SEM TIRAR A CULPA DO
CARTÓRIO ou A TARTARUGA
PERSONAGENS
Nina
Zé
INTRODUÇÃO
(Nina entra correndo
desesperada)
NINA
Alguém? Tem alguém aí?
(silêncio) Por favor! Eu sou uma boa pessoa. Eu juro que eu tento ser. Deus não
faz acepção de pessoas, eu tô tentando. O bebê morreu mesmo, ele não resistiu.
Foi um murro na boca do estômago que me atordoou. Eu tive que dar o revide,
mesmo eu não acreditando em vingança. Pobre tartaruga. Eu sou selvagem como uma
águia quando necessário! Joguei lá de cima do sexto andar e acertei certinho o
ordinário. O lazarento tava tentando fugir ainda. Uma pessoa assassina merece
perdão? Eu acho que eu mereço sim, eu não sou uma pessoa ruim. Eu acho que não.
A gente aprende as cagadas na marra, no que tem que acontecer. Foi... foi...
foi porque... eu estava sentindo dor... eu senti que tinha acontecido alguma
coisa com o bebê...
(Nina dança e canta)
NINA
Sorriu
Um estrangeiro brasileiro
Preconceito desde o cheiro
Chama os outros de mulato
Quem quer de volta a senzala
No Brasil, grana não dá
Tapioca e vatapá
Isso memu que ouviu o senhor
Preconceito eu não aceito
Me dói um tanto aqui no peito
Mãe que ensinou
Que deus não faz
Acepção de coração
Brasil, pra mim
Sorriu, assim
(Zé entra desesperado)
ZÉ
Tem alguém aí? Alguém?
(silêncio) Eu sou uma pessoa boa, o que acontece é que a gente aprende as
cagadas da vida na marra. Não tem uma bula. O neném morreu mesmo, coitado. Eu
fico meio irritado em ser contrariado. Não é fácil pra ninguém. Não era
preconceito, é esse planeta que tá ficando cheio de frescura demais. Vocês não
acham? Muito exagero na militância, muito exagero na criatividade... Tartaruga
desnecessária! Tartaruga desnecessária! Veja bem, não quero tirar a minha culpa
do cartório, mas é que eu sou um ser humano contraditório. E também já fui um
bebê de chupar chupeta e ser fofinho pra ser tratado feito uma mula desse jeito
que foi. Vingança não é justiça. Eu não mereço um castigo idêntico, talvez até
ser castigado, mas não idêntico. Porque o cruel não são vocês, são? Ela era um
doce. A crueldade que vocês repudiam em minha pessoa seria de uma puta
hipocrisia se me tratassem na mesma proporção. Veja bem, não estou tirando
minha culpa do cartório, mas eu sou um ser humano contraditório.
NINA
Espertinho do caralho. Seria
duas tartarugas se uma não fosse o suficiente. Na hora da raiva, na hora do
desespero, tem gente que chega a levantar a porra de um carro...
OS DOIS
Sorriu
Estrangeiros brasileiros
Nesse universo inteiro
Diferentes, mas idênticos
No Brasil bunda que dá
De janeiro à Cuiabá
Terra do Michel Temor
Querem de volta a senzala
Brasil
Pra mim
Brasil
Facin
ZÉ
Não era preconceito
O mundo que está tentando ser perfeito demais
Era só uma piada
Diferença que a gente faz
Quem ri, não tem nada demais
No Brasil bunda que dá
Açaí e guaraná
Tem quem defenda o governador
Sorriu
Pra mim
Pediu
O fim
Frescura
É SIM!
CENA 1
NINA
Juazeiro.
ZÉ
São Luís.
NINA
Espírito Santo.
ZÉ
Piracicaba.
NINA
Maringá.
ZÉ
Pelotas.
NINA
Rio do rio de janeiro.
ZÉ
Choro com a terra da garoa.
Sampa!
NINA
Goiânia.
ZÉ
Campinas.
NINA
Cuba!
ZÉ
Nova York!
NINA
Paris!
ZÉ
Japão!
NINA
Fica maior! Fica tudo
maior! Põe no forno e o bolo cresce!
ZÉ
Ou menor. Depende do ponto
de vista. Tem bolo que perde o ponto.
OS DOIS
Mundo. Pla-ne-ta! (pausa;
eles gargalham) Porra. Mundo, cara. Cê consegue ficar ligado? Planetinha. Tipo
uma bolinha. Aí tem outra bolinha que gira em volta. E várias outras bolinhas.
Não é possível que vocês achem isso uma coisa super normal e lógico em qualquer
tentativa de explicação. Não adianta nem tentar. Comigo não funciona. Em
nenhuma explicação, da religiosa à científica. Qualquer explicação é super
absurda, não sei como é que a gente consegue dormir à noite.
NINA
Comigo não funciona essas
explicações baratas.
ZÉ
Nem comigo.
NINA
Azar. Vai fazer o quê? Dar
um tiro da cabeça porque essa porra não faz sentido nenhum?
ZÉ
Ou sorte. Depende do ponto
de vista. Um acaso ordinário, tão ordinário, mas tão ordinário, que chega a ser
extra ordinário!
(silêncio)
NINA
No começo, há o acaso. Mas
só no começo...
ZÉ
Há também quem diga que
seja alguma coisa a ver com destino.
NINA
Eu não sei em quê
acreditar, na real. Ambos são possíveis e ambos são impossíveis.
