UM BARCO SÓ

PERSONAGENS
Rebeca
Carlo
Dudu
Leona
Tereza, transsexual masculino
André
Aline
Capitão Venceslau


Uma parede de vidro separa o palco em dois.

PRÓLOGO

(Capitão Venceslau está bêbado)

CAPITÃO
Se eu bebi cachaça ou quis olhar as pedras de perto
Eu conheci uma moça e estava me fazendo de esperto
O barco furou, ficou encalhado metade com água
O mundo culpou o homem coitado e sem graça

Vamos separar
Você vai pra lá e você vai pra lá
Vocês não precisam conviver...


CENA 1

(Um foco se acende em cada lado, apresentando Rebeca e Carlo separados pelo vidro)

REBECA
Olá?

CARLO
Oi.

REBECA
Quer conversar?

CARLO
Se você quiser.

REBECA
Gostei do seu perfil.

CARLO
Eu gostei do seu também.

REBECA
Principalmente essa foto aqui. (mostra)

CARLO
É super velha. Eu tinha vinte e cinco.

REBECA
Fala de onde?

CARLO
Do lado direito, quase na borda.

REBECA
Eu sou do lado esquerdo. Por mim tudo bem.

CARLO
Por mim também. Estamos numa nova era.

REBECA
Mora perto do portão da borda?

CARLO
Mais ou menos. Dá pra pegar um busão.

REBECA
Eu moro pertinho. Você tem o passe pra passar do lado de cá?

CARLO
Tô pra pegar. E você?

REBECA
Eu tenho. Vai vencer em setembro, mas dá tempo de a gente se conhecer melhor antes.

CARLO
O que você curte?

REBECA
O básico. Flor, jantar.

CARLO
Gosta de sexo?

REBECA
Sou dessas que gosta.

CARLO
Quer marcar?

REBECA
Mas prefiro no formato tradicional. Sexo depois da janta. Pra gente se conhecer melhor e eu ver que você não é nenhum maluco.

CARLO
Por mim tudo bem.

REBECA
Por mim também.

(silêncio)

CARLO
Me fala um pouco de você.

REBECA
De mim? Bobo.

CARLO
É, fala de você.

REBECA
Bobo.

CARLO
Fala. Pra gente se conhecer melhor.

REBECA
Ah, eu sou normal. Gosto de ver televisão, navegar na web.

CARLO
Eu também gosto de navegar na web.

REBECA
Eu gosto de cantar. Eu canto às vezes.

CARLO
Jura? Que bonitinha.

REBECA
Você que é bonitinho.

CARLO
Eu tô aprendendo a tocar violão. Sei algumas notas só.

REBECA
Jura? Que lindo.

CARLO
Tô aprendendo.

REBECA
Achei super demais, super cultural.

(silêncio)

CARLO
Como é morar do lado de aí?

REBECA
Ah, aqui é bem normal. E aí?

CARLO
Aqui é normal também. Mas por que será que vocês não comem arroz e feijão de almoço?

REBECA
Ah, isso de novo? É que a gente acha que o café da manhã é mais importante, oras. Vocês desse lado são todos cheios de preconceito.

CARLO
Só por que a gente prefere arroz e feijão de almoço?

REBECA
Não, porque acham que aqui a gente é tudo bicho por comer uma fruta e uns petiscos de almoço e fazer uma refeição mais decente no café da manhã.

CARLO
Acho estranho. Difícil de imaginar.

REBECA
Eu que acho estranho não tomar café logo que acorda pra sair.

CARLO
Quebrar o jejum tem que ser uma hora e quarenta minutos depois de acordar, e com coisas mais leves somente.

REBECA
Quem falou?

CARLO
Os médicos, oras.

REBECA
Os médicos do seu lado. Os médicos aqui falam que a gente tem que acordar e quebrar o jejum de vez, logo na primeira meia hora, se não o corpo não aguenta.

CARLO
Absurdo. Pra mim não desce. Se eu fizer isso eu vomito. Eca.

REBECA
Eu que não vejo graça em almoçar todo dia a mesma coisa.

CARLO
A gente varia na mistura.

REBECA
Mesmo assim. Acho um cúmulo.

CARLO
Mas por mim tudo bem.

REBECA
Por mim tá ótimo também.

(silêncio)

CARLO
Você é solteira, né?

REBECA
Sou sim, solteira. Eu já fui presa duas vezes e você?

CARLO
Só uma vez. Manifestação violenta e destruição do patrimônio público.

REBECA
A primeira foi porque eu roubei uma pulseira de uma loja e a segunda foi porque eu matei meu ex. Fiquei dezoito anos presa. Eu tinha doze anos na época. Eu acabei de sair, na verdade.

(silêncio)

CARLO
Por mim tudo bem.

REBECA
Eu sou super manifestante dos meus princípios também.

CARLO
O que o seu marido te fez?

REBECA
Marido?

CARLO
O que você matou.

REBECA
Ah, meu namorado. Meu ex namorado. Foi porque ele mandou eu tirar um batom que eu gostava muito. Brincadeira, foi porque ele abusava de mim, eu tinha doze e ele tinha quarenta e três, era um velho nojento. Brincadeira, eu simplesmente fiquei com ciúmes dele um dia aí eu achei que ele tivesse me traído - coisa que eu não tenho certeza se ele me traía ou não - aí eu fiquei nervosa e enfiei uma faca sem querer no baço dele. Brincadeira, eu nunca fui presa não. Mas eu não tenho certeza mesmo se ele traía ou não traía.

(silêncio)

CARLO
Eu também nunca fui preso. Eu sou de direita.

REBECA
Meus amigos são todos de direita. Mesmo os que moram aqui do lado esquerdo.

CARLO
Lugar onde mora não significa nada hoje em dia. Tenho um monte de conhecidos de esquerda do lado de cá também.

REBECA
Que loucura, né?

CARLO
Esse mundo tá ficando muito confuso, não tá, não? Esse povo não se decide. Tem até gente que não gosta nem de homem nem de mulher, gosta dos dois.

REBECA
Então na verdade quer dizer que gosta de homem e de mulher, não que não gosta.

