O UNIVERSO NA MINHA CASCA DE NÓS

O UNIVERSO NA MINHA CASCA DE NÓS

PERSONAGENS
Babi
Molusco
Karina
João Pedro (JP)
Jacira, enfermeira
Miriam, mãe de JP

CENÁRIO: Uma cama e um equipamento médico adaptado (equipo de alimentação por sonda, aparelho de medição cardíaca, cilindro de oxigênio, etc). Uma cadeira ao fundo, em um foco pouco iluminado. Dois puffs de visita e uma mesinha com um notebook, copos, livros e outras bugigangas mínimas.


INTRODUÇÃO

(João Pedro está dormindo; Jacira entra e liga a dieta/alimentação, que está conectada direto na barriga de João Pedro, tudo com bastante calma, em uma cena um tanto longa. Jacira termina de aplicar alguma medicação, ainda com JP dormindo, depois senta-se na cadeira ao fundo e abre uma edição do livro Uma Breve História do Tempo de Stephen Hawking)

JP
(narra dormindo) Eu falo dormindo. Eu falo dormindo. Quase sempre não faz sentido, mas há quem diga que às vezes eu canto poesias que não existem. É brega. É ridiculamente melancólico e dramático e dramático. Minha mãe às vezes exagera e acha que é mensagem divina. Ela é espírita, minha mãe, ela é espírita. Já me pegaram falando em inglês uma vez e eu nem sei falar inglês. Não sei mesmo, sei o básicão, o basicão. Eu devia estar cantando alguma música, sei lá. Aí acharam que eu tava falando. Minha mãe já fica falando de milagre. Na minha frente ela finge ser fria... mas ela está de cabeça quente. Mães são curiosas, curiosas, um bicho curioso. (silêncio) "Eu poderia viver recluso numa casca de noz e me considerar rei do espaço infinito..." Noz com Z. (pausa) Há uma esperança na casa. Apesar, apesar, apesar. Ciclos de orações e tudo o mais. Mas eu... bom, eu não sei. Dá uma leve canseira só, de ter que ser paciente todo dia. Paciente nos dois sentidos. Dessa rotina de ficar na cama, mesmo tendo a sorte de conseguir ficar na cama do conforto de casa e não de um hospital. Dá uma leve canseira só. Pra mim, os médicos já acham que vale a pena que eu termine aqui do que termine lá. Meio que nem adianta, foi o que ficou parecendo, eu ficar ocupando espaço no hospital... Aqui pelo menos dá pra eu ver um Netflix, ter mais privacidade, pelo menos, aqui... mas não tá sendo tão diferente não. Eu não posso me alimentar pela boca, é só pela sonda...  (silêncio; uma música começa a tocar deixando a cena romantizada) “Se você tem uma deficiência provavelmente não é sua culpa, mas ficar culpando o mundo ou esperar dó de alguém não vai te ajudar em nada. Não vai te ajudar em nada. Não vai te ajudar em nada. Você deve manter um pensamento positivo e aproveitar o máximo de cada situação. Se você tem uma problema físico, não pode se permitir ter um problema psicológico também.” (pausa) “If you are disabled, it is probably not your fault, not your fault, not your fault, but it is no good blaming the world or expecting it to take pity on you, pity on you. One has to have a positive, positive, positive attitude and must make the best of the situation that one finds oneself in. If one is physically disabled, one cannot afford to be psychologically disabled as well... as well... as well...” (silêncio) Desculpem. O câncer pega parte do meu cérebro. (ele aponta) Aqui, aqui e um pouquinho aqui na cervical. Eu provavelmente devo estar narrando alguma música que eu já conheço. Não há mensagens divinas, mama... Não tem que ter uma mensagem ou lição, por favor, isso é coisa do século passado... Vamo só... vamo só... vamo só ver e fingir que isso é algum tipo de aventura que vai ter imagens bonitas... e... ao menos um pouco de filosofia. Mas sem mensagens, pelo amor de deus!

(Jacira arranca uma página do livro bem lentamente, quase irritante, e guarda em seu jaleco misteriosa)


CENA 1

JP
(depois de um segundo de silêncio, acorda de um pesadelo ofegante; Jacira se levanta em prontidão) Eu estou bem. Calma. Foi só um... foi só um pesadelo.

(Jacira volta a se sentar; JP tosse um pouco, pega uma seringa e pega um pouquinho de água de um copo; ele bebe um golinho bem pequeno da água pela seringa)

JACIRA
Devagar...

JP
Tô devegar, Jacira. Dois mls. Calma. (ele tosse mais; depois calmamente ele procura por seu foninho de ouvido na gaveta ao lado) Eu falei dormindo de novo, Jacira?

JACIRA
Não que eu tenha reparado.

JP
Hum. (ele acha o foninho e conecta em seu celular; liga alguma música e fecha os olhos)

(um foco destaca Babi, Molusco e Karina; eles estão vestidos como médicos palhaços; fazem um show musical para JP; JP se faz de simpático, mas não tira o foninho de ouvido e demonstra certa vergonha)

OS TRÊS
Anti depressivos pro menino aqui não se cortar
Provavelmente ele vai morrer
Antes dos vinte e sete
Anti masculino nosso amigo que cogita se matar
Novamente ele pediu, ele quer morrer
As pílulas, só pagam o frete

Eutanásia é proibido
Mas maconha também era, e nóis era grande amigo
Ele não tem vergonha de dizer sobre o seu medo
Me apontou o dedo, “eu tenho medo da dor”
Compreensível, sim senhor!

Mas ‘vinhemos’ doutores alegres
Trazer um pouco de euforia
Como nos velhos tempos
Esquecer da febre, dos momentos de agonia
Jacira, aplica uma morfina! Alegria! Alegria!
Faz ele sentir o vento, o tempo mais lento,
Deixa que eu te esquento
E cem por cento de prazer
Com um vinho que tá proibido de trazer

Como um gozo instântaneo
Que se aplica com musical
‘Vinhemos’ trazer um sonho e um gole de vinho
Ou somente um papo legal.

(JP aplaude os amigos sem muito ânimo)

JP
Eu não acredito que vocês se deram o trabalho de brincar de doutores da alegria. Vocês sabem que eu odeio. Já não basta no hospital. A cara de pena dessas pessoas me irrita um pouco. Pra mim só tão pensando “graças à deus que é ele e não eu”.

MOLUSCO
Larga a mão de ser cuzão, JP. Tem gente que tem coração sim. Não é pena não... Puta cara cuzão que você é, meu...

JP
Prazer, JP.

KARINA
Deve ser foda essa cara de pena mesmo. Eu entendo o que você tá falando, JP... Oi, lindão. (dá um beijo no rosto dele) Tava com saudade.

JP
Oi, lindona. Eu também tava.

MOLUSCO
Tem gente com boa intenção sim, mano... não é todo mundo, mas... (cumprimenta JP com a mão)

JP
Tá, tá. Eu sei. Claro que tem. Tô enchendo o saco. Eu acordei meio ruim hoje. Tive um pesadelo...

BABI
Oi, meu amor! (ela beija a testa dele)

JP
Oi, Babizão. Obrigado pela apresentação, gente. Tava uma merda.

MOLUSCO
A gente sabe.

BABI
Foi de propósito.

KARINA
Molusco errou a coreografia três vezes.

MOLUSCO
Nossa, você tava contando, então. Eu tive menos tempo pra ensaiar, JP. Tá foda lá na agência.

JP
Vocês não precisam mais fazer musiquinha motivacional pra mim, tá bom? Só cheguem. Simples. Menos é mais.

BABI
Motivacional? Você prestou atenção na letra da música?

KARINA
A gente veio pra te foder, na verdade.

MOLUSCO
Colocar você pra mais baixo.

JP
Deu certo.

MOLUSCO
Pra você se cortar logo porque tá todo mundo pouco se fodendo pra você. Não é não, meninas? Não morre logo, essa porra!

