TEM UMA VOZ NA MINHA CABEÇA


TEM UMA VOZ NA MINHA CABEÇA
De Gabriel Tonin

PERSONAGENS
Sofia, jovem
Lucas, adulto
Dirce, senhora
Dra. Manoela, adulta
Guto
Escritor

CENÁRIO: Um consultório de terapia em grupo.


ATO 1

(várias vozes dos personagens discutindo sozinhos; cada um está numa discussão própria, discutindo com si mesmo sobre assuntos variados; um vídeo mostra a relação de animais e bebês com reflexos no espelho; as luzes se acendem e Dra. Manoela está com seus três pacientes Sofia, Lucas e Dirce sentados em roda, cada um olhando pra um espelho)

DR. MANOELA
Olhem profundamente no fundo dos próprios olhos. Não precisam dizer nada. Só olhem. Se percebam cada detalhe mínimo. (pausa) Agora como a gente ensaiou.

TODOS
Fixa a cabeça na cabeça da cabeça da cabeça
Olha bem no olho lá no fundo, sai do armário, põe na mesa
Profundeza com clareza ou safadeza
O que tem dentro de você?

O que tem dentro de você?
O que tem dentro de você?
O que tem dentro de você?
O que tem dentro de mim?

DR. MANOELA
Agora relaxem.(para a plateia) São artistas. Os loucos são os artistas. Eles são. Esses são. Não possuem registro, mas são. Deveriam ser. Poderiam ter sido. Continuem olhando o próprio olho! Quando se perder refaz a pergunta!

TODOS
O que tem dentro de mim? O que tem dentro de mim?

DR. MANOELA
Isso. (para a plateia) Os três são meus pacientes. Eu os convidei pra uma reunião especial em grupo porque existe um elemento que combina entre esses três exatamente. Sofia, Dirce e Lucas estão sob suspeitas de serem esquisofrênicos. Esses três indivíduos de três diferentes gerações me fizeram revelações parecidas, durante o nosso convívio de terapia e tratamento. Os três experienciaram, experienciam com frequência eventos com visões e vozes.

SOFIA
Eu comecei a ver quando eu tinha uns nove anos. A minha avó que morreu. As minhas duas avós já morreram, mas a minha vó por parte de pai me visitou várias vezes. Depois parou de visitar.

LUCAS
Eu nunca vi nada exatamente. Às vezes eu tenho impressão de ver, mas se eu olho diretamente, a coisa some. Não sei se é coisa da minha cabeça, mas eu sofro com vários sustos todos os dias. Tem dia que eu fico piradão de medo, quase cago na calça.

DIRCE
Eu falo com deus todos os dias e ele me responde. Eu já cheguei até a ver Jesus. Não sei porque ele não responde vocês, mas eu ele responde, de prontidão ainda, com palavras, palavras de verdade. Tem uma voz que fala comigo o tempo inteiro e eu não tenho dúvida de que é deus. Não sou eu!

TODAS
Tem uma voz na minha cabeça, escura e colorida

LUCAS
Às vezes grossa, às vezes fria

SOFIA
Às vezes amiga, às vezes não sei não
Às vezes traz dor, às vezes alegria

DIRCE
Às vezes é deus

LUCAS
Às vezes sou eu

SOFIA
Às vezes é alguém que já morreu

TODOS
Às vezes é alguém que nem na Terra morou
Às vezes nem é nada.
Mas às vezes é.

LUCAS
O nosso subconsciente é o próprio deus em pessoa, doutora! Às vezes nós somos o próprio deus encarnado tentando evoluir, tentando melhorar a criação de si mesmo.

SOFIA
Toda vez que eu entro no cemitério eu fico arrepiada. Eu sinto as coisas. Eu sinto as energias de gente que já morreu.

DIRCE
Eu acho que Jesus tem um propósito pra mim nessa vida. E não é piada. Quando era pequenininha todo mundo falava que eu era diferente das outras crianças. E eu vi Jesus num pé de goiaba!

LUCAS
(ri) Cê jura?

DIRCE
Juro. E ele era lindo. Tinha barba, cabelo.