CARLO
Oi?

REBECA
Se gosta dos dois, gosta dos dois. Não é que "não gosta nem de homem nem de mulher". Gosta. Mas gosta dos dois.

CARLO
Por mim tudo bem.

REBECA
Por mim tá ótimo assim.

CARLO
Desde que não pegue no meu pinto.

REBECA
Homem?

CARLO
O que?

REBECA
Desde que outro homem não pegue no seu pinto?

CARLO
Claro. Outro homem.

REBECA
Ah, tá.

(silêncio)

CARLO
E você?

REBECA
Eu o quê?

CARLO
Gosta que pegue no seu pinto.

REBECA
Eu gosto. Tanto homem quanto cabra.

CARLO
Ah, então você é dessas que gosta dos dois!

REBECA
Eu falei que eu era dessas. Não vejo problema nenhum.

CARLO
Longe de mim ver isso como problema. Mas meu filho vai ser macho.

(silêncio)

REBECA
Você já percebeu que a gente ficou aqui conversando e nesse meio tempo já começou?

CARLO
Já começou o quê?

REBECA
O nosso lance, a apresentação. A gente foi se entretendo porque os assuntos mais avulsos fazem parte da nossa conversação diária, não fazem? Se você pegar só um trecho daquele momento que duas pessoas começam a se conhecer vai ficar parecendo dois tontos também, não vai?

CARLO
Por que você tá perguntando isso?

REBECA
Aqui a gente pratica um pouco de filosofia. Eu esqueci que o lado de aí prefere os cálculos.

CARLO
Acho que a gente já podia marcar de se ver. Se você tem o passe fica mais fácil. Tem um restaurante maneiro aqui perto de casa.

REBECA
Você é do tipo que gosta de fugir do assunto, não é? Eu sempre me interesso por homens desse tipo.

CARLO
Você teve muitos?

REBECA
Alguns. Outros eu matei. Brincadeira, eu nunca matei ninguém, não. Aqui a gente tem um senso de humor diferente dos seus.

CARLO
Eu meio que entendo um pouco desse humor. Eu tive duas tias que moraram aí do lado esquerdo.

REBECA
Jura?

CARLO
Juro. Logo no começo quando permitiram o reagrupamento.

REBECA
A gente tá aprendendo ainda.

CARLO
Talvez a gente tenha mesmo nascido numa época melhor.

REBECA
Eu queria ter nascido naqueles anos de liberdade desenfreada.

CARLO
Foi muita loucura. Deus me livre. Prefiro uma coisa mais regrada, mesmo a liberdade.

REBECA
Pois nem parece um libertário, ora vejam!

CARLO
A gente tem se misturado as bolas, não tem?

REBECA
Talvez teve que acontecer tudo aquilo de novo pra gente perceber que o barco é um só.

CARLO
Um lado afundou mais, enfim. Mas ia afundar tudo junto. Você tem razão.

REBECA
Um lado sempre afunda mais. Deus abençoe que dessa vez não foram os mais fracos, como sempre acontecia.

CARLO
Eu pensei que vocês do lado de aí não acreditassem em Deus.

REBECA
Eu não acredito mesmo.

CARLO
Não acredita, mas dá graças?

REBECA
É modo de dizer. Eu acredito mais em mim e em nós.

CARLO
Pode ser que uma hora caguem tudo de novo!

REBECA
Será? A gente precisa ser desses que aponta pro lado pessimista?

CARLO
Sem o contra peso um lado afunda.

REBECA
Mas um lado sobe. Tem vezes que a gente precisa mais de uma coisa e menos de outra.

CARLO
Pode ser. Mas não por completo.

REBECA
Você acha que o planeta Terra é cruel, sim ou não?

CARLO
Cruel como?

REBECA
Violento. Que faz violência de propósito.

CARLO
Eu não tô conseguindo entender.

REBECA
Tem um monte de catástrofe natural. O leão come o filhotinho do veado. Terremoto, furacões, tubarões. Um monte de coisa que a gente se assusta, não tem? O sol que é uma bola de fogo que vai nos engolir um dia. Essas coisas não assustam?

CARLO
Assustam.

REBECA
Você acha então que é uma crueldade? Tipo uma crueldade de um deus?

CARLO
Ah, se o leão não matar o filhotinho do veado o filhotinho dele quem morre. É a vida.

REBECA
Exato! Você é perfeito, cara! É isso mesmo. Então sua resposta é não, você não acredita na crueldade.

CARLO
Mas o ser humano, esse sim é cruel.

REBECA
Ué, e por que seria?

CARLO
Como assim 'por que seria'? É só você ligar a televisão, cara. Ler um livro de história. O ser humano tem a crueldade dos infernos. É nisso que acredito.

REBECA
Mas o ser humano faz parte da natureza, não faz? Essa crueldade não seria parte da Terra também? Se um não mata o filhote do outro, o filhote dele é quem morre.

CARLO
Você está defendendo o assassinato?

REBECA
Não, estou defendendo que tudo o que já aconteceu e que tudo o que acontece faz parte do que a gente é. O fogo do sol tá pouco se lixando que tá calor pra caralho. Ele vai nos queimar um dia. Acho que a gente não devia se preocupar tanto em ter medo de ser comido por um leão.

CARLO
Ora, cale a boca. Todo mundo quer sobreviver pra sempre.

REBECA
Você me mandou calar a boca, cara?

CARLO
Foi no sentido simpático da palavra. Não quis realmente que você parasse de falar.

REBECA
Eu não entendo esse jeito do lado de aí. Vocês tem um jeito esquisito de lidar com as coisas.

CARLO
Esquisito não. Diferente. Esquisito pra mim é defender a crueldade com filosofia.

REBECA
Você não entendeu mesmo onde eu queria chegar.

CARLO
Onde que você queria chegar?

REBECA
A gente só tá se conhecendo, a gente precisa falar bobagens. Eu pensei que eu pudesse ter a sorte de você não ser um cara que acha que o bandido é bandido por escolha e por total culpa própria.