KARINA
Eu não aguento mais...

MOLUSCO
Parece que é de ferro. Não sei porque você não acaba com isso de uma vez, mano. Aí a gente tem que ficar fingindo que gosta do boneco e ficar gastando dinheiro com ônibus pra vir até aqui na puta que o pariu pra ficar fazendo showzinho pra lindeza sorrir um pouco, e ainda receber ingratidão.

JP
Não precisa vir não, gente. Tô pouco me lixando pra vocês também.

BABI
Eu trouxe uma gilete aqui na bolsa. Quer adiantar as coisas?

JP
Minha mãe não deixa nenhuma gilete à vista mais. Graças à deus vocês fazendo algo que preste. Passa pra cá.

(eles sorriem um pro outro)

JP
Eu também amo vocês, seus putos.

MOLUSCO
Oun, que fofo.

BABI
Seu lindo!

JP
Na real, eu não prestei atenção na letra da música mesmo. Falava de Jesus, não falava?

BABI
Falava. É só você aceitar que ele te cura.

KARINA
Mas só depois da quimioterapia.

BABI
É.

JP
Prefiro ficar com minha Cyndi Lauper.

MOLUSCO
Muito gay. Já perdeu ponto com Jesus.

JP
Graças à deus.

(eles riem mais uma vez em silêncio se olhando carinhosamente; por fim os quatro se abraçam apertado; a frequência cardíaca de JP aumenta)

JACIRA
Devagar...

JP
Não aperta muito, gente.

BABI
Chatão.

JP
Sério. Dói o pescoço.

(silêncio; os três tiram a fantasia de palhaços e se acomodam pelo palco)

JP
Trombaram com a minha mãe?

BABI
Sim. Ela foi simpática, na medida do possível dela, né? Ela sabe que você gosta da gente...

JP
Ela não se importa com isso não. Acredite. Ela só tá cansada pra se preocupar com vocês ainda.

MOLUSCO
Como se tivesse motivos. Nós somos uns lindos.

KARINA
Exemplos da sociedade!

(Karina abre um vinho; Jacira se levanta em um salto)

BABI
Só um golinho, moça!

JP
Calma, Jacira. Eu só vou molhar o bico. Com a seringa. Só pra sentir o gosto. Eu não vou beber... (Jacira não se senta e continua em posição de atenção) É só pra sentir o gosto, Jacira. Pelo amor de deus...

MOLUSCO
A gente não vai deixar ele beber, Jacira. Palavra.

KARINA
É só pra ele sentir o gosto.

JP
Eu vou tomar. Ela deixando ou não. Pode por pra mim.

(silêncio)

JACIRA
Devagar...

JP
Devagarinho. Só pra molhar o bico...

(eles separam taças em silêncio, e Karina puxa dois mls dentro da seringa)

KARINA
Dois mls, dona Jacira. Pode ver.

(Jacira finalmente se senta; os quatro, já servidos, levantam os copos e a seringa e brindam)

BABI
Ao JP!

OS TRÊS
Ao JP!

JP
À nós, caralho. Não tem ninguém mais especial que ninguém aqui.

BABI
À nós.

MOLUSCO
À nós.

KARINA
À nós.

(eles bebem; claramente JP é quem mais aprecia o pouco do vinho que tomou; ele fecha os olhos de prazer enquanto os outros observam um pouco constrangidos)

JP
Nossa... que vinho...

JACIRA
Devagar...

JP
Eu tô devagar, Jacira! Eu tô devagar! Deixa eu sentir o gosto, caramba!

(Babi sai um pouco de lado pra disfarçar uma lágrima; Molusco e Karina viram a taça rápido pra acabar logo)

JP
Nossa... valeu, gente. Delicioso... (ele tem uma crise de tosse instantaneamente; os três amigos e Jacira logo se colocam em prontidão; ele faz sinal de calma com a mão) Calma, gente... (tosse) É normal... (tosse)... Líquido eu afogo... (tosse)... Líquido eu afogo um pouquinho mesmo. (ele limpa a garganta) Fui com muita sede ao pote. (ri sem graça; silêncio) Já podem tirar essa cara de funerária.

BABI
Vamo pra próxima música?

JP
Não. Eu imploro.

MOLUSCO
A gente fez bonitinho, vai, JP. Cadê seu espírito de artista pós-moderno, crítico, super contemporâneo?

JP
Tá com câncer.

(eles riem)

BABI
Palhaço.

KARINA
Ai, eu tenho vontade de apertar você até você explodir, seu lindo! (ela abraça ele)

JACIRA
Devagar...

JP
Eu tô mó feio. Magricela. Cadê meus músculos? Olha isso.

MOLUSCO
Pare, você continua lindão. Se eu fosse gay eu te pegava assim mesmo, você sabe disso.

JP
Pra ser gay, basta o ato, Mô. Se há vontade, vamos lá...

MOLUSCO
Não me instigue que eu vou, hein...

JP
Vai nada. Você é o maior arregão. Você é super hétero, Molusco! Todo mundo sabe disso, não adianta esconder.

KARINA
Nossa, eu me sentiria ofendida...

BABI
Eu perdia a amizade.

MOLUSCO
(se entrega sem saber continuar a piada) Vocês são foda...

(eles riem)

JP
Perdeu! Perdeu! Bocózão.

BABI
Que micaço!

(de repente, Miriam entra em cena; ela faz com que a situação mude de clima só com sua presença em silêncio)

MIRIAM
O remédio dele, Jacira. Tá aqui em cima. Pode dar uma dose agora. Pra ele acalmar.

JP
Eu tô calmo, mãe. Meus amigos estão aqui.

MIRIAM
Até fazer o efeito eles já foram embora.

JACIRA
Ele acabou de tomar um gole de vinho, Dona Miriam. Melhor esperar um pouco.

(Miriam ferve os nervos no olhar para os três amigos)

JP
Foi dois mls, mãe. Eu quem pedi. Ninguém me forçou a nada. Eu tomei na seringa... só pra sentir o gosto...

(depois de alguns segundos em silêncio, ela sai em pisando forte; bate a porta do quarto com força)

JP
Você quer me foder, Jacira? Pelo amor de deus! Não precisava ter falado pra ela, você sabe como ela é, pô.

(Jacira lentamente rasga outra página do livro em protesto à reclamação de JP e guarda em seu jaleco; todos observam a cena em silêncio)

MOLUSCO
(baixo) Que bizarro...

JP
É como se eu tivesse um guarda-costas. É um inferno...

KARINA
Você tá tomando banho sozinho?

JP
Sim, sim. Ela só me ajuda a ir até o banheiro, aí lá dentro eu me viro...

BABI
Ai, graças à deus, né?

(silêncio)

BABI
Modo de dizer, gente.

TODOS
Sim, sim.

KARINA
A Babi tava falando sério sobre a segunda música, não tava, Babi?

JP
Ah, não, gente. Podem parar de breguice.

BABI
Eu que escrevi uma música pra você, JP. Mas se você não quiser ouvir não tem problema.

MOLUSCO
Eu não tenho nada a ver com isso dessa vez.

KARINA
Deixa ela cantar, JP. Ela ficou a semana inteira me perguntando se tava boa.

MOLUSCO
E todos concordamos que se isso fica muito parecido com uma novela, perde-se o cunho artístico de palco, perde-se aquela magia diferente do realismo da televisão. (silêncio constrangedor dos encenadores) Não é não?

TODOS
Sim, sim, claro.

(Jacira mais uma vez rasga lentamente outra página do livro sob total atenção dos presentes e guarda misteriosamente em seu jaleco)

JP
Tá bom, Babi. Só porque você é linda e eu amo a sua voz.

BABI
Você que é meu lindo. Espere um pouco. (ela sai) Essa é especialmente pra você, JP.