ZÉ
Eu também não sei. Tem
hora que eu fico muito confuso. Tipo quando você tá subindo uma escada e
esquece que acabou os degraus e pisa em falso no último. Sabe essa sensação
de... de... vazio... sei lá? Tem hora que eu penso em destino, tem hora que eu
penso no acaso mais ordinário e sem vergonha do universo. Meu deus, vamo parar?
NINA
Eu penso igualzinho você
nessa parte da vida. Igualzinho.
ZÉ
Sertralina.
NINA
Sertralina. Em hora.
(silêncio; ambos tomam o
remédio ao mesmo tempo e se cumprimentam com orgulho)
NINA
Melhor?
ZÉ
Melhor. Melhor?
NINA
Melhor.
ZÉ
Bom.
NINA
Vamos começar então?
ZÉ
Pelo destino ou pelo
acaso?
NINA
Pelo que der. Pelo que for
a verdade que a gente não sabe qual é.
ZÉ
Tá bom então.
(eles montam uma mesa de
jantar)
NINA
Bom, vamo lá. Ahn... Você
veio de onde?
ZÉ
Da Terra. Planeta Terra.
Estado de São Paulo. E você?
NINA
Também, cara, também. Que
surpreendente! Quais as chances, né? Nesse puta espaço... as chances são... as
chances são... mínimas! É incrível! Eu tô em choque, te juro.
ZÉ
Aí a gente como a gente é
da mesma espécie, fica mais fácil até. Que maravilha! A gente teve uma puta
sorte, essa é a grande verdade até então. Eu tô começando a ficar empolgado,
moça, cê me desculpe...
NINA
É Nina.
ZÉ
Nina. Desculpe. Zé.
NINA
Zé. Prazer, Zé.
ZÉ
O prazer é todo meu.
NINA
Mas eu não entendi o que
você quis dizer. Fica mais fácil de quê? Aquela hora que você falou.
ZÉ
Ah, de a gente meio que se
entender e tals. A gente pode trocar nossos fluídos orgiásticos e até mesmo
virar três. Mas tem todo uma parada de cultura e tal, há muito do que se fazer.
Se a gente for muito diferente dos pensamentos, por exemplo, aí complica...
nada que a gente não possa se adaptar, claro, mas há um processo.
NINA
(ri curiosa) Você é meio
que doido, não é não? Eu não entendi nadinha do que você tá querendo dizer com
isso.
ZÉ
Antes doido do que burro,
não é não?
NINA
Você tá me chamando de
burra?
ZÉ
Não, não, você me entendeu
errado... Eu quis dizer que nesse espaço microscópico dentro desse universo é
melhor ser doido do que burro. Eu não te chamei de burra.
NINA
É que ficou parecendo
só...
ZÉ
Não, não. Desculpa se
pareceu. Não foi isso que eu quis dizer, pelo amor de deus...
NINA
Tudo bem. Adoro gente que
pede desculpas. Acho digno.
ZÉ
Mais uma coisa em que
somos parecidos.
(silêncio; os dois anotam
em uma caderneta um X em mais uma questão em que se parecem)
NINA
Viu, você poderia me dar
uma licencinha poética?
ZÉ
E o que seria isso?
NINA
Um momento pra mim. Pra eu
mostrar meus dotes femininos de algum motivo de animal irracional, talvez pelo
sentimento de procriação natural – não que ele exista como regra, nada de regra
– mas que é necessário para que a essa história em específico continue. Um
momento inicial de sedução. Um canto de acasalamento poético e selvagem, que
não seria realmente necessário, mas que eu quero porque eu quero. Tipo o pombo,
por exemplo. Na hora da sedução ele enche o peito e faz uma voltinha assim.
Cada bicho tem seu jeito. Eu tenho o meu...
(Zé anota na caderneta
mais uma vez)
ZÉ
Que explicação
maravilhosa. Mas eu já estou na sua. Não precisa de nada não, relaxa...
NINA
Mas eu preciso. Eu preciso
mais do que isso. Não por você. Por mim mesma. Com licença, se não for
incomodar...
ZÉ
De forma alguma! Se é
assim que te faz feliz... mas saiba que eu já estou gamado...
NINA
Não pode ainda. Tá fora
das regras. Lembre do que você mesmo disse. Tem todo um lance cultural
envolvido. A gente não pode ser ter ejaculação precoce em tudo nessa vida...
ZÉ
Tá bom, tá bom. Vai lá.
(Nina vai até um
microfone)
NINA
Calma, deixa eu me
preparar. Eu tô com um pouco de vergonha...
ZÉ
Relaxa. Eu já tô na sua...
NINA
Tá bom...
(Nina respira fundo e
começa um canto suavemente romântica, com um leve toque de sensualidade)
NINA
Sempre querer mais
Pegar no colo, se sentir em paz
Tomar coragem
Nesse mundo
Eu consigo
Virar duas pessoas, com dois corações, sim
Eu te quero aqui dentro
Aqui em mim
Eu te quero aqui dentro
Porque eu amo
E esse amor
Te abre caminho
Aqui dentro, aqui dentro
Tão lindo como um bebê
(enquanto Nina canta, Zé
se apaixona cada vez mais por ela)
ZÉ
Sou a cegonha
Uma sementinha que sou eu quem faz
Tomar coragem
No espaço
Te preencho
Virar duas pessoas, com dois corações, sim
NINA
Eu te quero aqui dentro
Aqui em mim
Eu te quero aqui dentro
Porque eu amo
E esse amor
Te abre caminho
Aqui dentro, aqui dentro
OS DOIS
Tão lindo como um bebê
(eles se beijam demorado sob
um céu cheio de planetas e estrelas)
NINA
Os primeiros momentos de reconhecimento
são sempre tão bonitos.