CARLO
Mas eu acho mesmo que o bandido é bandido porque quer. Hoje em dia só entra no crime vagabundo.

REBECA
Pena. Isso é uma coisa que conta muito pra eu gostar de alguém.

CARLO
O que? Você acha que a sociedade faz o cara ser bandido, então, é isso?

REBECA
Isso mesmo.

CARLO
Eu conheço um monte de parceiro que nasceu na margem e que não virou bandido. Não é desculpa. Enquanto houver um cadeirante vendendo água no semáforo eu vou continuar acreditando que só é bandido quem quer.

REBECA
Eu sabia que a gente ia ter algo pra discordar completamente. Que droga. Que pena. É exatamente por existir um cadeirante vendendo água no semáforo que eu acredito que roubar às vezes é o mínimo que esses caras deveriam fazer em contra partida às injustiças sociais. Um cadeirante, pra mim, deveria poder ter uma vida mais digna.

CARLO
Você tá querendo dizer que o trabalho não é digno?

REBECA
Você realmente acredita que ele vende quantos sorvetes por dia?

CARLO
O suficiente para sobreviver, isso com certeza.

REBECA
E é justo que um cara completamente saudável assine alguns papéis e porque é cheio da grana merece o dobro de um conforto que o cadeirante jamais vai conseguir vendendo sorvete? Eu acho que o cadeirante merece muito mais!

CARLO
Isso é briga de classe. Inventaram isso.

REBECA
Fala sério. Eu vou me retirar. (ela se levanta)

CARLO
Não! Espera! Isso é só uma coisinha. Não é nada demais. Por mim tá tudo bem. Eu relevo.

REBECA
Eu não sei se eu consigo.

CARLO
São outros tempos. Tenha mais paciência. A gente não deve perder uma oportunidade por besteira.

REBECA
Não acho que seja besteira. Discutir sobre o mundo nunca é besteira. Esse é o motivo por estarmos aqui hoje, não pra falar sobre as nossas bundas! É pra isso que serve a arte, não é? Eu vim aqui hoje pensando que fosse pra isso que servisse.

CARLO
Eu queria muito ter a chance de conhecer mais sobre você.

REBECA
Você é muito direistista.

CARLO
Foi onde eu nasci. Me desculpa. A gente pode se esforçar mais, se você quiser.

REBECA
Eu não vou mudar por namorado nenhum.

CARLO
Eu tenho a minha fé. A gente não pode se obrigar a mudar pelo outro.

REBECA
Talvez seja melhor então a gente continuar procurando.

CARLO
A gente tinha tanta coisa em comum que eu até me assustei quando você disse que não ia querer mais só por causa daquilo.

REBECA
É muito forte pra mim. Tem alguns assuntos que eu não consigo evitar. Por exemplo, você acreditar em deus não é nenhum problema pra mim. Desde que você não queira me obrigar a acreditar também.

CARLO
Mas você também não pode me obrigar a achar que o cara que matou meu tio por causa de um celular fez isso porque ele é um coitado.

REBECA
É que eu realmente acho que ele seja um coitado. Tanto ele como seu tio. Ambos vítimas.

CARLO
Eu não consigo ver desse jeito. É um sentimento, percebe?

REBECA
Por isso que a gente não vai dar certo.

CARLO
Não seja pessimista! Você me mandou parar de ser pessimista! Você está sendo uma pessimista agora.

REBECA
Não é pessimismo...

CARLO
É sim! Pode parar.

REBECA
Eu tô sendo realista. Pra gente evitar futuros problemas, entende? Vai dar merda, pode dar merda.

CARLO
Você está impedindo que eu seja o amor da sua vida por uma simples divergência política. Que bobeira. Achei que você fosse diferente das outras.

(silêncio)

REBECA
Amor da minha vida, é?

CARLO
Poderia ser. Nunca se sabe.

REBECA
Eu te achei tão bonitinho quando a luz se acendeu.

CARLO
A sua respiração de nervosa no camarim já me deixou nervoso também.

REBECA
É muita exposição.

CARLO
Eu entendo. Pra gente vir aqui e ficar falando dessas pessoalidades!

REBECA
Ué, mas o que mais a gente pode falar em vida se não for da vida, né?

CARLO
A gente do lado de cá costuma dizer que existem dois tipos de pessoas: as que falam da própria vida, os egocêntricos, e as que falam da vida dos outros, os fofoqueiros. E assim se divide o mundo.

REBECA
Do lado de cá a gente costuma dizer que existem quatro tipos de formas de diálogos, na verdade. O formato egocêntrico, que é falar sobre si próprio - e esse é o mais comum, assim como você falou. O formato fofoca que é falar sobre a vida do outro, fofocas e comentários sobre o próximo. O formato prático, que é sobre o que tá acontecendo no agora, como perguntar que horas são, quando você manda alguém apagar a luz, quando você está no ato do assunto. E o formato filosófico, que é a conversa sobre o conhecimento, sobre o futuro e sobre o que acontece ao nosso redor. O nosso lado costuma tentar se aproveitar mais desse último, que é o mais inteligente para a nossa evolução, tanto animal como espiritual.

(silêncio)

CARLO
Eu pensei que você não acreditasse em deus.

REBECA
Eu já falei que eu não acredito.

CARLO
E como você acredita em evolução espiritual, então?

REBECA
Isso é outra coisa.

CARLO
Vai falar agora que a ciência já sabe sobre espíritos?

REBECA
Pode se dizer que dá pra interpretar algo do tipo. Mas são só teorias.

CARLO
Hum. Como é seu nome?

REBECA
Rebeca e o seu?

CARLO
Carlo.

REBECA
Hum.

CARLO
Você vai querer marcar algo ou não?

REBECA
Tô pensando.

CARLO
Pensa aí.

REBECA
Tô pensando.

(silêncio)

REBECA
Eu sou feminista.

CARLO
Hum. Aí complica um pouco.

REBECA
Melhor não.

CARLO
Melhor não.

REBECA
Tchau.

CARLO
Puta.

(Carlo sai; Rebeca fica; black-out)


CENA 2

(Dudu do lado esquerdo; Leona do direito)

DUDU
Eu sou super pró-feminismo.