KARINA
Ela trouxe o violão. Seja gentil, JP, tá fofinha a música.

JP
Tá bom, tá bom.

(Babi retorna com o violão; um foco fechado a destaca na cena; Jacira agora se transforma em uma bailarina e dança magistralmente)

BABI
(canta) Seus olhos tristes
Desanimar não é o melhor que faz
Impossível a coragem
E a dor é difícil
Derruba o mais forte
O escuro te cega
Pensa em desistir

Mas tem cor aí dentro
Brilhando sim
Eu sei tem cor aqui dentro
Porque eu te amo
E desse amor, não precisa ter medo
Tem cor dentro
Que brilha na escuridão

(versão da música True Colors – Cyndi Lauper; JP está emocionado, mas disfarça; os quatro aplaudem; Jacira volta ao seu lugar como se nada tivesse acontecido)

JP
Essa foi a coisa mais brega que eu já ouvi em toda a minha vida. E você sabe muito bem que eu amo coisa brega. (Babi o abraça forte) Obrigado, Babi.

JACIRA
Devagar...

(silêncio)

MOLUSCO
Essa música é uma versão, né? Eu tenho a impressão de já ter ouvido ela.

JP
Ela fez o favor de adaptar a minha música favorita da Cyndi. Sua linda, maravilhosa...

MOLUSCO
Muito gay.

BABI
Obrigada.

JP
Obrigado eu. Foi o melhor presente que eu podia receber.

KARINA
Podem parar que eu tô ficando com ciúmes.

JP
Apesar de a letra ter ficado uma porcaria em português, eu adorei.

MOLUSCO
Sempre bastante sensível esse nosso amigo.

JP
Não, não por culpa dela não. Culpa do português mesmo.

BABI
Aí tem que adaptar, não dá pra simplesmente traduzir.

MOLUSCO
Eu fui o único que não trouxe presente nenhum. Foi mal.

JP
Ainda tá de pé o convite da experimentação homossexual.

MOLUSCO
Vem cá.

JP
Faz tanto tempo que eu não dou uns beijos. Desde que essa merda apareceu. Mas não daria pra dar uns beijos em você, Molusquinho. Muitos anos de amizade.

MOLUSCO
É. Muitos anos de amizade. Minha presença é o meu presente pra você, JP.

JP
Claro, Molusquete, claro. Não se preocupe com isso.

(Jacira se levanta e começa a preparar alguma medicação; todos observam em silêncio; a cena deve ser longa, ela prepara e injeta mais de um remédio; por um longo período de tempo a cena é essa: todos em silêncio e Jacira aplicando os remédios em JP)

(por fim, Jacira retorna para sua cadeira e os garotos se olham sem saber retornar o assunto)

JP
(quebra o silêncio) Drogas.

TODOS
Drogas.

(black-out)


CENA 2

(UM FLASHBACK. Sentados na beirada do palco, JP, Babi, Molusco e Karina bebem uma garrafa de vinho no gargalo; JP bola um baseado)

MOLUSCO
Aí a vagabunda falou que era pra eu me olhar no espelho antes de se quer me dirigir a palavra pra ela. Maior patricinha.

KARINA
“Vagabunda” que você diz é porque ela não quis dar pra você, bonito?

MOLUSCO
Ai, caramba. Desculpa. Foi modo de dizer...

KARINA
Modo de dizer o caralho.

MOLUSCO
Eu só quis xingar ela. Xingo ela como? Filha da puta pode?

BABI
Por que tem que envolver justo a mãe dela? Por que não pode ser o pai? Por que não pode ser “filho de um puto”?

KARINA
Precisa xingar a menina porque ela te deu um fora?

MOLUSCO
Não, eu quero xingar ela porque ela foi prepotente de dizer que eu jamais faria o tipo dela porque, no caso, ela é de um nível superior ao meu, entendeu? Por isso.

JP
Ué, xinga ela de prepotente, então.

BABI
Sim!

KARINA
Mais simples impossível.

(silêncio)

MOLUSCO
Eu tô me policiando, gente, vocês sabem que eu não tive a intenção... tenham paciência comigo...

KARINA
Eu sou mais do que paciente, Molusquete. Mas não vou passar a mão na sua cabeça só porque você é nosso amigo. Muito pelo contrário.

MOLUSCO
Tá bom, tá bom.

BABI
Não, não tá bom. Se tivesse bom ela não tava falando.

MOLUSCO
Tá, tá...

KARINA
Não tá, Molusco. Não tá, cara! Para de se desculpar como se a gente que tivesse te entendido mal e pede desculpas pelo erro. Simples.

(silêncio)

JP
Cara, aceita.

MOLUSCO
Desculpa por eu ainda propagar o machismo.

KARINA
Isso que dá raiva. Precisou o JP falar pra você aceitar...

MOLUSCO
Ai, meu deus do céu... Eu já pedi desculpas...

KARINA
Mas só depois que o brother falou!

MOLUSCO
O que vocês querem que eu fale mais? Eu sou um machista, babaca, idiota, mereço ser crucificado em praça pública.

BABI
Você não consegue entender o que a gente quer dizer, Mô. Isso que irrita.

KARINA
E essa ironia de contrariado mais ainda. Dá nos nervos...

MOLUSCO
Eu tô tentando, tá bom?

KARINA
Não tá bom, se tivesse bom a gente não tava falando.

MOLUSCO
Tá! Parei! Vou calar minha boca.

KARINA
Isso.

JP
Isso. Pode acender?

BABI
Por favor.

(silêncio; eles fumam)

BABI
Eu tava com saudades.

(silêncio)

MOLUSCO
(depois da sua vez na roda) Precisa mesmo dessa dose de moralismo toda vez? Fica soando tão político brega, essa porra.

TODOS
Cala a boca, Molusco!

JP
Eu amo brega.

(a iluminação e uma música demonstra que os quatro estão ficando chapados)

TODOS
(cantam zen) Porque eu amei você
E você me amou, ôôô
Por que? Por que, Senhor?

Porque eu fumei você
Você me fumou, ôôô
Por que? Por que, doutor?

(eles gargalham; JP se empolga e se declara aos amigos em um show com microfone)

JP
Se eu me apaixonei assim
Bem aqui dentro de mim
Eu juro, proteção

É amor não é paixão
Substitutos de um irmão
Ficarei até o fim

Se algo acontecer
Jurei, aqui estarei
Podem sempre me ligar
Qualquer hora ou lugar
Que eu vou proteger vocês

Se algo acontecer
Protegerei vocês

(Babi está chorando emocionada; os três aplaudem e JP agradece)

JP
Eu fumo e fico todo viado.

MOLUSCO
Eu amo você também, seu puto!

KARINA
Ai, é muito ridículo esse negócio de amigos para sempre, mas estamos bêbados então que se foda! Eu não sei o que eu faria sem vocês, vocês três são os amores da minha vida, mesmo quando a gente briga.

BABI
A gente tem que prometer que nenhuma briga jamais vai fazer com que a gente deixe de gostar um do outro.

KARINA
Impossível prometer um negócio desse. Sentimento é sentimento.

MOLUSCO
É só prometer e pronto, porra. Larga a mão de ser corta barato, Karina.

JP
Amanhã a gente vai ter vergonha dessa merda.

BABI
Vamo fazer uma tatuagem. Nós quatro.

KARINA
Não viaja, Babizão. Muito brega.

MOLUSCO
Um pacto de sangue.

JP
Uma suruba.

(eles riem; se abraçam bêbados e chapados)

KARINA
A gente tá muito clichê. O clássico do bêbado.

MOLUSCO
(imita) “A gente tá muito clichê, nhê, nhê, nhê”.

BABI
Chega dessa melancolia! A gente vai logo ou não vai? Onze horas já.

KARINA
Acho o cúmulo chegar às onze.

MOLUSCO
Eu já tô muito louco.