LUCAS
Mas você viu ele de carne e osso, assim, com tridimensionalidade? Porque tudo o que eu acho, que eu suponho que eu vejo, são coisas muito abstratas, movimentos no ar, luzes, cor, no cantinho do olho, na visão periférica. Você diz que viu Jesus, mas viu Jesus num sentido metafórico, alucinatório ou viu Jesus de carne e osso, como se fosse uma pessoa?

DIRCE
Jesus subiu no pé de goiaba pra me ajudar, rapaz. Eu vejo coisas com detalhes. Eu era criança, eu estava na goiabeira porque... Jesus apareceu, só isso. Ou foi real ou então eu sou uma louca mesmo!

DRA. MANOELA
Não existe esse negócio de louca, Dirce. O que tentamos eliminar aqui é a possibilidade de uma falsidade no relato, de um mentiroso. Vocês três dizem ouvir vozes na cabeça de vocês. Eu acredito que loucura não é a pessoa que tem convicção disso, que acredita que realmente vê, ouve. A minha maior preocupação é com aquele que sabe que não viu, que sabe que não vê, e que usa disso pra, não sei, tirar vantagem de alguma coisa ou somente pra alimentar o próprio ego, ou porque quer muito acreditar. Essa pessoa, ao meu ver, seria o “louco” mais preocupante de casos assim.

SOFIA
Só a gente sabe do que a gente viu. Eu não tenho como provar, eu já tô acostumada a viver com isso, ninguém precisa acreditar que eu vejo.

LUCAS
É, se acaso todos nós estivermos certos de nossas convicções, até entendo você ver a sua vó, porque ela era sua vó, né, mas pra chegar a ter uma visita do próprio Cristo em pessoa no pé de goiaba, tem que ser uma pessoa muito especial mesmo. Tô no campo da suposição.

DRA. MANOELA
Lucas...

LUCAS
Há vários relatos de Jesus em pé de goiaba, eu não tô duvidando, eu tô dizendo que é um tipo de visão muito específico de uma coisa muito óbvia que é porque a gente todo mundo aqui foi criado com base numa sociedade cristã! Isso é óbvio! (pausa) Entende?

DRA. MANOELA
Sim, Lucas, entenda, a gente não veio debater religião...

LUCAS
Mas a gente tá debatendo a vida! Não é religião que a gente tá debatendo!

DIRCE
Eu não tenho nada pra ganhar falando que eu vi Jesus. Jesus veio pra mim num momento de grande batalha na minha vida. E ele falou que ninguém ia acreditar em mim, que eu não deveria me preocupar com isso. Naquele dia, no pé de goiaba, eu fui salva! E mesmo que isso seja uma histórinha divertida pra muita gente, é coisa entre mim e deus, vocês não tem nada a ver com isso.

LUCAS
Realmente, se você não quiser impôr as coisas com base nas suas visões, eu acho que tá tudo certo, cada um com suas paranóias.

DIRCE
Não é paranóia, rapaz!

LUCAS
É o clássico do clássico o louco conversando com deus.

DRA. MANOELA
Vamos eliminar essa palavra, por favor, gente.

LUCAS
Eu super acredito em você, Dona Dirce. Eu acredito muito que você fala com seu deus, que você possa ter visto o deus que você segue. Eu também falo com o deus que habita em mim e ele não é Jesus pra mim. No meu pé de goiaba ele não vem como Jesus.

SOFIA
E como ele vem?

(Lucas olha para Sofia pelo reflexo do espelho)

LUCAS
Nós somos a criação que o próprio criador encarnou.

DIRCE
Bobagem! A palavra de deus diz que...

LUCAS
A palavra do seu deus não é a palavra do meu deus.

DIRCE
Só tem um deus, rapaz! Um!

LUCAS
Não, não, não. Claro, há apenas uma verdade, da história do universo, de como as coisas funcionam, isso é fato. Mas estamos todos nós com nossas próprias ideias do que é deus. Você provavelmente viu Jesus porque é nisso que acredita.

DIRCE
Ah, tá bom, rapaz! Tá bom.

DRA. MANOELA
E isso por um acaso significa que não era Jesus, Lucas, só porque foi na cabeça dela que ela viu Jesus?

