A SALA NOTURNA DOS PASSOS PERDIDOS DE RODRIGUES DE ABREU EM UMA CASA DESTELHADA

PERSONAGENS
Rodrigues de Abreu
Tony Daniel/ João Maringoni

CENA 1

RODRIGUES
Os santos óleos, do alto, o luar derrama...
Eu, pecador, ao claro luar, ungido,
sonho: e sonhando rezo comovido
e arrebatado na divina chama.

Deus piedoso, consolo do oprimido,
se compadece à voz que ardente clama,
porque meu coração, impura lama,
é um brado intenso para os céus erguido!

E o divino perdão desce da altura:
grandes lírios alvíssimos florescem
sob a lua, floresce a formosura...

E, nessa florescência, imaculados
raios longos do luar piedoso descem,
choram comigo sobre os meus pecados.

E abre-se então em mim, na florescência
de humana e quase divinal bondade,
uma região de paz e suavidade
em que vivo sonhando, na inocência.

Erra no ar perfumado por essência
rara uma sombra imensa de saudade:
recordação talvez de uma outra idade
de mais amor e de maior clemência.

Recordação, desejo de outro mundo
e sede de justiça e de virtude,
- tudo isso traz-me a sombra comovida...

E rezo e sonho em êxtase profundo:
e nesta hora de paz, que não ilude,
bom, abençoo a estupidez da vida!

Minha alma vai mais leve se tornando...
Flori serena num jardim de hialinas
águas doces correndo nas piscinas:
sente asas, ouve sons, brilha cantando!

Depois, fica, suspensa no ar, vibrando
as asas: paira no ar sobre as campinas,
vai aos céus, vem à terra, entre divinas
e humanas ânsias bêbeda revoando.

E, casta como um lírio, ao luar medita...
E se enche aos poucos das essências raras
que o luar espalha numa unção bendita.

Minha alma estende as asas, vibra e voa...
E tem, vibrando as leves asas claras,
contentamento de sentir-se boa!

TONY
E morreu. Naquele tempo não existia cura. Viveu por mais quase quatro anos lutando contra a tuberculose. E morreu. Escreveu o que escreveu e morreu. Ganhou um nome de uma praça, uma página no Wikipédia. Foi considerado por muitos um pormenor do movimento modernista brasileiro, um simbolista ao natural. Morreu aos trinta. Antes de saber do seu pequeno e interiorano legado. (pausa) Meu nome é Tony. É meu nome artístico. Tony Daniel. Eu sou artista também. Eu já passei dos trinta. Não, eu não sou poeta. Mesmo tendo nascido na terra dos poetas, eu não sou poeta. Eu sou artista de teatro, como vocês podem ver. Já animei festa, já fiz teatro musical. Fui palhaço, fiz teatro espírita, fiz alguns filmes de baixo orçamento. Fiz até um comercial dos Correios. Eu era um carteiro no comercial. Esse é o meu pequeno e interiorano resumo de uma futura página do Wikipédia. (ri; pausa) A gente tem uma impressão que as lendas eram intocáveis. Que eles eram perfeitos no que faziam, que eles tinham a certeza da arte que pregavam. Tudo morrendo cedo. Posso garantir com muita segurança que a maioria dos meus heróis morreram mesmo de overdose. Se você não é um pouco louco você não aguenta. E aí ou você morre cedo, ou você fica velho. E quando você fica velho e ainda não conseguiu deixar nada memorável na história, é mais difícil de começar tudo de novo e acertar dessa vez. São poucos os que tem direito à memória vívida. Tem muita gente que nem ouviu falar desse cara aqui. E isso não é culpa de ninguém, o cara morreu em 1927. Não vai dar pra gente lembrar de todo mundo.

RODRIGUES
Eu sou um cara tão normal como vocês. Hoje um fantasma. Mas eu andei por essas ruas. Estudei em escola de padre, desisti no meio do caminho. Morei em Minas um tempo. Campos do Jordão, São José dos Campos, Bauru. E eu vou contar um segredo, o fantasma aqui vai contar um segredinho. Eu também cagava. E os dias também eram monótonos. Os dias eram iguais hoje. Só que todo mundo usava social, e os brancos podiam entrar na parte de dentro da praça, e os negros só podiam ficar do lado de fora. E as moçoilas se preocupavam com a moral e os bons costumes. E eu era mais um grão de areia nessa imensidão. Tão perdido quanto. Tão jovem e imbecil quanto. Tão romanticamente apaixonado, sofrido, e melancólico como todos os artistas. Ouvi dizer que eu utilizei de muito simbolismo, mas pra mim é tudo muito completamente claro e literal. Você ouve e lê o meu pensamento do jeito que quiser, meu caro. Essa é a nossa grandeza.