BABI
Vocês não querem mais ir?

MOLUSCO
Lógico que vai. Eu não gastei vintão pra não ir.

KARINA
Vai ter só criança lá, quer apostar?

BABI
E daí? Vai ter “nóis”. Vamo rebolar a bunda um pouco, caralho!

MOLUSCO
Acho que a gente deve ir de casal.

BABI
Seu cu. Se rolar quero beijar alguém.

KARINA
Olha essa Babizão, gente!

MOLUSCO
Meu deus do céu. Estou inconformado.

BABI
O que que tem? Deixa eu!

MOLUSCO
Falei só pra nenhum babaca ficar enxendo o saco de vocês.

KARINA
Nossa, falou o feministo.

MOLUSCO
Ah, você sabe que eu tô tentando, que eu fui criado nessa...

KARINA
Eu sei, eu sei... eu tô só brincando com você, Molusquete lindo.

BABI
JP, você tá bem?

(JP está com uma cara meio ruim)

MOLUSCO
JP?

(JP corre e vomita fora de cena)

KARINA
Ah, não!

MOLUSCO
Mas já, porra?

BABI
Nossa, JP, nem bebeu tanto assim...

KARINA
Bebeu e depois fumou...

MOLUSCO
Não aguenta bebe leite, cumpadre...

(JP volta rindo meio sem graça)

BABI
Não vai dizer que não quer mais ir, né?

(JP vai falar que não e cai no chão em uma convulsão forte; ele começa a vomitar sangue)

BABI
JP! JP!

KARINA
Pelo amor de deus! O que é isso?

BABI
Liga pra uma ambulância, Molusco!

MOLUSCO
Puta que o pariu! (obedece)

BABI
JP! Aqui! Calma!

KARINA
Vira ele! Vira ele!

BABI
O que?

KARINA
Ajuda aqui! Vira ele pra ele não afogar! Liga, Molusco!

MOLUSCO
Tô ligando, tô ligando!

BABI
Fica aqui, JP! Calma, meu amor, calma...

KARINA
Que caralho!

(black-out)


CENA 3

(a cena retorna para o quarto)

JP
Lembra? Babizão jogou na cara da professora que “mim” não conjuga verbo.

KARINA
Deu dó. Eu fiquei com dó. A Tânia não era a das mais chatas.

BABI
Mas tentou me humilhar.

KARINA
Aí você humilhou ela na frente da sala inteira.

BABI
Eu fiz o rebate. A gente era criança e “mim” não conjuga verbo, oras.

MOLUSCO
Em meio ao drama, cenas sempre com liçãozinhas.

(silêncio)

JP
Pois estamos descobrindo que no fim das contas a vida ela é exatamente assim, não é não, Molusquete? Olha essa minha cruz e esse meu drama. Se no final não tiver uma mensagem, puta que o pariu, eu vou ficar muito puto.

(silêncio)

KARINA
Cêis já pensaram que até mesmo o termo “puta que o pariu” é um termo de cunho machista. Vejam bem. É sempre a puta da mãe que é apontada, que tacam a pedra. Até mesmo quando a gente vai xingar o pai de alguém a gente coloca a culpa na mãe.

MOLUSCO
Peraí. Como assim?

KARINA
“Aquele corno do seu pai!”. Além de tudo mais uma vez foi a puta que pariu quem você quer ofender que traiu o marido ainda pra ele ser chamado de corno.

MOLUSCO
Meu, acho que você já tá entrando numa paranóia forte, Ka. Isso aí é modo de falar, faz parte da cultura.

JP
De uma cultura machista, Molusquete.

KARINA
Lógico que a louca aqui sou eu que tô entrando numa paranóia. É muito óbvio e até irônico você me dizer isso.

MOLUSCO
Tá bom, tá bom...

BABI
Se tivesse bom não tava falando...

MOLUSCO
Ai, meu santo! Desculpa! Teatro com mensagem descarada é um porre! Vou mijar. (sai um pouco bravo)

BABI
O macho nunca percebe. O macho nunca consegue entender completamente.

JP
Nem todos.

KARINA
Não, por favor, JP. Você não. Não vem com essa de “nem todos”. Você não.

JP
(pensa um pouco) Desculpa.

BABI
Lindo.

KARINA
Tão mais fácil pedir desculpas do que ficar dando desculpinha de “nhaai, foi um mal entendido”. Não é, não?

JP
Sem dúvida.

BABI
É porque você é gay que você entende.

JP
Acredite, tem muito gay mil vezes mais machista que o Molusco. O Molusco é uma moça perto de alguns gays que eu que excluí do Face.

(Molusco retorna)

MOLUSCO
Eu sou uma moça por que?

JP
Tava falando que não é por eu ser gay que eu entendo a reclamação da mulherada melhor do que você.

KARINA
Se ofende ser chamado de moça?

MOLUSCO
Não, Karina, não. Eu entendo a reclamação, gente, poxa. Eu só estou viciado nos termos.

BABI
A gente fala exatamente pra você desviciar.

MOLUSCO
Tá bom. Não, não tá bom, porque se tivesse bom vocês não tavam falando. Desculpa.

KARINA
Tá desculpado.

MOLUSCO
E então, a gente vai continuar brincando de novela das nove?

JP
Não. Podemos ir direto ao assunto.

MOLUSCO
Tô enxergando mais novela aí nesse jeito de falar...

JP
Jacira, eu precisava de alguns minutos à sós com meus amigos. Quero conversar com eles coisas que eu queria que você não ouvisse.

JACIRA
Sua mãe me deu ordens pra que...

JP
Eu sei o que minha mãe te mandou fazer, Jacira, mas pelo amor de deus! (pausa) Você sabe o que o médico me disse, Jacira. Você entendeu também, não entendeu? Tem como você me dar um pouco de privacidade, por favor... Por favor.

(silêncio)

BABI
O que o médico te disse, JP?

JP
Jacira...

(lentamente Jacira rasga outra página do livro, em uma cena não realista e misteriosa)

JP
De-va-gar...

MOLUSCO
(baixo) Isso sim é coisa de teatro de doido.

JACIRA
Terminei esse. Vou te dar o tempo de eu ir buscar outro lá embaixo. Posso pegar qualquer um?

JP
Fique à vontade. Só não rasgue a minha coleção do Harry Potter, por favor. Não até eu... enfim. Harry Potter ainda não.

JACIRA
Não gosto de ficção.

(Jacira sai)

BABI
O que está acontecendo, JP?

JP
Eu vou ser direto.

MOLUSCO
Seja. Sem mais linguiça, pelo amor de deus.

JP
Me ajudem a me levantar.

(eles ajudam; JP está bastante fraco)

JP
Não quero que vocês se desesperem com a minha breguice expontânea e desesperada. Não achei melhor jeito de falar.

(vagarosamente JP se dirige até o microfone em um foco fechado)

JP
Vocês estavam certos.

BABI
Certos em quê?

JP
(canta) Anti depressivos pro menino aqui não se cortar
Provavelmente ele vai morrer
Antes dos vinte e sete
Anti masculino nosso amigo que cogita se matar
Novamente ele pediu, ele quer morrer
As pílulas, só pagam o frete

Eutanásia é proibido
Mas maconha também era, e nóis era grande amigo
Ele não tem vergonha de dizer sobre o seu medo
Me apontou o dedo, “eu tenho medo da dor”
Compreensível, sim senhor!

Eutanásia é proibido
Quero um banho e um banquete
Só uma dose, meus amigos
Vem num comprimido
E só paga o frete

A dor que ele sente
Impedir que chegue
Que piore, que aumente
É tudo o que ele pede
É só o que ele espera
Poder contar contigo
Segredo de amigo

Eutanásia é proibido
O universo na minha casca
Está todo corrompido
Destruído, consumido
Vem num comprimido
E só paga o frete

(silêncio; Molusco é o único que aplaude; Babi está chorando)

KARINA
Não, não, não, não! Eu não acredito que você tá tendo a coragem de colocar esse cargo nas minhas costas, João Pedro! Seu... seu filho da puta!