(silêncio)

LUCAS
Não entendi. Claro que sim! Ninguém nem garante que ele existiu!

DIRCE
Eu não imaginei Jesus, doutora. Eu vi Jesus!

DRA. MANOELA
Eu sei, Dirce.

SOFIA
Eu acho que Jesus existiu sim.

DRA. MANOELA
Se isso foi um delírio, Lucas, naquele filme dentro da cabeça desse ser humano aqui, nesse universo completo que existe dentro dessa cabecinha feita de carbono e muita energia elétrica, a realidade é a realidade que Jesus é real. Entende? Consegue entender onde eu quero chegar? Nessa aventura chamada Dirce, Jesus existe! Entende?

LUCAS
Entendo, eu entendi. Aceitando isso a gente para de discutir sobre tudo, porque aí tudo é a verdade.

DRA. MANOELA
Tudo pode ser a verdade!

TODOS
(para a plateia) Se ela viu, seja na cabeça dela ou não, por conta da fé ou não, nesse universo único dentro da cabeça dela, essa é a realidade. Na história da Dirce, que só ela protagoniza, ela viu Jesus e essa é a verdade pra ela. Ninguém pode contestar isso na realidade da vida dela, porque o universo dentro dela é esse, a aventura da vida da Dirce é essa. E pra ela é só esse universo que existe, não existe outro, só esse daqui de dentro. Então, se acaso o relato for real, é mais um mistério divino do nosso universo. Vocês não acham?

(silêncio)

DRA. MANOELA
Eu acho que a gente precisa unir forças pela verdade, a verdade de cada um, o que vocês realmente acreditam dentro desses vocês que vocês olharam aí no espelho. O que me preocupa é se um de vocês está mentindo sobre esses relatos de eventos sobrenaturais. Eu posso estar errada, mas dos três a Dirce é a que mais me parece convicta das visões, e eu não estou falando sobre Jesus existir ou não.

DIRCE
Obrigada, doutora. Obrigada por acreditar em mim.

DRA. MANOELA
Dirce, de qualquer forma é muito importante sermos críticos também às coisas que nos foi apresentados quando a gente era criança. Você sabe, a gente já conversou, a gente tem que tomar cuidado com os dogmas das religiões porque isso pode atrapalhar muito a nossa vida, do mesmo jeito que eu sei que pode ajudar também.

DIRCE
Eu sou crítica, eu sou super crítica. Eu sou cristã, mas eu não sou dessas fanáticas não. Eu sou até favor do casamento gay!

SOFIA
Nossa.

LUCAS
Isso é até que bastante inusitado.

DRA. MANOELA
Vocês três possuem relatos de visões e vozes na cabeça, certo?

LUCAS
Certo.

DRA. MANOELA
Quero colocar na mesa as coisas que são parecidas nessas visões, pra gente procurar um padrão.

LUCAS
Eu nunca vi a figura de uma pessoa exatamente. Mas às vezes eu acho que sim. E às vezes eu penso que pode ser um cílios do cantinho do meu olho me trapaceando.

SOFIA
Eu sinto a presença das coisas. Eu só via a minha vó. Nunca vi mais ninguém. Quando a minha prima morreu eu até tentei ver ela, mas não funcionou. Foi só a minha vó que eu já vi.

DIRCE
Eu vi Jesus.

DRA. MANOELA
E as vozes? Vocês três relataram que as vozes são mais frequentes, não é isso?

LUCAS
Na minha cabeça, a voz não para.

DRA. MANOELA
Dirce?

DIRCE
Depois que eu vi Jesus ele sempre me manda mensagens de voz, palavras de amor, palavras de conforto. Eu gosto de ouvir o padre Lancelote no programa de manhã.

SOFIA
Eu ouço um bebê chorando na casa da minha tia Ivone toda madrugada. Toda vez que eu durmo lá eu ouço. Ela já até benzeu a casa dela por causa disso, mas não adiantou. Eu nem gosto de ir lá, coitada, porque eu deixo todo mundo assustado comigo. Aí a minha mãe leva eu no centro, né? Toda vez que eu vou no centro com a minha mãe eu também sinto alguém respirando bem pertinho assim, como se a pessoa tivesse respirando bem aqui perto da minha cara. Às vezes eles cochicham coisas, eu não consigo entender a maioria, poucas vezes eu entendi. Às vezes é outra língua até.

