BATA, MAS BATA PRA MATAR
PERSONAGENS
Dudu
Pai
PRIMEIRO ATO
(os personagens entram em cena já mostrando um estilo; o
Pai, quase evangélico; Dudu, jovem moderno; ambos se surpreendem com o outro;
Dudu se mostra assustado, e o Pai com maior surpresa; no auge, o Pai segura
Dudu que tenta sair de cena; ele arrasta o rapaz até o proscênio; ele obriga
Dudu à encará-lo)
DUDU
Bata. Mas bata pra matar.
(ambos olham para a plateia e narram)
DUDU e PAI
Este é o nome do espetáculo. Na maioria das vezes o nome
de uma peça – ou filme – só vai ter ligação ou ser citada lá pelo fim. Porém,
decidimos dissecar esse assunto da forma mais didática possível. Não prometemos
apresentar-lhes uma história de humor leve, sem brincar com aquela forma mais
esdruxula que o ser humano pode ser. Não,
não podemos prometer. Creio que para quem não gosta da verdade, este é o
momento de dizer adeus a este teatro. Quem talvez tenha vindo assistir uma
suposta comédia sexual, ou histórias juvenis sobre romance e – desculpe dizer –
terrivelmente romantizados, esse é o momento de nos dizer adeus. O que vai
acontecer aqui exige atenção, intenção e sustentação. E um pouco de tensão
também. Eu disse tensão e não... Creio que haverá momentos de rir, esperamos
que surjam algumas gargalhadas até, mas no fundo, no fundo, esse assunto é de
cair o cu da bunda. E acontece com cada indivíduo sentado ou em pé neste
planeta. A vida nada mais é do que esdruxulisses.
(voltam a cena)
DUDU
Bata. Mas bata pra matar!
PAI
Onde é que você tava?
DUDU
Eu quero me manter no direito de ficar calado.
PAI
Mas vai falar! Que porra, moleque. O que tu tava
pensando? O que é isso? Eu te procurei em tudo quanto é canto, moleque. Na puta
que o pariu, eu procurei.
DUDU
Eu não tenho mais que dar satisfação.
(o Pai dá um tapa forte na cabeça de Dudu)
PAI
Eu não tô acreditando nisso. O povo todo achou que você
tinha morrido, poxa. A gente foi procurar na porra daquele IML. E cadê o filho
da puta? E eu falei. Eu falei. “O menino fugiu. O menino fugiu”. E “Não!
Sequestram ele. Mataram o menino”. (pausa) Daí sua vó morrendo. Doente. E daí
todo mundo desesperado. Faz camiseta pro filho da puta. A gente reza pro filho
da puta aparecer. Faz passeata! E aqui, de repente aqui. O filho da puta tá
aqui. Tá aqui o filho da puta, meu deus! Curtindo a onda.
DUDU
Eu tô trabalhando.
(o Pai se irrita e avança em Dudu)
DUDU
Vai bater de novo? Mas já falei que é pra tirar pedaço se
for bater. Bate então. Caralho.
PAI
Você é um filho da puta, moleque. Tá trabalhando com o
que?
DUDU
Com minhas coisas. Não interessa. Tu vai me zoar. Vai me
desmerecer.
PAI
Não podia ter avisado, caramba?
DUDU
Se eu avisasse eu nunca ia conseguir fugir de vocês.
Vocês iam me caçar.
PAI
Mas que merda, Dudu! A gente quase morreu de preocupação,
caralho. Quantos meses faz? Quantos meses faz já?
DUDU
Três.
PAI
É quatro já.
DUDU
Quase quatro. Não deu quatro ainda.
PAI
Porra, Dudu. Sua mãe tá doente, meu.
DUDU
Minha mãe que morra.
(o Pai bate na boca de Dudu com violência)
DUDU
(grita irritadíssimo) Bata! Mas bata pra matar, porra!
(silêncio; o Pai engole em seco)
PAI
(narra para a plateia) O moleque aqui fez de conta que
cresceu, largou todo mundo, largou a família toda e foi morar no meio do mato.
Com um bando de índios.
DUDU
Eles não são índios. São nômades.