ZÉ
Há um esforço, né? Tipo o
pavão mostrando suas plumas pra sua parceira se impressionar...
NINA
Exatamente. Há um esforço.
ZÉ
Até de segurar a vontade
de soltar um pum um da frente do outro.
(eles riem)
NINA
É verdade. É exatamente
isso. Depois essa bobeira passa.
ZÉ
É. Essa bobeira passa.
(eles engolem em seco e
depois Nina se interessa pelos planetas e as estrelas ao fundo)
ZÉ
(mudando de assunto
rápido) Suas plumas vocais são sensacionais!
NINA
Que lindo, você não acha?
ZÉ
Acho. (silêncio) Mesmo
quando eu não entendo a poesia da música, eu acho lindo também. O ritmo...
tudo...
NINA
Estou falando daquilo, Zé.
Olha lá.
ZÉ
Ah, sim! Somos nós. E
quando você canta, você é aquela estrelinha se reconhecendo como algo que
existe...
(silêncio; Nina anota na
caderneta mais uma vez)
NINA
Achei isso incrível, Zé. A
arte... mesmo a arte da sedução da vida real... Somos nós... O universo... Por um
acaso... se reconhecendo... (silêncio) Eu estou toda arrepiada, caralho! Que
coisa mais ordinária e ao mesmo tempo...
ZÉ
Extra ordinária!
(ambos anotam na
caderneta)
NINA
Você me parece um pavão
bonito. Gosto do jeito que você coloca suas plumas, gosto da sua poesia no
jeito de falar... Gostei.
ZÉ
Eu gostei de você
inteirinha. Dos pés à música. Da poesia à bunda. (silêncio constrangedor) Sem
tirar minha culpa do cartório. Perdão. Eu sou um animal de peito e pinto
enrijecido.
(Zé imita a dança de um
pombo com o peito estufado; Nina ri; eles fazem exatamente a dança do pombo
para com a pomba, imitando o animal ao som de uma música grandiosa; por fim, Zé
apresenta suas plumas volumosas meio que de carnaval e ambos sambam bem
brasileiro em uma escola de samba, como um mestre sala e porta bandeira)
CENA 2
(os dois correm e se
separam em dois focos um em cada canto)
NINA
Foi um romance!
ZÉ
Foi mais do que um
romance! Foi um sexo interestelar! Porque estávamos conectados, éramos dois em
um, fazendo um três de propósito.
NINA
De propósito! Planejado.
Um tanto precoce, mas a gente estava confundido no amor. Só podia ser romance!
Não tinha dúvidas de que era romance. Era um romance daqueles bem Titanic,
sabe? Cidade dos Anjos. A Culpa é das Estrelas. Romeu e Julieta. Sem tragédia,
até então.
ZÉ
Sem tirar a culpa do
cartório, mas é que somos seres contraditórios, e ser contrariado é uma coisa
que deixa o macho machucado. É que tem muita frescura rolando nesse mundo hoje
em dia, por isso que deu no que deu ...
NINA
Não apresse os bons
momentos! Calma! Temos que curtir os bons anos que vivemos flutuando pelo
espaço, antes de nos revelarmos horríveis.
ZÉ
E peidorreiros. Você pode
tirar a sua culpa se quiser... eu te entendo. Foi monstruoso... num momento de
raiva... que o romance acaba...
NINA
Não! Cale essa boca! Não
está em tempo! A gente não pode sofrer duas vezes, uma vez tá bom. Primeiro
curte curte curte, e depois no fim a gente vê a merda que deu. Mas estamos em
tempo de curtição. De amor, de sexo todo dia, mesmo embuxada. Tenha calma, Zé,
vamos ser lineares na historinha. Começo, meio e fim. Calma...
ZÉ
Você era a maior safada.
NINA
Você não fica atrás, não.
Seu safado! Cachorro!
ZÉ
De minha parte era porque
eu não conseguia aguentar. Sua voz... seu jeito de me beijar devagar...
NINA
Eu também, eu também! Não
dava pra segurar o tesão de ter você. Seu peitoral... seu bumbum durinho...
(ri)
ZÉ
Dia e noite!
NINA
Sol e lua!
OS DOIS
Astros de um romance
narrativo! E essa nossa poesia brega... ai... (suspiram)
(silêncio; o clima muda um
pouco; eles se lembram de algo ruim por um instante)
OS DOIS
A gente devia ter esperado
pra conhecer melhor a cachola um do outro... A cultura... o jeito de criação...
(silêncio) Destino ordinário! E não extra ordinário! Ordinário mesmo! Merda!
(pausa) Calma. Vamos com calma...
(eles voltam ao romance e transam
em uma dança; há algo grudento, um fluído que os une)
OS DOIS
Eu sou você quando estamos unidos
Somos porra, somos um fluído
Eu sou teu pai, sou teu amante e filho
E que dure o quanto assim durar
Amor, amo te amar
Até que no fim
Você morra por mim
NINA
Num buraco negro
Você vai plantar
No forno da magia
Aqui bem na barriga
ZÉ
Temos um segredo
Nós sabemos voar
Calor que contagia
No meio da barriga
OS DOIS
Eu sou você quando estamos unidos
Somos porra, somos um fluído
Eu sou teu pai, sou teu amante e filho
E que dure o quanto assim durar
Amor, amo te amar
Até que no fim
Você morra por mim
NINA
Zé, eu estou grávida.
ZÉ
(gargalha de felicidade)
Finalmente! Viramos um! Viramos um, meu amor!
NINA
Viramos três, na verdade.