“Minha alma é a Sala dos Passos Perdidos do Rei Salomão,
que andou por minha alma num grande bocejo.

Hoje, anda chorando, no fundo da minha existência,
a enorme saudade das coisas apenas sonhadas:
os corpos e as almas, os beijos e os gritos
de noivas geradas por meu pensamento,
eu sinto seguindo-me os trôpegos passos...”

TONY
Eu enxergo muito bem uma considerável influência da poesia simbolista portuguesa em suas obras. Não, por exemplo, como um Ernâni Rosas que chegou a modificar a dicção em seus versos fazendo com que eles soassem muito mais lusitanos do que brasileiros, mas digo em um aspecto temático, principalmente acerca do saudosismo e medievalismo, típicos da poesia de Antônio Nobre, com o qual nosso querido teve outra trágica identificação: a tuberculose.

RODRIGUES
Eu não pensava em classificação enquanto escrevia. Não é assim que arte se faz vida...

TONY
Isso veio depois. Quando só seu eco permaneceu.

RODRIGUES
É uma pena eu ter ido embora tão jovem. Você não acha isso?

TONY
Não há jeito de você ter pena de si mesmo. Sua consciência não existe mais.

RODRIGUES
E o que existe então? Como é possível estamos aqui nessa noite? Como é que pode você ouvir a minha voz, você escutar os pensamentos que martelavam o meu coração? Como é possível eu estar aqui hoje se eu morri em 1927, meu amigo?

TONY
"Um livro é a prova de que os homens são capazes de fazer magia". Você vive quando declamado, quando recitado. Quando um ator decide interpretá-lo.

RODRIGUES
Quem me conhecer sabe muito bem que eu não sou assim.

TONY
Por favor, temos que aceitar um pouco da liberdade poética, estamos em outros tempos, Sr. Poeta.


Quando elevei, ao luar da fantasia,

no areal, os meus castelos de ouro e jade,
não julgava (ai de mim!) que, na ansiedade,
eu mesmo, sim, eu mesmo os destruiria.

Ergui-os no ar com tal facilidade
qual se elevasse uma canção macia;
e deles para os céus o olhar erguia
na alta Torre da minha ingenuidade.

O Mestre Luar meus sonhos revestia
da graça boa e simples de outra idade,
da qual, bom trovador, eu revivia...

E hoje, onde está minha simplicidade,
a cuja luz, Castelos, eu vos via
edificados para a eternidade?...

RODRIGUES
Um dia (cegasse antes!), atentando
para a terra de sombras, avistei
mais que mulher, um lindo sonho brando,
melhor dos sonhos todos que sonhei.

Desci da Torre, célere, abalando
as ricas salas que eu edifiquei.
E ao partir, esse novo ideal buscando,
minha Torre, sem lágrimas, deixei...

Em vão, o mundo percorri, sangrando..
E, quando a longa volta ao mundo dei,
vi-me junto à alta Torre, mas chorando.

Tantas e tristes lágrimas chorei,
que, aos poucos, destruí, o areal minando,
os meus Castelos, onde fora rei!

Os Castelos. Da minha segunda coleção A Sala dos Passos Perdidos. Eu estou profundamente lisonjeado. É quase como se fosse um alívio morrer sabendo disso.

TONY
Não tinha como você saber que estaríamos nesse noite te reverenciando, nessa singela homenagem. Talvez você tenha morrido com dor. Talvez você tenha morrido com medo. 

RODRIGUES
Talvez sim. Talvez sozinho.

TONY
Talvez sozinho.

RODRIGUES
Eu era apenas um rapaz.

(silêncio)

TONY
Me tire uma dúvida, meu amigo.

RODRIGUES
Eu não saberei como explicar como é a morte, é uma coisa muito louca de ser explicada...

TONY
Não é nada disso. Quero saber, quem é ela?

RODRIGUES
Perdão?

TONY
Quem é a garota?

RODRIGUES
Que garota?

TONY
Aquela que você escondia entre as palavras?

RODRIGUES
Eu não sei do que você está falando, meu amigo.

TONY
Mulher! Às vezes, penso, comovido,
que é preciso outra voz pra te falar...

Ontem, um anjo andava no ar perdido,
e vendo-me contigo conversar,

RODRIGUES
olhou-te bem, e ao ver-te, à luz do poente,
frágil e linda, toda cismadora,

adorou-te, dizendo tristemente:

OS DOIS
“- Por que desceu do céu Nossa Senhora?!”

RODRIGUES
Era da mãe de Jesus que eu falava.