PAI
Lá eles andavam pelados, beijavam na boca de homem,
mulher, de cachorro, de macaco, de camelo! Faziam tudo o que é de mais estranho
nesse planeta. Adoravam uns deuses...
DUDU
Deusas.
PAI
... do diabo! Matavam pomba, bebiam sangue de galinha
preta, jogava criancinhas no precipício...
DUDU
Ei, essa parte não existe! Para de inventar! A gente nunca
fez essas coisas. É uma tribo vegetariana. Ligado ao movimento hippie. Nada
demais.
PAI
Do diabo! Fez que fez a vida toda a gente passar desgosto
e agora deu uma de bonzinho paz e amor. Do diabo! Eu não sei onde foi que eu
errei nessa porra de gene. A gente educa, ensina. Explica que droga faz mal,
que a vida é difícil, que tem que ajudar a família, que tem que trabalhar,
estudar e tudo mais. E o filho da puta faz umas amizades e aí essas amizades se
tornam muito mais valiosas do que o próprio nome. Do que o sangue.
DUDU
A ligação genética obrigatória é a coisa mais patética do
planeta. A mãe passarinho empurra o filhote pra ele aprender a voar.
PAI
Do diabo!
DUDU
Porra, mas tudo é do diabo agora? Esse deus aí parece bem
fraco, porque ele não tem nada que pertença a ele. (para a plateia) Meu pai, é
um filho da puta hipócrita. Você já viu evangélico falar tanto palavrão? Pelo
menos não é o que eles falam que devia ser, né. Evangélico não devia beber, não
devia ter mulher fora do casamento...
PAI
Cale a boca, Dudu! Você não sabe do que tá falando.
DUDU
Não que eu concorde com a ideia dos evangélicos, mas se é
pra ser, que seja direito, pô. Se é pra ser ateu, que não finja
intelectualmente “Poxa, graças a deus que eu sou ateu”. Se é pra ser espírita
tem que acreditar em espíritos. Se você é músico... que acredite no sertanejo, por
exemplo, porque é o que dá dinheiro hoje em dia. E assim por diante,
entenderam? Faça o que você acredita. Mas não venha me falar uma coisa e ser
outra, né? Cadê esse amor de deus gigante quando você bateu na minha cara, pai?
Cadê?
PAI
Você só fala merda. (para a plateia) Hoje em dia tem
aquela lei que não pode mais bater nas crianças, né? Bobagem. O que aconteceu
com esse menino foi falta de surra.
DUDU
Eu e meus hematomas que o digam, né.
PAI
É. Eles que nos mostre.
DUDU
(explicativo) Para não ficar chato, iremos resumir a
história da minha vida, dos meus vinte e quatro anos, dividindo-a por partes
importantes e perguntas e respostas na mais direta possível. Porque todas as
coisas aconteceram após uma pergunta ou ordem. É a ordem natural das coisas.
(eles fingem os primeiros diálogos da vida)
PAI
Fala “papai”, fala “papai”. Fala, Du. Pa-pai. Pa-pai.
DUDU
Xuxa.
PAI
Porra, Xuxa, Dudu? Xuxa? Xiii... (explicativo) E daí ele
cresceu mais um pouco.
DUDU
Papai, como é que os bebês vão parar na barriga da mulher
quando ela fica grávida?
PAI
É... Ai, Dudu. O papai coloca uma sementinha na barriga
da mamãe. E daí nascem os bebês.
DUDU
Uma sementinha? Que legal!
PAI
Mas só depois do casamento, entendeu?
Mas só depois do casamento, entendeu?
DUDU
Por que?
PAI
(grita) Porque sim!
DUDU
Tá bom. (explicativo) E aí quando começa a crescer, não
para mais. E se enche mais. (em cena, jogo rápido) Pai, por que não pode ficar
acordado até de madrugada?
PAI
Porque não.
DUDU
Por que homem é diferente de mulher?
PAI
Porque sim.
DUDU
Por que você brigou com a mamãe?
PAI
Porque sim.
DUDU
Posso ir brincar na casa do Rogério?
PAI
Não.
