REPRODUZO
Persoanagens
Ariel
Mymo
CAPITULO 1
Cenário: um ponto de ônibus.
(os atores arrumam a cenografia e adereços em cena; eles
sentam-se; black-out)
(quando a luz retorna, ambos bebem algo de uma xícara;
eles se olham, e o som e a cena congelam aos poucos; eles ficam estáticos por
alguns segundos)
ARIEL/MYMO
Não, esperar não é uma dádiva
O fim não vai chegar com um aviso prévio
Não vai existir contraceptivos pós núpcia
Quando as pontas dos bicos estiverem flácidas, pútridas
As coisas acontecem e as coisas acontecem e só
Gente não é prédio, ou xilindró – muito menos xilindró!
Patrícias ou Maurícios vão embora com os mesmos pulmões
Gente que expulsa as caraminholas com decepções
Gente esperando pelo amanhã que é um vulcão estourado
E a lava já tem queimado, desde os anos noventa, sem ao
menos perceber que dói
Corrói, estupra
Estupra...
ARIEL
Ah, você está aí.
MYMO
Só agora reparou? Eu disse a fala em coro com você. Já
esqueceu?
ARIEL
Era o combinado, né.
MYMO
Pensei que fosse dizer com mais entusiasmo, isso. Como
combinado.
ARIEL
Isso o que?
MYMO
“Você está aí”. “Ah, você está aí!”
ARIEL
Estou! (pausadamente) Eu estou aqui! E linda. E confiante
dessa vez! E com o status atualizadíssimo com felicidade e dezembros
maravilhosos! E histórias e conquistas!
MYMO
Nome de sereia. É só por fora, isso.
ARIEL
O que?
MYMO
Tá na sua cara que é externo, não interno.
ARIEL
Como assim?
MYMO
Sua felicidade. Sua confiança.
ARIEL
Calma. O que?
MYMO
É mentirosa. Tá na cara que tudo isso é camuflagem de uma
insegurança. Carroça vazia faz mais barulho.
ARIEL
Cale a boca. Não existe esse tipo de coisa, idiota.
Insegurança é pra gente feia e magra. Eu sei que as pessoas gostam de mim.
Gostam do meu carisma, do meu sorriso. Eu abuso disso. Abuso dos meus
seguidores.
MYMO
Não existe as pessoas gostarem da gente pelo que a gente
é. Normalmente a gente bota uma máscara na cara pra que elas nos suportem.
Ninguém suportaria ninguém se fossemos cem por cento nós mesmos.
ARIEL
Até hoje nunca usei máscara, Mymo. Nem em cena, pois
todos queriam ver a pele da minha bochecha brilhar! Diva define.
MYMO
A gente usa todo dia sem perceber, isso que eu queria
dizer.
ARIEL
Ai, cale a boca!
MYMO
Em cena e em casa. Na farmácia, no mercado. No
ginecologista! Com cada um deles, agimos diferentes. Com a própria mãe, com o romance,
etc. Sempre mascarados.
ARIEL
Ai, cale a boca, Mymo...
MYMO
Para de me mandar calar a boca, caramba!
Para de me mandar calar a boca, caramba!
ARIEL
Cale a boca! Cale a boca! Cale a boca! Eu sei o que eu
vivo, e quem eu sou. Não existe máscara! Sei bem defender minha ideologia. E
sem gaguejar! Olha: (para a plateia) “Me aceitem mortais! Eu sou o pupilo dos
seus olhos!”
MYMO
Eu não faço ideia de quem eu sou. Porque a gente nunca é
nada. Todo dia a pele cai. Ninguém é bonito, alguns praticam a beleza. A
diferença é que tem gente que pratica até virar craque. E, meu deus, o craque é
foda.
ARIEL
Foda. (pausa) Eu me importo com outras coisas que você,
Mymo. Você sabe.
MYMO
Não me chame assim. Eu odeio que me chame de Mymo.
ARIEL
Eu me importo com mimos! Essa sou eu! (ri) Não você,
claro! Mimos! Flores!
MYMO
Consequência de carência.
ARIEL
E eu quero um mimo com ípsilon. Eu quero ser uma mimada
bonita e internacional! (gargalha)
MYMO
Eu me importo mais em ser cheiroso e palpável.
ARIEL
Você é tonto.
MYMO
Você é fútil.
ARIEL
Fútil, porém sexualmente ativa!
MYMO
Fútil. E paranoica. Passiva machista.
ARIEL
Te deixo, então, com sua solitud espiritual, Mymo... Vá pastar com seu sonho que,
obviamente, não chega aos pés do que eu quero... Eu quero gente que sonhe
comigo!
MYMO
Pois quer que eu sonhe por você, retardada? Você não é
mais que uma bela folgada!
ARIEL
Eu quero que me mimem, Mymo. Me mime! Me mime, Mymo!
MYMO
Não me chame de Mymo, que saco!
ARIEL
Mymo,
Mymo, Mymo, Mymo!
MYMO
Puta.
(silêncio)
MYMO
Na sua história, você é protagonista. Porém na minha,
você é coadjuvante.
ARIEL
Quase figurante, eu sei. Mas enquanto eu não for memória
na cabeça dos outros, que eu defenda meus direitos de ser a mocinha mais linda
e simpática e adorável de todos os tempos.
MYMO
Você não é bonita, Ariel. Você se reproduz como tal. Com
máscaras.
ARIEL
E você não está próximo de deus, Mymo. Você não está
próximo de nada! Você é um zero à esquerda!
(silêncio)
MYMO
A única coisa certa é que uma hora chega.
ARIEL
Uma hora chega o que?
MYMO
Uma hora chega.
ARIEL
Uma hora chega o que, caralho?
MYMO
Uma hora a hora chega. E chegue a hora que chegar, a hora
estará na espera.