DIRCE
Ai, gente, isso de ficar cochichando em outra língua, não sei não. Deus não fica brincando com a gente assim.

DRA. MANOELA
Dirce...

LUCAS
Qual deus, Dona Dirce? O seu deus é o seu deus, ué. O meu deus além de brincar comigo com essas coisas esquisitas, meu deus tira maior sarrão da minha cara, na zoação, o tempo inteiro, a vida inteira! E às vezes eu sinto até que eles são em dois até. Dois moleques! Tem vez que eu acho que são duas vozes!

SOFIA
Eu ouço vozes de várias pessoas. A noite... é igual quem sofre com nariz trancado. Deitou pra dormir piora.

DRA. MANOELA
À noite piora?

LUCAS
Piora.

SOFIA
Se piora! À noite piora muito! Eu durmo com foninho de ouvido porque se não eu acordo sempre porque eu tenho a impressão que tem gente conversando alto, às vezes gritando. Várias vezes de acordar como se alguém tivesse gritado bem assim na minha cara. AAAAH! Só gritando, assim, AAAAH! Daí eu acordo. Só com remédio pra aguentar...

LUCAS
Você tem um negócio com as pessoas assim bem pertinho da sua cara, né?

SOFIA
É.

DIRCE
Assustador.

LUCAS
Realmente. Muito assustador.

SOFIA
Minha mãe me levou pro centro quando eu vi minha vó. Mas a mulher lá não acreditou em mim. Eu acho que eu poderia desenvolver um trabalho como médium, eu só precisava de um empurrãozinho. Aquele negócio, né: todo mundo precisa de indicação pra ter sucesso em alguma coisa. O dom eu já tenho, só me falta contatos. Eu acho que se eu desenvolvesse esse meu dom eu poderia ajudar as pessoas.

DIRCE
Sei.

DRA. MANOELA
É interessante, Sofia.

LUCAS
Mas menina, se você realmente faz contato com pessoas que já morreram, nada mais importa! Ou importa?

SOFIA
Como assim nada mais importa?

LUCAS
Pensa comigo, se você realmente acredita que faz contato com espíritos de pessoas que já morreram, ué, então isso já é magnífico! Um dom mágico desse se basta, deveria se bastar por si só! Não? Não, doutora? O que mais você quer saber dessa vida se você já sabe o grande mistério que todo mundo procura resposta, você tem evidência nas suas visões que há vida após a morte sim, pelo que você diz! Você já sabe da verdade!

DIRCE
Lógico que há vida após a morte.

LUCAS
Eu não tenho tanta certeza disso.

SOFIA
Lucas, entendi. A questão é que a vida inteira... essa é a minha vida. A minha vida também é igual a sua. Eu via a minha vó e no dia seguinte a vida continuava. Eu não sei de tudo, é um grande mistério pra mim também. Esse mundo que eu vivo, ele é o normal pra mim. Eu não tô descobrindo ele agora.

DRA. MANOELA
Faz sentido, Lucas, seria diferente pra você uma revelação clara de todas essas questões que martelam a sua cabeça, porque isso é uma espera pra você. Segundo o que a Sofia diz, a realidade dela sempre foi essa, não é impactante. Impactante talvez é quando alguém realmente consegue acreditar também no que ela diz que vê. Isso sim é impactante. Talvez você vá morrer sem descobrir a verdade verdadeira, Lucas. Você precisa agarrar uma que te faça bem e essa será.

LUCAS
Bobagem positivista.

DRA. MANOELA
Você está aqui porque desde que nos conhecemos você me fala dessas suas visões, Lucas. É curioso você ficar tão na defensiva com as visões das duas.