DUDU
Posso torcer pro time de azul?
Posso torcer pro time de azul?
PAI
Não.
DUDU
Por que tem que ir na igreja de domingo?
Por que tem que ir na igreja de domingo?
PAI
Porque sim.
DUDU
Por que sim?
PAI
Porque não.
DUDU
Por que não? Não pode faltar um dia?
PAI
Não.
DUDU
Posso furar a orelha direita?
PAI
Não.
DUDU
Por que não?
PAI
Porque não.
DUDU
Posso ir no baile? Fazer uma tatuagem?
PAI
Não.
DUDU
Por que não?
PAI
Porque não.
DUDU
Posso ir morar em outra cidade longe de vocês?
PAI
Não.
DUDU
Oras, por que não, pai? Por que? Por que não?
PAI
Porque não, caramba de moleque! Sou eu quem manda. E já
falei que não é não.
DUDU
Bosta!
(o Pai dá um tapa na boca de Dudu)
PAI
Não fale mais “bosta”! Entendeu? Já fez a lição de casa?
DUDU
Depois eu faço.
PAI
(com uma cinta, toscamente bate em Dudu) “Depois faz,
depois faz”! Toda vez é “depois faz”!
DUDU
Ai, pai! Ai, pai! Ai, pai! Ai, pai!
PAI
(grita exageradíssimo) Vai fazer já, bosta!
(silêncio)
DUDU
E daí cheguei na adolescência. (em cena) Pai, posso ir
naquele postinho de gasolina onde a galera curte um som e fuma um cigarro?
PAI
Ora...! (com uma cinta, toscamente bate em Dudu) “Fuma um
cigarro, fuma um cigarro”! Que porra é essa de fuma um cigarro!
DUDU
Pai, posso comprar uma camiseta da Madonna?
PAI
(batendo em Dudu) “Madonna, camiseta da Madonna!” Que
camiseta da Madonna!
DUDU
Pai, o Rogério pode dormir aqui em casa hoje?
PAI
(batendo em Dudu) “Dormir aqui em casa, dormir aqui em
casa!” E vai convidar homem pra dormir aqui em casa?
DUDU
Pai, posso convidar a Letícia pra vir dormir aqui em
casa?
PAI
(batendo em Dudu) “Trazer Letícia, trazer Letícia!” Que
já falei que num tá na hora ainda!
DUDU
Pai, eu ingeri bebida alcoólica, beijei duas meninas,
flertei com um universitário bombadinho, fumei maconha, tomei chá de cogumelo,
tomei chá de fita, chá de lírio, tomei no cu, tomei vergonha na cara aprendendo
que algumas das coisas não prestavam pra mim. Daí fumei maconha, bebi cerveja,
fui pra uma balada top em São Paulo, viajei pra São Tomé das Letras, de
mochila, namorei duas meninas, pintei o cabelo uma vez de prata, fiquei pelado
quando fui ver uma peça em São Paulo, aí me convidaram pra cantar numa banda, e
eu achava que eu não sabia cantar, mas aí eu fui, e fomos parar em Tocantins,
aí eu conheci um carinha, e a gente transava de vez em quando, aí a gente
terminou, eu deixei de ser Palmeirense e virei Corintiano, aí não acreditava
mais em deus, e o mundo estava perdido, e eu era a pessoa mais pessimista do
mundo, e eu fui conhecendo gente, e sapatão, e índios, e bichas, e
intelectuais, e pseudo-intelectuais, e atores, pintores, engenheiros,
funkeiros, trapezistas e homens de rua! E gente pra lá, e experiências e
histórias pra cá, e muita amação, entende? Essa palavra não existe. Amação.
