OPERAÇÃO MENINO MAU (2011)

OPERAÇÃO MENINO MAU

Personagens (para quatro atores)
Víbora
Malvina
Julinho
Mongo
Laurinha
Profª Mariela
Profº Clóvis
A Voz de Deus

Cenário: um porão de escola. Algumas carteiras amontoadas, muita poeira e papéis. Iluminação com velas e lamparinas.


Cena 1: BRUXAS JUSTICEIRAS

(ouve-se um sinal de escola; Víbora e Malvina entram gargalhando; elas cantam como em um show)

MALVINA E VÍBORA
“Justiceiras 
Contra todas as mentira
E as história verdadeira o povo inventa
Bruxa também luta contra o mal

Feiticeira

Que ensina os idiota a ser descente
Piada não tem graça quando é a gente
Machuca, ofende, é tão colegial

Genial é uma pinóia
Isso aqui é coisa de louca
Essas criança, vive tudo aí solta
Vive sarrando os coleguinha em excessivo
Bate em mulher em forma de castigo

Se liga, minha senhora, o que eu fiz, eu não sei só rolou

A bruxaria aqui vai te mostrar 
Que a arte funcionou 

Justiceiras 
Contra todas as mentira
E as histórias verdadeiras o povo inventa
Bruxa também luta contra o mal

Feiticeiras

Que ensina os idiota a ser descente
Piada não tem graça quando é a gente
Machuca, ofende, é tão colegial

(Mongo entra com Julinho amarrado e amordaçado se debatendo)

MONGO
Senhoras. Mas que puta menino chato, esse, hein? Puxa vida, nunca tive que sequestrar alguém tão chato. Sabe chato mesmo? Chato demais. Vocês acreditam que ele teve coragem de zoar com a minha cara, na minha cara. As pessoas normais costumam falar pelas costas, mas na frente assim é muito chato.

VÍBORA
Do que que ele te xingou, Mongo?

MONGO
Ele falou um monte de coisas que eu não entendi muito bem o significado, eu não entendo muito dessas gírias desses manolo, mas eu percebi que não devem ser boas coisas, pelo tom. Sorte que eu não sou muito de me magoar.

VÍBORA
É seu coração de pedra, presentinho da mamãe, querido. Nada abala o meu Mongolão!

MONGO
Nada, nada, nada!

VÍBORA
Muito bem, Mongo. Fez o seu trabalho como combinado. Pode deixá-lo nessa cadeira e se retirar.

MONGO
Ah! Tem um pequeno problema, senhora. Um pequeno não. Um médio pra grandão.

VÍBORA
E qual é?

MONGO
A diretora da escola percebeu a falta do menino na hora do intervalo. 

VÍBORA
O que?

MONGO
A chatice dele deve de ser marcante pra caramba mesmo. 

MALVINA
Como assim, Mongo? Como assim, cara?

MONGO
Marcante. Tipo, quando ele falta todo mundo percebe que tá faltando uma chatice no ar. Tipo aquelas piadas que não faz falta, mas agrada todo mundo. Sabe? Aquelas piadas de tio? Então. 

MALVINA
O que eu quero dizer é que: como assim a diretora percebeu, Mongo? Você não fez o planejado? Tava tudo nos planos, Mongo! Caramba! No que você cagou dessa vez?

MONGO
Eu não caguei! Eu não caguei! Vocês sabem, eu não sou o cara mais inteligente, responsável, atencioso, confiável, de boa memória, de que pode-se confiar toda uma missão do mundo. 

VÍBORA
Você é um burro mesmo, Mongo.

(Julinho acena concordando)

MONGO
E cala a boca você! Você não tem moral pra falar sobre mim! Só ela pode.

VÍBORA
Quantas vezes já dissemos que você deve ser prudente. Se ela perceber a falta de mais uma criança nós estamos ferrados. Se a cidade começar a sentir falta desses ordinários travestidos de pré-adolescentes o que será de nós? E pior, se descobrirem nosso esconderijo...

MALVINA
Se descobrirem que pegamos esse porão de escola como cativeiro tudo vai por água abaixo, seria a entrada para a porta do inferno. Porque entre essas paredes velhas da educação foi onde o velho diabo colocou as passagens secretas para a morte. 

MONGO
Ai, meu deus do céu! Não briguem comigo.

MALVINA
Devíamos ter ido nós mesmas fazer essa tarefa. Toda vez é a mesma porcaria!