TONY
Não era não.

RODRIGUES
(brincando) Eu não sou responsável pela sua interpretação dos meus poemas. Eu sou responsável pelo que eu sei.

TONY
Eu sei que não era. Isso era voz de homem apaixonado. 

RODRIGUES
Você que sabe.

TONY
É como se você negasse a sua musicalidade, Sr. Poeta.  Aceite, aceite que estava apaixonado.

RODRIGUES
Você quem sabe. Quando você lê é você quem está pensando. Eu pensei só na hora de escrever. Temos percepções diferentes desse mundo, meu amigo! 

TONY
Eu não sou poeta. 

RODRIGUES
Eu sei que não. Mas todos temos um valor.

TONY
Dá pra se fazer algo com música, pelo menos? Todo mundo gosta quando há melodia.

(silêncio; Rodrigues se prepara)

TONY
Era cantor, também? 

RODRIGUES
Não, mas quero te mostrar as possibilidades da arte. 

(Poema musicado)

RODRIGUES
Quando a tarde agoniza, eu sonho. E então levanto
o meu sonho de amor para o céu, como santo,
pois sei que uma mulher vem, mansa como a brisa,
colher meu sonho bom, quando a tarde agoniza...

Como uma procissão de freiras tristes, passa
a lenta procissão das sombras. No ar esvoaça
tênue aroma, sutil sonho da terra mansa
que adormece em silêncio e em incerta esperança...
Na tarde, as flores têm desejos de pecar:
o Desejo desdobra as asas, voa no ar,
quando a primeira estrela aparece no fundo
do firmamento, para enamorar o mundo...
O céu é um grande espelho embaciado de sangue...
E há no céu e há na terra uma tão pura e langue
agonia de sons, que, nessa hora, parece
que o Mundo se ajoelho em postura de prece!

O Santo Sonho plange, em soluços, nos sinos,
e erra, brancas, no espaço as almas dos violinos...
A tarde, na agonia, interpreta, sonora,
Schumann, Schubert, Chopin, pois uma tarde chora...

Como eu, o vale pensa, e no alto, a nuvem pensa...
A mesma alma que vem do céu e, triste e imensa,
erra na tarde, vive em mim, cheia de sono:
minha alma é tarde triste e musical de Outono...

Quando a tarde agoniza e suave chora, quanto
envolve as coisas, numa angústia, a alma do pranto,
os anjos descem do alto, abraçando violetas
e colhem, suavemente, os sonhos dos poetas...
Foi numa tarde assim, quando os anjos desciam
do céu e os sonhos bons, suavemente, colhiam,
que uma mulher tomou a forma de anjo e veio,
entre os anjos, colher a flor do meu anseio...
E ela veio, e colheu meu sonho, e, comovida,
se tornou a minha Ânsia e a Só na minha vida...

Eis porque, quando a tarde agoniza, eu levanto
o meu sonho de amor para o céu como um santo:
pois ela sempre vem, nas asas de uma brisa,
colher meu sonho bom, quando a tarde agoniza...

TONY
"Numa Tarde Macia".

RODRIGUES
Veja que eu tenho um fã.

TONY
Eu tive que me preparar pra vir. Mas confesso que estou me tornando um. Juro.

RODRIGUES
Você nem sabe se eu era uma boa pessoa. Eu poderia ser um puto que sabia lidar com as palavras em falsidade. Quem comprovará? Um teatro biográfico com exigência na liberdade poética? Eu era uma pessoa. Eu não sou um personagem. 

TONY
Talvez isso aqui seja só uma desculpa pra conhecerem os seus pensamentos

RODRIGUES
E quem garante que eles entenderão? Quem garante que vocês são parte do público interessado pela arte clássica, interessados por história? A grande maioria quer ir ao teatro para rir, meu caro.

TONY
Você é um fantasma. São outros tempos, meu querido. O teatro de hoje é feito pros abertos. 

RODRIGUES
Eu não entendi.

TONY
Exato. Você não precisa entender. Sinta. Seu poema tem um sentimento, e mesmo que você não tenha pensado em sentimento nenhum na hora que escreveu - coisa que eu duvido. Cada um tira o pedaço que quiser.

(silêncio)

RODRIGUES
Eu era um jovem ninguém. 

TONY
Acho que esse é o pensamento de todo jovem. Desde o mais ordinário até o mais genial.

RODRIGUES
Eu virei uma lenda até que ponto?

TONY
Se lembram mais da Tarsila, mas seu nome virou nome da praça do centro da cidade.

RODRIGUES
Puxa vida. Acrescentaram meu nome nas antologias que se seguiram?

TONY
Nas antologias...?