Todo mundo se amava. E se amassava. E a gente foi ficando mais inteligente
vendo as nossas cagadas e as cagadas dos próximos. Começamos a não acelerar o
carro pra fazer graça, logo depois do acidente que matou o Lê. Nem nunca mais
dirigimos bêbados! Deixamos de usar cocaína quando três do nosso bando perdeu o
emprego por necessidade da droga. Eu tô ligado no que é bom e no que é ruim pra
mim. Só que eu tive que descobrir sozinho essa porra. Nunca teve ninguém em
casa pra nos explicar direitinho o que se deveria fazer. Só se dizia: isso
presta e isso não presta. Mas a parte do porquê era muito complicada e muito
longe de deixar eu ficar sabendo como é que o mundo funciona. Engraçado que na
minha turma ninguém nunca grita com ninguém quando alguém faz alguma cagada. E
pode ser cagada das bravas, do tipo tesourar e ser talarico. Aí agora eu moro
em São Paulo, canto numa banda super da hora, passo férias aqui no Guarujá, fico
três meses curtindo a natureza no meio do mato, amando tudo!, tenho uma
namorada, um namorado, um cachorro, um macaco, um camelo e faço tudo o que eu
quero e isso não está me matando e deus não está me castigando!
PAI
(depois de uma pausa; listando) Viado, maconheiro,
funkeiro e Corintiano? Ah, isso é demais!
(e mais uma vez o Pai bate em Dudu, que já não liga tanto
para a dor)
(foco; o Pai sai)
DUDU
(canta ridiculamente irônico) “Pai
Pode ser que daqui
algum tempo
Haja tempo pra
gente ser mais
Muito mais que dois
grandes amigos
Pai e filho talvez
Pai
Pode ser que dai
você sinta
Qualquer coisa
entre esses 20 ou 30
Longos anos em
busca de paz
Pai
Pode crer eu vou
bem eu tô indo
Tô tentando vivendo
e pedindo
Com loucura pra
você renascer
Pai
Eu não faço questão
de ser tudo
Só não quero e não
vou ficar mudo
Pra falar de amor
pra você
Pai
Senta aqui que o
jantar tá na mesa
Fala um pouco tua
voz tá tão presa
Nos ensina esse
jogo da vida
Onde a vida só paga
pra ver
Pai
Me perdoa essa
insegurança
É que eu não sou
mais aquela criança
Que um dia morrendo
de medo
Nos seus braços
você fez segredo
Nos seus passos
você foi mais eu, eu, eu
Pai
Você foi meu herói,
meu bandido
Hoje é mais muito
mais que um amigo
Nem você, nem
ninguém tá sozinho
Você faz parte
desse caminho
Que hoje eu sigo em
paz
Pai
Paz”
DUDU
(explicativo) Eu cantei essa música num sarau da escola
que ele não foi ver. Eu então, no mesmo dia, cantei pra ele enquanto ele
arrumava alguma coisa do carro. E ele disse.
PAI
Vai lá com a mãe agora, vai.
DUDU
Vê?
PAI
(ele volta pra se defender) Mas eu tava ocupado naquele
momento! Todo mundo sabe como o dia a dia é correria. Não dá pra gente ficar
dando atenção o tempo todo. Foram os cinco primeiros anos de máxima atenção! De
acordar de madrugada pra levar pro hospital, de ficar acordado junto, de levar
pra parque, de ir pra praia, ele tinha o melhor vídeo game que os amiguinhos
não tinham. Só que daí depois de tanta atenção, a gente começa a cansar e
necessita que eles cresçam. Só que eles crescem no inverso. De tudo aquilo que
a gente sempre falou, de tudo aquilo que a gente sempre mostrou que era errado.
Falava, brigava...
DUDU
Batia.
PAI
Batia se precisasse sim! No fim das contas faltou
lambadas na bunda pra aprender.
DUDU
Ninguém mais fala “lambada” hoje em dia, pelo amor de
deus.
PAI
(começando uma história) Olha, na minha época, meu pai...
DUDU
Lá vem.
PAI
... deu duro pra me dar a vida que eu tenho hoje, e eu
sou muito grato a ele. Na minha época não tinha esses negócios de responder,
não. Não tinha isso. Era muito diferente. Tomava chinelada na cara se
respondesse. Mas meu pai sempre fez de tudo pra nós. Pra mim e pros meus
irmãos. Trabalhava que nem um jumento. E
a gente respeitava e seguia a vida. Pronto. Fim da história. Morreu contente.