ARIEL
(pausa) Ai, como eu odeio seu jeito de falar! Esse
mistério e esse jeito de deixar as coisas...
MYMO
Deixar as coisas?
ARIEL
Cultas! Odeio essas coisas. Você falou um monte de merda
aí, só que soa bonito porque você fala com esse tom. Fica parecendo que eu sou
burra e você intelectual! Qual seu filme predileto?
MYMO
Filme? Ahn...
ARIEL
Um filme bom!
MYMO
Ai, gosto de tantos. Mas é um teste? Você está me
testando?
ARIEL
Quero saber seu grau cultural.
MYMO
(ri)
ARIEL
Tá rindo de quê?
MYMO
Alguém divino chegou e te passou o bastão julgador que te
deu o direito e sabedoria de dizer o que é cult e o que é merda?
ARIEL
Não. Mas bom senso já é um começo pra se discutir.
MYMO
Quer que eu seja sincero ou bacana?
ARIEL
Sincero.
MYMO
Meu filme preferido é A Hora do Pesadelo. O primeiro.
ARIEL
Do Freddy Krueger? (ri)
MYMO
E o seu?
ARIEL
Ah, tem muitos.
MYMO
Diga um.
ARIEL
Ah, deixa eu ver... Casablanca. Já viu? É lindo de
morrer.
(silêncio)
MYMO
Por termos níveis culturais diferentes não devemos mais
conversar?
ARIEL
Oi?
MYMO
Nossos níveis intelectuais são diferentes. Devo ir
embora?
ARIEL
Você já consegue? Já chegou o seu?
MYMO
Acho que ainda não. Mas devo tentar? Talvez eu vá à pé.
ARIEL
Não. Tirando tudo isso, você é engraçadinho. Mas Freddy
Krueger? Fala sério...
MYMO
Eu não tenho nada de engraçadinho.
ARIEL
Você é bem engraçadinho. Só não sabe.
(silêncio)
ARIEL
Que filme você iria dizer se fosse tentar ser bacana ao
invés de sincero?
MYMO
Casablanca.
Casablanca.
ARIEL
Mentiroso!
MYMO
Sério.
ARIEL
Mas já assistiu?
MYMO
Não.
(silêncio)
ARIEL
Eu morria de medo do Freddy Krueger quando eu era
criança.
MYMO
Eis a mágica.
ARIEL
O que?
MYMO
Eis a mágica da máquina de enganação.
ARIEL
Cinema?
MYMO
Arte.
ARIEL
Ai, cale a boca.
MYMO
Caralho, menina!
ARIEL
A arte não tem nada de enganação. Nada! Talvez a
realidade seja mais enganação que a arte. Na vida a gente se engana mais que na
arte. Na arte a gente melhora o que temos de pior. Faz verdade o que é mentira.
MYMO
Como assim? Melhora como? Não entendi.
ARIEL
Por exemplo, uma vez fiz uma cena de estupro. Mas foi uma
cena linda de estupro.
MYMO
(gargalha)
ARIEL
Ué, que foi?
MYMO
Como uma cena de estupro pode ser linda, sua louca?
ARIEL
No fundo, umas crianças brincavam de roda. E caía
camomila do teto do teatro. Enquanto eu era estuprada loucamente pelo meu
próprio irmão. Uma cena linda. A iluminação era impecável.
MYMO
Não gosto do cheiro de camomila.
ARIEL
Eu não gostava muito do cheiro do ator que me estuprava. O
Wagner. Tá fazendo novela agora. Tinha bafo.
MYMO
Famoso também caga.
(silêncio; eles permanecem parados por longos segundos;
por fim, Mymo boceja; eles se olham, e sem romance ou insinuação, se beijam
mecanicamente; eles se masturbam rápido e seco; a iluminação reparte as cenas)
ARIEL
Tem um cigarro?
MYMO
Parei.
Parei.
ARIEL
Que luta.
(silêncio)
ARIEL
E a hora que a gente conseguir chegar?
MYMO
O que?
ARIEL
Sabe? A hora que a gente chegar lá, o que vai ter de
legal pra fazer? A gente põe tantas expectativas em coisas tão tontas. E no
fim, tudo é sempre igual.
MYMO
É mesma sensação de quando a gente era criança e
imaginava ser adulto. A vontade de ter vinte anos e depois trinta. E no fim, só
parece que ficou mais estranho ainda.
ARIEL
É que ainda não é bem o fim. (pausa) E quando não rolar
mais essa dúvida, cara? Será que uma hora para?
MYMO
Uma hora a hora chega.
ARIEL
Odeio quando fala isso. Digo de quando conseguirmos
chegar lá.
MYMO
Lá onde?
ARIEL
Como assim “lá onde”?
MYMO
O ônibus já tá atrasado.
ARIEL
Que horas ele disse que vinha?
MYMO
Como assim “disse que vinha”? Ônibus não avisa. Ele só
passa.
ARIEL
Que nem a vida.
(silêncio)
ARIEL
Mas é aqui mesmo?
MYMO
O que?
ARIEL
O ponto?
MYMO
Que ponto?
ARIEL
De ônibus, cacete! É aqui o ponto pra chegar lá?
MYMO
Não sei onde é o seu “lá”. Conheço as linhas apenas pelos
números, não pelos destinos. Você vai aprendendo a usar a matemática mais do
que o coração nesse lugar.
ARIEL
E a hora que chegar?
MYMO
O que é que tem?
ARIEL
Vai ser o que?
MYMO
O que de que?
ARIEL
O que vai acontecer quando chegarmos lá?
MYMO
Vai acontecer a mesma coisa de sempre. Todo dia a gente
chega lá, a gente só não sabe disso.