VÍBORA
Bom, o menino já está aqui. Seja o que as deusas quiserem. Duvido que alguém vá sentir tanta falta. Em uma semana todo mundo já esqueceu desse crápula. Devemos agir logo.

MALVINA
Claro. Vá buscar as ferramentas, Mongo.

MONGO
Com prazer. (ele sai)

VÍBORA
Bom, podemos começar o tratamento com alguns testes de aptidão.

(Malvina tira a mordaça de Julinho)

JULINHO
... suas macumbeiras! Vaca! Me soltem! Me soltem, suas galinhas! Socorro!

MALVINA
Cala a boca, menino! Cale essa boquinha!

JULINHO
E se eu não calar, hein? Hein?

MALVINA
Eu faço você comer aquele rato, moleque!

JULINHO
Melhor você fazer a barba, sua bruxa horrorosa! Eu não tenho medo de vocês!

MALVINA
(irritada) A barba? O que você está insinuando, seu...? (pega ele pelo pescoço)

VÍBORA
Deixe ele em paz, Malvina. Não vamos machucá-lo... ainda. Não por enquanto.

JULINHO
Quando meus pais descobrirem vocês vão ver! Vocês não sabem quem eu sou!

MALVINA
Ai, cale essa boca que eu já tô cansada da sua voz!

JULINHO
E se eu não calar? Hein? Hein? Eu não vou calar. Vou continuar falando o que eu quiser, e vou falar até a hora que eu quiser, porque ninguém manda na minha boca, até a hora que eu quiser! A gente vive uma democracia! Suas ignorantes macumbeiras.

MALVINA
Meu deus, que menino insuportável!

(Mongo entra)

MONGO
Eu avisei.

VÍBORA
Deixe as coisas aqui no canto, Mongo.

JULINHO
O que vocês querem, hein? Isso é crime! É sequestro! Me larguem agora ou vocês vão para a cadeia! É ditadura! É ditadura! Socorro!

MONGO
Você quem vai pra cadeia, legalzão! Isso que você faz é crime também. A gente não pode confundir a reação do oprimido com a violência do opressor. 

MALVINA
Cale a boca, Mongo. Você é burro, esqueceu?

MONGO
Ah, é.

MALVINA
Aceite que dói menos, Julinho. Você também pode muito bem ir pra cadeia também.

JULINHO
Pra cadeia? Eu sou menor de idade, sua besta! Menor de idade não vai pra cadeia! E eu não fiz nada de errado!

MALVINA
Ah, não? Tem certeza? E aquele dia que você...?

VÍBORA
Malvina, ainda não. Vamos devagar...

MONGO
Nós somos do submundo, garoto chato. Seus maiores medos estão prestes a se tornar realidade.

VÍBORA
Tome, Mongo! (tira da bolsa um peixe cru) Vá, vá se alimentar!

MONGO
Delícia! Que delícia!

VÍBORA
Sua varinha, Malvina.

MALVINA
Obrigada, Víbora!

MONGO
Obrigado, Víbora! Amo você. (vai saindo se deliciando com o peixe)

JULINHO
Ai, que nojo, meu deus! O que é que vocês são? O que é que tá acontecendo aqui?

MONGO
Você nem queira imaginar! Moleque chato. É feitiçaria moderna. (sai)

JULINHO
Eu tô avisando, é melhor vocês me soltarem. Meus pais são conhecidos na cidade.

MALVINA
E é por isso você age feito um idiota, é? Nunca ouviu um "não"de papai. 

JULINHO
Escuta aqui, sua berebenta! Idiota é sua mãe, aquela pé rapada que não tem onde cair morta. 

MALVINA
(ofendida) Ah! Eu... você é um monstro! (chora)

VÍBORA
Se recomponha, Malvina! Nada de choramingo. Vamos ao que interessa... (ela começa a misturar líquidos)

MALVINA
Ele xingou minha mãe, Víbora. Onde é que vocês acham isso normal?

JULINHO
Sua mãe, seu pai, seu tio! Seu passarinho, se você quiser! Todos uns idiotas! E você é a mais idiota. A idiota suprema! 

MALVINA
Eu não tenho passarinho só pra você saber!

VÍBORA
Malvina, deixe o menino...