(eles se beijam
apaixonados; em vídeo vemos um espermatozóide fecundando um óvulo; logo depois
um vídeo de um meteoro atingindo o planeta Terra; eles observam atentamente a
cena em silêncio; black-out em resistência)
CENA 3
(Nina está com barrigão,
cozinhando alguma coisa)
NINA
(cantarola) Terra, planeta água
Terra, planeta água...
Hoje vai passar Impacto
Profundo na Sessão da Tarde. Adoro filmes de destruição.
(Zé chega do trabalho)
ZÉ
Eu acho que tinha que ter
licença maternidade pra homem também. Você com esse barrigão se virando aí
sozinha, eu fico morrendo de medo.
NINA
Ai, Zé, eu não perdi um
braço, não perdi uma perna. Consigo muito bem me virar sozinha...
ZÉ
Eu conheço um cara que
perdeu um braço e se vira muito bem sozinho também.
NINA
Então.
ZÉ
Mas é que ele não é meu
amor e nem tá carregando meu segundo amor.
NINA
Bobo. (eles se beijam) De
qualquer forma concordo com você. Homem deveria ter licença maternidade igual a
mulher mesmo. Ajudar nos primeiros meses de perto. Feito pai de verdade. Quero
só ver como vai ser quando nascer...
ZÉ
Vou largar o emprego.
NINA
E a gente vive de ar? Você
não existe mesmo, Zé. Só você. Bobão.
ZÉ
Já falei pra gente comprar
umas galinhas, duas vaquinhas, fazer uma estufa e ir morar longe da cidade.
NINA
Quem vê pensa...
ZÉ
Quem vê pensa o quê?
NINA
Que você pensa assim, que
é todo politizado assim...
ZÉ
Ah, vá, vá, vá... Eu sou
doido, mas não sou burro não... Seria uma boa fugir.
NINA
Fugir pra onde, Zé? Ao
menos se a gente tivesse uma nave espacial...
ZÉ
Fugir pro mato mesmo,
Nina. Pro mato. Viver pelados...
NINA
Eu não conseguiria. Eu
gosto de sorvete.
ZÉ
Faz sorvete caseiro, oras.
Só ter uma vaquinha... uns pezinhos de morango...
NINA
E pizza? Vai plantar trigo
até fazer a massa? Não tem como viver sem dinheiro hoje em dia, Zé. Infelizmente.
ZÉ
Ter tem. É difícil, mas
tem jeito sim.
NINA
Eu sofreria muito.
ZÉ
A gente já sofre mesmo com
dinheiro. Seria um esforço passageiro que posteriormente traria bons frutos.
NINA
Não me apetece a ideia. Eu
gosto de Facebook, ir no cinema... Impossível ir viver no mato.
ZÉ
Conformada.
NINA
Oi?
ZÉ
Conformada. Você é uma
alma conformada. Prefiro ser um doido varrido nesse mundo absurdo de valores em
papel e em dígitos bancários.
NINA
Quem vê pensa...
ZÉ
Eles querem a senzala de
volta, é isso que os grandes querem. No fim das contas, eles já até têm.
NINA
Que grandes, Zé? Eles
quem?
ZÉ
O seu dono, Nina. O meu
dono.
NINA
Eu sou dona de mim mesma!
ZÉ
Você tá de licença. Sem
seu dono você não compra sorvetinho, baby.
NINA
Sem meu suor eu não compro
sorvetinho, darling.
ZÉ
Vai pensando que é assim
que funciona, vai...
NINA
Eu sou dona de mim mesma.
Ninguém manda em mim não. Quem vê pensa que você é todo politizado. Que bicho
te mordeu hoje? Tava conversando com aquele seu amigo Paulinho do sindicato de
novo, né?
ZÉ
Tá bom, tá bom.
(silêncio)
NINA
Vamo almoçar?
ZÉ
Vamo que eu queria ainda
tirar um cochilo.
(eles sentam pra comer;
comem em silêncio)
NINA
Tá bom?
ZÉ
Tá.
(silêncio)
ZÉ
Pior que eu trombei com o
Paulinho hoje mesmo. Cê é foda, menina...
NINA
(ri)
(silêncio)
NINA
Hoje vai passar Impacto
Profundo na Sessão da Tarde.
ZÉ
Legal.
(silêncio)
NINA
Zé, você já pensou que a
gente não tem nenhuma segurança?
ZÉ
Esses políticos, tudo
safado...
NINA
Não, não desse tipo de
segurança que eu tô falando. Tô falando de segurança na Terra. No planeta.
Entendeu? Esse tipo de coisa podia muito bem acontecer a qualquer segundo, de
cair um meteoro igual no filme. Podia de repente rachar a Terra no meio e fim.
Do nada. Não tem essa segurança que a gente finge ter, né? Em lugar nenhum.
Você já pensou? Não tem pra onde correr, pra onde fugir. É uma melancolia bem
Lars-zarenta...
ZÉ
Os caras lá iriam avisar.
NINA
Que caras?
ZÉ
Os caras da NASA, sei
lá... o Lula...
NINA
Duvido muito. E mesmo que
avisasse ia correr pra onde? Não tem. Essa segurança que a gente finge ter é
falsa.
ZÉ
Se a gente fica pensando
nisso a gente não vive. Tem uma águia que come tartaruga, sabe. Ela pega a
tartaruga e pra quebrar o casco ela sobe bem lá no alto e solta a tartaruga
numa pedra. Se a gente for ficar pensando assim até morrer com uma tartarugada
na cabeça é possível, igual aconteceu com aquele filósofo famoso que eu esqueci
o nome... Esquilo, Ésquilo!