DUDU
“Morreu contente”, fala sério, pai. A vó foi uma coitada
na mão do vô. (para a plateia) Meu vô batia na minha vó, e não era de vez em
quando, não. Era sempre. Era um alcoólatra, meu avô. Mas eu não o culpo também.
Naquela época era pra ser assim, pra hoje vermos o como aquilo era horrível.
Pode perceber, é a evolução! Hoje é o momento da liberdade intelectual e da
liberdade de expressão! Pode-se falar tudo! Eu posso mostrar o pinto agora se
eu quiser, por exemplo.
PAI
Não há necessidade! (volta o assunto) São outros tempos.
Os jovens hoje em dia acham que sabem de mais. São os inteligentes do momento.
Falta experiência.
DUDU
(com desdém) Experiência para credibilidade.
PAI
Você só vê putaria na televisão, nos filmes os legais
fumam maconha, os legais comem um monte de gente, eles são legais, eles podem
tudo. Antigamente não tinha...
DUDU
Ai, pai, que antigamente! É hoje! O bagulho chegou pra
hoje! É hoje, o bagulho! E amanhã é mais palpável do que antigamente. Aquilo já
foi. E quanto ao nos acharmos mais inteligente que os mais velhos, isso com
certeza absoluta. Isso é fato! Quando esse meu cérebro biológico estiver com a
mesma idade do seu cérebro biológico, o meu cérebro biológico vai ter guardado
muito mais informações do que o seu cérebro biológico. Isso é fato. Na sua
juventude, a notícia vinha pelo rádio, as pessoas se comunicavam por cartas.
PAI
Já tinha telefone, seu idiota.
DUDU
Não no bolso.
(silêncio)
DUDU
Eu sei que é foda saber que eu sei mais, mas a internet é
uma coisa de louco e...
PAI
Espera um pouco! Você não sabe mais. Você não viveu o que
eu vivi. (longa pausa; sério) O problema é que hoje em dia se é feliz sozinho.
Tá aí. Você não se fodeu como eu imaginava que você ia se foder. No fim das
contas você tá bem. Ficou bem. É que antigamente a gente cuidava da linhagem.
(volta para a cena) Sua irmã vai fazer nove anos amanhã. Aqui um convite.
(entrega o convite) Espero que você vá.
(o Pai sai; Dudu olha para a carta e pensa cansado)
DUDU
A curva dramática necessitava de mais um drama familiar
para um clímax. Existem os outros.
(black-out)
FIM DO PRIMEIRO ATO
***************************
SEGUNDO ATO
(Dudu e o Pai entram cantando parabéns; eles param ao
centro, olhando para a plateia como se ela fosse a menina aniversariante)
PAI e DUDU
Parabéns pra você!
Nesta data querida
Muitas felicidades
Muitos anos de vida.
DUDU
Parabéns, maninha.
(silêncio; uma realidade paralela)
PAI
Você veio.
DUDU
É. Eu vim.
PAI
Quando eu contei que tinha te achado eles quase morreram
de alegria.
DUDU
Eu sei. (pausa) Eu vou voltar pra casa
PAI
Isso é bom. Eles vão adorar a notícia.
(silêncio)
DUDU
Pai, tem como me arrumar cem reais? Eu tô precisando de
uma grana.
(silêncio; por um momento o Pai o observa indignado; mas
logo desmorona)
PAI
Mas é claro, meu filho.
(eles riem toscamente contentes; como um final feliz)
PAI
Eu quero você com a família de novo, Eduardo.
DUDU
Eu nunca mais vou deixa-los, papai. Nunca mais.
PAI
Assim é o meu desejo.
(eles se abraçam; música de jornada)
DUDU
(para a plateia, terrivelmente dramatizado) Agora sim eu
aprendi, minha gente. Que deus está a cima de tudo. E a família. A família foi
uma benção de deus. Deus abriu a minha mente, e o meu caminho para a harmonia e
a paz interior. E eu só pude perceber quando meu pai me mostrou que uma surra,
nem sempre é por ódio. É uma forma de nos domesticar segundo alguma ideologia. E
isso é tão... é tão gratificante. Poder conhecer o mundo limitadamente, numa
cidadezinha do interior onde o futuro já é passado nas grandes capitais como
São Paulo. Viver intensamente nos mesmos dias todos os dias dos dias da sua
vida mesma vida. Deus abençoa a rotina!