LUCAS
A diferença é que eu não sei o que eu vejo! Eu não posso afirmar que quando eu tenho a impressão de que tem uma cabeça aparecendo na minha janela de madrugada, eu não posso afirmar que seja Jesus, ou o diabo, ou gente que morreu! Eu não sei o que é. Eu não sei o que é quando eu tenho uma impressão de ver o ar tremendo, tremendo assim, sabe, parece que o ar treme assim. Mas eu não posso dizer o que é isso tudo. Você mesma, doutora, já me confrontou nas minhas visões se não era porque eu gosto de fumar um baseadinho. Se não era brisa. Foi ou não foi? Eu não tô contestando a veracidade das visões delas, doutora, de forma alguma, me desculpem se fui grosseiro, tava levando como um bate papo. É da minha natureza desde sempre contestar as respostas fáceis pra esses nossos mistérios da vida. Me desculpe se o cristianismo ficou tão bizarro que eu tive que ficar nessa defensiva grosseira.

DRA. MANOELA
A pessoa Dirce não é o cristianismo, Lucas. Cuidado no jeito.

LUCAS
Claro. Sei. Tá bom. Desculpa, Dirce e Sofia. Eu sei que Jesus era um cara legal.

SOFIA
Tá bom.

DRA. MANOELA
Eu quero agora que vocês relaxem um pouco. Vamo fazer outro jogo, ok?

DIRCE
Qual jogo?

DRA. MANOELA
Eu quero que a gente se concentre pra que possamos mostrar o outro lado, a outra dimensão desse espetáculo. Fechem os olhos. Sinta o som dessa música. Eu quero que a gente se concentre em mostrar quem são vocês realmente, qual é a verdade que habita dentro vocês.

LUCAS
O que tem dentro de mim?

SOFIA
O que tem dentro de mim?

DIRCE
O que tem dentro de mim?

DRA. MANOELA
O que tem dentro de nós!? Agora acordem! 

(a voz da Dra. Manoela ecoa grandiosamente; black-out)




ATO 2

(Dra. Manoela está frente à frente com Guto em um foco)

DRA. MANOELA
Quando você diz que vê uma cabeça espiando na sua janela de madrugada, você diz que você vê realmente? É uma aparição física?

GUTO
Não dá tempo de olhar. É uma impressão, no canto do olho. Mas quando você dá foco desaparece. Eu assumo que pode ser algum tipo de problema no meu cérebro.

DRA. MANOELA
Entendi. Eu acho bom manter a dúvida pra você não perder o chão, Lucas.

GUTO
Sim.

DRA. MANOELA
E quando você diz que viu a sua vó, você lembra de detalhes, Sofia.

GUTO
Eu tinha uns nove anos. Ela apareceu no dia que ela morreu e eu nem sabia que ela tinha morrido ainda. Minha mãe não tinha muito vínculo, minha vó era meio solitária. Descobriram que minha vó tinha morrido uns três dias depois que ela já tava morta. E ela me visitou. Aí a primeira vez eu achei que era ela mesma, viva. Eu me assustei porque a minha vó nunca vinha na nossa casa, de jeito nenhum, porque ela tava brigada há anos com a minha mãe. Morreu brigadas. Aí quando eu descobri que eu tinha visto o fantasma da minha vó, aí tudo mudou. Aí ela me visitou mais vezes e, bom, eu soube naquele dia que os espíritos dos mortos estão entre a gente.

DRA. MANOELA
E você, Dirce? Jesus apareceu no pé de goiaba e a visão foi como se você tivesse se encontrado com uma pessoa de carne e osso?

GUTO
Tinha um brilho em torno da cabeça. Mas parecia estar pro fundo dele, atrás dele. Como se o sol tivesse atrás da cabeça dele.

DRA. MANOELA
Certo, gente. Seguinte. Eu ainda desconfio muito que exista um mentiroso entre nós, por conta da probabilidade apenas, não se preocupem. Ninguém será punido por dizer a verdade das suas histórias, tá bom? Quero que vocês entendam isso, não é uma lição de moral. Estamos tratando da nossa evolução, e isso sou eu também incluída. A mentira ela serve muito de muleta pra muita gente, pra conseguir seguir a vida, eu acho super compreensível, é a fuga de muita gente dessa nossa vida real! É exatamente como uma droga, você se apega e vira um ciclo vicioso, e é uma fuga na vida real também. É necessário um tratamento de saúde, amor, compreensão e não na punição, isso é o que eu prego e o que eu acredito. Sendo assim eu queria dar uma oportunidade pra se um de vocês quisesse se abrir e contar o que realmente é as suas verdades, ou o que vocês realmente acham que é a verdade de vocês?