RODRIGUES
Na classe literária que me incluíram? Eu fui publicado de novo?
TONY
Não. Me desculpe. É um grave erro para com sua história, meu amigo. Desculpe as pessoas. Seus poemas são evidentemente simbolistas, com maiúsculas abundantes, traços e descrições nevoentas, e com uma constante utilização de alegorias. 

RODRIGUES
Sim, sim, e aí?

TONY
A sua poética aproxima-se muito mais daquela produzida pela segunda geração do Simbolismo brasileiro - não tem como você saber o que é isso - , e há uma evidente influência de Antônio Nobre, para o qual você escreveu um bom soneto 

RODRIGUES
Claro! 

“Meu Santo Antônio Nobre/ eu te bendigo/ ingenuíssimo triste de alma inquieta!/ Sou infeliz, e ao ler-te, entanto digo/ chorando: - Pobre poeta, pobre poeta!”

TONY
Toda vez que eu leio seus poemas eu me lembro desse quase bilhete. 

RODRIGUES
Você tem pena do pobre poeta que eu fui.

TONY
Tenho pena das pobres e sofridas almas que são os artistas como nós. Pobres poetas, pobres poetas.

RODRIGUES
Você está nos comparando, meu amigo? Eu tenho o dobro do seu tempo histórico e um escritor não se compara à um ator de teatro. Nem de longe!

TONY
São outros tempos. Não seja preconceituoso! Essa época já passou. 

RODRIGUES
Você é um homem formado. Você trabalha com mais o quê?

TONY
Com arte. Eu ainda trabalho com arte.

RODRIGUES
É estranho saber disso.

TONY
Você não tem como saber disso. Você morreu jovem. Talvez seja só por isso que tenha sido lembrado. Os jovens morrem e viram mártires. Os velhos... não deixam saudade, não dão pena. 

(silêncio)

RODRIGUES
Meia-noite. Mistério. Ânsias no ar. Erra
nos céus a alma de todos os feridos
pela desgraça, em lúgubres gemidos...
Geme lugubremente toda a terra.

Sabe-se o que passou. Mas o que encerra
esta hora escapa a todos os sentidos.
Terei paz amanhã? Ou, como os idos,
outros dias terei de dano e guera?

Os que sofrem, ansiosos, temem, certo,
que ainda não se acabassem as torturas,
que ainda tenham de andar pelo deserto...

Fora, o vento fustiga como açoite.
Hora triste, hora cheia de amarguras...
E há tantas vidas como a meia-noite!

TONY
Nasceu na cidade de Capivari. Mas há quem diga que o espírito de Rodrigues de Abreu perambula pelas ruas de Bauru, espargindo a sua poesia, o seu encanto, a sua beleza de verbo, o seu encanto de artista e homem consagrado, desses que leva no peito a formosura dos versos e na fronte a sabedoria beneditina.

RODRIGUES
"Sou irmão dos mendigos./ Se não peço nas ruas por não ser ainda a ocasião,/ peço a esmola do amor, por isso meço/ o sofrimento dos que pedem pão..."


CENA 2

(Rodrigues se encontra com seu amigo João Maringoni)

RODRIGUES
João Maringoni!

JOÃO
Rodrigues de Abreu! 

(eles se abraçam)

JOÃO
É 1946, meu amigo. Você já faleceu faz muito tempo. Quando foi mesmo?

RODRIGUES
1927. Você está velho.

JOÃO
Você morreu novo. Eu estou pra dar um depoimento aqui em Bauru. Pediram pra eu dar algumas palavrinhas. 

RODRIGUES
Posso ficar pra ver?

JOÃO
Eu vou ficar com um pouco de vergonha, mas eu vou fingir que você nem está aqui. 

RODRIGUES
Não puxe muito meu saco.

(João sobe em um palanque)

