PALHACINHO
VILÃO
De Gabriel Tonin
MONÓLOGO DE UM PALHAÇO MACABRO.
INTRODUÇÃO
PALHACINHO
Mamíferos e mamíferas de todas as gerações aqui
presentes – inclusive a militar -, a única coisa que eu queria falar nesse
incrível dia de espetáculo aqui, é: (TERRIVELMENTE ABALADO E AMEDRONTADOR;
GRITA) EU TENTEI! EU TENTEI! (VOZ MONSTRUOSA) EU TENTEEEEI! (SE ACALMA UM
POUCO) Eu venho tentando...
(VAI ATÉ UM MICROFONE)
PALHACINHO
Vocês
acham que eu sou selvagem
Se
não acha que é o bastante
Mas
eu fiz de coração.
Não
sei mais o que fazer
Pra
fazer você entender
Que
a vida está na nossa diversão!
Ou
então... não.
Queria
ver sua coragem
De
subir aqui no palco e fazer você sorrir
Pois
cada canto e cenografia
Foi
pensada, teve alguém por trás ali
O nariz
comprei com meu trabalho
Alguns
acham que foi coisa de doação
Não
existe nessa vida um atalho
Nós
estamos no mercado, meu irmão!
E
se então você quiser
Vir
aqui pra rir
Tem
que pensar um pouco mais em nós
Há
labuta atrás desse colorido
Sabe
quanto que custou os cachecóis?
Sabe
quanto que custou os cachecóis?
(PASSA O CHAPÉU)
CENA
1
PALHACINHO
Vocês que pagam pra ver a historinha do palhacinho
vilão, é com muita gratidão que eu digo que você não tá fazendo mais do que sua
obrigação! Parabéns por ser decente e entender os artistas indigentes. Aceita
um biscoito? (OFERECE BISCOITINHOS) Você que têm e que não quis pagar porque
não gostou da introdução, e tá querendo correr ir embora, só que tá com vergonha
de sair no meio da apresentação, eu só digo: vá! (GRITA) VÁ! Por mais que eu vá
ficar muito abalado sentimentalmente – juro que vou, não tem essa de fingir que
tá tudo bem, eu sofro – eu prefiro a sinceridade do que o falso sorriso.
(PAUSA) Para os que não deram dinheirinho nenhum porque estão na mesma merda
que nóis, bem, amigo, tente montar uma pecinha de teatro de palhacinhos felizes
pra vender pras escolinhas e pras prefeiturinhas, quem sabe? Talvez você
consiga um lanchinho. Mas pra mim um lanchinho já é uma vitória, juro! Vocês
sabem da realidade, né? A realidade é que muita gente não vê o meu emprego aqui
como parte crucial do desenvolvimento de uma sociedade. Além do tão esperado
entretenimento, e risos e alegria, há também a necessidade da exploração no
formato da educação, de se passar informação. Ou mais valioso ainda, envolvendo
a saúde psicológica tanto do artista aqui presente como de vossos excelentíssimos
expectadores mamíferos, a saúde psicológica e física de todos nós terrestres.
Essa é a função. (PAUSA) Mas vocês querem uma piada, né? Eu sei que vocês
querem uma piada, seus safadinhos. Eu tô com a cara pintada, com narizinho
vermelho e vocês querem é uma piadinha, né, gente? Pois então eu vou contar uma
piada pra vocês não saírem daqui falando mal do espetáculo.
(VAI ATÉ O MICROFONE)
PALHACINHO
Prepara
Cê
vai rir até cair no chão
Toda
essa gente
Em
combustão
Então...
Prepara
Que
a risada vem do coração
Ou
um choro quente
Inflamação
Sei
não...
Prepara,
piada, engraçadão!
Era uma vez, um cara que achava que iria conseguir
sobreviver fazendo o povo rir, cantando músicas de ciranda e entregando flores
de amor. Então esse cara todo dia ia lá e pintava a cara, ficava bem bonitinho,
bem com carinha de fofinho pras criancinhas e pros marmanjão. As criancinhas
querem as brincadeiras mais simples, os marmanjão querem rir dos defeitos e das
singularidades das pessoas. E nessa foi que o cara morreu de fome porque tinha
a preocupação de mostrar o outro lado dessa porcaria toda! (PAUSA) Por trás de
toda máscara, todo nariz, toda foto feliz no Instagram, há uma pessoa. E uma
pessoa, mamíferos como eu e vocês, somos plantinhas com sentimentos. Plantinhas
que lutam para sobreviver, resistem do jeito que conseguem. (PAUSA) Fim. Fim da
piada. Não tem esse negócio de pegar o dinheiro de volta, fora das regras. Se
deu, deu. Deu porque quis. (PAUSA) E eu tô tentando aprender demonstrar
gratidão, mas é que... na prática... eu sinto que vocês todos me julgam como
sonhador.
(PALHACINHO BRUTALMENTE RETIRA TODA A MAQUIAGEM)
PALHACINHO
Eu sou o vilão! Eu sou maligno! Eu tenho sangrado
demais! Tenho sangrado pra cachorro! Eu sou aquele que veio trazer a subversão
num simples espetáculo teatral, mas eu não uso sapato e eu não sei fazer piada!