JULINHO
Claro, com essa cara cheio de rugas só pode assustar tudo os passarinho. Tipo espantalho. (ri)

MALVINA
Seu menino insolente... (agarra ele pelo pescoço)

VÍBORA
Malvina! Por favor! Deixe ele em paz. Você está discutindo com um menino de onze anos!

JULINHO
Eu tenho treze!

MALVINA
(imitando) “Eu tenho treze! Eu tenho treze!”

JULINHO
Pare com isso!

MALVINA
“Pare com isso!”

JULINHO
Eu já falei pra parar!

MALVINA
Ahá! Encontrei seu ponto fraco.

JULINHO
“Ahá! Encontrei seu ponto fraco.”

MALVINA
Pode parar, seu cocô!

JULINHO
“Pode parar, seu cocô!”

MALVINA
(grita) Para!

JULINHO
“Para!”

MALVINA
Olha ele, Víbora! Ele tá me irritando! Que moleque mais chato!

JULINHO
“Olha ele, Víbora! Ele tá me irritando! Que moleque mais chato!”

MALVINA
Quando eu te pegar... (pega ele pelo pescoço)

VÍBORA
Pare com isso, Malvina! Chega vocês dois! Temos um plano a se seguir! Pare de dar atenção à esse imbecil.

MALVINA
Deixe eu arrancar a língua dele, só pra ele calar essa boca por um instante!

VÍBORA
Ainda não. Não vai ser preciso. Tenha calma.

MALVINA
Esse menino não tem jeito, cara. Eu tenho certeza que esse não tem jeito.

VÍBORA
Todos têm. Todos têm jeito.

MALVINA
Ah, esse não tem.

VÍBORA
Todos têm. Temos que tentar. Com tudo isso acontecendo esse é o jeito que deu pra fazer. Quando não se tem um jeito definido, quando não se tiver jeito, vai do jeito que tiver que ser. (pausa) Qualquer coisa passamos um talco nele e tudo fica certo.

JULINHO
Mas que diabos vocês querem, hein? É dinheiro ou o que? O que que é essa roupa ridícula aí que vocês estão vestindo? Vocês não são bruxas de verdade, são?

VÍBORA
Não precisamos do seu dinheiro. Temos uma missão para cumprir, moleque. E você é essa missão.

MALVINA
Ou alimentação. (ri) Até rima.

VÍBORA
Silêncio, Malvina. Vá, chame Mongo. Peça para que desamarre as cordas do focinho dele com cuidado. Diga que o prenda com uma corrente bem forte dessa vez. Pode prepará-lo.

MALVINA
Você não espera o que te aguarda, moleque! (sai)

JULINHO
Me preparar pra que? Hein? Hein? (silêncio) Me responda sua bruxa gorda e fedorenta! (silêncio) Qual é? Hein?

VÍBORA
Não estava dizendo para preparar você. Para preparar ele.

JULINHO
Ele quem?

VÍBORA
Você verá.

(ouve-se um grunhido vindo de fora)

MALVINA
(grita em off) Me ajuda, Mongo! Ai!

MONGO
(em off) Jesus!

JULINHO
O que foi isso? O que é isso? Me larguem! O que é que tá acontecendo, moça? Pelo amor de deus, me deixa ir embora.

VÍBORA
O que aconteceu, Mongo?

(Mongo entra)

MONGO
Víbora, agora ferrou! Agora ferrou tudo! Ferrou! Ferrou!

VÍBORA
O que foi?

MONGO
Ferrou! Tá tudo ferrado! Beleléu!

VÍBORA
Desembucha, resto de professor de educação artística!

MONGO
A Malvina. Ela foi engolida!

VÍBORA e JULINHO
O que?

VÍBORA
Como assim engolida?

JULINHO
E engolida por o que?

(ouve-se o barulho do monstro)

MALVINA
(em off) Socorro! Que fedô!

MONGO
Engolida! Engolida! Ele engoliu ela!

VÍBORA
Ai, meu deus! Como você foi deixar isso acontecer, Mongo?

MONGO
Eu não sou muito dos inteligente.

JULINHO
O que foi que engoliu ela?

VÍBORA
E agora?

MONGO
Posso cortar a barriga dele, na pior das situações.

JULINHO
(grita) Cortar a barriga de quem?

MONGO
O monstro que vai te comer, seu chato cagão!

JULINHO
Monstro? O que...? (ouve-se o som do monstro) Ai, meu deus! Socorro! Socorro!

MALVINA
(off) Socorro!