JOÃO 
Rodrigues de Abreu falava com uma correção e desenvoltura sem par, e tinha uma palavra colorida de todas as nuances, que seduzia, que arrebatava. Na oratória era tão grande como na poesia. Lembro-me de uma festa, que os amigos lhe fizeram, já nos últimos tempos de sua vida, para mantê-lo em São José dos Campos. Foi no Centro Bauruense, onde hoje está o Grêmio. Fizemos música. Ele dizia não ser cantor, mas que queria nos mostrar o que dá pra se fazer com arte. Moçoilas recitaram e cantaram; Jorge de Castro, o jornalista insigne, que lhe seguiu na rota do sofrimento e da morte, organizou um número de jornal falado do “Diário da Noroeste”, que os vitoriosos da Revolução de 1930 destruiram e queimaram, como se fora possível queimar e destruir o pensamento e a luz do nosso camarada. No número falado do jornal, eu fiz o artigo de fundo, por deferência especial dos que me fizeram diretor daquele órgão; Breno Pinheiro, jornalista vigoroso, desses que escrevem com sentimento e ardor, deu-nos uma de suas produções rica de imaginação e graça; Rafael de Holanda, outro amigo ardoroso de brasilidade, fez uma doutrinação patriótica; Jorge de Castro, com sua pena de pluma e seu verbo de fato, uma crônica de modas, num estilo brilhante e macio; e todos fizeram a sua parte, naquele número de novidade, que surpreendeu pela forma e encanto pelo fundo. Rodrigues de Abreu pediu-nos, na hora, uma coluna e ele disse, na seção livre do jornal falado, o seu agradecimento. Só quem esteve naquela noite no Centro poderá dizer o que foi o agradecimento do orador assim homenageado. Uma coisa inenarrável, um hino de louvor à terra que o acolhera, e aos amigos que o amparavam. Era tal o brilho e o transporte com que falava, que todos vibravam com ele, fremiam com ele, choravam com ele, com ele formando uma só cadeia de crença e de fé, uma só vida, uma só alma! Eletrizou, por fim, a assistência, que se quedou num silêncio de sepulcro, e a sala se esvaziou numa triste mudez de orfandade e de luto... Foi essa uma das últimas produções, porque pouco tempo depois, rodeado de amigos dedicados, como Alípio dos Santos e Jorge de Castro, e tendo à cabeceira, a lhe iluminarem a partida, dois círios humanos – Anésia de Abreu Cara e Hilda de Barros Monteiro – Rodrigues de Abreu, em novembro de 1927, voava para as regiões etéreas e ia, longe da terra e dos homens, na mansão sagrada dos justos, buscar a felicidade do seu eterno descanso. Rodrigues de Abreu, operário agrícola nos sítios e fazendas de Capivari e Piracicaba, mestre-escola e escrevente de cartório, poeta e orador, foi um raio de luz que passou pela terra”. Muito obrigado.

RODRIGUES
Havia um homem que, tentando inutilmente curar-se de sua doença profunda, atroz, resolveu morar, por algum tempo, em Atibaia. O ar da estância seria benéfico aos seus pulmões e poderia reanimá-lo para a vida. Triste sorte, porém, desse homem que, mal chegando à cidade, uma forte crise o deixaria horas sem poder articular uma palavra que fosse. E com a chegada de seus familiares distantes, sua boca angustiada conseguiu implorar: "– Bauru! Bauru! Bauru!"  

(João volta a ser Tony)

TONY
E este homem, levado de volta a sua terra adotiva, via férrea, aproximando-se de Bauru e ao avistá-la pôs-se a chorar de alegria, como uma criança que volta ao seu lar. Este homem de que falamos, não é senão o nosso querido e saudoso poeta Rodrigues de Abreu que fez de sua poesia, de sua “via crucis” um hino de amor e de louvor à vida e à virtude, através também da sua literatura. Tinha ele uma paixão por Bauru, por Capivari, pela sua gente, pelas suas ruas, por suas lembranças e pelas suas coisas.  Importava o progresso numa região distante, de calor imenso, de terras ainda para serem desbravadas e de figuras de donos-de-fazendas e pastagens. (pausa) Porque deixou Capivari, Rodrigues? Não é cidade boa?

RODRIGUES
É cidade boa sim. Mas não há de se fazer política com seriedade. 

TONY
Como assim fazer política com seriedade?

RODRIGUES
O povo não é um povo interessado. Amadeu Amaral foi um grande amigo meu. O povo não quis saber de sua política pública. Bauru estava em outros tempos. A ferrovia me deu a impressão de futuro. Eu encontrei felicidade em todos os cantos, apesar dos pesares. 

“Ah, não sei como não encontro os homens saudáveis
rolando na terra e gritando: “Oh Vida! Oh Vida!”
Todos deviam andar admirados, felizes 
por lhes ser permitido dizer: “Eu vivo! Eu vivo!”

Eu andei também ignorante, errando em tristeza.
Senhor! perdoai o pecado mortal de ter sido triste,
de ter dito alguma vez: “Oh vida maldita!”
e de ter escandalizado os meus semelhantes,
compondo versos dolorosos contra a vida!

O tempo que ainda me resta de vida,
quero viver, para resgatar do tempo perdido, 
em intenso amor, gritando: “Eu vivo! Oh, Vida!”

Oh! a delícia de poder viver para perdoar injúrias,
para ajudar o próximo, para ser perdoado, para
ser também auxiliado!... ser amado.