PAI
Agora Dudu voltou para casa. E todo mundo lá ficou tão
feliz. Com isso tudo, eu aprendi que, como meu pai fazia, como eu sempre fiz
com os meus filhos, a vida é na educação de religião. Deus fez a religião para
nos trazer bênçãos!
DUDU
Aleluia, senhor!
PAI
E a vida, que é deus, trouxe alegria novamente ao nosso
lar!
DUDU
Aleluia! E nenhuma dúvida existencial surgiu nunca mais!
PAI
Isso é ótimo!
DUDU e PAI
E a felicidade bateu forçada na nossa cara. E todos
viveram felizes e para sempre.
(silêncio; longo silêncio; algumas pigarreadas e troca
tímidas de olhares)
DUDU
Essa não é a realidade. É a imaginação de final feliz
para ele.
PAI
Seria incrível.
DUDU
E eu ficava como nessa história?
PAI
Cuidando da família.
DUDU
E os meus sonhos?
PAI
Se engolia. (para a plateia) Ele não foi no aniversário
da irmã.
DUDU
Não deu! Eu ia me apresentar aquele dia.
PAI
É má vontade!
DUDU
Você nunca me deu carinho, pô! Vai se fuder.
PAI
Nunca te dei carinho?
DUDU
Nem você e nem a mamãe! Eu quero mais é que ela se foda
também! A culpa disso tudo é dela de não tomar as rédeas! Você se acha o macho
alfa mas é um panaca! Eu não quero me envolver com o seu tipo de gente! Eu não
vou poder dar pra minha irmã a educação que eu creio que funcione muito mais! E
funciona mais! Eu sei que funciona! Se for pra você bater em alguém, bata. Mas
bata pra tirar sangue. Pra ela ficar com medo de você. Porque com a violência
ridícula que você me ensinou eu só fiquei mais revoltado e eu não tenho medo de
você! Você me irrita com a sua gritaria! E eu me irrito porque isso me faz
gritar também! E isso é uma bosta! Uma bosta!
(o Pai dá um tapa na boca de Dudu)
DUDU
Caralho, pai! Eu já tenho vinte e quatro anos!
PAI
É um moleque ainda. Não sabe de nada.
DUDU
Vai se fuder.
(o Pai dá uma surra realística e violenta em Dudu; drama)
PAI
O que você vai fazer da vida? Vai embora de novo? Vai
fugir?
DUDU
Vou.
PAI
Então tá certo. Vai se fuder você também.
(o Pai sai; Dudu fica em silêncio por mais um tempo)
DUDU
O filho da puta bate na minha mãe. E a minha mãe gosta.
(pausa) O dia que eu revidar, não vai ser só pra bater. Todo mundo que tem a
intenção de fazer a outra sentir dor, não é só pra bater que esse instinto
violento surge. Se for pra bater, o negócio é pra matar.
(Dudu vai até onde o Pai saiu e chama)
DUDU
Pai! Pai! Volte um pouco aqui!
(ele aguarda; o Pai entra)
PAI
O que foi?
DUDU
Eu queria te dizer uma coisa.
PAI
Fala logo.
DUDU
Se eu souber que você encostou um dedo na mamãe de novo,
eu mato você. Estamos entendidos?
PAI
Ah, vai te catar. Moleque. (vai sair)
DUDU
Espera que eu não terminei de falar.
PAI
Vai cuidar da sua vida, Eduardo.
DUDU
Olha pra mim, porra! (segura o Pai pelo braço) Eu tô
falando. Se você bater na mamãe de novo e na Belinha eu mato você.
(o Pai segura Dudu pela garganta)
PAI
Fala. Fala agora. Vai cuidar da porra da sua vida!
DUDU
(com dificuldade) Filho da puta. Eu odeio você.
(numa briga, Dudu consegue dominar o pai e tira um
canivete do bolso)
PAI
Para com isso, Eduardo! Você tá louco, moleque!