ARIEL
Impossível. Eu nunca estive nem próximo. E não foi por
falta de vontade, viu. Tá caro o preço do transporte público. Não dá pra
brincar de simplesmente ir à caça.
MYMO
A gente já chegou no objetivo. O objetivo era sobreviver
até amanhã. E hoje é o amanhã de ontem. Estamos no lucro, pelo menos.
(silêncio)
ARIEL
Você é idiota.
MYMO
E você, fútil!
ARIEL
Só sabe dizer isso agora?
(silêncio; longo silêncio; eles se olham, Ariel boceja;
Mymo se levanta e vai mijar ao fundo, de costas para ela)
ARIEL
Curte penetração?
MYMO
Hã?
ARIEL
No sexo. Curte penetração? Curte que te penetrem?
MYMO
Curto. Mas só tenho vivências com o sexo feminino.
ARIEL
E eu com o sexo masculino. Deixa que te enfiem o dedo?
MYMO
Depende. Não curto muito esse tipo de coisa, mas...
ARIEL
Quer enfiar o dedo?
MYMO
Onde?
ARIEL
No cu.
MYMO
No meu?
ARIEL
No meu.
MYMO
E como seria?
ARIEL
Eu abaixo e você enfia.
MYMO
E o cheiro?
ARIEL
O que?
MYMO
O cheiro do seu cu. Eu tenho problemas com isso.
(silêncio)
ARIEL
Perdi o clima. Não gosto quando metem cheiro no meio das
coisas. Eu me lembro do bafo do Wagner. Ele tem beijado aquela mocinha. Como é
mesmo o nome? Na novela. Ele beija aquela atriz que fez aquele filme. Ai, como
é mesmo o nome?
MYMO
Eu fiquei num tesão agora. Você falando de enfiar dedo no
cu. Fiquei num tesão de enfiar alguma coisa em você. A palavra enfiar já é
maliciosa por si só. Só não quero o dedo. Eu coço o nariz com o dedo. E roo
unha.
ARIEL
Perdi o clima. Deixemos pra outra vez.
(silêncio)
MYMO
E no meu? Quer?
ARIEL
Quer que eu enfie o dedo no seu cu?
MYMO
Quero. Tenho curiosidade...
ARIEL
Eu nunca comi um cara desse jeito.
MYMO
Eu tenho curiosidade.
ARIEL
Abaixe a calça e fique de quatro.
(ele obedece)
ARIEL
Hum. Bunda de homem devia ser censurada.
MYMO
Enfia.
ARIEL
Você me encanou com o lance do cheiro. Você se lavou?
MYMO
Tomei banho. Mas não fiz lavagem interna. Enfia, não
pensa.
ARIEL
Posso só olhar dessa vez?
MYMO
Não gosto de ficar nessa posição pra só ficarem olhando.
ARIEL
Tá com fogo, Mymo? Será que o vírus da homossexualidade
te pegou? Eu tenho vagina, meu cacete ainda não cresceu.
MYMO
Não quero passividade, Ariel. Eu quero experimentar o seu
experimento.
ARIEL
E como funciona isso?
MYMO
Quero entender qual é o seu tesão. O que te dá tesão.
ARIEL
O correto seria você enfiar no meu. É mais natural a
sodomia heterossexual.
MYMO
Certo.
(eles invertem de posição; Ariel se vira automaticamente,
e logo se lembra que não queria)
MYMO
Sua bunda é bonita.
ARIEL
Acho que não vai rolar.
MYMO
Não se preocupe. Não quero enfiar nada aí.
ARIEL
Por que não?
MYMO
Faria perder a majestade!
ARIEL
Hã?
MYMO
Meu sexo faria deixar vulgar algo tão divino como sua
bunda.
ARIEL
Um beijo?
(Mymo dá um selinho em Ariel)
ARIEL
Eu quero um beijo ali atrás.
MYMO
Um beijo?
ARIEL
Um beijo grego.
MYMO
Sou mega encanado com o cheiro das coisas. Você se lavou?
ARIEL
Com sabonete íntimo.
MYMO
Feminino?
ARIEL
Unissex. Dove.
(Mymo vai beijar a bunda de Ariel; a imagem congela pouco
antes)
(luzes de serviço se acendem; os atores sentam-se nos
mesmos lugares do início; black-out)
CAPITULO II
(as luzes acendem e novamente eles tomam algo de uma
xícara; mais uma vez a cena fica estática, primeiro em câmera lenta e depois
totalmente parada; logo retornam normalmente à velocidade real)
MYMO
Ah, você está aí, sua lazarentinha filha da mãe!
ARIEL
Mymo! Por onde esteve, menino? Faz uma vida que não nos
trombamos!
MYMO
Estive esperando um buzão, cara. Tenta não me chamar por
esse nome.
ARIEL
Eu também, meu. Levou uma vida pra chegar, o filho da
puta.
MYMO
Nem diga. E quando chegou, o preço era de cagar.
ARIEL
Eu finjo ser deficiente. Não pago. Ó: (ela manca)
MYMO
Bacana. Eu tô tentando entrar na área militar. Também
fica livre da catraca. Quero ser P.M.
(silêncio)
MYMO
Eu curto esses lances, um pouco.
ARIEL
Não conta pra ninguém o lance de deficiente. Eu tenho até
atestado médico já. Iria dar o maior B.O.
MYMO
Não seja idiota. Sempre tem jeito de dar um jeitinho.
ARIEL
Como?
MYMO
Sempre se ajeita um jeito de as coisas se ajeitarem.
ARIEL
Me dá um exemplo!
MYMO
Oras, uma hora chega a hora de se dar um jeito no jeito
de se ver as coisas.