JP
Filho da puta é um termo machista.

KARINA
Não! Eu não quero ouvir mais nada!

BABI
(chorando) Não, JP, não... por quê...?

JP
Não tem mais jeito, Babizão.

MOLUSCO
Eu não entendi. O que tá acontecendo, gente?

KARINA
Ele tá pedindo... ele tá pedindo pra que a gente... (silêncio)

BABI
Ele quer que a gente vá buscar aquele remedinho no Paraguai.

MOLUSCO
O que? Você tá louco, JP?

JP
Nunca estive em melhor decisão. Vai acontecer de uma forma ou de outra.

MOLUSCO
Você não sabe disso.

JP
Sei sim. Tá todo mundo sabendo já.

BABI
Mas e a quimioterapia?

JP
(faz sinal de negativo)

KARINA
Você tá colocando esse peso nas minhas costas. Eu não te perdôo por isso, JP.

JP
Acredite, a minha cruz também dói, Ka.

(silêncio)

BABI
O médico chegou a dar data?

JP
Pode acontecer a qualquer momento. Mas é certo que eu vou começar a definhar aos poucos. E aí vai começar que eu não vou mais conseguir tomar banho sozinho e nem limpar a minha bunda...

KARINA
Eles vão descobrir, JP.

JP
Eu deixo uma carta. Digo que consegui comprar pela internet. Eu só preciso que vocês busquem.

KARINA
(desesperada) Não, não, não!

BABI
(soluça chorando)

(silêncio)

JP
É só vocês que eu tenho pra contar pra fazer isso.

MOLUSCO
Eu odeio drama. Eu odeio esse drama. Vamo começar de novo. Vamo começar uma comédia? Um musical? Pelo amor de deus! Isso é uma merda... é uma grande de uma merda...

(Jacira retorna com o livro O Universo Numa Casca de Noz de Stephen Hawking)

JP
Vai rasgar minha coleção científica inteira, Jacira?

JACIRA
Você vai precisar deles ainda?

JP
Não. Fique à vontade pra levar o que achar interessante.

JACIRA
Agradeço. Tá na hora dos outros remédios. Deite.

(JP deita; vagarosamente a cena da aplicação dos remédios deixa espaço para mostrar os amigos sofrendo e refletindo sobre o pedido de JP; todos ficam em completo silêncio; Jacira cantarola alguma canção melancólica e triste durante a cena)

(black-out)


CENA 4

(JP está dormindo; ele está sozinho)

JP
No fim... há uma viagem interestelar. Meio que química, meio que biológica, meio que elétrica, meio que espiritual. Não posso garantir, não posso garantir, não posso garantir! Meio que química, meio que biológica, meio que elétrica, meio que espiritual. Não há garantias ou segurança. Mas prazo de validade eles me deram. Um ano, um ano e meio, no máximo. Com sorte dois anos. Com milagre três. Mas em sofrimento. À base de morfina, garantido. A escolha do descanso não é síndrome de uma depressão, ou uma falta de senso, ou uma loucura. Creio ser com bastante sanidade esse meu pensamento enquanto narro dormindo, dormindo, desse buraco negro de onde lhes falo agora. Bastante sanidade porque o medo da dor é mais do que lógico e compreensível. Meu universo onde existe nós está com raízes enfincadas que não serão curadas com a medicina que temos hoje. Essa casca onde existe você e eu, onde eu vejo você e eu, que eu sinto você e eu, ela está apodrecendo. E é o acaso. Poderia ser comigo, poderia ser com você. Não é um castigo, não tem uma mensagem, não tem lição de moral. Não é uma novela, é uma peça teatral, um drama musical! Existencial! E totalmente ordinário e por acaso...

(Jacira entra dançando loucamente pelo espaço, em saltos e performances não rítmicas; Molusco, Babi e Karina cantam em focos separados)

TODOS
Eutanásia é proibido
Mas maconha também era, e nóis era grande amigo
Ele não tem vergonha de dizer sobre o seu medo
Me apontou o dedo, “eu tenho medo da dor”
Compreensível, sim senhor!

Nós vamos para o Paraguai
Jesus na frente com a gente também vai
Vai pagar o frete, mil e setenta e sete reais

Três comprimidos
É garantido
E o espírito
Do nosso amigo
Da casca velha se vai

O universo da casca dele não vai existir mais
E o que é certo a caixa dele não lembrará de nós
Nem da sua mãe, nem do seu pai

Nós vamos para o Paraguai
Jesus na frente com a gente também vai
Vai pagar o frete, mil e setenta e sete reais

(um avião retira Babi, Molusco e Karina de cena; Jacira volta a sentar e ler seu livro; Miriam entra em cena)

MIRIAM
Ele tá falando dormindo ainda, Jacira?

JACIRA
Não, senhora. Eu não reparei.

MIRIAM
Que bom. Significa que ele tá conseguindo descansar. Pelo menos...

(Miriam senta na beirada da cama e acaricia o cabelo de JP; ele reclama ainda dormindo e se vira pro outro lado; a mãe derruba uma lágrima cansada)

MIRIAM
Você tem religião, Jacira?

JACIRA
Tenho não, senhora.

MIRIAM
Hum.

JACIRA
Procurando também, pra falar a verdade. Eu gosto daquele que você frequenta.

MIRIAM
Se você quiser visitar a minha igreja, eu te levo qualquer dia. É de terça e quinta as sessões. Você ia gostar. Não é igreja...

JACIRA
Eu sei... Mas obrigada, dona Miriam. Eu meio que prefiro procurar do meu jeito. (sacode o livro). Obrigada pelo convite mesmo assim. Gosto do espiritismo, respeito, mas não sou de frequentar esses lugares não.

(silêncio; Miriam fica curiosa com a resposta de Jacira, um tanto ofendida, mas disfarça)

MIRIAM
Você podia dar uma licencinha um minutinho, Jacira? Quero ficar a sós um pouco com meu filho.

JACIRA
Claro, senhora. Com licença. (ela sai)

(Miriam chora em silêncio por algum tempo; ela está conversando com deus em pensamento, pedindo ajuda, conforto, um milagre)

JP
Ele já te respondeu?

(silêncio)

MIRIAM
Você tá acordado ou tá dormindo, João?

(JP se vira pra mãe)

MIRIAM
Oi, filho.

JP
Oi.

MIRIAM
Você tá dormindo bem, né? A Jacira disse que você não tá mais falando dormindo.

JP
Não sei.

MIRIAM
Isso é bom.

JP
O Dormonid ajuda.

MIRIAM
Com certeza. (pausa) E a cabeça?

JP
Não tá doendo não.

MIRIAM
Tô falando da cachola... (aponta indicando a mente)

JP
Tô bem, mãe. Tá falando da cabeça coração?

MIRIAM
É, é.

JP
Tô bem, tô bem.

MIRIAM
Que bom.

JP
A Sertralina ajuda.

MIRIAM
É. Com certeza ajuda.

(silêncio)

MIRIAM
João, eu tô conversando com o doutor Pedro.

JP
(se incomoda) Mãe, pelo amor de deus...

MIRIAM
Que deus? Você nem acredita em deus, João Pedro.

JP
A gente já falou disso. Você vai gastar dinheiro com uma coisa que não tem garantia nenhuma...

MIRIAM
João, passou até no Fantástico falando da Fosfo-sei-lá-o-quê...

JP
Mãe, por favor...

MIRIAM
Eles não querem liberar! Eles ganham dinheiro com gente doente, João.

JP
Eu sei disso, mãe! Eu sei que tem um monte de sujeira, tem um monte de dinheiro envolvido. Mas eu não aguento mais essas tentativas, mãe...