LEONA
Jura? Eu acho uma besteira.

DUDU
Sério?

LEONA
Ah, eu não acredito nessas coisas. Eu acho que tanto o machismo quanto o feminismo é tudo igual. Nós somos iguais, não tem essa.

DUDU
Mas o feminismo luta pela igualdade. Você tá confundindo feminismo com femismo.

LEONA
Oi?

DUDU
Feminismo não é o oposto do machismo. Feminismo é igualdade entre os gêneros.

LEONA
Ai, tá bom, senhor Sabe-Tudo. É que eu não gosto desses negócios de teta de fora, dessas manifestação de puta, marcha da vadia, entendeu? Eu acho desnecessário, não ajuda em nada, e só choca os idosos e as crianças.

DUDU
Eu acho que ajuda em tudo. Eu acho que se você quiser ser puta eu não tenho nada com isso.

LEONA
Cara, eu sou mulher. Eu sei do que eu tô falando. Tem mulher safada nesse mundo.

DUDU
E daí? O que isso tem a ver?

LEONA
Eu tô falando que esses jovens que se dizem pró feminismo não sabem o que tão querendo, entendeu?

DUDU
Eu sei muito bem o que eu tô querendo. Igualdade entre os gêneros.

LEONA
Mas você nem é mulher.

DUDU
Mas você é! Eu penso por você.

LEONA
Eu não preciso que me defendam porque eu não fico me fazendo de vítima.

DUDU
Você acha que você não precisa do feminismo. Você acha. Do meu ponto de vista filosófico, se não fosse o feminismo você nem poderia discordar de mim nesse assunto. Então até você fazendo essa carinha de que eu tô falando bobeira é uma das conquistas, gata. Se não fosse isso, você deveria calar a boca.

LEONA
Você tá me mandando calar a boca? Você jura?

DUDU
Eu não mandei você calar a boca. Eu disse que se não fosse o feminismo você não poderia me contestar porque eu sou o macho aqui. E no patriarcado, você como mulher serve pra ser minha putinha somente, entendeu?

LEONA
Agora você vai me chamar de sua putinha, é isso mesmo? Me respeite!

DUDU
Você é burra ou o que? Eu tô tentando te explicar.

LEONA
Eu não preciso de macho nenhum tentando me explicar porcaria nenhuma, ouviu bem?

DUDU
Aí! Tá vendo! Isso é feminismo! Você está certíssima! Não dê bolas pro que eu disser, nem eu e nem nenhum outro macho! É isso mesmo!

LEONA
Eu não vou ficar mostrando a minha teta e não vou falar que eu sou vadia pra todo mundo ficar sabendo, ouviu bem?

DUDU
Isso daí foram expressões pessoais, garota! Isso quer dizer que se você quisesse, só se você quisesse, você deveria ter o direito de mostrar a teta. Não quer dizer que todo mundo tem que deixar a perna e o sovaco cabeludo, quer dizer que se você quiser, só se você quiser, você deveria ter esse direito, você entendeu?

LEONA
Por que que ao invés de ficar fazendo essas merdas, por que que elas não se alistam no serviço militar? Oprimidas? Não me parece opressão quando nós não somos obrigadas no serviço militar.

DUDU
Cara, mas quem inventou a guerra foi o homem! Como assim você tá me falando isso?

LEONA
Pra defender as suas esposas.

DUDU
Você acabou de me falar que não precisa ser defendida porque não se faz de vítima. Você é muito incoerente. Isso não vai dar muito certo.

LEONA
Incoerente é você. Só porque o lado de aí curte um baseadinho e aqui a gente prefere as coisas direitas, isso não significa que vocês são os intelectuais e nós somos os burros. Eu sou formada em história, meu querido. Eu sei muito bem do que eu tô falando.

DUDU
Tá certo.

LEONA
Você fez alguma faculdade?

DUDU
Não.

LEONA
Parou? Não quis estudar?

DUDU
Eu só terminei o colegial e eu sou maconheiro.

LEONA
Eu sabia. Meu pai não iria aprovar um relacionamento com um maconheiro.

DUDU
O meu lado e a minha turma não costuma cuidar das escolhas alheias.

LEONA
O meu lado costuma cuidar dos filhos.

DUDU
O meu cuida de outro jeito.

LEONA
Dá pra perceber.

DUDU
Você não sabe como é a minha vida.

LEONA
E você também não sabe como é a minha.

DUDU
Por mim tudo bem.

LEONA
Por mim tá ótimo assim.

(silêncio)

LEONA
Você acha que o planeta Terra é cruel, sim ou não?

DUDU
Cruel como?

LEONA
Violento. Que faz violência de propósito.

DUDU
Eu não tô conseguindo entender.

LEONA
Tem um monte de catástrofe natural. O leão come o filhotinho do veado. O sol que é uma bola de fogo que vai nos engolir um dia. Essas coisas não assustam?

DUDU
Assustam.

LEONA
Você acha então que é uma crueldade? Tipo uma crueldade de um deus?

DUDU
Ah, se o leão não matar o filhotinho do veado o filhotinho dele quem morre. É a vida.

LEONA
Então você acha que não há crueldade?

DUDU
Uma crueldade divina? Não, eu não acredito em deus.

LEONA
Deus é perfeito, deus não erra nunca.

DUDU
Eu não acredito.

LEONA
O homem sim, esse sim é cruel.

DUDU
Pode ser.

LEONA
Você não assiste o Datena? Eu não sei onde a gente vai parar desse jeito. Pais matando filhos...

DUDU
Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, né?

LEONA
Ué, mas você falou que não acredita em deus.

DUDU
Mas você acredita.

(silêncio)

LEONA
Você é hipócrita.

DUDU
O que? Você que é hipócrita! Você sabe o que 'hipócrita' significa, pelo menos?

LEONA
Lógico que sei. É quando você fala uma coisa e depois se contradiz.

DUDU
Não. É quando você não vive o que você prega.

LEONA
Eu acho que é quando você fala uma coisa e depois se contradiz.