NINA
É, mas um raio não cai
duas vezes no mesmo lugar, né? Muito improvável que uma história dessa se
repita.
ZÉ
Errado! Um raio cai sim
duas vezes no mesmo lugar. A probabilidade é minúscula, mas é possível sim.
NINA
Sei não...
ZÉ
Qual a probabilidade de
uma peça de teatro ter personagens e um enredo parecido com outra peça já
famosa, ou até mesmo ser total ficcional e ainda assim alguém se ver em cena?
Tudo pode acontecer. Porque nada se cria...
NINA
Tudo se copia. Odeio
quando você vem com esses ensinamentos de hora do almoço. Vamo só conversar...
(silêncio)
ZÉ
Perdão, Nina.
NINA
Tudo bem.
ZÉ
Se a gente fica pensando
nisso a gente não vive. Você pode ser atropelado, tropeçar na calçada e bater a
cabeça... Claro que não há segurança nenhuma, mas não dá pra viver se ficar
pensando nisso...
(silêncio)
ZÉ
São os hormônios, calma...
(silêncio)
ZÉ
Hoje joga o Corinthians,
hein! Não esqueça.
NINA
Futebol é duelo de
bárbaros moderno.
(silêncio)
NINA
Eu choro naquela parte do
filme que a mãe se despede do bebê. Posso assistir cinquenta vezes que eu
choro.
ZÉ
São os hormônios.
(silêncio; eles terminam o
almoço em completo silêncio)
ZÉ
(dá um beijo na testa de
Nina) Vou dormir um pouquinho antes de voltar pro trabalho.
NINA
Tá bom.
(Nina fica sentada sozinha
na mesa por alguns segundos; a luz cai em resistência enquanto ela retira a
mesa)
CENA 4
NINA
(canta) Sem você
Eu morro
Sem você
Socorro
Sem você
Sozinho
Sem você
Passo tanto tempo que não sei me segurar
Passa tanto vento, não é seguro confiar
Sem você
É lento
Dá medo do que eu posso pensar
É aqui dentro que você devia estar
Não tem licença, não tem tempo de amar
Sozinhos, vento, começar imaginar
A química acaba ou o problema é o aumento
O ritmo abala quando não está cem por cento
Sem você
Eu morro
Safado
Cachorro
ZÉ
(canta em outro foco) Eles querem de volta a senzala
Num planeta a besta que demarca
Espaço meu, espaço seu
Foi deus quem deu
Sem tirar a culpa do cartório
Eu sou um ser contraditório e de sentimento estranho
Me desculpem, auditório
Devia ter um rebanho, umas galinhas, e um banho quente
Viver como gente, ser dono de si
Ser rei, rei de sorrir
Até o dia do velório
Eles querem de volta a senzala
Nesse planeta que a besta repartiu
Espaço meu, espaço seu
E deus não faz acepção de pessoas
Nós estamos aqui à toa
Ou então não
Piada boa
Sobre o outro, o seu defeito
Não era preconceito
Eu não sou perfeito
Eu não sou feito eles
Eu não sou feito o prefeito e o governador
São eles quem cuidam da senzala
Eu só fiz uma piada
Eu nunca peguei no chicote
Falta um pouco de senso de humor
NINA
Piada sem o mínimo de graça...
Piada falha
Que espalha
Que atrapalha
Que estimula o violentador
Que estraçalha
Que ameaça
Parece que não
Parece que é só humor
Mas tá com o chicote na mão, sim senhor!
(Nina e Zé se encontram ao
centro; há algum incômodo entre eles; eles se abraçam e tentam uma dança meio
fora do ritmo; Nina se irrita com os erros de compasso de Zé e desiste da
dança; Zé a puxa pelo braço e a força a dançar; eles dançam desconfortáveis)
NINA
Há um prazo de validade?
ZÉ
Não é regra. As coisas
acontecem à toa. Por um acaso.
NINA
Eu não acredito no acaso.
ZÉ
Você acredita em destino,
né?
NINA
Também não. Já disse que
eu não sei.
ZÉ
Então o quê você quer?
NINA
Não sei. Eu só... estou
meio cansada...
ZÉ
Cansada de quê?
NINA
De ficar sozinha todo esse
tempo.
ZÉ
Você quer sorvetinho, não
quer? Então.
(silêncio)
ZÉ
São os hormônios...
NINA
(se irrita) Para de falar
do que você não sabe, Zé!
(silêncio)
ZÉ
Desculpa.
NINA
Eu não sei mais o que eu
quero. Eu queria... eu queria...
ZÉ
O que?
NINA
Um impacto profundo na
vida.
ZÉ
Já está pra nascer, tenha
paciência. Isso tudo que você está sentindo é química pura, Nina. Por causa do
bebê.
NINA
Não vem com esses
conselhos de filosofia que eu já sei. Para de falar da porra de hormônios, Zé,
pelo amor de deus que você já está me irritando! Eu não sou burra, eu tenho
acesso à internet também. Eu preciso... de uma solução imediata.
ZÉ
Vamo comprar uma vaquinha
e umas galinhas...
NINA
Não! Eu não vou ir morar
no sítio! E você fala isso da boca pra fora! Cê vai plantar cevada pra fazer
cerveja? Você não fica sem sua cervejinha e sem seu futebol, Zé. Não me venha
com essa. Pare de se encontrar com o tal do Paulinho. Ele vive uma utopia...
(silêncio)
ZÉ
Eu não sei bem o que
fazer. Eu sou um ser humano...
NINA
Contraditório. Eu sinto a
sua falta, Zé... Aqui dentro...