MIRIAM
O que custa tentar o que der pra tentar, JP?

JP
Eu não tenho mais jeito, mãe.

MIRIAM
(se irrita) Tem que ter um jeito! Não pode desistir!

JP
Eu tô cansadão... de procurar, de fazer o tratamento pra ficar adiando o inevitável...

(silêncio)

MIRIAM
A pílula azul pode ser um caminho, João...

JP
Você vai gastar uma grana que a gente não tem pra uma coisa que a gente não tem certeza se vai funcionar.

MIRIAM
E daí? É uma chance! Tem um monte de história de gente que se curou na internet.

JP
Tem história de gente que se curou até com beterraba, mãe. Você ouviu o que a doutora falou. Cada corpo é um corpo. Uma pessoa conta uma história, pronto. (silêncio) A gente tem que aceitar a morte, mãe...

MIRIAM
(se levanta irritada) Não me custa nada tentar salvar você, João! Se você já desistiu, eu ainda não desisti!

JP
A minha casca quer descansar, mãe. Eu quero ir embora... eu quero. Eu cansei...

(silêncio; Miriam chora muito e senta novamente)

MIRIAM
Eu não quero que você vá.

JP
E se for o que deus quer?

MIRIAM
Você não acredita em deus.

JP
Mas você acredita. E se a missão é essa? Se a minha missão está no fim, e sua missão é carregar essa cruz? Aí você aceita?

(silêncio; Miriam se recupera irritada e decidida)

MIRIAM
Só vamos saber quando ele te levar. Até lá, eu não vou desistir de você. Eu vou falar com o advogado e a gente vai tentar a Fosfo-sei-lá-o-quê.

JP
Mãe...

MIRIAM
(chama) Jacira! (Jacira entra)

JP
Mãe, me escuta...

MIRIAM
Tá na hora do remédio dele, não tá?

JACIRA
Tá.

MIRIAM
Pode dar, então.

JP
Mãe...

MIRIAM
Eu não quero mais saber, João. Tome o remédio e fique quieto.

(Miriam sai nervosa; Jacira faz uma cena de preparação e aplicação da medicação bastante demorada)

JP
(para a plateia) "Eu poderia viver recluso numa casca de noz e me considerar rei do espaço infinito...". William Shakespeare, "Hamlet", ato 2, cena 2.

(Jacira aplica uma grande quantidade de medicamentos; a luz vai caindo em resistência enquanto ela fala)

JP
Eu estou cansado, Jacira...

JACIRA
Devagar, querido, tenha paciência. Mãe é mãe. Ela não vai desistir de você. Deixe ela não desistir, João.

(silêncio)

JP
Cante uma música, Jacira...

JACIRA
Eu não sei cantar, meu amor. Eu acho meio brega teatro musical.

JP
Então me fale alguma coisa, me conte alguma história pra eu tentar dormir de novo... por favor... eu quero dormir. Eu só quero... dormir.

JACIRA
(mecanicamente) "O matemático, astrofísico e doutor em Cosmologia pela Universidade de Cambridge, o inglês Stephen Hawking, expõe várias de suas ideias acerca do cosmos e sua história em meio à apresentação das ideias encerradas em diversos segmentos da física teórica; ideias que abrangem desde as cientificamente estabelecidas até aquelas que encontram-se atualmente nas fronteiras do conhecimento humano, lutando por um lugar à luz da ciência. Hawking procura esclarecer ao público leigo os conceitos e as variantes encontrados no universo da Física e da Matemática, complementando seus argumentos com imagens coerentes e práticas, num livro ilustrado que poderia muito bem ser confundido com um livro de artes. O “Noz” é com Z, e não com S. É aquela frutinha, de casca, que parece um cérebro, não é “nós” de “a gente, eu e você”. O espectador é apresentado a gênios responsáveis pelos muitos avanços da Física bem como a seus trabalhos, dando-se grande destaque à física teórica e moderna. Albert Einstein, Richard Feynman, James Maxwell, Max Planck, Roger Penrose, Isaac Newton, Edwin Hubble, Grassman, Carl Sagan e outros são alguns dos estudiosos que merecem um breve sublinhamento. As ideias e contribuições teóricas ou experimentais dessas e de outras personas de renome da ciência, a citarem-se por exemplo a experiência de Michelson-Morley, o paradoxo dos gêmeos, a constante cosmológica, os buracos negros, a teoria quântica, a singularidades, o princípio da incerteza, o conceito de tempo, a teoria de Yang-Mills, a álgebra de Grassmann, as teorias das cordas, das "p-branas", da supergravidade com 11 dimensões, a teoria do tempo imaginário, a holografia, considerações acerca da entropia e muito mais. Em suma, o livro “O Universo Numa Casca de Noz”, nada tem a ver com essa melancolia aqui apresentada, ele proporciona ao leitor um contato com o universo das conjecturas da física moderna, abordado de uma maneira em que um leigo consiga extrair um pouco das principais ideias por outros há muito ou recentemente propostas, bem como as estudadas atualmente pelo próprio Hawking. Tais ingredientes juntos fazem do best-seller de Hawking a noz – a frutinha, não eu e você – onde encontra-se um colossal universo, literalmente um "universo numa casca de noz"; capaz de existir em poucas páginas que narram, ao fim, uma breve história dos tempos - imaginário e real.”

(JP já está dormindo; Jacira aplica a última medicação e retorna pra sua cadeira; rasga uma página do livro e guarda em seu jaleco, sempre exageradamente dramática e misteriosa)

JP
(dormindo) O universo na minha casca de nós é com S. Porque eu estou falando de eu e você. Serviu como base científica só, pra provar que deus é um buraco negro. Sobre nós. Sobre eu e você, eu e você, eu e você... Sobre nós... e um buraco negro misterioso. About us. About us. And a blackhole. “O God, I could be bounded in a nutshell and count myself a king of infinite space, were it not that I have bad dreams, bad dreams, bad dreams, bad dreams...” Shakespeare son of a bitch. (canta esse último comentário) Your fucking ass is a big blackhole! Blackhole, blackhole! Your fucking God is a big blackhole!

JACIRA
(silêncio; ela fala diretamente para JP com certa violência) Você acha que tá ruim pra você? Você acha que tá ruim pra você, bonitão? (chacoalha o livro) O cara fez tudo isso numa cadeira de rodas, falando através de um programa de computador sem conseguir se mexer, sem conseguir amar a própria esposa, vivendo estático, parado, também sentindo dor, só com os olhos e o cérebro em movimento. Sem nenhuma perspectiva o cara tirou água de pedra, moleque. Pare de sofrer, de se fazer de vítima do seu calo, seu... seu... bundão! Aceita a porra da vida! Aceita a porra da vida e pare de se fazer de vítima! Qual é a pior das hipóteses? O descanso eterno. E fim! Paciência! Então chega desse drama musical que está todo mundo cansado de artista falando da dor que sente. Chega, JP! Chega!

JP
(abre os olhos)

JACIRA
Achei que estivesse falando dormindo.

JP
Eu não falo dormindo.

JACIRA
Eu vou comprar outro livro pra você, eu te prometo isso. Se quiser pode pedir pra sua mãe tirar o valor do livro do meu salário.

JP
Pode pegar pra você. Isso não vai importar mais.

(silêncio; Jacira fica meio envergonhada)

JP
Eu tenho medo... o meu calo é o meu calo. O meu universo aqui dentro é meu, só eu sei...

JACIRA
Me desculpe...


(JP se vira pra dormir novamente; Jacira fica um tempo pensativa, arrependida de ter falado tudo aquilo; black-out)


CENA 5

(um foco destaca os três amigos e a cama onde JP dorme; Jacira não está em cena)

BABI, KARINA E MOLUSCO
(cantam) Morfina, Dipirona, Amoxilina
Sertralina, Rivotril, Clonazepan
Puta que o pariu
Metadona é uma delícia
Herói ou heroína que vicia
Na roda uma mão
Uma droguinha não ilícita
Mas maconha pode não!