ARIEL
Eu já conheci um cara como você antes. Era bem parecido,
o jeitinho. Fazia uns trocadilhos bestas assim também. Eu me irritava um pouco
com ele, mas... Parceiro de banco de ônibus.
MYMO
Todo mundo me diz que eu sou parecido com alguém. Deus
perdeu a inspiração quando me fez.
ARIEL
Eu também.
(silêncio)
MYMO
O que tá fazendo por aqui?
ARIEL
Bom, enquanto não chega a hora da minha condução, eu tô esperando nascer o pezinho que eu plantei. E você?
Bom, enquanto não chega a hora da minha condução, eu tô esperando nascer o pezinho que eu plantei. E você?
MYMO
Ah, é? Couve?
ARIEL
Não. Por que couve?
MYMO
Eu gosto de couve. É uma comida barata.
ARIEL
Realmente. Mas é... eu plantei um outro tipo de coisa. É
difícil de explicar, porque vai ficar parecendo estupidez. Mas eu pensei: poxa,
não custa tentar! E mesmo que não aconteça realmente, eu creio no aprendizado
do sentido que isso vai deixar na minha vida. Pelo sentido da coisa, sabe?
MYMO
Entendo. Também sou cheio dessas porcarias.
(silêncio)
MYMO
Afinal é o que, então?
ARIEL
É uma moeda de um cruzeiro.
MYMO
Um cruzeiro?
ARIEL
É. Eu plantei. Faz algumas horas. Regado com champanhe.
Pra dar um ar classe A.
MYMO
Mas o cruzeiro nem tá mais em circulação. Eu nem peguei
essa fase do cruzeiro. De que adianta um pezinho de cruzeiro, sua louca?
ARIEL
É que eu não quero parecer capitalista. Quero mais pelo
sentido da coisa.
MYMO
Não consigo te entender.
ARIEL
Ora, todos precisamos de dinheiro, certo?
MYMO
Certo.
ARIEL
Você sabe pra que?
MYMO
Pra comer.
ARIEL
Certo. E pra que mais?
MYMO
Pra viver.
ARIEL
Certo. E que mais?
MYMO
Hum... Pra ter dinheiro pra dar rolê.
ARIEL
E que mais?
MYMO
Pra pagar as contas!
ARIEL
Uhum.
MYMO
Viajar, cartão de crédito!
ARIEL
Certo.
MYMO
Pra arrumar uma namorada e comprar um perfume caro! Pra
ter um carro e depois mostrar pra todo mundo que não acreditou no seu sucesso
que sim, sim!, você é uma pessoa bem sucedida, e bem sucedida fora das redes
sociais! Uma pessoa bem sucedida e bem resolvida na vida real!
ARIEL
E que mais?
MYMO
É... pra dar rolê...
ARIEL
Você já disse.
MYMO
... comer comida boa, ajudar a mãe...
ARIEL
Certo. E aí?
MYMO
Aí... aí só.
ARIEL
Viu? Por isso que eu plantei outra coisa.
(silêncio)
MYMO
Dizem que couve nasce super rápido.
ARIEL
Quer tentar plantar uma moeda de um real?
MYMO
Eu?
ARIEL
É. Se nascer, fica pra você.
MYMO
Mas eu não tenho um vaso pra tentar.
ARIEL
Usa o meu. Eu troco um espaço do vaso por um cigarro.
Topa?
MYMO
Parei de fumar. Mas se nascer só uma das duas moedas como
vamos saber qual é a minha? Porque a minha vale, a sua não.
ARIEL
Veremos já no broto.
(silêncio)
MYMO
Eu poderia plantar uma nota. O que acha? Vale mais, deve
ter mais chances.
ARIEL
Uma nota de quanto?
MYMO
Sei lá. De dois.
ARIEL
Eu não sei por que, mas tenho a impressão que uma moeda
de um real é mais bonita que uma nota de dois. Acho que é pelo dourado na
borda.
MYMO
Então uma nota de dez.
ARIEL
Vinte!
MYMO
Vinte e cinco!
ARIEL
Cinquenta!
MYMO
Ok. Você venceu. É minha maior nota por hoje.
(ele retira a nota de uma carteira e entrega para Ariel)
ARIEL
Que horas seu ônibus disse que vinha?
MYMO
Não sei. O meu não fala. Mas acho que temos tempo.
ARIEL
Não sei, não. Se quiser eu cuido pra você e você vem
buscar outro dia.
MYMO
Não, quero ver o broto brotar.
ARIEL
Não sei...
MYMO
Deixa que eu planto. (ele retira a nota da mão dela e
cava um pouco o vaso)
ARIEL
Só cuidado pra não amassar muito.
MYMO
Relaxa. Quanto mais enfiado, mais chance de enraizar.
ARIEL
Então é igual quando a gente mete.
MYMO
Pode ser.
(ele termina de enterrar a nota em silêncio)
MYMO
Agora o champanhe.
ARIEL
Não! Vai encharcar a nota...
MYMO
Mas ela precisa beber alguma coisa. Se não, que graça tem
nascer? Tem que ter alguma coisa pra por pra dentro, manja? De pequeno eu já
sabia isso. Vivia metendo coisa dentro da boca. Nós temos essas pirações, né?
De meter coisa pra dentro da gente.
ARIEL
Hoje em dia tem meios mais seguros de se fazer esse tipo
de coisa.
MYMO
Como?
ARIEL
Sei lá. Dizem por aí. O foda é que na hora do “vamo ver”
é difícil lembrar dessas campanhas.
MYMO
Não sei do que está falando.
(Mymo derrama champanhe no vaso)
ARIEL
Caralho! Estragou uma nota de cinquentão!
MYMO
Ué, mas não era você a nega cheia de fé?
ARIEL
É que a gente tem mais facilidade em acreditar que seja
mais fácil achar uma moeda de um real na rua que uma maleta com um milhão, não
é? E quais são as probabilidades? Você sabe?