“Arruma outra profissão então/Tenta alguma coisa mais pé no chão/Leva como
hobby, não entra muito com o coração”. (PAUSA) Ano passado eu morri. Mas esse
ano eu não morro.
CENA
2
(A MÚSICA “SUJEITO DE SORTE” DO BELCHIOR TOCA AO
FUNDO; PALHACINHO POR UM SEGUNDO TEM UM MOMENTO DE ALEGRIA E DANÇA PELO ESPAÇO
FAZENDO PALHAÇARIAS DAS MAIS DIVERSAS)
PALHACINHO
Ah, o que a música faz dentro da gente! É a arte! A arte
faz parte. Até rima, olha só. (ELE GARGALHA SOZINHO) “Presentemente eu posso me
considerar um sujeito de sorte. Porque apesar de muito moço me sinto são e
salvo e forte. E tenho comigo pensado, Deus é brasileiro e anda do meu lado. E
assim já não posso sofrer no ano passado.” (DE UMA GRANDE ALEGRIA EM ÊXTASE, O
PALHACINHO VAI FICANDO TRISTE E A TRISTEZA VAI VIRANDO UMA PSICOPATIA
ALUCINADA) Sorte. Me falaram da sorte. “Se não deu certo, tenta outra coisa”.
(RI PSICOPATA) A gente tem todas essas bulas aí, essas formas... mas eu não me
encaixo nessas caixinhas fáceis. A gente tenta... a gente tenta...
Presentemente
eu posso me considerar um sujeito de sorte
Porque
apesar de muito moço me sinto são e salvo e forte
E
tenho comigo pensado, Deus é brasileiro e anda do meu lado
E
assim já não posso sofrer no ano passado.
“A lição sabemos de cor, só nos resta aprender”. Referências
é tudo nessa nossa vida, mamíferos. Eu sou as músicas, os livros e os filmes
que assiti nessa vida. E você também. Você é tudo aquilo que viu, que aprendeu,
que vivenciou. Por isso que um dia de arte é tão importante. Fica guardado na
cachola... pra sempre!
(PALHACINHO DISTRIBUI FLORES PARA O PÚBLICO AO SOM
DA MÚSICA “SOL DE PRIMAVERA” DE BETO GUEDES, NUM GESTO UM TANTO BREGA E IRÔNICO)
PALHACINHO
Você que acha que a arte não é de tanta importância
assim pra uma sociedade, que a valorização da cultura e dos artistas e dinheiro
jogado fora, saiba que você não está sozinho nos livros de história. E você
está do lado dos chatos nessa história. Nessa história é você que é o vilão,
colega! Digo com muita propriedade que uma sociedade com a cultura e a arte
aflorada e instigada e valorizada se torna uma sociedade feliz e menos doente!
De todos os lados, do meu e do seu! Sendo assim, para a saúde, a arte é
primordial. É o remédio, que remedia, que não deixa ficar doente. Um espetáculo
teatral tem tanta importância quanto a compra de uma máquina de ultrasonografia
pra santa casa, porque com arte fazendo o povo feliz e fazendo a expressão se
expressar em liberdade, a gente não adoece. A gente adoece porque a gente tá
uma sociedade triste. E eu digo isso com muita propriedade, vivi na carne, vivi
na pele. (PAUSA) Ano passado eu quase morri, mas esse ano eu não morro, ah, mas
eu não vou morrer não, eu passo fome, vou morar na rua, mas eu não vou morrer
porque não querem que eu pinte a cara e venha falar! Eu vou falar! Vocês gostando
ou não! Esse ano eu não morro...
CENA
3
(PALHACINHO IMPLANTA UMA DINAMITE BEM NO MEIO DO
PALCO)
PALHACINHO
É cênico, gente, é cênico, calma! Eu não sou tão
louco assim. Faz parte da história. (PAUSA) Ou não. (ELE LIGA A BOMBA E UMA
CONTAGEM REGRESSIVA SONORA SE INICIA) Eu não sou nenhum terrorista, não, rapaziada,
podem ficar sossegado. Nem anarquista eu me considero, eu curto ficar em paz,
quem me conhece sabe. Isso faz parte da tragicomédia dessa situação, podem
ficar tranquilos. É feito de papelão, ó, podem ver. É pra vocês sentirem um
pouco do que eu sinto aqui em cima. Essa insegurança de se vou conseguir voltar
pra casa hoje. Esses dias prenderam um rapaz que tava fazendo malabares ali no
semáforo. Muita gente acha que isso suja a cidade, que é tudo maconheiro
vagabundo. O moço que fazia grafite no muro ali daquela fábrica abandonada,
chamaram de vagabundo. Mas vocês não tão ligado. A bomba está ligada geral,
molecada! A gente não começou essa guerra, mas eu vou afundo com unhas e dentes
pra acabar com ela. E repito: esse ano eu não morro!