DUDU
Não, porque é ótimo mudar de opinião. Eu tô sempre mudando de opinião. Então eu posso falar uma coisa hoje e depois ver que eu estava errado e mudar.

LEONA
Porque você é um hipócrita.

DUDU
Não! Não é isso que 'hipócrita' significa!

LEONA
Tudo bem Sr. Sabe-Tudo. Dicionário ambulante. Eu não quero discutir com você porque não vale a pena.

DUDU
Eu sabia que isso não ia dar certo desde que eu vi as suas postagens. Mas eu achei que você fosse menos cabeça dura.

LEONA
Do meu ponto de vista o único cabeça dura aqui é você.

DUDU
É uma pena, sabe? Porque eu tinha me interessado bastante por você. Principalmente por essa foto aqui. (mostra)

LEONA
É super velha. Eu tinha vinte e cinco aí.

DUDU
Achei poética até.

LEONA
Que bobeira.

DUDU
Pena que a gente é tão diferente.

LEONA
Quem vê cara não vê coração. Eu também tinha achado você bonito, mas eu jamais namoraria um maconheiro bissexual.

DUDU
Eu não sou bissexual.

LEONA
É sim. Eu já vi suas postagens defendendo travesti.

DUDU
Eu não sou bissexual porque eu defendo travesti.

LEONA
É sim. Travestis são homens vestidos de mulher.

DUDU
E o que isso tem a ver? Eu defendo porque eu acho que elas merecem respeito igual uma pessoa normal.

LEONA
Então você confirma que também acredita que aquilo é bizarro, anormal?

DUDU
O que? Não!

LEONA
Você acabou de falar que elas - ou eles - merecem respeito como se fossem uma pessoa normal. 'Como se fossem' porque não são.

DUDU
Você distorce tudo o que a gente fala. Típico do seu lado.

LEONA
Ué, foi você quem disse!

DUDU
Eu errei, caralho! Eu errei na forma de me expressar! Eu quis dizer que eu luto por travestis não porque eu pretendo ter um relacionamento com uma travesti, porque eu sou bissexual, eu luto porque eu penso pela igualdade no tratamento para com todos! Eu acho que elas precisam dos direitos ao respeito, entendeu?

LEONA
E por que você não teria um relacionamento com uma travesti? Você tem preconceito?

DUDU
Qual é? O que você tá fazendo?

LEONA
Tô apontando o quanto você é hipócrita sim.

DUDU
Você é uma bruxa.

LEONA
E você é bicha. E aí? Vai baixar o nível eu também sei.

(Dudu se levanta pra sair)

LEONA
Vai desistir, bonitão? Vai chorar pra mamãe se fazer de vítima, vai.

DUDU
Você é tão gata. Mas é tão idiota.

LEONA
Uh, o macho veio me xingar de idiota, gente. Que meda.

DUDU
(prepara um sermão) Do lado de cá a gente mexe com teatro...

LEONA
Uh!

DUDU
A gente quer descobrir os segredos, a gente quer conversar. Do lado de cá a gente pensa no porquê que a gente pensa...

LEONA
Uau.

DUDU
No porquê é necessário que se tenha compaixão com o próximo. Porque a gente se enxerga gente como coisa pequena, como um grão de areia, sem destino, à deriva. Como ser especial mesmo sendo ordinário e avulso. E repetitivo até evoluir.

LEONA
A evolução é só uma teoria.

DUDU
Seu conservatório é só um livro também! A nostalgia que você sente não é porque antes as coisas eram melhores, garota. É saudade da sensação de ser livre como uma criança. De acreditar em fantasia inocentemente, da irresponsabilidade. Não era melhor antes, é muito melhor agora. E tem que ser muito melhor amanhã. Acho que a gente não devia se preocupar tanto em ter medo de ser comido por um leão porque o 'eu' é na verdade 'nós'. Eu sou o leão comendo a si mesmo.

(pausa)

LEONA
(aplaude irônica) Uau. Gente, mas não é que o bonitão quer brincar de poesia até na hora de um xaveco.

DUDU
O xaveco acabou faz tempo. Poesia rima.

LEONA
Eu não gosto de garotões como você. E eu nem sei seu nome.

DUDU
Dudu pra você.

LEONA
Leona pra você.

(silêncio; Dudu volta a se sentar na cadeira)

LEONA
Achei que você fosse embora.

DUDU
O lado de cá costuma ser persistente.

LEONA
Macho nenhum vai conseguir mudar o meu jeito de pensar.

DUDU
Nossa, como você é feminista!

LEONA
Eu não sou feminista, eu só... não interessa! Você não gostou de mim e eu não gostei de você. Você pode sair, eu não vou ficar chateada. Eu tenho uma auto estima controlada.

DUDU
Eu não vou sair. Se você quiser sair você pode sair.

LEONA
Então tá bom. (se levanta) Seu comunista de merda. (sai)

(Dudu liga uma placa escrito DISPONÍVEL; ele fica sozinho por alguns segundos, um pouco ansioso; Tereza entra, Tereza é um homem)

TEREZA
Oi.

DUDU
Opa! Desculpe, acho que você entrou na sala errada. Eu não sou gay...

TEREZA
Eu sou uma mulher. Eu nasci mulher. Eu sou um transsexual.

(longo silêncio)

DUDU
Eu fiquei um pouco confuso...

TEREZA
Eu sei, eu costumo causar isso nas pessoas. Acho que talvez seja um dom.

DUDU
Você tirou os peitos?

TEREZA
Uau, você é bem direto no assunto. (levanta a camiseta mostrando uma cicatriz)

DUDU
Caramba, cara. Parabéns.

TEREZA
Obrigado.

DUDU
Mas espera aí. Você decidiu virar homem, mas continua buscando por outros homens?

TEREZA
Eu sou gay.

DUDU
Mas você nasceu mulher. Isso não faz de você uma mulher heterossexual então?

TEREZA
O que você vê?

DUDU
Eu vejo um homem.

TEREZA
Eu sou um homem. Eu sou um homem com uma vagina.

DUDU
Cara, eu adoro esse mundo esquerdista.