MYMO
Não sei.
ARIEL
E com uma moeda de um cruzeiro?
MYMO
Não sei também.
ARIEL
(misteriosa) São as mesmas.
(silêncio; eles esperam pacientes olhando para o vaso;
eles andam um pouco ao redor do vaso, apenas esperando alguma coisa acontecer)
ARIEL
Tá escurecendo. Quer indo? Eu cuido pra você.
MYMO
Não. Não posso perder esse passo da evolução da nossa fé.
Fazer árvores de dinheiro e comprar a porra da felicidade!
ARIEL
Acredita mesmo nisso?
MYMO
Ué, pode ser, não pode? Você quem disse. Conseguiu me
convencer. Tô apostando na sua aposta.
(eles esperam de novo; por alguns longos segundos nada
acontece; Ariel começa a desanimar; Mymo ainda confiante)
ARIEL
Podemos fazer alguma coisa pro tempo passar.
MYMO
Curte penetração?
ARIEL
Curto.
(Mymo se abaixa apoiando no vaso; Ariel se ajeita para
meter)
MYMO
Só vai devagar. Minha ex tinha pinto fino.
Só vai devagar. Minha ex tinha pinto fino.
ARIEL
Se doer você me fala.
(Ariel come Mymo realisticamente; eles gozam)
ARIEL
Tem um cigarro?
MYMO
Parei. Faz uns meses. Quero servir o exército.
ARIEL
Lugar de homem é na cavalaria.
(silêncio)
ARIEL
Eu estava tirando um sarro de você.
MYMO
Oi?
ARIEL
Não vai nascer pé de dinheiro. Isso é fantasia.
MYMO
Na arte a vida vira realidade. Uma amiga costumava me
dizer isso.
ARIEL
Eu queria ganhar um dinheiro em cima da sua ignorância.
Foi isso.
MYMO
Mentira.
ARIEL
Sério. Eu reclamo da corrupção, mas sou do tipo que odeia
a polícia que me multou por estar acima da velocidade. Eu costumo furar fila.
Pronto, falei.
MYMO
Você tem carro?
ARIEL
Não. Não soube que agora temos velocidade para o
pedestre? Imagina pra mim que sou manca! Ó: (ela manca)
MYMO
Mentira!
ARIEL
Sério. Eu só queria ganhar seus cinquenta mango. Ia
ajudar na condução. Pior que eu nem sei pra onde tenho que ir.
(silêncio)
MYMO
Eu molhei com champanhe.
ARIEL
Eu tô arrependida. Segundo a lei nove mil seiscentos e
setenta e sete na defesa dos direitos humanos de número oitenta e três, barra
doze: não importa qual tenha sido o ato, se houver arrependimento o crime se
neutraliza. Não me julgue, na lei estou livre da sua condenação.
MYMO
Se estivesse precisando de dinheiro era só dizer.
ARIEL
Eu tô precisando de dinheiro.
MYMO
Pra que?
ARIEL
Pra comer. Pra beber. Essa ansiedade louca de enfiar
coisas goela a baixo.
MYMO
Quanto precisa?
ARIEL
Mil cruzeiros.
MYMO
Cruzeiros? Mas cruzeiro já não vale mais nada, sua louca!
(silêncio)
ARIEL
Então não sei o que eu preciso. Acho que eu precisava que
o broto nascesse. Ia me dar esperança.
(silêncio)
MYMO
Acho que aquele é seu ônibus, não é?
ARIEL
Meu deus! Como sabia?
MYMO
Não sabia.
ARIEL
Ah, não é.
MYMO
Não?
ARIEL
Aquele vai pro... Ah, não. É sim. É aquele. Não consigo
decorar o número nunca. Deixe eu pegar meu cruzeiro de volta.
(procura no vaso)
MYMO
Nove, dois, quatro, nove, nove, oito, sete, oito, dois,
quatro, nove, zero, um, oito, novo, sete, seis. (pausa) Barra, um, zero,
quatro, cinco, oito, zero, nove, seis. Você vai longe.
ARIEL
Achei. São duas moedas, graças a deus.
MYMO
Duas?
ARIEL
As chances seriam maiores.
MYMO
Pensei que estivesse só tentando me enganar.
ARIEL
Tava tentando me enganar também. (ela acha) Adeus. (sai)
(Mymo ajoelha-se envolta do vaso, e aguarda algo
acontecer; black-out)
CAPITULO III
(uma luz escura; Ariel está sentada com os pés em cima de
Mymo, que corta suas unhas)
ARIEL
Mymo.
MYMO
Não me chame por esse nome.
ARIEL
Você sabe quem eu sou?
MYMO
Você é a Ariel.
ARIEL
Que Ariel?
MYMO
A Ariel, caramba.
ARIEL
Você já sabe tudo o que eu fiz e o que me aconteceu na
vida?
MYMO
Sei lá! Vamo parar, hein! Vamo parar!
ARIEL
Ai, é que eu não aguento mais, Mymo! Essa porra desse
ônibus tá demorando uma porra!
MYMO
Não desconte em mim. Deixa acontecer naturalmente. Já
diziam.
(silêncio)
ARIEL
Eu quero que chegue logo.
MYMO
Por que a pressa?
ARIEL
Porque sim. Odeio viagem longa. Vai saber quanto tempo
ainda perderemos dentro do ônibus.
MYMO
Tem razão. São esses motoristas! Tenho certeza! Se eu
tivesse meu próprio carro...
ARIEL
Qual ia ser a diferença?
MYMO
Eu ia ter um carro. E daí eu podia largar tudo e ir morar
na praia. Morava dentro do carro. E depois mudava pra Belo Horizonte. E depois
pra China!