ZÉ
Eles mandam em mim. Os
meus horários são deles...
(silêncio)
NINA
Eu estou cansada...
ZÉ
Vai passar... tenha
paciência.
(eles se abraçam mais
calmos e carinhosos; dançam suavemente enquanto a luz cai em resistência)
NINA
Eu estou cansada... muito
cansada. Esse planeta...
ZÉ
(carinhoso) Chiiiu... Vou
comprar um bichinho de estimação pra te fazer companhia e te preparar a cuidar
de outro ser.
NINA
Eu não gosto nem de gato e
nem de cachorro.
ZÉ
Serei mais criativo que
isso.
NINA
Nem de passarinhos! Não
gosto de gaiolas...
ZÉ
Calma. Vou pensar em algo
legal...
NINA
Sei não, Zé. Acho que eu
preciso de uma droguinha...
ZÉ
Não existe uma droguinha
da felicidade que não faça você se fuder com ela depois...
NINA
É. Eu sei. Sertralina?
ZÉ
É o que tem por hora. Eu e
você.
NINA
Juntos.
(ambos tomam o remédio; black-out)
CENA 5
(luz)
NINA
Uma tartaruga, Zé! Não
acredito!
ZÉ
Não vá deixar ela escapar,
hein!
NINA
Palhaço! Eu adorei! Eu não
podia imaginar! Que coisa mais lindinha! Que casco lindo. Olha, parece que ela
tem uma tatuagem aqui! Adorei, Zé! (anota na caderneta) Seu cachorro lindo!
Odeio gostar de você, seu lazarento mais lindo do mundo!
ZÉ
Que nome vai dar pra ela?
NINA
Ai. É macho ou fêmea?
ZÉ
Putz. Não faço ideia.
Esqueci de perguntar...
NINA
Hum. Não tem problema. Vou
chamar ela ou ele de Tartaruga mesmo. Seu Tartaruga ou Dona Tartaruga.
ZÉ
Sério, Nina? Só Tartaruga?
NINA
Tartaruga de nome
Tartaruga, ué. É legal, é simples. Quer mais simples que isso? Minha Tartaruga,
Zé! Presente é presente...
ZÉ
Tá bom, então. Seu
Tartaruga.
NINA
Ou Dona Tartaruga. Ou a
gente esquece esse negócio de gênero... Acho justo, estamos no século XXI... Pra
quê todo esse padrão de sexo? A gente não precisa se dividir desse jeito.
Macho, fêmea... Maior besteira isso... É só uma tartaruga e pronto...
ZÉ
Iiih, meu deus, lá vem aquela militânciazinha... Ponto
negativo, hein, Nina. Pontinho negativo... (ri)
NINA
(estranha) Como assim?
ZÉ
É brincadeira, meu amor,
calma...
NINA
Que isso, Zé? Eu não entendi...
ZÉ
Nada, nada. Zoeira.
NINA
Agora fala. Não entendi. Você
acha besteira discussão de gênero, é?
ZÉ
Ai, meu santo. Não quero
falar disso agora. Tartaruga de nome Tartaruga. Não quer saber se é macho ou
fêmea. Tá certo. Fim.
(silêncio)
NINA
Pode me falar, Zé.
ZÉ
Falar o quê, Nina?
(silêncio)
ZÉ
O que você quer que eu
fale, Nina?
NINA
Eu não quero que você fale
nada.
ZÉ
Eita, nóis.
(silêncio; Nina alimenta a
Tartaruga e ri; ambos anotam algo na caderneta, só que dessa vez meio escondido
um do outro; Zé sai em silêncio; a luz cai em resistência, enquanto Nina ainda
brinca com seu novo bichinho)
CENA 6
(ainda no escuro)
ZÉ
(em forma de eco) Iiiih,
lá vem aquela militânciazinha... aquela militânciazinha... aquela militânciazinha...
(as luzes acendem e Nina
está sozinha observando a tartaruga)
NINA
“Não deixa ela escapar,
Nina.” (ela ouve um barulho fora de cena) Quem tá aí? (silêncio) Tem alguém aí?
(silêncio; baixo) Por favor. Eu sou uma boa pessoa. Eu juro que eu tento ser.
Deus não faz acepção de pessoas, eu tô tentando. (silêncio) A gente devia ter
esperado pra conhecer melhor a cachola um do outro... A cultura... o jeito de
criação... (silêncio) Destino ordinário! E não extra ordinário! Ordinário
mesmo! Merda! (pausa) Calma. Vamos com calma. Calma é o caralho! Sem tirar a
culpa do cartório, mas querido auditório, eu sou um ser humano contraditório.
Tem todo esse lance de cultura, que se não bate muito bem, no fim das contas não
dá certo. Não basta ter nascido no mesmo planeta e trocar os fluídos. Nem mesmo
a poesia basta, nem mesmo cantar basta... Não basta ter belas plumas ou uma
linda bunda. Durinha. Precisa de mais. Tem que ter um esforço que se você não for
forte você não aguenta. (brava) E não tem nada a ver com eu estar grávida!
Posso estar borbulhando de hormônios de confusão, mas esses pensamentos vem de outro
lugar, por outros motivos! Vem do fato de que ele... de que ele... ele não é
bem como... como... (silêncio) A gente sempre imagina as coisas como a gente
quer que elas sejam. E no fim das contas elas são como são, não como a gente
quer que elas sejam. Pode ter o esforço que for, que não adianta. A gente não consegue
moldar o outro. E ele... ele... me trouxe essa tartaruga pra eu não ficar
sozinha. (ela ri)
(Zé entra folgado,
deixando os pertences pelo palco)
ZÉ
Amor, ouvi uma piada
sensacional no trabalho hoje. Vim rindo o caminho inteiro só pra lembrar pra te
contar. Você vai mijar de rir.