VÍBORA
Deixe comigo! A espada de Paulo Coelho. (ela surge com uma espada e sai; o monstro urra; em off) Larga ela, seu desgraçado! Ela é uma menina! Seu jantar já está quase pronto. Vomite!

MONGO
Ela está falando de você. O jantar é você.

JULINHO
Mãe!

MONGO
Não, não sua mãe. Você.

(Víbora entra empurrada)

MONGO
Vai, Víbora! Eu tô dando apoio moral!

(Víbora sai guerrilheira)

MONGO
Aquela espada machuca e depois cicatriza. É demais esses lances de magia.

JULINHO
Faz o favor de me soltar, seu fedorento! Eu não acredito nesses negócios de magia. 

MONGO
Mas você é chato mesmo! Essas coisas ofendem, sabia? Toda vez que alguém fala isso uma fadinha bonitinha morre. Sorte que eu tenho o coração de pedra, seu ser humaninho nojento.

VÍBORA
(em off; grita) Vomita!

(ouve-se um vomito e depois o choro do monstro)

MALVINA
(em off) Ai, que nojo! Que coisa mais nojenta!

(Malvina e Víbora entram; Malvina está toda melecada com a baba do monstro)

MALVINA
Que nojo! Nojinho!

MONGO
Você foi burra de querer chegar perto da boca dele.

MALVINA
Aquela era a boca? Eu pensei que fosse o traseiro dele. Era perto do rabo.

MONGO
(pensa) Eita, você tem razão. Ele te engoliu pela bunda! (gargalha)

MALVINA
Que nojo!

JULINHO
Socorro!

MALVINA
E é tudo culpa sua! Vamos entregar ele pro monstro logo!

VÍBORA
Calma, ele precisa estar puro. Ele ainda está cheio de impurezas. Se não o monstro não vai querer comer ele! Ele só gosta de crianças puras.

MALVINA
Mas eu não sou criança. E muito menos pura. Eu sou uma bruxa muito má, e quando eu colocar a mão nesse moleque desgranhento...

MONGO
Mas é que você foi engolida pela bunda do monstro, ele nem percebeu o gosto! (gargalha)

VÍBORA
Cale a boca, Mongo!

MONGO
Você entrou certinho pelo...

VÍBORA
Mongo! Vá acalmar o bicho.

MONGO
Tudo eu, tudo eu. (sai)

MALVINA
Que nojo, meu deus!

JULINHO
“Que nojo, meu deus!”

MALVINA
Para! Para! Que ódio!

JULINHO
Então me solta!

VÍBORA
Você deve estar se divertindo com tudo isso, não é, Júlio? Como você sempre fez, não é? Infelizmente não podemos te entregar desse jeito para o monstro.

MALVINA
Não que não queremos.

VÍBORA
Com todas essas nojentices impregnadas na sua mão. Ele tem um paladar muito peculiar, o nosso monstro. Por isso temos que purificá-lo para não dar alguma indigestão indesejável.

JULINHO
Purificar-me de que? Eu não fiz nada de errado! Eu vou na igreja todo domingo com a minha mãe. 

MALVINA
Ah, você não faz nada de errado, Júlinho? Nada, nadinha?

JULINHO
Não. Nadinha, que eu saiba.

MALVNA
Você não se lembra da Laurinha, não é?

JULINHO
Laurinha?

MALVINA
Sim! Coitada! Coitadinha da Laurinha!

VÍBORA
Temos que falar desse assunto mais tarde, a poção ainda não está pronta.

JULINHO
(pensativo) Não me lembro de nenhuma Laurinha.

MALVINA
É. Mas ela lembra bem de você.

VÍBORA
Como eu dizia, toda sexta-feira temos que alimentar o monstro, para que possamos usufruir de seus poderes. E, infelizmente, ele gosta somente de crianças boazinhas. Sim, meu querido, as bruxas conseguiram sobreviver à perseguição e vivemos muito bem com nossos rituais de matar criancinhas por aí. (pausa) Você nunca foi uma criança boazinha, não é, Júlio? Todo esse tempo você tem sido uma criança muito má.

MALVINA
Com todas aquelas piadas e brincadeiras sobre coisas que as pessoas não escolhem!