No Paraguai, você encontra a morte em comprimido
Com três diz que você já vai
No Paraguai, se cê der sorte você salva o seu amigo
Pondo ele pra dormir
E logo um corpo que cai

Dormindo
Se vai
Saindo
Da casca
Pra não voltar nunca mais

JP
Adeus, porque ele implorou
Não deu pra salvá-lo com amor
Ninguém merece sentir dor
Cansei também do musical
Dormir vai ser um bom final

(JP se senta entusiasmado na cama; os três amigos não estão felizes do retorno)

JP
Me dá logo isso.

(silêncio)

JP
O que vocês estão esperando? Me dá logo, gente.

BABI
JP...

JP
Não adianta tentar, Babi. Eu já pensei um monte sobre isso. Eu já tomei a minha decisão. (silêncio; ele grita) Eu estou com dor! Me dá logo essa porra!

MOLUSCO
Eu queria que você quisesse ficar mais tempo com a gente.

(silêncio)

JP
Me dá logo, Molusco. Por favor, vai. Parem de me deixar nessa angústia. Me tira esse peso.

MOLUSCO
Dá logo pra ele, Ka.

(Karina entrega os comprimidos para JP)

KARINA
Eu nunca vou perdoar o seu egoísmo, JP. Nunca. Mesmo te amando.  

JP
Quando eu dormir, eu não vou mais me importar com isso mesmo. Me dêem água. Vou precisar mais do que dois mls agora.

MOLUSCO
Vou buscar.

(Babi começa a chorar; Molusco sai pegar a água)

JP
É incrível vocês falando de egoísmo. Egoístas são vocês que querem que eu fique vivo mesmo sofrendo só pra fazer companhia pra vocês.

BABI
Não, é porque a gente ama você. Vai doer ficar sem você aqui.

JP
Daqui a pouco isso não vai mais importar. Vocês logo superam e estão rindo novamente. Daqui a pouco nada mais vai importar pra mim e é desse sentimento que eu preciso agora.

BABI
Pra você pode deixar de importar. Mas é a gente que vai ter que ficar e aguentar, né?

JP
Nossa, coitadinhos, né? Eles são os que vão viver, os que tem saúde, que podem sair, viajar, estudar, ir pra balada e estão reclamando da dorzinha que vão sentir com a morte de um terceiro. Só pode tá me zoando. Segue a vida, caralho! Eu sou só mais um. Vocês têm vocês três ainda...

KARINA
Ingrato! Egoísta sim! (Karina chora também)

JP
Pelo amor de deus, gente. Eu achei que vocês já tinham superado. Que a gente tinha conversado. Eu estou sofrendo, porra!

KARINA
Mas a gente não superou. A gente não superou saber que... não vai mais ter você...

JP
Não vai mais ter eu deitado nessa cama recebendo visitinhas musicais e é isso?

KARINA
Você não entende.

JP
Vocês que não entendem. Meu universo morreu faz tempo, meninas. (pausa) Por favor, não façam isso comigo. Vocês esperavam o quê depois de ir buscar os comprimidos no Paraguai?

KARINA
Eu não sei...

BABI
Eu esperava que você pudesse desistir quando tivésse em mãos...

KARINA
Eu esperava que você fosse esperar uma urgência, quando fosse realmente necessário...

JP
Mas eu tô na minha urgência! Eu não aguento mais esse drama! Eu estou cansado! Isso está parecendo uma novela! Vamos dar um fim logo pra isso.

(Molusco retorna com o copo de água)

MOLUSCO
Tem uma história de uma mulher que tinha uma doença incurável e ela também tinha um prazo de validade, igual você.

JP
Nem adianta, Molusco, me dá logo a água.

MOLUSCO
Me ouve.

JP
Você pode provar a existência do inferno que não vai fazer eu mudar de ideia.

MOLUSCO
Me ouve, caralho! Me ouve pelo menos.

(silêncio)

JP
Fala então, Moisés. Me conte a sua historinha que você ensaiou pra me contar.

MOLUSCO
No país dessa mulher também era proibido a eutanásia, mas ela entrou na justiça e conseguiu com que autorizassem que ela decidisse quando quisesse morrer, porque ela iria chegar num momento de muita dor, de muito sofrimento, já que seu problema era grave, incurável e progressivo.

JP
Certo.

MOLUSCO
Por fim, depois de muita luta, o governo autorizou. Ela foi autorizada a escolher quando queria morrer. Deram o poder de escolha pra ela depois que perceberam que ela ia sofrer e que ela ia morrer provavelmente em grande sofrimento.

(silêncio)

JP
Tá bom, e aí o que aconteceu?

MOLUSCO
Quando ela teve a decisão e o poder de escolha nas mãos, o prazo de validade que deram pra ela simplesmente expirou. Ex-pi-rou.

(silêncio)

JP
Como assim?

MOLUSCO
Tinham dado meses de vida pra ela, com sorte um ano, por milagre um ano e alguns meses. (silêncio; Molusco conclui a história) Jane, era o nome dela e ela viveu dezessete anos depois que conseguiu a autorização do governo. Dessete anos. Tudo isso porque ela teve o poder de escolha de morrer quando ela percebesse que já não teria mais chance. Depois que ela conseguiu o direito de escolher pela sua vida, seu estado de saúde melhorou. Por milagre de deus? Eu não acredito em deus, você sabe disso. Por qual motivo? Eu também não sei. Há quem diga que todo o universo caberia numa casca de noz, porque há um mistério, e isso a gente não pode negar.

(silêncio)

JP
Historinha pra boi dormir.

(Molusco tira umas folhas impressas da internet de uma mochila; JP lê um pouco curioso, um pouco duvidoso)

JP
(descrente) Ah, você achou na internet. Entendi. Tem uma história de uma mina que se curou só comendo beterraba também... bem milagre de deus mesmo. Você precisava ver também...

MOLUSCO
Acredite ou não, mas tá aí as fotos dela e as fontes. Eu achei que essa história tem uma mensagem interessante. Que pudesse fazer você pensar...

JP
Eu pedi pra que não tivesse uma mensagem no final. Isso é coisa de teatro do século passado.

MOLUSCO
(cansado) Tá aqui seu copo de água e seus comprimidos. A gente trouxe quatro em garantia. Nós fizemos o que você pediu, João.

(Babi sai chorando correndo)

JP
Esse drama todo é tão irritante.

MOLUSCO
Eu também acho. Eu preferiria ter ido no cinema.

(silêncio; JP olha para os comprimidos e para a água; Karina, mesmo com raiva vai ao lado dele, senta-se na beirada da cama e acaricia as pernas dele devagar, demonstrando apoio)

JP
Obrigado, Ka. E desculpa a minha fraqueza.

KARINA
Tudo bem. Faça o que você quiser fazer.

(silêncio; longo silêncio; a música de suspense prepara a cena para que JP tome os comprimidos; todos estão apreensivos, inclusive JP; ele interrompe o suspense um pouco antes)

JP
Será que a Babi foi embora?

(Miriam entra em cena; os três se assustam e disfarçam mal; JP esconde os comprimidos no travesseiro)

MIRIAM
O que aconteceu que a Bárbara saiu correndo chorando? O que tá acontecendo? Vocês não trouxeram álcool pra ele de novo, né, Karina? Ele não pode beber, gente, o remédio que ele toma pode dar um problemão se misturar...

KARINA
Não, dona Miriam, eu não trouxe álcool não.

MIRIAM
O que foi então que vocês estão tudo com essa cara de velório?

JP
Eu tenho um câncer.

MIRIAM
Palhaço.

JP
Não é nada, mãe. A gente só tá discutindo.

MIRIAM
Aí você brigou justo com a Bárbara.