TEREZA
O prazer é todo meu.

(silêncio)

DUDU
Como é que você faz desse lado pra sobreviver, hein?

TEREZA
Por isso que eu gosto de me aventurar em procurar gente pra me relacionar do seu lado. Você deve imaginar como é ser eu do lado de cá.

DUDU
Ouvi dizer que o reagrupamento ajudou um pouco.

TEREZA
No começo sim. Mas o fascismo sempre volta, querido.

DUDU
Eu sei. Dá pra perceber. Tem bastante direitista do lado de cá também. Se aqui é difícil imagina aí.

TEREZA
Eles não vão me dar um passe. Eu nunca vou conseguir passar pelo portão. Você mora perto?

DUDU
Duas quadras.

TEREZA
Nossa. Que privilegiado. Você tem o passe?

DUDU
Eu tenho. Eu tenho família aí. Você mora perto?

TEREZA
Do portão? Não. Tem que pegar dois ônibus. Você se interessou num relacionamento gay comigo, foi?

DUDU
Você também é bem direta, hein?

TEREZA
Direto. Não dá pra perder tempo quando alguém se mostra interessado.

DUDU
Me parece que...

TEREZA
Que?

DUDU
Me parece que vão me julgar menos porque afinal você nasceu mulher, não é? É essa a impressão que eu tô tendo.

(silêncio)

DUDU
Desculpe.

TEREZA
Mas você gosta do que você vê?

DUDU
Ah, você é boa pinta.

TEREZA
É duro falar que eu sou um homem bonito?

DUDU
Não, você é bonito sim. É bonito sim.

(silêncio)

TEREZA
Você também é um homem muito bonito.

DUDU
Valeu.

TEREZA
Quer marcar alguma coisa? Eu moro sozinho aqui. Eu gostei dessa sua foto, ó. (mostra uma foto)

DUDU
(ri embaraçado) Eu nunca imaginei que eu fosse paquerar um cara.

TEREZA
Sou eu que tô te paquerando. E olha que engraçado, você só se permitiu porque eu sou biologicamente do sexo feminino. Que preconceito mais ordinário esse, não é mesmo?

DUDU
Eu tô aprendendo também. Desculpa.

TEREZA
Eu entendo. Não é fácil mesmo. Talvez um dia o ser humano largue dessas besteiras.

DUDU
Pois é.

(silêncio; Tereza se aproxima e encosta no vidro)

TEREZA
Chega aqui perto um pouco.

(Dudu obedece meio tímido)

DUDU
É meio estranho...

TEREZA
Estranho por que?

DUDU
Porque você é um homem. Ao mesmo tempo que...

(silêncio; eles se tocam com o vidro separando)

TEREZA
Eu acho isso muito excitante.

DUDU
O que? Esse vidro?

TEREZA
Eu conseguir conquistar um cara. Não são muitas vezes que acontece na minha vida isso.

DUDU
Pode ser que essa seja a última tentativa de procura. Nunca se sabe.

TEREZA
Tomara que seja.

(eles continuam encostados no vidro por alguns segundos em silêncio; black-out)


CENA 3

(André do lado direito; Aline do lado esquerdo)

ANDRÉ
Olá?

ALINE
Oi.

ANDRÉ
Quer conversar?

ALINE
Se você quiser.

ANDRÉ
Gostei do seu perfil.

ALINE
Eu gostei do seu também.

ANDRÉ
Principalmente essa foto aqui. (mostra) Mó gata.

ALINE
É super velha. Eu tinha vinte e cinco.

ANDRÉ
Fala de onde?

ALINE
Do lado direito, perto do portão.

ANDRÉ
Eu sou do lado esquerdo, mas eu tenho passe.

ALINE
Por mim tudo bem, eu também tenho passe.

ANDRÉ
Por mim também.

OS DOIS
Estamos numa nova era.

ALINE
Você quer se casar comigo, André?

ANDRÉ
Mas é claro que eu quero, meu amor!

(eles se beijam romanticamente com o vidro no meio)

ALINE
Você vem morar aqui, ou eu vou morar aí?

ANDRÉ
O que você quer?

ALINE
Eu perguntei primeiro. O que você quer?

ANDRÉ
Eu queria que não houvesse vidro nenhum.

ALINE
É um mecanismo de defesa, meu amor. Como eu iria saber se você é ou não é um maluco?

ANDRÉ
E se eu sou um maluco, ou doido de pedra? Como você vai ter certeza?

ALINE
Você não me parece um maluco, André. Nem todo mundo é maconheiro aí, é?

ANDRÉ
Não. Eu nasci numa família bastante conservadora do lado de cá.

ALINE
Do lado esquerdo também tem conservatório, é? Tô chocada.

ANDRÉ
Tem sim. Aí não tem nenhum maconheiro não?

ALINE
Só os bandidos mesmo. E a comunidade de ateus. Devem ser entre doze ou treze pessoas. Os ateus. Bandidos tem de monte. Mas aqui a gente não dá muita atenção pras minorias.

ANDRÉ
Aqui é o oposto. E eu tenho até me sentido um pouco excluído, sabe?

ALINE
Como excluído, meu amor? Eu te amo demais! Não se sinta assim.

ANDRÉ
Eu sou branco, homem e heterossexual. Não posso ser protagonista de luta nenhuma aqui.

ALINE
Que preocupação mais linda. Você me lembra um pouco o meu pai. Mas meu pai era católico.

ANDRÉ
Eu não acredito em deus.

ALINE
Eu sei. Não conta pra ninguém, mas eu tô começando a ter as minhas dúvidas, sabe? Desde que a gente se conheceu eu não paro de pensar nisso.

ANDRÉ
Jura? E desde que eu te conheci eu não paro de pensar no livre mercado. Sabe que eu gostei? Eu nunca fui muito de fumar maconha.Talvez eu realmente consiga abrir uma multinacional, quem sabe?

ALINE
Lógico que você consegue, meu amor. Vamo nos casar logo!