ARIEL
Ai, cale a boca! Eu tinha uma professora da Universidade
Bélica de São Cristóvão do Apuro lá de Belo Horizonte também, que escreveu uma
tese de doutorado sobre a nossa vida e os carros. Eu não me lembro muito bem de
todas as frases exatas da tese, porque ninguém consegue decorar essas coisas
inteiras, né? Mas eu lembro que a última frase era assim: fique longe deles.
Assim. Bem misterioso mesmo. Eu nunca soube em quem acreditar. Mas essa é uma
filosofia de vida que eu levo até hoje, pra mim.
MYMO
Que bosta.
(silêncio)
ARIEL
Eu já fiz alguma coisa legal, Mymo?
MYMO
Você já enfiou o dedo... Ah, não. Não sei dizer.
ARIEL
Enfiei o dedo onde?
MYMO
(ri) Não lembra?
ARIEL
Lembro. Queria te ouvir dizer.
(silêncio)
ARIEL
Ai!
MYMO
Ai! Foi mal!
ARIEL
Foi péssimo! Tirou um tolete do meu dedo, seu lazarento!
Vai sangrar pra porra!
MYMO
Desculpe.
ARIEL
Vai embora! Vai esperar o ônibus no outro ponto! Vaza!
MYMO
Calma!
ARIEL
Me dá os meus cinquentão! Me dá os meus cinquentão!
MYMO
Seus? São meus!
(Ariel violentamente esbofeteia Mymo)
MYMO
Para! Para! Sua louca!
ARIEL
É de quem? De quem é? Dá! Dá, caralho! Dááá!
MYMO
Toma, porra! (entrega a nota de cinquenta)
ARIEL
Obrigada! (pausa) Quer meter?
MYMO
Lógico.
(Ariel se apoia no banco; Mymo mete duas vezes e goza
escandalosamente)
MYMO
Oh! Oh!
ARIEL
(sem ânimo) Caralho, hein. Que delícia.
MYMO
Né?
ARIEL
Dá um cigarro.
MYMO
Parei.
ARIEL
E não comprou pra mim?
MYMO
Eu ainda não te conheço direito, sabe.
(silêncio)
ARIEL
O que? Hã? Repete isso que você falou.
MYMO
A gente é parceiro de luta. Esqueceu?
ARIEL
Que luta? Que luta?
MYMO
Pra conseguir chegar no...
(Ariel esbofeteia Mymo mais uma vez)
MYMO
Mas que porra, meu!
ARIEL
Vamos embora daqui.
MYMO
Meu buzão tá quase vindo.
ARIEL
Vai pra onde?
MYMO
Sei lá. Vou encontrar uma amiga.
ARIEL
Que amiga? Feminina?
MYMO
Sim. Ela vai meio que me indicar.
ARIEL
Indicar pra quê? Você é idiota?
MYMO
Me indicar pro futuro, cacete! Nós ficamos esse tempo
todo discutindo sobre as coisas. Não é?
ARIEL
É.
MYMO
Que coisas?
ARIEL
E eu sei lá!
MYMO
Por que a gente não perde esse tempo, que a gente perde
diariamente preso nessa maquinaria terrestre, com a força do desejo?
ARIEL
O que?
MYMO
A força do desejo. Eu tenho tido umas crises fortes
existenciais, sabe. E aí uma tia – que se chama Ariel também, curioso, isso –
me emprestou uns livros e caralho. Caralho, meu. É da hora.
ARIEL
Por favor, não tem a ver com...
MYMO
Deus existe, cara...
ARIEL
Que? Para.
MYMO
Deus existe! Eu sinto ele. Eu falei com ele. Tá escrito
tudo nos livros lá. E não é a Bíblia, não é disso que eu tô falando.
ARIEL
Para que você tá me assustando, Mymo!
MYMO
Ele é mesmo um tirano, sabe. Ele não tá nem aí pra essas
pessoas que falam que deus não seria maligno e nem enviaria as bichas para o
inferno. Ele envia bicha pro inferno sim. E só por ser bicha. E como foi ele
quem criou tudo isso ele pode dizer o que é amor e o que não é. E se ele diz
que fazer tudo isso que ele fez é amor, então é!
(silêncio)
ARIEL
Meu deus! Quero dizer...
MYMO
Brincadeira. Não é bem isso. É umas paradas com magia,
sabe. Magia da vida mesmo, não essas de filmes – se bem que usássemos um tanto
a mais do nosso cérebro isso também não seria impossível, né, mas... – enfim!
Eu tava deprê, vejo que você também está meio deprê...
ARIEL
Eu tô deprê! Eu deprêzíssima! O que eu faço?
MYMO
Esses livros, da minha tia Ariel. Eles me ajudaram a
construir o futuro e ter coragem de ir à pé se for preciso! Buzão tá fácil, né,
dondoca? Paga com o suor e não chega nunca em lugar nenhum. Só sonha! Só sonha!
Eu vou te emprestar. São livros de auto-ajuda, é um pouco ridículo, mas enfim.
Se te interessar.
ARIEL
Fala de que?
MYMO
Ai, leia! Ele vai ajudar a compreender como funciona
nossas relações e inter-relações e web-relações.
ARIEL
Não é “O grande segredo da nossa existência”, é?
MYMO
Não! Caralho, se não quiser ler não leia, pronto!
ARIEL
Não. Tá bom. Eu leio. Qual é o nome?
MYMO
“The
biggest secret of our existence”.
ARIEL
Mas é “O grande segredo da nossa existência”, então!
MYMO
Lógico que não. O nome é super diferente.
ARIEL
É que é em outra língua, Mymo.
MYMO
Ah. Claro.
ARIEL
Eu já li esse. Não é tão simples quanto mostram.