DUDU
Eu não sou mais moleque! Você me faz passar raiva!
PAI
Para Eduardo!
DUDU
Você é um bosta! Um bosta!
(eles brigam mais um tempo, até que Dudu consegue uma boa
posição)
PAI
Por que isso? Pra que isso? Para!
DUDU
Porque sim.
(Dudu enfia o canivete no Pai)
(black-out)
FIM DO SEGUNDO ATO
*************************
TERCEIRO E ÚLTIMO ATO
(luz; Dudu e o Pai estão sentados
nas extremidades do palco, cansados da discussão)
PAI
Na verdade, aquela foi a imaginação dele. Depois eu que
sou o ruim.
DUDU
Foi mesmo. Tem momentos que você me deixa possesso. Mas
eu não teria coragem de fazer uma coisa dessas. São só pensamentos.
PAI
Duvido. Você nunca gosta de ninguém.
DUDU
Eu gosto de todo mundo. Por isso que eu tive que ir
embora. Pra eu não poder odiar.
PAI
Você odeia quem a gente é.
DUDU
Eu odeio quem vocês querem ser. É grito, é briga, é tapa.
O mundo tá vivendo nessa base há muito tempo e podemos ver que não está dando
certo. Nos lugares onde é pregado o oposto, a coisa funciona. O que será que
acontece? Tem criança e jovem que já estão em níveis tão pesados que a única
forma de corrigir é na pancada? É isso? Eu não sou contra policiais
necessitarem usar da violência, por exemplo, mas quando violentados. Uma vez
tomei uma geral e o policial disse “Mão na cabeça, maluco!” e eu respondi “Calma
amigo, nós estamos de boa aqui”, “Amigo é o cacete! Se me chamar de amigo de
novo eu vou dar tapa na sua cara!”. E aí você quer que eu me revolte ou não?
Sendo que todas as boas intenções vão pro lixo com a grosseria!
PAI
Você nunca vai entender, Dudu. A vida não é um mar de
rosas.
DUDU
Mas ela pode ser. Pai, por que toda vez que você vai se
referir a felicidade, ou quando quer mostrar que ama alguém, você nunca fala
“Eu estou feliz, eu sou feliz, eu amo você” e sempre diz “A turma todo fica
feliz com isso, todo mundo aqui é feliz, todo mundo adorou a notícia, todo
mundo te ama agora, todo mundo quer te ver feliz”? Por que você nunca diz que é
feliz? Ou diz “Eu te amo, filho”?
PAI
Você não entende.
DUDU
Eu entendo. A vida tem sido dura. Mas bola pra frente. O
futuro é mais fácil de chegar do que o passado se repetir.
PAI
Esse seu otimismo todo não fez nossa família ficar unida.
DUDU
Quando um não quer, dois não faz.
(silêncio)
PAI
Depois que eu te achei, Dudu, depois de ter te perdido
por três meses...
DUDU
Quatro.
PAI
Que seja. Eu fiquei pensando nisso tudo. E é foda,
moleque, é foda. Não consigo ver a coisa desse jeito. Que seja outros tempos e
outras cabeças, então! Mas eu não consigo enxergar o seu ponto.
DUDU
E eu não consigo enxergar o seu.
PAI
E o que fazemos com isso?
DUDU
Bater já viu que não funciona.
PAI
Eu deixo você ir embora de novo? Pra ficarmos em paz?
(silêncio)
PAI
Eu tenho vindo aqui só pra te ver.
DUDU
Eu sei.
PAI
Ninguém sabe.
DUDU
DUDU
Que você vem?
PAI
Ninguém sabe que eu te achei.
DUDU
Você não contou que me achou?
PAI
Não.
DUDU
Porra.
PAI
Você acha que eu não gosto de você? Você acha que se eu
não gostasse de você eu estaria vindo aqui, tentando te levar pra casa? Eu amo
você, Dudu.
DUDU
Demorou pra você falar alguma coisa de verdade.
PAI
Eu gosto de você, meu filho. Eu gostaria de tentar
aceitar quem você é. É muito difícil pra mim, você tem que entender. Eu não tô
envolvido com esse mundo de sapatão e intelectuais. Pra mim é difícil de
entender. Mas eu tô disposto a tentar.