Dizer: “Camarada! dá-me o braço amigavelmente,
não me ofendi, camarada, somos companheiros da mesma rota,
nós vivemos, nós vivemos!”

TONY
“Rodrigues de Abreu, com o seu temperamento alegre e folgazão, tornou-se logo conhecidíssimo e muito estimado por toda a sociedade de Bauru. Não havia festa, em clubes ou reuniões particulares em que o Abreu não fosse figura indispensável, e o centro de onde emanava sempre a alegria, a jovialidade, o espírito. Todos lhe reconheceram em pouco tempo a supremacia do talento. E foi então que, instado por amigos que se maravilhavam com a beleza inédita de seus versos, resolveu reunir uma parte deles para serem publicados.

RODRIGUES
Foi assim que surgiu “A Sala dos Passos Perdidos”, publicada no começo de 1924. Para isso muito contribuiram, os meus amigos drs. Alípio dos Santos, Celso de Almeida, Octávio Brisola e João Maringoni – que foram os verdadeiros estimuladores, os que incutiram a confiança exato no sucesso e no renome do meu trabalho que alcançaria com o aparecimento do livro.

TONY
Infelizmente, o sucesso literário correspondeu exatamente ao fracasso amoroso, e a mais rude e dolorosa das desilusões veio amargurar para sempre a sua vida. Ela. Sem uma desculpa plausível – verdadeiramente de surpresa – aquela que enchia a sua vida e que era a sua razão de lutar, porque, dizia ele:

RODRIGUES
“Pensava que a enchia de orgulho a sua subida”

TONY
Vimos, então, transformado o Abreu, lutador corajoso e cheio de esperanças, em um desiludido, que viveria daí por diante por viver, sem mais escopo para o futuro. Não há artista que não desfaleça no amor. 

RODRIGUES
“Pensava que a enchia de orgulho..."

(Rodrigues bebê um gole grande de depressão e tosse; black-out)


CENA 3

TONY

Em meio à pessoal turbulência amorosa, com “A Sala dos Passos Perdidos”, Rodrigues de Abreu ganhava as manchetes. Os jornais do interior, da capital e, especialmente, da região da Noroeste, estampavam os seus versos e a crítica buscava espaços na imprensa para elogiar o trabalho desenvolvido pelo poeta. Tamanha foi a empolgação sobre a sua obra, que passaram a tratá-lo como uma das maiores figuras da poesia brasileira.


RODRIGUES
Quem diria! Minhas influências eram Tagore.

TONY
Com o seu misticismo.

RODRIGUES
Hamsun.

TONY
Na espiritualidade

RODRIGUES
Bilac.

TONY
Com o patriotismo.

RODRIGUES
De Nobre.

TONY
Com o sentimentalismo.

RODRIGUES
E Whitman.

TONY
Com a sua clara humildade. 

RODRIGUES
Tornei-me o centro das atenções e a imprensa não poupava esforços em saber do meu pensamento, das minhas ações, dos meus próximos lançamentos, das minhas idas e vindas.

TONY
“Esse moço paulista foi, na geração, o irmão deserdado, o irmão doente. Entre desportivos e gozadores, coube-lhe o quinhão da morte e o choro baixinho e humilde.”

RODRIGUES
“Rodrigues de Abreu foi um trovador saudável, um poeta que amava doidamente a vida, e toda a sua obra de doente, de candidato prematuro à Morte, é um Hino à existência, uma glorificação do mundo.”

TONY
“Esse poeta que é talvez o mais legítimo intérprete do aspecto literário do temperamento brasileiro.”

RODRIGUES
“Rodrigues de Abreu foi um doce e melancólico sonhador.”

TONY
“Rodrigues de Abreu era uma dessas pequeninas flores anônimas que abrem no meio da relva, e que a gente, para bem admirá-las, tem de se por de joelhos.”

RODRIGUES
“Rodrigues de Abreu foi um poeta da estirpe sagrada dos eleitos.”

TONY
“Rodrigues de Abreu foi uma das coisas mais sérias da poesia no Brasil.”

RODRIGUES
“Serão necessários milênios para que, ao gotejar contínuo dos olhos torturados da humanidade, reponte, enfim, a joia rara de um cantor igual ao que a morte nos roubou.”

TONY
“Rodrigues de Abreu foi uma linda inteligência de pensador e uma alma vastamente simpática.”

RODRIGUES
“A poesia de Rodrigues de Abreu é como o ar, azul de tanto diáfano, e é através dela que nos chega sua dor infinita, peneirada em lágrimas, como chuva benéfica.”