(ela veste véu e grinalda e ele uma gravata)

OS DOIS
Os indivíduos mestiços aceitam escolher um dos lados para moradia e que o outro tenha respeito pela ordem e pelas regras do lado escolhido assim como se houvesse sido escolhido o seu lado de nascença? Sim, aceitamos! Os dois indivíduos possuem o passe público de passagem entre os lados? Sim, possuímos! Os dois indivíduos aqui presentes nessa cerimônia prometem não ficar em cima, ou tentar pular e/ou derrubar o muro da noção e da boa ética diplomática da nossa democracia e do estado no formato que se estendeu nessa ficção quase romântica? Sim, prometemos! Pois nós nos declaramos, reagrupados!

(o vidro sai de cena e o casal se abraça apaixonado)

ALINE
Eu te amo muito, André!

ANDRÉ
Eu te amo muito, Aline!

ALINE
Eu serei o contrapeso do seu barco na tempestade, André.

ANDRÉ
Que coisa linda de se ouvir, Aline. E eu serei o Leonardo de Caprio do seu Titanic.

ALINE
(ri) Eu adoro muito o quanto você não sabe ser romântico, André. Eu que sou do lado de cá sou mais romântica que você.

ANDRÉ
Isso é preconceito. Nem todo esquerdista sabe escrever poesia.

ALINE
E nem todo direitista só gosta de matemática.

ANDRÉ
Onde a gente mora não significa nada nos dias de hoje.

ALINE
Mas em cima do muro que não dá pra montar uma barraca, né?

ANDRÉ
Pois é. As opiniões sempre mudam. Eu mudo o tempo inteiro de ideia. Mas no meio não dá.

ALINE
Você acha que pode virar um conservador um dia, André?

ANDRÉ
E você acha que pode virar uma puta?

ALINE
Isso é preconceito. Nem todo mundo do seu lado é puta. A sua mãe não é puta.

ANDRÉ
E nem todo mundo do seu é gente de bem também. Tem muito bandido disfarçado de homem de família aí.

ALINE
Eu nunca disse que meu lado era santo.

ANDRÉ
Vocês costumam pensar.

ALINE
Vocês também pensam. Tem coisa que a gente não pode se impedir de pensar. Tem coisa que simplesmente vem em pensamento. O que eu acho é que a gente precisa se policiar na hora de falar. A hora de falar é que tá o perigo. Preconceituoso todo mundo é sobre tudo. Todo mundo pré conceitua sobre as coisas ao redor, o tempo inteiro. O que a gente não pode é expôr alguma rejeição das pessoas e das suas facetas. O ser humano é muito variado pra gente ser mesquinho no ponto de expôr a nossa rejeição de alguma coisa.

ANDRÉ
Você tá esquerdista demais pro meu gosto. Tá pensando no ideal do politicamente correto de novo, né, sua linda?

ALINE
Culpa sua.

ANDRÉ
Reagrupamentos são uma coisa divina mesmo.

ALINE
Eu pensei que você não acreditasse no divino.

ANDRÉ
Eu tô começando a mudar.


CENA 4

(Capitão Venceslau rouba a cena em um foco)

CAPITÃO
Atenção, marinheiros! Terra à vista!

(o Capitão quase cai; o elenco grita em off)

CAPITÃO
Se eu bebi cachaça ou quis olhar as pedras de perto
Eu conheci uma moça e estava me fazendo de esperto
O barco furou, ficou encalhado metade com água
O mundo culpou o homem coitado e sem graça

De um lado ficou aqueles que gostam de conservatórios, museu ou sei lá
Do outro o dinheiro não compra ninguém, do outro ficou quem pensa além
De um lado tem gente que pensa em dinheiro não importa o mar, não importa quem morreu
Mas esses se esquecem que se um lado afunda o outro também se fudeu

De um lado tem gente que fuma maconha
Do outro que pensa que sexo é vergonha
De um lado tem gente que pensa no amor pelo planeta Terra
Do outro é treinado e o significado do prazer é a guerra

Essa disputa não foi inventada nesse nosso século
Já tomou cicuta, viu Cristo de perto 
Viu salvar a puta, e o retrocesso depois
E viu Galileu mostrar o futuro
Jogado no escuro pediram desculpas só em noventa e dois

Batemos em um Iceberg. Eu quis ver as pedras de perto, eu tava fazendo graça pra uma moça. O romance tem culpa nas merdas. E os dois mudam. Tanto um lado como o outro cagam. Os dois cagam. Diariamente. Porque quem come tem que cagar. E a redenção de um barco furado é muito duro, minha gente. Tem que chamar técnico de tudo quanto é porra pra conseguir guinchar o bichão. Por isso que eu sou daquele tipo de que acha que a gente não pode ter medo de ser comida de leão, entenderam? Por que que eu não vou beijar aquela moça bonita só porque ela tem um pinto, entendeu? Por que? Eu vou beijar ela sim. Se eu quiser eu vou beijar. Ela tava me dando maior mole. Eu não tenho vergonha, eu sou um pouco de cada lado, eu sou um leão esfomeado, mas eu pendo pro lado esquerdo do vidro. Se bem que hoje em dia as pessoas estão tão confusas que ninguém mais sabe que lado querem que eu aponte o barco. Elas falam: "Ai, meu deus, mas me dê uma ajuda." Mas não especifica, entende? Eu agora sou obrigado a ter bola de cristal? Eu não sou obrigado. Eu não sou deus. Eu nem existo aqui. Ninguém precisa conviver com ninguém. (pausa) Isso tudo é uma metáfora, pra quem não entendeu. O barco é o universo, os personagens são vocês, retardados, e essa é a sinopse. Se você torce pra que alguém se fure o nome disso é suicídio, porque morre todo mundo. O 'eu' é na verdade 'nós'.

(ele coloca o vidro de volta no lugar e sai)


CENA 5

(repete-se o final da Cena 1)

REBECA
Eu sou feminista.

CARLO
Hum. Aí complica um pouco.

REBECA
Melhor não.

CARLO
Melhor não.

REBECA
Tchau.

CARLO
Puta.

(Carlo sai; Rebeca fica por um tempo sozinha em silêncio; ela liga a placa escrito DISPONÍVEL; Aline e André entram juntos pelo lado direito)

ALINE
Batemos em um Iceberg.

