu sou uma quase...
VERA
Sanfona gospel!
(ELES RIEM E BRINDAM. OS DOIS BEBEM O VINHO NUM
SILÊNCIO DEMORADO)
VERA
É, Padre, é isso aí. É o que tem pra hoje, meu filho.
PADRE
Calor que dá, né? Uh!
VERA
É verão, Padre. É verão.
PADRE
É.
(SILÊNCIO)
VERA
Você precisa plantar coisa nova nessa vida pra você
conseguir colher qualquer coisa mais fartosa do que essa desgraça que você está
chamando de vida aqui, trancafiado nesse quarto, Padre. Quando foi a última vez
que você tirou o pó, Padre, puta que o pariu, hein! Luz de vela pra mostrar sua
depressão é teatrão, né, Padre? Fala a verdade. É drama, né? Vamo combinar?
PADRE
É muito curioso o meu maior erro nessa minha existência
ser a exata figura que quer me colocar pra cima. É romântico demais até, você
aqui.
VERA
Ui, Padre. Você é bonito, mas eu sou compromissada
aqui no céu, se você quer saber. As bichas vão pro céu sim.
PADRE
Não esse tipo de romântico.
VERA
Sei, sei.
PADRE
É lógico que isso aqui é teatro, filha. Mas a dor...
a dor não. A dor não é. Mas aí a gente expressa ela com teatro, entende? Todo
mundo é assim.
VERA
Depressão é fogo, Padre. Eu sei. Mata até.
PADRE
Muita gente acha que o depressivo tá fazendo um
teatro nas crises. E sabe? Eu acho que ele realmente está fazendo um teatro,
fazendo um drama.
VERA
Jura, Padre? Você tá fazendo uma cena de depressivo,
é isso? Sua depressão é marketing?
PADRE
Não, não é isso. É que... essa depressão é um
incômodo tão grande que faz a pessoa não medir essas consequências de se fazer
uma cena, de fazer um drama, de não ver importância de... de tomar um banho. Ou
comer. Pensa que horrível a pessoa não conseguir medir as consequências do
dramalhão que faz, mesmo com a vida passando na sua cara? O teatro que muitos
acusam os depressivos de fazer é exatamente o sinal, o pedido de socorro, mesmo
aquele teatro de ator canastrão que parece estar fingindo ser depressivo. Se
alguém está fingindo que dói, é porque dói.
(SILÊNCIO)
VERA
Nossa, Padre, mas esse homem está mesmo afiado pra
explicar os próprios sentimentos sem precisar colocar deus e o diabo no meio,
hein! Tá de parabéns, caralho!
PADRE
(RI) Desculpe.
VERA
Que “desculpe”! Agradece, bicha! Tem que agradecer
as coisas, monamour! Toma mais um remédio!
PADRE
O que?
VERA
Toma, Padre! Dá aqui que eu vou tomar um também!
(ELA TOMA)
PADRE
Que isso, Vera? Vamo com calma.
VERA
Calma o escambau! Você tá precisando é encher a
cara, Padre. Ficar doidão! Quem não afoga as mágoas não segue adiante, querido.
(ELA ENCHE AS TAÇAS)
PADRE
Não é assim, eu tenho que... que...
VERA
Que o quê?
PADRE
Confiar em deus...
VERA
Ah, mas então para com esse remédio de vez agora!
Parou, viado! Parou! Se vai colocar deus no meio, vamo jogar agora esse remédio
na privada! Ou para ou não faz sentido. Se você precisa tomar o remédio tem que
ser pra alívio imediato, caceta! O que você tá fazendo da vida, Padre?
PADRE
É complicado.
VERA
É claro que é complicado, meu amor! Você queria um
quadro na Praça é Nossa, meu querido? Isso é pra poucos!
PADRE
As pessoas ainda me julgam por conta do que eu fiz
com você, filha. É esse peso que eu carrego. Como eu posso falar do amor de
Jesus agora?
(SILÊNCIO)
VERA
Se eu estivesse viva eu não iria te perdoar não,
Padre. Depois de morrer a gente não tem mais necessidade de querer ser
perfeita, saber perdoar todo mundo. As pessoas te julgam corretamente, com
muita justiça, Padre. Você foi bem bosta mesmo. (PAUSA) Agora, bicha, carrega
esse carma! É só isso que eu tenho pra te falar. Carrega-esse-carma. Mas já
chega dessa situação, Padre. Você não precisa do meu perdão pra seguir em
frente nessa sua aventura aqui. Carrega esse carma nas costas, só que pra
frente, entendeu? Bora, Viado? Supera!