TONY
“Há na poesia de Rodrigues de Abreu, acima da beleza de seus ritmos, acima das imagens que a cada passo nos põe aos olhos a poeira fluídica e doirada do encantamento – uma virtude que já vai rareando nos poetas, virtude, entretanto, que, a meu ver, constitui a única razão de ser da poesia: a sinceridade.”

RODRIGUES
“Rodrigues de Abreu é o caminhante esguio e sonâmbulo da A sala dos passos perdidos. De olhos fechados, cismarentos, ele a atravessa com a displicência cômoda de um príncipe em exílio, esflorando lírios e pétalas de rosas no tapete lírico da alma da gente.”

TONY
“Rodrigues de Abreu acordará, na sensibilidade de quem o ler, uma sonora repercussão de tristeza. Não é possível admirá-lo num dia de Carnaval. Mas é possível chorar com ele, num dia de sofrimento.”

RODRIGUES
“Rodrigues de Abreu semelhava, com aquelas barbas pretas, que ele deixou crescer para não se lembrar que os barbeiros não têm alma, um suave e boníssimo missionário. Apóstolo e missionário.”

TONY
“Rodrigues de Abreu era bem um poeta por dom inato. Sente-se-lhe a tristeza congênita de quem andou pelo mundo, para aplicar-lhe uma expressão que lhe era grata, como por uma Sala dos passos perdidos.”

RODRIGUES
“Rodrigues de Abreu se fez poeta, e fez-se amado, pelo coração. Seus versos, como um fio d’água, escorriam da fonte da bondade, insinuando-se humildemente pela floresta das almas humanas.”

(Rodrigues começa a rir)

TONY
Você tá rindo de quê?

RODRIGUES
Eu não sou essa pessoa.

TONY
É de você que estamos falando.

RODRIGUES
Eu não sou tão incrível assim.

TONY
Não seja modesto.

RODRIGUES
Eu não estou sendo modesto. Eu só estou dizendo que eu não sou tudo isso que essas pessoas falaram de mim. No fim da noite eu também me sentava em uma privada e defecava, como todo mundo. Eu perdi a minha mãe. Eu fiquei doente. Eu era um cara como qualquer outro que você conhece por aí. A gente falando assim fica parecendo que eu sou alguém tão especial à ponto de ser lembrado por umas simples palavras escritas num papel.

TONY
Simples palavras? Você é um bruxo, meu amigo. "Um livro é a prova de que os homens são capazes de fazer magia".

RODRIGUES
Enquanto eu vivia a vida parecia normal. Eu não era excepcional. Acredite. Quem ainda me lê?

TONY
Românticos. Sofredores. Artistas. Intelectuais. 

RODRIGUES
Mas nada mais disso importa porque eu já voltei ao pó. Eu já voltei ao pé das estrelas.

TONY
Você está vivo aqui, cara. Percebe? Você está aqui nessa noite.

(silêncio)

RODRIGUES
Me desculpe.

TONY
“Camarada! dá-me o braço amigavelmente,
não me ofendi, camarada, somos companheiros da mesma rota,
nós vivemos, nós vivemos!”

RODRIGUES
‘O que mais me comove é a gentileza dos promotores desta festa, homenageando o artista, para socorrer o homem’.

TONY

"Com um golpe rijo cortarei as amarras.

Entrarei, um sorriso nos lábios pálidos,
pelo imenso Mar Desconhecido.
Mas, rapazes, não gritarei JAMAIS!
não gritarei NUNCA! não gritarei:

RODRIGUES
ATÉ A OUTRA VIDA!
Porque eu posso muito bem voltar do Mar Desconhecido,
para contar a vocês as maravilhas de um país estranho.
Quero que vocês, à moda antiga, me bradem BOA VIAGEM!,
e tenham a certeza de que serei mais feliz.
Eu gritarei ATÉ BREVE!, e me sumirei na névoa espessa, 
fazendo um gesto carinhoso de despedida."

(Rodrigues tosse e se deita cansado)

RODRIGUES
A minha vida é uma casa destelhada
por um vento fortíssimo de chuva.

(As goteiras de todas as misérias
estão caindo, com lentidão perversa, 
na terra triste do meu coração).

A minha alma, a inquilina, está pensando
que é preciso mudar-se, que é preciso
ir para uma casa bem coberta...

(As goteiras estão caindo, 
lentamente, perversamente
na terra molhada do meu coração).

TONY
Mas a minha alma está pensando
em adiar, quanto mais, a mudança precisa.
Ela quer muito bem à velha casa
em que já foi feliz...
E encolhe-se, toda transida de frio, 
fugindo às goteiras que caem lentamente
na terra esverdeada do meu coração!