(silêncio)

GUTO
(Lucas) Eu não acho que eu esteja mentindo. Eu só não tenho exatamente certeza.  (Sofia) Eu vi a minha vó e eu ouço vozes, é só isso que eu sei. (Dirce) Eu nunca vou esquecer do meu encontro na goiabeira do sítio do meu avô. Eu não estou mentindo ou então eu sou louca, porque eu vi!

DRA. MANOELA
À partir de hoje vamos parar de usar essa palavra, ok? Não devemos usar essa palavra, nunca mais. É um jogo, ok?

GUTO
Qual palavra?

DRA. MANOELA
Louco, doido, maluco. Proibido à partir de agora!

GUTO
Ok. Tá bom.

DRA. MANOELA
Dirce, eu retiro aquilo que eu falei e eu acho que é você quem está mentindo.

GUTO
Eu? Por que eu? O que eu fiz? Eu só falei a verdade.

DRA. MANOELA
Perceba que eu não estou dizendo que Jesus não existe, eu só estou te falando que eu acho que a sua história não é real.

(um foco destaca Dirce, Lucas e Sofia ao redor de Guto)

LUCAS/GUTO
Não! Sou eu. Eu sou o mentiroso. Eu acho que eu dei tanta ênfase nessa paranóia que eu comecei a fingir que acredito. Entende, doutora? Não é uma mentira que eu fale, “é, vou fazer de maldade aqui, só pra tirar um sarro!”, é uma confusão na verdade, uma grande confusão.

DRA. MANOELA
Eu não acho, Lucas. Não é você quem está mentindo. Eu ainda acho que é a Dirce.

DIRCE/GUTO
Doutora Manoela, pelo amor de deus! A gente se conhece há anos! Essa história eu contei pra você há uns dez anos atrás!

DRA. MANOELA
Eu sei que a sua história é uma história forte, Dirce. Mas eu acho que você não teve uma visão de Jesus.

(silêncio; os focos se apagam; Guto encara Dra. Manoela)

GUTO
Sabe, doutora, eu sempre fui muito castigada pela minha vida. Eu sempre fui muito desacreditada, sabe? A vida inteira. Por essa história, por outras coisas também. (pausa) Eu não sou mentirosa, doutora Manoela, você pode falar que eu sou um monte de coisa, mas mentirosa é uma coisa que eu não sou.

(o foco de Sofia, Dirce e Lucas retornam)

DRA. MANOELA
Me desculpe pela desconfiança, Dirce. Não posso evitar e eu mantenho a desconfiança. (pausa) Vamos acalmar um pouco os ânimos! Vamos aquela que a gente ensaiou!

TODOS
Fixa a cabeça na cabeça lá no topo da cabeça
Olha bem no olho lá no fundo, do fundo do poço, põe na mesa a sobremesa!
Profundeza com clareza ou safadeza ou esperteza ou realeza ou mentirosa!
O que tem dentro de você?

O que tem dentro de você?
O que tem dentro de você?
O que tem dentro de você?

GUTO
O que tem dentro de mim?

(o foco dos outros se apagam)

GUTO
Doutora, eu acho que pode ser eu. Me desculpe.

DRA. MANOELA
Sofia?

GUTO
Sim. Eu acho que pode ter acontecido nos meus sonhos e que eu possa ter inventado alguns detalhes. (Lucas) Mesmo o choro do bebê da casa da sua tia? (Sofia) Eu posso só ter uma audição aguçada, os vizinhos, deve ter alguém com um bebê por perto. Não sei! Eu sei que já me aconteceu coisas estranhas, mas eu não tenho tanta certeza assim. Eu acho que muitas delas podem ter sido um sonho mesmo, que eu tornei real. 