(O PADRE REFLETE POR UM TEMPO E LOGO BEBE TODO O VINHO
DA TAÇA)
PADRE
Escolhas. Só deus pode julgar a gente. (ENCHE A TAÇA
MAIS UMA VEZ)
(VERA ENTREGA UM COMPRIMIDO DE REMÉDIO PRO PADRE;
ELE TOMA COM UM GOLÃO DE VINHO; ESCURIDÃO)
CENA
2
(AINDA NO ESCURO, O PADRE CANTA)
PADRE
Se
acontecer um barulho perto de você
É
um anjo chegando para receber
Suas
orações e leva-las a Deus
(AS LUZES SE ACENDEM; O PADRE ESTÁ NO CAMARIM, ELE
NÃO ESTÁ MAIS DEPRESSIVO)
PADRE
Então
abra o coração e comece a louvar
Sinta
o gozo do céu, se derrame no altar
Que
um anjo já vem com a resposta nas mãos
(VERA SURGE TODA MONTADA PARA O ESPETÁCULO)
VERA
Tem
anjos voando neste lugar
No
meio do povo em cima do altar
Subindo
e descendo em todas as direções
OS DOIS
Não
sei se a igreja subiu ou se o céu desceu
Só
sei que está cheia de anjos de deus
Porque
o próprio deus está aqui.
(TRECHO DA MÚSICA “ANJOS DE DEUS”; ELES SE ENCONTRAM
AO CENTRO)
PADRE
A gente vai ter que reviver isso toda noite, Vera?
VERA
Ué, Padre. Carrega o carma, querido.
PADRE
Não foi com a intenção que aconteceu.
VERA
Nunca é, Padre. Mas ninguém tem mais nada pra
ensinar pra você, Padre. Você já sabe. É só o drama mesmo que as pessoas
precisam ver.
(INICIA-SE UMA MOVIMENTAÇÃO REALISTA DOS BASTIDORES
DE UM PROGRAMA DE TELEVISÃO; VERA RETOCA A MAQUIAGEM, COM ALGUNS PRODUTORES
FAZENDO FAVORES. O PADRE ESTÁ FAZENDO UMA ORAÇÃO SOZINHO, SE OLHANDO NO ESPELHO)
PRODUTOR 1
Padre, você entra em vinte minutos, ok?
PADRE
Tudo bem, querido.
PRODUTOR 2
Eu sou muito católica também, Padre. Eu adoro o
senhor, eu sou muito sua fã.
PADRE
Agradeço, querida. Mas fã só de Jesus.
PRODUTOR 3
Posso retocar a maquiagem, Padre?
PADRE
Ah, menino acho que tá bom, viu. Não precisa. Você
acha que precisa?
PRODUTOR 3
Você que sabe, Padre.
PADRE
Pode deixar assim, filho. Obrigado.
PRODUTOR 3
Tô por aqui.
PRODUTOR 2
Padre, falaram pra você dos convidados hoje, né?
PADRE
Não falaram não, filha.
(UM FOCO DESTACA A PARTE DE VERA)
VERA
Deixa que eu mesmo retoco, viado, pode deixar.
PRODUTOR 3
Tá bom.
VERA
Moça! Moça! Você podia pegar um copo de água pra
mim, por favor? As que estavam aqui os meninos pegaram tudo. (pausa) Eu só não
entendi porque só eu que saí do palco depois do comercial, os outros estão lá
ainda, olha lá.
PRODUTOR 1
A gente vai colocar o Padre agora, Jorge.
VERA
E daí?
PRODUTOR 1
Aí pode pegar mal envolver as coisas, né? Você sabe.
Daqui a pouco a gente entra com você de novo.
VERA
Envolver que coisas?
PRODUTOR 1
A gente faz televisão pra família, Jorge, você sabe.
VERA
E o que isso tem a ver?
PRODUTOR 1
O Padre representa a outra parte, entendeu? Outro
público.
VERA
Eu não entendi não. Eu não entendi nadinha não.
PRODUTOR 1
O povo católico não gosta muito, não entende muito.
Relaxa, intervalinho pra tirar um descanso.
VERA
Vocês não querem vincular a imagem de uma travesti
com um padre, é isso?
PRODUTOR 2
Não, Vera, o Padre que achou melhor, porque ele vai
cantar só uma música também, divulgar o novo CD dele, e aí logo depois você
volta.
VERA
Ah, o Padre falou que não queria entrar no palco
comigo? Ele falou isso?
PRODUTOR 1
Não, Jorge, pelo amor de deus. Não é isso. Você
entendeu errado...