(PALHACINHO APRESENTA DIVERSAS MÁSCARAS DE PALHAÇOS
DE FILMES DE TERROR, COMO PENNYWISE, CORINGA E TWISTY, ENQUANTO O SOM DA BOMBA
ACELERA)
PALHACINHO
Eu tentei! Eu tentei! Eu venho tentando. O monstro
foram vocês que criaram porque muita gente se alimenta do medo dos outros. Não
nós, não é o medo que queremos, mas o medo... o medo parece ser uma das
soluções. Drásticas, no fim das contas. Mas não devia ser assim, não. Eu também
queria um mundo melhor...
(NO AUGE DA BOMBA, COM UM SUSTO PALHACINHO A CHUTA
PRA LONGE; NADA ACONTECE; O PALHACINHO VAI ATÉ O MICROFONE E CANTA A MÚSICA “ALUCINAÇÃO”
TAMBÉM DE BELCHIOR, NUM SHOW COM GRANDE ILUMINAÇÃO)
PALHACINHO
Eu
não estou interessado
Em
nenhuma teoria
Em
nenhuma fantasia
Nem
no algo mais
Nem
em tinta pro meu rosto
Ou
oba oba, ou melodia
Para
acompanhar bocejos
Sonhos
matinais
Eu
não estou interessado
Em
nenhuma teoria
Nem
nessas coisas do oriente
Romances
astrais
A
minha alucinação
É
suportar o dia-a-dia
E
meu delírio
É
a experiência
Com
coisas reais
Um
preto, um pobre
Uma
estudante
Uma
mulher sozinha
Blue
jeans e motocicletas
Pessoas
cinzas normais
Garotas
dentro da noite
Revólver,
cheira cachorro
Os
humilhados do parque
Com
os seus jornais
Carneiros,
mesa, trabalho
Meu
corpo que cai do oitavo andar
E
a solidão das pessoas
Dessas
capitais
A
violência da noite
O
movimento do tráfego
Um
rapaz delicado e alegre
Que
canta e requebra
É
demais!
Cravos,
espinhas no rosto
Rock,
hot dog
Play
it cool, baby
Doze
jovens coloridos
Dois
policiais
Cumprindo
o seu duro dever
E
defendendo o seu amor
E
nossa vida
Cumprindo
o seu duro dever
E
defendendo o seu amor
E
nossa vida
Mas
eu não estou interessado
Em
nenhuma teoria
Em
nenhuma fantasia
Nem
no algo mais
Longe
o profeta do terror
Que
a laranja mecânica anuncia
Amar
e mudar as coisas
Me
interessa mais
Amar
e mudar as coisas
Amar
e mudar as coisas
Me
interessa mais
Um
preto, um pobre
Uma
estudante
Uma
mulher sozinha
Blue
jeans e motocicletas
Pessoas
cinzas normais
Garotas
dentro da noite
Revólver,
cheira cachorro
Os
humilhados do parque
Com
os seus jornais
Carneiros,
mesa, trabalho
Meu
corpo que cai do oitavo andar
E
a solidão das pessoas
Dessas
capitais
A
violência da noite
O
movimento do tráfego
Um
rapaz delicado e alegre
Que
canta e requebra
É
demais!
Cravos,
espinhas no rosto
Rock,
hot dog
Play
it cool, baby
Doze
jovens coloridos
Dois
policiais
Cumprindo
o seu duro dever
E
defendendo o seu amor
E
nossa vida
Cumprindo
o seu duro dever
E
defendendo o seu amor
E
nossa vida
Mas
eu não estou interessado
Em
nenhuma teoria
Em
nenhuma fantasia
Nem
no algo mais
Longe
o profeta do terror
Que
a laranja mecânica anuncia
Amar
e mudar as coisas
Me
interessa mais
Amar
e mudar as coisas
Amar
e mudar as coisas
Me
interessa mais.
(LONGO SILÊNCIO)
CENA
FINAL
(O PALHACINHO SE MAQUIA NOVAMENTE, AGORA COM UMA
MAQUIAGEM BONITA; SE VESTE COM UMA ROUPA DE PALHAÇO FELIZ)
PALHACINHO
(TRISTE) Eu tentei... venho tentando. Uma piada então.
(ELE TENTA SE LEMBRAR DE ALGUMA PIADA COM URGÊNCIA) Calma que vem. Uma hora
vem. Eu tenho uma na ponta da língua... como era mesmo? Ah! Já sei, já sei.
Preparados. Eu vou fazer vocês rirem agora, vocês vão ficar felizes...
(O PALHACINHO FICA UNS SEGUNDOS EM SILÊNCIO ENCARANDO
A PLATEIA, NUMA ESTÁTUA UM TANTO ESTRANHA, COM UM SORRISO MEIO MACABRO, MEIO
TRISTE; FINALMENTE ELE DESMONTA A CENA)
PALHACINHO
Obrigado a presença de todo mundo.
(ELE AGRADECE E FINALIZA O ESPETÁCULO)
FIM
Não sei o que dizer. Acho que fiquei triste, mas eu gostei do texto, me identifiquei ele, imaginei o Tonin fazendo o papel...
ResponderExcluirImpactada, com certeza.😘