MYMO
Não é tão simples pra quem não viu o resto!
ARIEL
Como assim?
(Mymo sai e volta com uma porrada de livros dentro de um
saco)
MYMO
Tem coisa cética, budista, católica também, tem sobre
tudo isso. Se divirta. Eu já li todos e estou praticando.
(Mymo senta-se num colchonete e liga um MP3 com um fone)
ARIEL
É pra ler tudo, é?
(black-out)
(com black-outs para passagem de tempo, Ariel lê os livro
em diversas posições; Mymo está mais além e brinca de fazer poções e levitar
objetos; os dois personagens fazem orações ritualísticas; fumaça e luz
colorida; eles bebem em copos coloridos; danças; um momento psicodélico; de
repente acordam; luz comum)
MYMO
E aí?
ARIEL
Na mesma.
MYMO
(desanimado) Sucesso, hein.
(black-out)
CAPÍTULO IV
(a luz de serviço acende; os atores bebem novamente o
chá; eles se vestem com uma roupa de gala; black-out)
(a luz sobe grandiosamente ao som de trombetas; Mymo e
Ariel posam para fotos e sorriem para câmeras; eles agradecem o carinho com
sorrisos e acenos bregas; a música cessa e eles continuam as poses; logo, ambos
ficam sem graça)
MYMO
Aqui estamos! O terminal!
ARIEL
Finalmente, aqui estamos! O transporte público tem sido uma
merda, mas aqui estamos!
MYMO
Finalmente mesmo. Pensei que fosse demorar mais.
Finalmente, meu deus!
ARIEL
Né? Finalmente. Esperamos tanto tempo e no fim das contas
não foi nada. Parece que passou rápido.
MYMO
É que ainda não é o fim, não é?
ARIEL
Pois é.
MYMO
Na verdade não tem nada de “finalmente”, então.
ARIEL
É.
MYMO
Olha a foto!
(eles posam mais algumas vezes; silêncio)
ARIEL
Estranho, isso, né?
MYMO
Estranhíssimo.
(silêncio)
ARIEL
E agora?
MYMO
Agora?
ARIEL
É. O sucesso bateu.
MYMO
Vixi. E você pergunta pra mim?
ARIEL
Vou perguntar pra quem?
MYMO
Olha esse monte de gente.
ARIEL
Não tenho intimidades com eles.
MYMO
E comigo tem?
ARIEL
Pouco. Mas sei lá. Esperar com você me fez próxima.
(silêncio)
ARIEL
Nós conseguimos, Mymo! Chegamos lá. Vamos encher a cara!
MYMO
Tanta gente. E tão pouca gente, não é?
ARIEL
Né? Estranho, isso.
MYMO
Pra caralho.
ARIEL
Pra caralho.
MYMO
Olha as pessoas olhando seu sucesso.
ARIEL
Pro seu também. Olha aquela ali! Não tira o olhar do seu
sucesso. Somos pessoas de renome, agora, Mymo.
MYMO
Sucesso! Sucesso, sucesso, sucesso!
ARIEL
Suuuuuuuucesso.
(silêncio; longo silêncio)
ARIEL
Mymo, nós não somos cheios da intimidade, mas eu gosto
tanto do seu nome. Conheci vários Mymos na minha vida. Eu amo o ípsilon que
tem. Você gostaria de trocar de nome comigo?
MYMO
O que?
ARIEL
Trocar de nome. Creio que esse seu nome me daria mais
força pra lutar.
MYMO
Ai, cale a boca! E eu ficaria como Ariel? Nome de sereia?
ARIEL
Ariel é um nome unissex.
(silêncio)
MYMO
Mas...
ARIEL
Se não quiser, não tem problema, caralho! Não gosto de
enrolação.
MYMO
Não, tudo bem! Eu topo. Só por um tempo ou pra sempre?
ARIEL
Pra sempre, né? Depois que acostumarmos será foda de
largar.
MYMO
Mas e se a gente não se acostumar?
ARIEL
(num transe) Um nome não é nada. Um nome é inventado.
Um nome é recordado em partes.
(silêncio)
ARIEL
Prazer, me chamo Mymo.
MYMO
E eu Ariel. Prazer.
ARIEL E MYMO
Um nome não diz nada sobre uma pessoa. Há pouco tempo
éramos preocupados com a imagem da nossa linhagem, do nosso sobrenome. Hoje
isso está se perdendo, e graças à deus!
Às vezes dizemos e consagramos nomes de gente que nem é
aquilo que a gente imagina.
Gente que apenas reproduziu aquilo que ouviu dizer. Copiou
e colou. E que depois saiu dizendo por aí que foi de criação divina e
existencial própria! Que ninguém é páreo para seu talento. Gente que caga igual
todo mundo caga.
E aí a gente sonha. E aí a gente lê! E a gente mistifica
as pessoas, os grandes mestres, as figuras públicas. Os nomes públicos! Os
homens de sucesso! E a gente mistifica nossos próprios sonhos, que são
terrivelmente diferentes da vida real.
Nós somos tão idiotas que uma celebridade é uma figura
mistificada na sociedade.
Esse celebridade também caga, igual eu e você. E ela faz
estupidez, e ela fala merda, e ela enfia coisas no cu, e mesmo que tenha feito
algo grandioso e histórico, ela também vive na base do truque. Como todo mundo,
ajoelhado na frente da privada!
Normalmente a gente vê e julga o que algum outro faz,
melhor e mais importante. Ou com outros nos sentimos mais confiantes e bem mais
qualificados, nos esbanjando na exibição e no egocentrismo. Enquanto que, o
truque que você dá na vida, defendendo seus ideais e suas punhetações
artísticas, são os mesmos truques que os grandes mestres dão e deram no passado.