DUDU
Caramba, pai. Foi tudo o que eu sempre quis ouvir.
PAI
Eu sei que é difícil acordar e de repente “Puxa, estou
vivo”. E aí? O que a gente faz? Eu sei como tudo isso é complicado. (pausa) Me
desculpe, Dudu. Eu não tenho sido um bom pai.
DUDU
E eu não tenho sido um bom filho.
PAI
Só que você veio depois. Eu tenho a responsabilidade
disso.
DUDU
Que bom que estamos nos entendendo. A comunicação é o
melhor milagre dessa coisa louca de planeta Terra. É a coisa mais louca. É o
que gira, é o que domina. Eu sabia que um dia nos entenderíamos. O otimismo só
pode trazer o melhor. Não se pode receber o que não espera. É lei.
PAI e DUDU
Talvez esse seria o final que gostaríamos de mostrar. Um
final feliz para ambos os lados, sem ideia forçada de nenhuma das ideologias.
Uma justiça sensata e honesta. A honestidade deveria ser compartilhada
principalmente na família. Todo mundo pode ter um filho do jeito que não
gostaria que tivesse. Ou as coisas como não gostaria que fosse. Basta uma
mudança. Não forçada. À força, não se ensina ninguém. A obrigação é um porre,
sempre foi. Principalmente quando não se tem um motivo de não focar no oposto.
A mudança é no diálogo. Se você quiser passar uma ideia a alguém não a obrigue,
convença-a . Seja qual for sua ideologia. Seja crente, católico, cético,
corintiano. A maior babaquice de hoje em dia é o uso do braço. A mente e a boca
podem ser mais interessantes. (pausa) Infelizmente essa não é a realidade da
peça teatral em questão. Na verdade, depois que o Pai de Dudu finalmente o encontrou
passando as férias no Guarujá, o Pai chamou a polícia e acusou Dudu de
sequestro forjado. Dudu piorou sua situação, pois foi pego em flagrante com
cinquenta gramas de maconha. Ele conseguiu se livrar da prisão, pois tinha
amigos advogados e amigos com dinheiro que fizeram uma vaca para pagar sua
fiança. O Pai voltou para o interior e não quis mais saber do filho. Falou mal
de Dudu para todo mundo e disse para Belinha que seu irmão era bandido, que era
vagabundo e que não queria nada com ninguém daquela família. Dudu conseguiu
ganhar dinheiro com sua banda e criou uma conta poupança no nome da irmã, sem
que ninguém soubesse. O Pai bateu mais algumas vezes em alguns vizinhos, e na
mãe mais uma vez. Uma única vez que, por alguma obra do destino, fez com que
Dudu ficasse sabendo lá em Tocantins. Dudu pegou um avião e voltou. Bateu o pé
na porta da casa onde passou a juventude e gritou para a mãe.
DUDU
Mãe, pegue suas coisas! Você vai morar comigo! Você
também Belinha!
PAI e DUDU
O Pai, bêbado, gritou:
PAI
Saia da minha casa, seu vagabundo!
PAI e DUDU
Dudu, que tinha acabado de voltar de um centro espiritual
onde se pregava unicamente a paz e o amor, olhou para o pai e...
(eles se encaram no centro do palco)
DUDU
Pai, você está fazendo do jeito errado.
(Dudu dá um beijo na boca do Pai)
DUDU
Eu amo você, mas você é foda.
PAI
Viado, filho da puta...! Vai beijar a vaca que te pariu!
(o Pai derruba Dudu com um murro; ele sobe em Dudu e o
espanca)
DUDU
Bata! Mas bata pra matar!
(a luz desce em resistência enquanto o Pai bate em Dudu;
percebe-se que é impossível Dudu sobreviver)
(em um vídeo, mostram-se notícias onde pais mataram
filhos e filhos mataram pais)
(black-out)
Texto muito foda! Quando eu achei que caminhava para um final piegas, vem um desenrolar muito bem resolvido. Parabéns ao dramaturgo
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