DRA. MANOELA
É maravilhoso o ato de confissão, Sofia. Eu só queria não disperdiçar a sua criatividade, nessa sua aventura dessa vida e dizer que mesmo que tudo isso seja um sonho, isso não impede que seja real. Eu só queria que a gente colocasse na mesa as verdades do que a gente realmente acha! E a sua incerteza é a melhor verdade que a gente tem, Sofia. Eu agradeço você por partilhar conosco das suas dúvidas.

(o foco dos outros retorna)

SOFIA/GUTO
Tem uma voz na minha cabeça, mas até que pode ser eu mesma

DIRCE/GUTO
Foi um dia grandioso de arrebatamento

LUCAS/GUTO
Eu não invento, eu só aumento

TODOS
Nada dá pra ter certeza
Fazer história com um evento
É o cumprimento
De um destino que cada um escolheu pra si

SOFIA/GUTO
Eu acho que eu me perdi um pouco aqui

LUCAS/GUTO
Eu acho que eu sou muito curioso pra por um fim

DIRCE/GUTO
Eu acho que deus tem um propósito pra mim.

TODOS
Se for assim, que assim seja
Com muita clareza a história real.

SOFIA/GUTO
Doutora, eu acho que eu estou cansada.

DIRCE/GUTO
Todos estamos.

LUCAS/GUTO
É, eu acho que a gente podia fazer um recesso aqui.

DRA. MANOELA
Tudo bem, pessoal. A gente pode voltar pra casa agora. Vejo vocês semana que vem?

SOFIA/GUTO
Sim, sim, claro que sim.

LUCAS/GUTO
Eu venho sim.

DRA. MANOELA
Dirce?

DIRCE/GUTO
Você, como todo mundo na minha vida inteira, vai me chamar de mentirosa de novo?

DRA. MANOELA
Não, Dirce, eu não estou aqui pra fazer acusações ou julgar. Eu estou tentando nos aproximar da verdade.

DIRCE/GUTO
Eu entendo. Mas eu não gostei dessa exposição dessa noite.

DRA. MANOELA
Volte semana que vem. Por favor. Pela nossa amizade.

DIRCE/GUTO
A gente tá sempre por aqui mesmo, né. Eu tenho que pegar um remédio também, o meu tá acabando.

DRA. MANOELA
Ótimo.

SOFIA/GUTO
Tchau, gente. Até amanhã!

LUCAS/GUTO
Tchau!

(Dirce, Sofia e Lucas saem de cena; Guto fica sozinho com Dra. Manoela; ele parece acordar de um sono profundo)

GUTO
Eu disse, doutora. A Dirce nunca vai contar a verdade. É um peso pra ela. Esse dia na goiabeira realmente mudou tudo na vida dela, doutora.

DRA. MANOELA
O que aconteceu na goiabeira, Augusto?

GUTO
Eu não sei se eu posso falar dessas coisas aqui, assim. É segredo da vida dela, ela quem devia se abrir.

DRA. MANOELA
Guto, nós psicólogos seguimos à risca uma ética moral com nossos pacientes. Tudo o que você fala aqui é entre nós. A coisa que mais me deixa preocupada, Augusto, é a história deles afetar diretamente na sua vida. Você precisa começar a deixar os problemas deles pra eles resolverem. Você não pode ficar responsável por tudo isso.

GUTO
Eu sei, doutora, eu sei. Mas o que eu posso fazer? Eles estão dentro da minha cabeça.

DRA. MANOELA
Sim. Me conte o que aconteceu na goiabeira.

(silêncio)

GUTO
O avô da Dona Dirce. O sítio era do avô dela.

DRA. MANOELA
Sim.

GUTO
O avô não era homem bom, não, doutora. O pé de goiaba era onde ele levava ela e...

(Dirce entra)

DIRCE/GUTO
Eu era só uma menina, doutora. Meu avô era bem cachaceiro, bem bruto, sempre batia na minha vó. Eu achava que aquela rotina era uma coisa normal. A vida era aquilo pra mim, doutora.