E são os mesmos truques dos idiotas que você subestima. Todo mundo se fudendo. Todo
mundo está no mesmo barco cagado de conceitos e julgamentos. E todo mundo
reproduzindo a mesma bosta o tempo inteiro. Comendo e cagando, comendo e
cagando, comendo e cagando...
A arte é uma coisa "porralouca" da nossa
existência, perdoem-me citá-la. Ela é um exemplo mórbido da nossa necessidade
de expressão.
Não dá pra dizer o que é e o que não é arte. Não existe
um juiz para apitar uma falta.
Ao menos que um ser divino tenha baixado no julgador e
lhe dado a autonomia verdadeira mais pura de se escolher o que deve ser
cultuado e o que deve ser descartado. Isso em todos os julgamentos da vida!
Creio que a arte vem de dentro, e se vem de dentro é a
natureza, e a natureza tem seus altos e baixos pra expressar o sentimento do
artista ao longo de nossa história. Assim como todas as ações das gerações. Na
arte, nos acontecimentos, na rotina de um engenheiro.
Então a arte barroca não é mais ou menos importante que
aquela musiquinha criada por uma criança de catorze anos. Nem Shakespeare é
mais ou menos importante que um performer contemporâneo, que se chama Cláudio e
que ninguém conhece. Nem o funk tem menos valor que Caetano.
As importâncias no geral são indiscutíveis... As
importâncias são aquilo que eu conceituei e que reproduzo diariamente.
O que pra mim é considerável, pro outro não é. E assim por
diante.
Mas gosto e pré-conceito não pode e não deve tirar o
valor de todos.
(silêncio)
ARIEL
O que foi isso?
MYMO
Uma carta.
ARIEL
De quem?
MYMO
De um crítico.
ARIEL
Crítica positiva ou negativa? Eu não entendi muito bem.
MYMO
Não sei também.
ARIEL
Do nosso trabalho?
MYMO
O que?
ARIEL
Crítica ao nosso trabalho?
MYMO
Crítica na nossa insistência de fazer nome. Na espera
“porralouca” de existir.
ARIEL
O que? Calma...
MYMO
Uma crítica em cima daquilo que a gente tanto esperou,
entende?
ARIEL
Que era?
MYMO
O sucesso profissional.
ARIEL
Ai, cale a boca! Meu “lá” não era isso. Meu “lá” era aqui
mesmo. No que temos agora. Meu sucesso podia ser matrimonial, se alguém quiser
entender assim.
MYMO
E o que temos agora?
(silêncio)
ARIEL
Nossa. Demora, mas não tarda.
MYMO
O que?
ARIEL
O ponto e vírgula na vida.
(silêncio; eles iniciam um jogral)
MYMO
Eu gosto de couve refogada.
ARIEL
Eu prefiro ela crua.
MYMO
Cenoura.
ARIEL
Beterraba.
MYMO
Eu parei de fumar.
ARIEL
É uma luta que eu vivo.
MYMO
Eu gosto de blockbusters!
ARIEL
Eu prefiro filme francês.
MYMO
Eu amo minha família
ARIEL
Meu pai abusava de mim.
MYMO
Brecht.
ARIEL
Meyerhold!
MYMO
Lula.
ARIEL
Qualquer outra merda.
MYMO
Sônia Braga.
ARIEL
Lady Gaga.
MYMO
Café puro. Dois por dia.
ARIEL
Com açúcar. Sete.
MYMO
Real.
ARIEL
Cruzeiro.
MYMO
Roxo.
ARIEL
Verde.
MYMO
Doze.
ARIEL
Vinte e sete.
MYMO
Buceta.
ARIEL
Pinto. Pintos.
MYMO
Merda.
MYMO
Merda!
(eles terminam na gargalhada)
ÚLTIMO CAPÍTULO
(os dois se olham e não se reconhecem; ambos correm até
suas xícaras e bebem mais uma vez)
MYMO
Mymo!
ARIEL
Ariel!
MYMO
Que saudade! O que tem feito?
ARIEL
Voltei pro ponto.
MYMO
Nossa, eu também. Você acredita? Não consegui
abandoná-lo.
ARIEL
Você sabe se ele disse se demora?
MYMO
O meu não fala. Mas uma hora ele passa.
ARIEL
Às vezes ele passa que a gente nem vê.
MYMO
Mas não acho que pegaremos o mesmo.
ARIEL
Todos param no terminal, bobo.
MYMO
Qual terminal? Aí é que está.
ARIEL
Sei lá. Vai dar na mesma sempre.
(silêncio)
ARIEL
O que tem feito?
MYMO
Só esperando mesmo. Às vezes planto dinheiro, às vezes
mudo de nome... às vezes chego lá. É a vida. Nem comprei carro nenhum, sabe.
Sucesso na vida só se sabe depois que a gente morre.
ARIEL
Igual eu. Cagando muito?
MYMO
Pra caralho.
ARIEL
Nem fale. Me deu uma desinteria esses dias. Não posso com
couve refogada, sabe.
MYMO
Eu amo. Viu, você curte penetração?
ARIEL
Pra caralho.
MYMO
Tô afim de reprodução dessa vez. Nada de cu. Dizem que o
buzão é preferencial pra gestantes.
ARIEL
Dizem também que quando a gente chega lá, tudo fica bem.
Com um filhote seria sensacional chegar lá. Mais sensacional do que esperamos
que seja!
MYMO
Mas acho que tínhamos que pegar em outro ponto, então.
São destinos diferentes, pontos diferentes.
ARIEL
É verdade.
(silêncio)
ARIEL
Parou de mancar?
MYMO
Parei. Topa ir caminhando?
ARIEL
Topo.
MYMO
Posso por a mão na sua bunda?
ARIEL
Pode.
(eles caminham em direção a saída)
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