VERA
Então quem fez essa decisão, meu amor? Eu sou cristã
também, eu tenho sangue cristão e tenho sangue no candombé e tenho sangue em
tudo que esteja vinculado com mensagem de amor, monamour! Quem esse padre pensa
que é?
PRODUTOR 1
Jorge, você já vai entrar de volta. Não precisa se
estressar com isso. Você sabe como as pessoas são.
PRODUTOR 2
Você é a que mais devia saber como as pessoas lidam
com essas coisas, Vera. É assim mesmo.
VERA
É assim mesmo. É. (PAUSA) É assim mesmo.
(FOCO NA PARTE DO PADRE)
PRODUTOR 1
Sua vez, Padre!
PRODUTOR 2
Venha que eu te acompanho, Padre.
PADRE
Tô bonito, querido?
PRODUTOR 3
Tá bonitão sim, Padre. Um galã.
PADRE
Então, vamo lá em nome de Jesus.
(A CENA TERMINA COM VERA SOZINHA ASSISTINDO O PADRE
CANTANDO NO PROGRAMA PELA TELEVISÃO DO CAMARIM; ESCURIDÃO)
CENA
3
(QUANDO AS LUZES SE ACENDEM VERA VAI ATÉ O LEITO DO
HOSPITAL SEGURANDO UMA VELA)
VERA
Essa história não é a minha. Por um tempo eu achei
que fosse, que essa história fosse sobre a minha pessoa, sobre quem a minha
figura representa. Mas hoje eu sei que o protagonista nunca fui eu. (PAUSA) A
gente vira mártir de uma luta porque é assim que o mundo funciona. A história
não é minha, porque ela é universal. O padre cristão matando a bicha preta
travesti do coração, é a clássica imagem do Brasil.
(VERA SE DEITA NO LEITO; OS APARELHOS APITAM PARADA
CARDÍACA; OS ENFERMEIROS ENTRAM PRA SOCORRER; O PADRE SURGE NUMA APARIÇÃO)
PADRE
Deus ama o pecador, mas repudia o pecado. Você pode
se arrepender agora, minha filha.
VERA
Não, aqui não! Não agora, Padre. Não na hora da
minha morte.
PADRE
Nós vamos ter que reviver isso pra sempre, querida.
Fazemos parte um da história do outro. Chega a ser romântico, não chega?
VERA
Eu só quero... eu quero que você vá tomar no meio do
seu cu.
PADRE
Sua raiva não vai te livrar da morte. O pecado
consome o corpo. Você precisa pedir o perdão de Jesus, ele morreu pelo seu pecado.
VERA
Não tem pecado! Não tem pecado! O único pecado aqui é
o senhor! Monstro!
PADRE
Eu não sou o ruim, minha filha, eu sou um padre, eu
sigo os ensinamentos de deus. O que você queria que eu tivesse feito? Padres
não podem incentivar o homossexualismo num programa de domingo familiar.
VERA
É homossexualidade que fala, e esse caralho de
incentivar homossexualidade não existe! Você não tem moral nenhuma pra falar do
amor de Jesus, Padre. Jesus andou com todos os marginais que somos e não com os
religiosos feito o senhor.
PADRE
É o que está escrito. “Não se deitarás com outro
homem como quem...”
VERA
Pro inferno com esses sermões! Me deixa morrer em
paz! Por favor, só agora...
PADRE
Eu não estou aqui, minha querida. Você está em
delírio. Você queria poder falar isso tudo na minha cara antes de morrer. Nunca
vai fazer isso. Você não vai ver a vingança, querida. E está tudo bem, pode
descansar em paz. A justiça deixa que deus faz.
VERA
Deus é justo.
PADRE
Deus é justo. Agora vá. Vá descansar.
VERA
Vou. Eu vou morrer, Padre, e você jamais terá o meu
perdão!
PADRE
Talvez eu nunca nem ligue pra isso. Talvez isso tudo
seja só história da boca do povo, talvez. Talvez eu morra achando que você
morreu por qualquer outro motivo, talvez ninguém nunca nem saiba de nada.
Depois de morta, nada mais disso interessa pra ninguém.
VERA
É. (PAUSA) Uma última coisa. Vai tomar no meio do cu
de novo, Padre.
PADRE
Pode ir, filha. Pode ir. Seu corpo agora está
purificado.