JP
Minha mãe gosta mais da Bárbara do que de vocês dois. Bárbara tem mais juízo, ela acha.

KARINA
Você tem razão, dona Miriam.

MIRIAM
Não é nada disso. Vá cagar, João Pedro! Não precisa ficar fazendo isso na frente dos outros, tá bom? Melhor vocês irem embora também agora, ele vai tomar banho e a Jacira não veio hoje. Vai, amanhã vocês voltam. Conversem pelo Whatsapp...

MOLUSCO
Mas é que a gente ia...

KARINA
A gente ia ver um filme!

JP
Mãe...

MIRIAM
Hoje não. Por favor. Vão logo. Eu tô cansada, não vai dar pra cozinha pra todo mundo...

KARINA
Não precisa de nada não, dona Miriam.

MIRIAM
(se irrita) Eu tô pedindo por favor! Vão embora. Eu vou preparar o banho dele. Vão logo.

(silêncio; Molusco e Karina olham para JP sabendo que essa pode ser a última vez que se vêem)

MOLUSCO
Amanhã a gente cola aqui, JP.

JP
Beleza.

(mais silêncio; eles estão todos com medo)

KARINA
Tchau, JP.

JP
Tchau, gente.

(eles vão saindo de cena)

MIRIAM
Tá na hora de tomar seu remédio, João.

(Karina retorna correndo e abraça JP aos prantos)

KARINA
Não, não, não...

JP
(disfarçando) Karina, por favor...

(Molusco também volta; Miriam estranha a reação de Karina)

MOLUSCO
Vamo, Ka. Vamo embora.  

MIRIAM
O que diabos está acontecendo aqui, hein?

MOLUSCO
Nada não, dona Miriam. É saudade da viagem. A gente ficou muito tempo sem ver ele. Vamo, Ka.

KARINA
Eu amo muito você, JP. Muito, muito, muito! Desculpa...

JP
Eu também te amo, Ka. (segura o choro) Não tem do que se desculpar. Vocês são os melhores e eu vou lembrar pra sempre até quando essa cachola funcionar.

(Karina se mantém abraçada à JP ainda por um tempo em silêncio)

MIRIAM
Vai, gente, por favor...

JP
Mãe, larga a mão de ser insensível!

MIRIAM
Então me conta o que tá acontecendo que vocês estão todos esquisitos!

JP
Não tá acontecendo nada. O que acontece é que eu tenho um câncer e eu posso morrer a qualquer momento então cada despedida pode ser a última, é isso que está acontecendo.

MIRIAM
Ah, por favor, pelo amor de deus... O amigo de vocês vai viver muitos anos ainda, meninos, não se preocupem, tá bom? Eu acabei de receber o resultado da última tomo que ele fez por e-mail e o doutor se mostrou super positivo, disse que o tumor ainda tá grande, mas que surpreendentemente diminuiu um milímetro sem motivo nenhum aparente. Um milímetro pra um tumor é bastante coisa, viu? Vamo todo mundo ficar mais tranquilo e cada um ir pra sua casa, por favor? Chega desse drama, vai. Vai, Karina! Por favor...

MOLUSCO
Vamo, Ka.

(Karina se levanta e implora com o olhar para que JP não tome os comprimidos; JP ficou confuso depois da notícia do e-mail; eles se olham profundamente e com muitas pessoalidades, como se falassem várias coisas um pro outro)

KARINA
Tchau.

JP
Tchau.

MOLUSCO
Falou, mano.

JP
Falou.

(Molusco e Karina saem de cena)

MIRIAM
Meu deus, que drama insuportável. Nem eu que amo novela mexicana tô aguentando mais esse negócio. Vocês precisam melhorar na próxima tentativa de falar sobre suas crises um pro outro.

JP
O que você queria que fosse quando o assunto é um câncer no cérebro, mãe? Uma comédia romântica com músicas da Cyndi Lauper?

MIRIAM
Por que não? Dá pra ser mais criativo que esse chororô mexicano.

JP
Olha o preconceito artístico. Estética não pode ser discutida assim.

MIRIAM
Tá bom. Pra quê todo esse copo de água? Você sabe que você não pode beber tudo isso. Vai afogar...

JP
Deu sede. Só dessa vez. Eu vou devagarzinho.

MIRIAM
Sei. Só dessa vez.

JP
Pode ser a última vez mesmo.

MIRIAM
Cala a boca, João Pedro. Tá insuportável sua melancolia hoje.

JP
Eu sei.

(Miriam vai sair)

JP
Mãe!

MIRIAM
O que?

(silêncio)

JP
Eu amo você.

(Miriam estranha, mas retorna até o filho e dá um beijo em seu rosto)

MIRIAM
Você não tomou a Sertralina hoje, né?

JP
Acho... acho que esqueci.

MIRIAM
Eu sabia. Eu também te amo, filho.

(vai sair de novo)

JP
Mãe!

MIRIAM
O que é?

JP
É verdade o lance do e-mail?

MIRIAM
É sim. E veja só. Você nem estava recebendo a quimio, hein. Você não acredita em milagres, mas eu acredito, e eu não perdi as esperanças ainda, filhote. Há todo um mistério que a gente desconhece nesse universo dentro de nós, filho.

JP
Com Z ou S?

MIRIAM
Oi?

JP
Nada não.

MIRIAM
(senta-se ao lado de JP; vai iniciar um discurso) Filho, a vida...

JP
Sem mensagem final, mãe. Já chega. Teve muita coisa por hoje. Acho que todo mundo já entendeu.

MIRIAM
(ri) Tá bom. Sem mensagem final. Sem música também.

JP
Sem música, pelo amor de deus!

(os dois riem e se abraçam)

MIRIAM
A gente tá rídiculo hoje. Vou preparar seu banho. Tá com cheirinho de azedinho já. Vai tirando a roupa.

JP
Tá bom.

(Miriam sai; JP vagarosamente tira as roupas com dificuldade por causa da fraqueza; as luzes vão caindo em resistência enquanto ele fica completamente nu; ele tira os comprimidos de dentro do travesseiro e um foco o destaca na cena; por um longo tempo uma música ilustra a sua dúvida de tomar os comprimidos ou não; ele pega o copo de água e se prepara para tomar)

JP
(recita) Sem mensagem final
Sem lição de moral
Sem performance musical
O que a gente precisava hoje era contar uma historinha real

Que não é trágica e muito menos extraordinária
E não tem mágica, milagre ou sonhos imaginários
Não era pra ser didático e nem uma adaptação literária
Era pra ser só ordinário mesmo, sem o extra
Como a vida é
Como a vida é
Como a vida às vezes é
Às vezes festa
Às vezes cruz

Há um mistério
Que eu desconheço
Como deus e o começo
De histórias de alienígenas
À história de Jesus
De contos de fantasmas
Ou mesmo luz no céu

Luz que se perde no mistério da escuridão de um buraco negro
Suga todo esse universo do coração que é fraco pra dentro
Difícil de compreender porque o português se torna grego
E distorce até mesmo o tempo
O que é rápido fica lento
E a vida vira um simples sopro, um vento

Acho que eu me contento
Que depois do espanto
Do frio, do relento
Do frio, daqui de dentro
Eu canto
E agora eu acho que me contento

Há quem diga que tudo isso cabe dentro de nós
Nós/noz com S ou com Z
Noz frutinha, ou nós eu e você
Noz frutinha, ou nós eu e você
A gente só se reconhece porque a gente tem essa voz pra dizer
Noz frutinha, ou nós eu e você

Dormindo
Se vai
Saindo
Da casca
Pra não voltar nunca mais

A gente só se reconhece porque a gente tem essa voz pra dizer
Esse é meu universo na minha casca de nós/noz.
Noz frutinha, ou nós eu e você.

(JP fica em dúvida se toma os comprimidos ou não; black-out)


FIM



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