VÍBORA
Fizemos uma escolha bárbara. Podíamos muito bem escolher crianças boas, crianças dedicadas e que só gostam de brincar, sem magoar os outros, aquelas que respeitam o espaço do outro. É do que o monstro precisa, desse tipo de proteína infantil. Porém essas crianças fazem mais falta do que as chatas. Os pais sentem falta, a sociedade sente falta. As chatas, as metidas, no começo, pode até fazer um pouco de falta. Mas depois todo mundo dá graças a deus de elas terem sumido. 

MALVINA
Ou melhor, engolidas.

JULINHO
Pelo menos eu vou ser comido pela boca, sua ridícula!

MALVINA
Cale a boca, seu...

VÍBORA
Malvina!

JULINHO
Mas eu não sou um menino mau! Todo mundo gosta de mim! Pode perguntar! Todo mundo se diverte comigo. Pergunte pro Valdemar - vocês conhecem o Valdemar? Eu sou quase um ídolo na escola! Pode perguntar! Eu juro. O povo todo se diverte comigo!

MALVINA
Se diverte das piadas que você faz dos outros que não se divertem tanto, né?

JULINHO
Bom, é o que tem pra poder rir na escola, né? E até eles riem às vezes.

MALVINA
Você deve ir pra escola pra estudar e não pra rir.

JULINHO
Ah, larga a mão de ser careta. Não existe esse negócio de ir pra escola pra estudar. Cada um faz o que pode. Esse é meu jeito de me incluir na turma, de ser descolado, de ser diferente também!

MALVINA
De ser um panaca, você quer dizer.

JULINHO
Vá cagar, sua bafuda!

MALVINA
Bafuda é sua vó!

VÍBORA
Parem vocês dois! (chama) Mongo! Vai logo com isso! (continua) Julinho, somos feiticeiras muito poderosas. Mas não somos idiotas. O que você faz não é legal nem pra nós que somos más. Tem gente que ri das piadas sobre elas mesmas, porque se não rir é excluído do grupo.

MALVINA
Podemos até matar criancinhas com gosto, mas fazemos isso pra ajudar outras. Que a justiça seja feita sempre!

VÍBORA e MALVINA
Amém.

JULINHO
Isso é ridículo. Bruxas justiceiras. Até o mundo sobrenatural tá ficando chato, pô! Eu to começando a achar que isso é algum tipo de brincadeira... É zoeira, né? Cadê as câmeras?

(Mongo entra segurando um dente imenso)

MONGO
Nosso bebezão está crescendo. Olha só, seu primeiro dente de leite caiu.

JULINHO
Meu deus...

MONGO
Acho que ele vai engolir o menino por inteiro dessa vez. O bicho tá banguela. Ou teremos que picar o menino pra ele mastigar mais fácil. Posso ficar com a cabeça de presente, Víbora?

JULINHO
Socorro! Alguém me ajuda!

VÍBORA
Pronto. Terminei a poção.

MALVINA
Segure-o, Mongo. Está na hora.

JULINHO
Não! Por favor!

MONGO
Abra a boca, espertinho.

MALVINA
Finalmente.

JULINHO
Não! Não!

(Víbora faz ele beber a poção; Malvina se diverte)

VÍBORA
Pronto. Podemos começar.

MONGO
Legal!

(uma música ritualística acompanha)

MALVINA
(grita) Poderes espectrais de todas as maldades do mundo, fazei com que esse menino expurgue todas as impurezas e malvadezas. Que se arrependa das injustiças e zoeiras na escola!

MONGO
E que ele vire um ser humano melhor!

VÍBORA
E que esteja preparado para alimento de nosso querido monstro negro! Para que nunca mais perturbe os colegas de escola, ou atrapalhe seus professores de dar aula!

VÍBORA, MONGO e MALVINA
Para que não ria das imperfeições!

MALVINA
Pois ele também não é perfeito!

MONGO
Olha o tamanho desse nariz!

MALVINA
E ele raspa os pelos do sovaco!

VÍBORA, MONGO e MALVINA
Somos todos imperfeitos, diferentes e com manias, e quem achar que está no direito de rir dos outros, deverá ser sacrificado!

(eles cantam em ritual)

VÍBORA, MONGO e MALVINA
“Não gosto quando riem
Se fazendo de santo
Fazer chacota é coisa de malandro

Porque elas são todas lindas
E se xingam de feias
Os defeitos das pessoas sempre alvo de piada

MALVINA
Ria de mim agora

VÍBORA, MONGO e MALVINA
A justiça sempre vinga

VÍBORA
Queridinho, menininho
Você não é perfeitinho
Queridinho, menininho
Quem você pensa que é?