(O PADRE DESAPARECE; A EQUIPE DE ENFERMAGEM PERCEBE
QUE VERA MORREU; ELES A COBREM COM UM LENÇOL E SAEM; ESCURIDÃO)
CENA
4
(QUANDO AS LUZES RETORNAM, VERA E O PADRE ESTÃO NO
QUARTO AINDA TOMANDO VINHO; O PADRE ESTÁ VISIVELMENTE EMBRIAGADO)
PADRE
Ah, filha. Eu fui o monstro da sua história. Eu sinto
muito. Eu sinto muitíssimo... (CHORA DOLORIDO)
VERA
Tá bom, Padre, não vamos cair no dramalhão agora
não, vai. A gente nunca vai saber se isso tudo foi real, mas rende uma boa
história se você conseguir entender o que tudo isso significa. De um ponto de
vista você é o protagonista de uma história interessante também, Padre. Agora
você tem que ver o que você vai fazer com tudo isso, flor. Agora é a hora.
PADRE
Eu acho que isso vai me matar, do mesmo jeito que te
matou. Eu sinto... eu sinto que eu não vou aguentar a culpa.
VERA
Tenha certeza que as Veras desse planeta estão
cagando pra você, Padre. Pra Vera aqui a dor da sua culpa é a justiça sendo
feita. Deus é justo mesmo, Padre.
(SILÊNCIO)
PADRE
Me perdoa. Por favor, me perdoa.
VERA
(REFLETE ANTES DE RESPONDER) Não. Eu sou imperfeita.
Meu maior pecado é não saber perdoar, Padre. Mas tudo bem. Todo mundo tem seu
lado ruim. Eu não vou ter tempo de evoluir nessa questão, bem, porque eu morri.
Siga a sua vida agora. (PAUSA) Toma mais um remédio, Padre. Um mata leão da
dor.
(EM UM INSTANTE, O PADRE VOLTA À REALIDADE)
PADRE
Não! Isso tudo é uma loucura! Vai embora! Você não
vai me assombrar pro resto da vida! Sai! Vai embora!
VERA
Eeeeepa! Grita comigo não, minha querida! Tá
pensando que você é quem? O Padre Fábio de Melo?
PADRE
(DESESPERADO) Como que um pecador se livra da culpa
de uma coisa que ele não pode voltar atrás, senhor? Como eu faço isso? Me
ajuda, Jesus. Eu imploro! Pai! Eu imploro!
VERA
Eu vou responder no nome de Jesus pra você, querido,
igual vocês fazem. Pedir desculpas não é o suficiente. Fez merda? Falou merda?
O universo faz pagar. Ô, se faz! Você pode seguir sua a vida achando que já
pagou sua dívida com a minha morte, Padre, coisa que nunca vai acontecer porque
eu já morri, né? Você pode também ficar nesse drama depressivo pra sempre até o
dia da sua morte e fim. Ou então dá pra você fazer uma coisinha básica. Uma
coisinha muito simples, Padre. Eu acho que isso faria uma enorme diferença
nessa história.
PADRE
Que coisinha é essa?
VERA
Lutar pra que ninguém mais faça o que o senhor fez.
Pra que nunca mais a bicha travesti morra pela dor da rejeição, seja na faca,
na carriola, seja no corpo desfalecido pela dor de dentro, que vem de dentro.
PADRE
Lutar...?
VERA
Padre, não se faça de sonso.
PADRE
A igreja jamais aceitaria que eu me expusesse com
esse assunto...
VERA
Pau no cu da igreja, Padre!
PADRE
Não é assim...
VERA
É só isso que poderia dar uma reviravolta feliz
nessa história toda, Padre. Um bom final. Que todo mundo aqui visse que agora
você aprendeu que não querer entrar no palco com uma pessoa porque ela é
travesti não é coisa do deus do amor, não é coisa que Jesus faria.
(SILÊNCIO)
VERA
Então toma mais um remédio, Padre. Mais um e você
dorme. Vai firme. Pode ir.
(O PADRE PEGA O REMÉDIO)
VERA
Os finais felizes que a gente tem são esses mesmo. A
morte ou a luta. Pra mim é isso.
(O PADRE REFLETE COM O REMÉDIO NA MÃO; VERA
DESAPARECE; COM FUNDO MUSICAL DE CONCLUSÃO, O PADRE REPASSA NA CABEÇA AS OPÇÕES
DE FINAIS POSSÍVEIS; POR FIM ELE TERMINA PARA A PLATEIA)
PADRE
A morte? Ou a luta?
(LONGO SILÊNCIO DE REFLEXÃO; O PADRE PARECE QUE VAI
FAZER A ESCOLHA FINAL, MAS A ESCURIDÃO TOMA O PALCO)
FIM
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