NINA
Que legal. Quero ouvir.
(Nina sai pegando as coisas)
ZÉ
Você assistiu o filme?
NINA
Esqueci de assistir.
Fiquei cuidando da tartaruga.
ZÉ
Que pena. Pelo menos ela não
fugiu.
NINA
Engraçadinho.
ZÉ
Bom, a piada. Senta. Que essa
é das boas.
NINA
Deixa eu guardar seus
sapatos. Espere aí. (ela sai e logo volta)
ZÉ
Você vai mijar de rir. Eu
precisei sentar no chão pra rir hoje lá no trabalho. O Paulinho que contou.
NINA
Conta logo, Zé. (ela se
senta bem de frente à Zé) Tô curiosa já.
ZÉ
Calma. Preparada?
NINA
Vai! Conta logo!
ZÉ
É piada de preto.
(Nina se levanta em choque;
black-out rápido; as luzes retornam e a cena se repete)
NINA
Tô curiosa já.
ZÉ
Calma. Preparada?
NINA
Vai! Conta logo!
ZÉ
É piada de loira burra.
(Nina se levanta em choque;
black-out rápido; as luzes retornam e a cena se repete mais uma vez)
NINA
Tô curiosa já.
ZÉ
Calma. Preparada?
NINA
Vai! Conta logo!
ZÉ
É piada de bicha.
(Nina se levanta em choque)
ZÉ
Na piada tinha um preto,
uma loira burra, uma bicha, índio, traveco, japonês, angolano, mendigo,
africano, macumbeiro, umbandista, crente, feminista dessas que mija em praça
pública. É piada de favelado também, daquelas que o filho do bandido toma um
tiro – o bandido é preto na piada, não se preocupe. Piada de português, de
mulher rodada. Sabe aquelas mulher que dá no primeiro encontro? É desse tipo de
piada. Usa shorts curtinho, aparecendo a xereca, e depois não aguenta uns
elogio. “Ô, delícia!” Já se ofende, já. Você vai mijar de rir, Nina! Sabe piada
de preto? Tem que falar baixo, sua amiga Juliana não tá aí não, né? Porque ela
é meio preta, não é? Não, ela não é bem preta, ela é meio mulata. Ela não ia
entender o senso de humor, porque o mundo hoje tá ficando tão cheio de
frescura, tão ignorante, tsc, tsc, tsc... Uma piadinha aqui, uma piadinha ali,
só pra descontrair. O que é que tem, né? Pode até ser viado, mas ficar
rebolando tá pedindo pra galera tirar sarro, né? Se eles podem vestir camiseta
de cem por cento negro, orgulho LGBT... mas se eu usar uma camiseta com cem por
cento branco, orgulho de ser hétero... “Nooossa! Preconceituoso”... Antigamente
não tinha esses negócio de “mimimi” de ficar reclamando de tudo, não. As
pessoas tinham senso de humor. Você vai mijar de rir, escuta só. É uma piada de
preto, mas é leve, não é de racismo. O Didi chamava o Mussum de macaco e
ninguém se ofendia...
NINA
(grita com muita força)
ZÉÉÉÉÉÉ! (silêncio; ela está muito irritada e fala entre os dentes, quase tendo
um infarto de nervoso) Cale-essa-bosta-dessa-sua-boca!
(silêncio)
ZÉ
Você não entendeu...?
NINA
Eu mandei você calar a
boca! Eu não tô acreditando no que eu acabei de ouvir...
ZÉ
Qual foi? Não grita assim
comigo que eu não fiz nada.
NINA
Zé, pelo amor de deus.
Qual é o seu problema?
ZÉ
Qual é o meu problema do
quê?
(silêncio; Nina está muito
nervosa, quase chorando)
NINA
Quem é você? Eu não estou
te reconhecendo...
ZÉ
Nossa, calma, Nina.
Desculpa. Você tá tremendo?
NINA
Eu não tô acreditando...
ZÉ
Cadê o seu senso de humor,
Nina? Não precisa ficar tão nervosa assim. Pelo amor de deus. (tenta abraçá-la)
NINA
Tira a mão de mim!
ZÉ
Qual foi, Nina? Cheguei mó
contente pra te contar uma coisa engraçada... Deve ser os hormônios...
(Nina começa a dar murros
fortes em Zé)
ZÉ
Ai! Ai! Para! Para com
isso! (ele a segura)
NINA
Você é burro! Meu deus!
Você é desses burro! Eu estou esperando o filho de um burro! (ela desaba em
chorar) Eu não acredito! Eu não acredito!
ZÉ
Ai, meu caralho! Tudo por
causa de uma piada... olha o drama que você tá fazendo, Nina! Calma!
NINA
Eu não tô acreditando...
ZÉ
Foi uma piada! Era só não rir
se você não achou engraçada.
NINA
Eu não tô acreditando...
ZÉ
Foi uma piada, Nina! Uma
piada! Humor! Calma!
NINA
Eu quero que você vá
embora...
(silêncio)
ZÉ
O que? Embora? Embora pra
onde?
NINA
Vá embora, Zé, eu tô te
pedindo... hoje... por favor...
ZÉ
Você quer que eu vá pra
onde, Nina?
NINA
Embora! Embora! Pro
caralho da casa do seu pai! Mas eu quero ficar sozinha...
ZÉ
Nina...