Oh! a felicidade estranha
de pensar que a casa aguente mais um ano
nas paredes oscilantes!
Oh! a felicidade voluptuosa
de adiar a mudança, demorá-la,
ouvindo a música das goteiras tristes, 
que caem lentamente, perversamente, 
na terra gelada do meu coração!

RODRIGUES
Doçura estranha da minha mágoa!
Tristeza sutil da mocidade!
Meus olhos, sem motivo, rasos de água!

O fel violento que bebi na vida!
Minha esquisita vida de saudade!
Saudade vaga em lágrimas deluída!

A doçura do sangue em minha boca!
Minha inquietude cheia de ansiedade!
Longas insônias da minha alma louca!

Meu desejo feroz de humilhação!
Não ter um movimento de bondade,
apesar de rezar tanta oração!

Manhãs de cinza, dias de neblina,
noites sem lua, na visualidade
nevoente de quem toma cocaína!

Ah!, julguei que sentisse assim a vida
porque tivesse a sensibilidade
de uma alma sutil, desconhecida...

E em vez, isso provém deste mal físico:
a minha enorme sensibilidade
nasce das minhas vibrações de tísico!

Oh! saudade do tempo em que era doente
e em que desconhecia a enfermidade
e em que chorava à toa, inutilmente...

Já perdi a beleza de sofrer.
Minha tristeza vem deste mal físico.
Foi-se o bem de ser doente sem saber...

Antes nunca soubesse que sou tísico!

TONY
Maldita doença! Maldita seja a morte!

RODRIGUES
Quem é você, meu amigo dessa noite? 

TONY
Eu sou outro jovem ordinário. 

RODRIGUES
Veio saudar a morte para mim? Talvez eu volte um dia.

TONY
Ninguém devia morrer com trinta anos.

RODRIGUES
Tudo é passageiro.

TONY
Eu fico pensando muito no que eu fiz em vida que eu mereça ser lembrado.

RODRIGUES
Se você não morrer pela causa, meu querido, assim como fez Jesus Cristo, poucos anos durará esse legado. Quanto tempo você acha que ainda vai durar o meu?

TONY
Você tem uma praça com o seu nome.

RODRIGUES
A juventude do seu tempo não quer saber quem a praça homenageia. Logo todos seremos esquecidos.

TONY
Isso me dói. Eu gosto muito de história, gosto muito dos nossos personagens que andaram por aí...

RODRIGUES
Mas isso não quer dizer que ser esquecido seja uma coisa ruim, meu amigo.

TONY
Não?

RODRIGUES
De jeito nenhum. Quando uma estrela morre, outros mundos aparecem...

TONY
Espera! Não fecha os olhos ainda! 

RODRIGUES
O que é?

TONY
Você teve momentos em que foi feliz?

RODRIGUES
Eu tenho saudade até dos momentos ruins. Pensando agora, até parece um bom livro de ficção... 

Minha alma estende as asas, vibra e voa...
E tem, vibrando as leves asas claras,
contentamento de sentir-se boa! (morre)

TONY
Eu seria feliz, se os meus versos se impregnassem
dessa humildade silenciosa e boa
das estações pequenas dos subúrbios, 
das cidades velhas e castas,
dos bairros pobres das cidades ricas
e dos arrebaldes abandonados;
se eles tivessem a alegria honesta
das tardes que caem nos bairros operários
aglomerando boas almas nas calçadas;
se revelassem um pouco do alto encanto
que há nos ranchos das crianças pobres
bailando na poeira das ruas
ou nos quintais varridos das fazendas;
se eles dissessem do contentamento ingênuo
de operários que jogam aos serões domingueiros, 
ou bebem ruidosos nas tavernas rumorosas!

Mais do que isso, porém, quisera que em meus versos
palpitasse o sofrimento dos anônimos
tão fundo e tão doloroso!
Quisera que neles clamassem
todos os homens oprimidos:
os que esperam a festa dos dias vindouros,
pobres pequenos que têm sede de justiça!

Assim os meus versos teriam,
na alegria profunda e na tristeza profunda,
o sabor das canções que nasceram nas ruas.
E eu me orgulharia de escrevê-los,
pois sou dos pequeninos e dos simples.
E vi que a Dor e o Amor, entre os humildes,
têm um sentido mais tocante no infinito!

(black-out)

FIM



Um comentário:

  1. Anésia de Abreu Cara foi minha madrinha de batismo e me presenteou com o livro do Abreu "A sala dos passos perdidos" quando eu tinha apenas 15 anos. Quão pouco entendi de seus versos, então! Hoje com mais de 70 anos consigo entender a vida desse escritor. Vida breve, muita angústia e grande alma.

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