DIRCE
Eu era a mais velha das minha primas. Ele falava que a família devia se amar assim, com carinho, sem medo, e que por ser a mais velha tinha umas obrigações à mais. Eu achei que a vida real era assim, que isso que ele fazia era normal. Por um bom tempo eu até tinha parado de confrontar o meu sentimento de não querer fazer aquilo, eu tinha aceitado a minha história até. Aí um dia um rapaz viu meu avô comigo no pé de goiaba e matou meu avô à pauladas, na minha frente. Era Augusto o nome do moço, doutora, eu nunca vou esquecer, ele trabalhava na usina, mas não era daqui. Não era Jesus, nem parecia com Jesus. (pausa) Eu implorei pra que o Augusto fugisse e que não contasse pra ninguém nada. Eu falei pra polícia que tinha sido um roubo no sítio. Inventei toda uma história que eu tinha ficado sequestrada em cativeiro com vários homens encapuzados. (pausa) Eu tinha vergonha. Vergonha da verdade, porque... a verdade é nojenta, doutora. A verdade é nojenta.

DIRCE/GUTO
Essa é a minha história, doutora. Essa é a história da Dirce.

(Dirce sai; Guto e Dra. Manoela refletem se olhando)

DRA. MANOELA
É terrível, Guto.

GUTO
Eu sei.

DRA. MANOELA
É por isso que a gente precisa ter compaixão até dos mentirosos, Guto.

GUTO
É. Pois é.

DRA. MANOELA
Jesus foi uma muleta pra Dirce aguentar.

GUTO
Eu sei. Quando eu vi aquele velho se esfregando na menina, minha primeira reação foi pegar o primeiro pedaço de pau e eu arrebentei a cabeça dele!

DRA. MANOELA
Você está diretamente envolvido nas histórias dos seus outros personagens, Augusto. Ou vocês são uma única pessoa ou então você precisa parar de interferir na realidade deles.

(silêncio)

GUTO
Eu sei que você tem razão. Mas eu não consigo evitar. Eles estão aqui.

DRA. MANOELA
Deixa eles irem embora, um pouco. Pode ser? Tenta passar a semana sem interferir, nem espia o que eles estão fazendo. É um jogo.

GUTO
Não sei, difícil prometer...

DRA. MANOELA
Augusto, olha aqui pra mim. Nós estamos num processo de evolução artística e espiritual. Você precisa andar junto comigo se a gente quer ter alguma melhora. Uma semana. Uma semaninha sem interferir na vida da Dirce, ou da Sofia ou do Lucas, ok? E nem deixar eles interferirem na sua também. Uma semana sem nem pensar neles!

GUTO
Ai, doutora...

DRA. MANOELA
Tenta. Só tenta, Guto. Não tem prêmio ou punição. Só tenta.

GUTO
Tá bom. Eu vou tentar.

(Guto desaparece)


EPÍLOGO 1

(um foco pequeno destaca Dra. Manoela em um espelho; ela dá três beijinho de despedida em si mesma)

DRA. MANOELA
Nos vemos na próxima semana então, né? (Guto) Sim, doutora, sem dúvida nenhuma. Eu tenho que pegar os meus remédios também, os meus já estão acabando. (Dra. Manoela) Certo. Fica assim então. Passe ali com a Patrícia que ela vai acertar com você aquela papelada. (Guto) Tá bom, doutora. (Dra. Manoela) Ô, Patrícia! Pegue o histórico do Augusto pra mim, por favor! (Patrícia) Pego sim, doutora! (Dra. Manoela) Entrega pra ele. (Patrícia) Ok, doutora, já tô separando. (Dra. Manoela) Obrigada, querida. E tenta, Guto, só tenta não deixar os outros influenciarem na sua vida, vai ser melhor pra você, você vai ver.

(todos os outros entram em cena)

TODOS
Tá bom, doutora, eu vou tentar.

(black-out)  


EPÍLOGO 2

(o Escritor aparece em um foco finalizando um trabalho, numa energia grandiosa; ele fuma e está concentradíssimo na finalização do seu texto; música prepara um clima de tensão e aventura)

ESCRITOR
Finalmente! Acabei! Esse texto vai se chamar Tem Uma Voz na Minha Cabeça!

(black-out)


FIM




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