(Zé tenta mexer em Nina)
NINA
Tire a mão de mim! (ele
tenta segurá-la) Tire a mão de mim!
ZÉ
Pare com isso, Nina! Deixa
de frescura!
(Nina bate violentamente
em Zé mais uma vez; eles iniciam uma luta breve, ele tentando segurar os braços
dela; eles gritam e se batem; Nina consegue bater bastante em Zé, e ele tenta
se defender. Por fim, Zé acerta a barriga de Nina em cheio – talvez com a mão
ou com o joelho; Nina sangra; Zé entra em desespero)
ZÉ
Ai, minha nossa Senhora!
Me desculpa...
NINA
Sai... Eu tô meio tonta...
ZÉ
Nina...
NINA
Vá chamar alguém... vá
embora daqui... SAIA DAQUI!
(a cena congela; ambos são
separados por focos)
NINA
(canta) Sempre querer mais
Pegar no colo, se sentir em paz
Tomar coragem
Nesse mundo
Eu consigo
Virar duas pessoas, com dois corações, sim
Eu te quero aqui dentro
Aqui em mim
Eu te quero aqui dentro
Porque eu amo
E esse amor
Te abre caminho
Aqui dentro, aqui dentro
Tão lindo como um bebê
ZÉ
Eu sou uma pessoa boa, o
que acontece é que a gente aprende as cagadas da vida na marra. Não tem uma
bula. O neném morreu mesmo, coitado. Eu fico meio irritado em ser contrariado.
Não é fácil pra ninguém. Não era preconceito, é esse planeta que tá ficando
cheio de frescura demais. Vocês não acham? Muito exagero na militância, muito
exagero na criatividade... Tartaruga desnecessária! Tartaruga desnecessária! Veja
bem, não quero tirar a minha culpa do cartório, mas é que eu sou um ser humano
contraditório.
NINA
Veja bem, não quero tirar
a minha culpa do cartório, mas é que vingança foi a coisa mais rápida que eu
consegui pensar. Eu não suportei a ideia de ele ser... de ele ser burro... de
ele ser desse tipo... burro...
ZÉ
Eu desci procurar ajuda.
Ou tentei fugir. Não lembro bem. Sei que eu desci correndo. Fui pelas escadas. Eu
estava com medo. O Paulinho é negro. Até ele riu da piada...
NINA
Ele deve ter ido chorar
pro papai. Me deixou sangrando sozinha. Ele saiu chorando, mas eu não fiquei
com dó de jeito nenhum. Eu estava era com raiva. Com muita raiva! Eu amei um
idiota...
ZÉ
“Não vá deixar ela
escapar, hein!”
(Nina pega a tartaruga)
ZÉ
Nós estamos aqui à toa
Ou então não
Piada boa
Sobre o outro, o seu defeito
Não era preconceito
Eu não sou perfeito
Eu não sou feito eles
Eu não sou feito o prefeito e o governador
São eles quem cuidam da senzala
Eu só fiz uma piada
Eu nunca peguei no chicote
Falta um pouco de senso de humor
NINA
Piada sem o mínimo de graça...
Piada falha
Que espalha
Que atrapalha
Que estimula o violentador
Que estraçalha
Que ameaça
Parece que não
Parece que é só humor
Mas tá com o chicote na mão, sim senhor!
ZÉ
Eu cheguei no térreo em
menos de um minuto.
NINA
Ele chegou no térreo em
menos de um minuto.
ZÉ
Eu olhei pra cima.
NINA
Ele olhou pra cima. Eu vi
pela janela da sala.
ZÉ
Ela me viu pela janela da
sala.
NINA
Eu só soltei. (ela solta a
tartaruga)
ZÉ
Eu fico na dúvida se ela
estava se livrando de um presente ou se foi realmente pra acertar.
(silêncio; a tartaruga cai
na cabeça de Zé que cai morto; o foco dele se apaga)
NINA
(canta) Sorriu
Um estrangeiro brasileiro
Preconceito desde o cheiro
Chama os outros de mulato
Quer de volta a senzala
No Brasil, grana não dá
Tapioca e vatapá
Isso memu que ouviu o senhor
Preconceito eu não aceito
Me dói um tanto aqui no peito
Mãe que ensinou
Que deus não faz
Acepção de coração
Brasil, pra mim
Sorriu, assim
(black-out)
CENA FINAL
(quando as luzes acendem,
Nina está em um interrogatório; ela não está mais grávida)
NINA
(chorando) Não, senhor!
Pelo amor de deus, o senhor acha que eu teria como mirar com tanta precisão? Eu
estava com raiva! Ele tinha acabado de me fazer perder o meu bebê, mas eu nunca
faria isso com ele de propósito! Eu não sou uma pessoa ruim, eu sou uma pessoa
boa. Eu só estava me livrando de um presente, senhor. Eu joguei a tartaruga
pela janela porque tinha sido ele quem tinha me dado de presente. Foi raiva,
mas não foi assassinato! Apesar do que ele me fez, eu não acredito em vingança,
senhor. Apesar do que ele me fez, de tirar o meu bebê... eu jamais faria
isso... eu jamais faria isso com ele... eu amei aquele burro, senhor...
(ela se levanta, enxuga as
lágrimas e vai até um foco fechado)
ZÉ
(em off) Eu fico na dúvida
se ela estava se livrando de um presente ou se foi realmente pra acertar.
NINA
Eu sou como uma águia. (silêncio;
ela finalmente enxuga o rosto e demonstra malícia) Eu realmente tenho uma mira
do caralho.
(Nina termina com um leve
sorriso; black-out)
FIM
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