ANDRÉ
Eu quis ver as pedras de perto. Eu tava fazendo graça pra uma moça.

ALINE
O romance tem culpa nas merdas. E os dois mudam.

ANDRÉ
Tanto um lado como o outro cagam.

OS DOIS
Os dois cagam.

REBECA
Eu até que curto umas bizarrices. Foi ideia de quem?

ALINE
A gente entrou num consenso.

REBECA
Ele não está te forçando a fazer isso, né, moça?

ALINE
É Aline. Meu nome é Aline. E não, ele não está me forçando a nada. Na verdade foi ideia minha.

REBECA
Entendi. E no caso, eu seria esposa de qual dos dois?

ALINE
Dois dois, na verdade. Eu sou lésbica. Mesmo amando muito o meu marido eu sempre soube que eu era lésbica.

REBECA
Você acha o quê disso?

ANDRÉ
Eu acho que ela pirou na maionese. Mas eu gosto muito dela também pra abrir mão.

ALINE
Eu não pirei, eu sempre fui lésbica. Eu sou totalmente lésbica e negra.

ANDRÉ
Você não é negra, Aline. Você não chega nem perto de ser morena, Aline.

ALINE
Eu sou negra sim. Eu posso declarar o que eu sou, tá bom?

ANDRÉ
Ela se dá bem demais com a minha mãe. Minha mãe no natal passado convenceu ela de que ela devia tirar os seios.

REBECA
Tirar os seios?

ALINE
E eu virei vegetariana também.

REBECA
Mas por quê isso?

ALINE
A mãe dele é uma pessoa muito influente. E aí a gente descobriu que ele tava tendo um caso. Logo ele. Que se dizia pró feminista. Lógico que a mãe dele ficou do meu lado, né? A mãe dele é do lado esquerdo da força.

REBECA
E aí ela te sugeriu que você tirasse os seios?

ALINE
Ela tava tentando me proteger. A gente não sabia se ele tinha um caso com uma moça ou com um moço. Eu quis manter o meu casamento e eu decidi que se fosse necessário eu ia virar um menino.

REBECA
Suponho que no final era uma moça?

ANDRÉ
Mas é claro.

ALINE
Eu tive que colocar silicone. Dá pra perceber ou você nem notou? E agora eu sou lésbica e poligâmica, porque eu descobri que ele gosta de sexo à três.

ANDRÉ
Pois é. Tudo pelo matrimônio.

ALINE
Eu ainda tenho um lado conservador.

REBECA
Eu gosto de um pouco de romance também, sabe? Mesmo nesses casos específicos. Gosto de um jantar antes de transarmos, pra gente se conhecer, pra eu ver que vocês não são doidos.

ALINE
Transar? Sexo só depois do casamento, minha querida!

REBECA
Ah, você jura, né? É nesse ponto de conservador? Para, não brinca. Vocês dois só foram transar depois de casados?

ANDRÉ
Três anos de namoro. Eu tive que ser forte.

REBECA
Jesus amado.

ANDRÉ
É em nome dele mesmo.

ALINE
A gente não está aqui por brincadeira, menina. A gente tá levando a sua adoção no nosso casamento com muita seriedade.

REBECA
Eu também estou. Eu levo as coisas bastante a sério também. Mas nesse ponto pra mim é demais. Não gostei. Eu vou sair. Desculpem. Com licença. Boa sorte, pra vocês. Desculpem.

(Rebeca sai)

ALINE
Eu escolhi esperar. O que é que tem?

(silêncio)

ANDRÉ
Eu acho que a gente devia procurar separado...

ALINE
Não! De jeito nenhum! Eu não vou desistir desse barco, André! Um capitão jamais abandona o seu navio. Esse casamento ainda está de pé.

ANDRÉ
Você não me ama mais, Aline.

ALINE
Mas eu amei. E isso importa.

ANDRÉ
Eu não te amo mais, Aline.

ALINE
Mas me amou. E isso importa também. É isso que importa.

(silêncio; Aline liga a placa de DISPONÍVEL)

ANDRÉ
Talvez a gente devesse deixar o barco afundar, Aline. Uma tragédia pode ressuscitar algum sentimento dentro da gente. Vamos deixar ser.

(silêncio; Aline desliga a placa)

ALINE
Você acha que o planeta Terra é cruel, sim ou não?

ANDRÉ
Cruel como?

ALINE
Violento. Que faz violência de propósito.

ANDRÉ
Eu não tô conseguindo...

ALINE
Tem um monte de catástrofe natural. O leão come o filhotinho do veado. Um monte de coisa que a gente se assusta, não tem?

ANDRÉ
Tem.

ALINE
Você acha então que é uma crueldade? A vida é cruel?

ANDRÉ
Eu acho que não.

ALINE
Eu acho que é.

ANDRÉ
Mas eu acho que não é.

ALINE
Mas eu acho que é.

(silêncio)

ALINE
É isso mesmo que você quer, André?

ANDRÉ
Eu acho que seria melhor pra nós dois. A gente não é tão igual a ponto de conseguir criar um nivelamento nessa porra.

ALINE
Eu adorava o como você não sabe ser romântico.

ANDRÉ
Dá pra ser romântico também na despedida?

ALINE
Nos filmes dá. Na vida real dói.

ANDRÉ
Me desculpe por isso.

(eles se beijam uma última vez)

ALINE
(coloca a mão da barriga) A gente vai ter que aprender a conviver...

(silêncio; André quase entende o recado)

ANDRÉ
O que você tá querendo dizer com isso?

ALINE
Vamos ter mais um membro na tripulação.

(o vidro se move e separa os dois enquanto a música sobe; a luz cai em resistência)


CENA FINAL

TODOS
Essa disputa não foi inventada nesse nosso século
Já tomou cicuta, viu Cristo de perto 
Viu salvar a puta, e o retrocesso depois
E viu Galileu mostrar o futuro
Jogado no escuro pediram desculpas só em noventa e dois

Vocês vão ter que conviver...

FIM



















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