VÍBORA, MONGO e MALVINA
Um qualquer, um Zé ninguém
Você é um garoto mau
A vingança sanguinária
É a que merece ter

Ah, ah!
Comido será
Ah, ah!
Comido será!

(Julinho, atordoado, desmaia)

(Black-out)


CENA 2: MENINA

(Julinho está sozinho)

JULINHO
(acorda) Caramba. Isso não pode estar acontecendo. Socorro! Alguém me ajuda! Alguém? (silêncio) Isso aqui é uma escola ou o que? Cadê todo mundo? Ninguém desce no porão da escola, meu deus? (silêncio; ele tenta se soltar das cordas) Puxa vida, o que eu fiz pra merecer isso? Eu não consigo entender.

(Laurinha entra e se assusta; fica parada olhando para Julinho)

JULINHO
Ei, menina! Me ajuda! Me ajuda! Umas loucas me amarraram e... elas falaram que são bruxas... e...

(ela sai correndo)

JULINHO
Não! Volte! Por favor! Elas vão alimentar um monstro! E eu sou o alimento! Eu! Ah, deus! O que eu fiz de errado? Eu não mereço morrer assim. (grita) Socorro! Alguém!

(Mongo entra)

MONGO
Nem adianta gritar. A escola já fechou. Todo mundo foi embora. E é final de semana. (ri)

JULINHO
Tinha uma menina aqui.

MONGO
Mentira. Para de ser mentiroso. Além de chato, mentiroso. Credo, moleque.

JULINHO
Eu juro. Eu vi. Aquela menina que parece menino, sabe? Do quarto ano. Como é o nome dela mesmo? Ela tinha um apelido.

MONGO
Menina que parece menino?

JULINHO
Sim! É verdade. Ela tem o cabelo curtinho. Bem curtinho. (ri) Parece um menino mesmo. Usa umas roupas de moleque, tipo coisa de gente louca. (ri) Modinha. 

MONGO
E isso é engraçado?

JULINHO
E não? Roupa de menino é roupa de menino e roupa de menina é roupa de menina. Eu acho ridículo quem tenta ser diferente desse jeito. É querer aparecer. E ela é a maior esquisitona da escola. Não lembro o nome dela. O apelido! Acho que chamavam ela de Maria João.

MONGO
Quem?

JULINHO
Ela. A menina.

MONGO
Não. Quem chamava ela de Maria João?

JULINHO
Todo mundo, ué. Tinha até uma música.

MONGO
Todo mundo quem?

JULINHO
A escola, poxa!

MONGO
Hum. E aposto que foi você quem inventou o apelido.

JULINHO
(pensa) Não, lógico que não. Mas a música fui eu quem inventei. Eu que inventei. (ri) Mó da hora. "Maria João, Maria João, a mina é bonita, mas é sapatão". (gargalha)

MONGO
É nada, cara. Não achei graça nenhuma. Já pensou que ela pode não gostar dessas coisas?

JULINHO
Ah, até parece. Ela nem liga. É só zoeira.

MONGO
Como você tem tanta certeza?

JULINHO
Sei lá, mas é só brincadeira. Todo mundo tem que saber brincar.

(Malvina entra)

MALVINA
Agora ferrou! Ferrou tudo! Tudo!

MONGO
O que foi?

MALVINA
Ferrou, Mongo! Ferrou! Tá tudo ferrado!

MONGO
Mas o que aconteceu?

MALVINA
Você não sabe o que é ferrar?

MONGO
Eu sei! Mas o que aconteceu pra ferrar com tudo?

MALVINA
O monstro contou em telepatia para a Víbora que ele não está mais querendo se alimentar de um menino essa noite. Agora ele decidiu que ele quer uma menina. Uma menina!

JULINHO
Cheio de frescura esses seres sobrenaturais, meu!

MONGO
Ah, não! Mas e agora, Malvina? É final de semana!

MALVINA
Sei lá. Agora que ferrou. A Víbora me contou chorando. 

JULINHO
Se ferraram, seus cagões! Agora vão ter que me devolver. Se forem espertos ainda pegam aquela menina que eu disse. Só que eu já vou avisando que ela se parece com um menino. Talvez se vocês tentarem uma saia, ou uma tiara, até dá pra enganar. Vão precisar de uma peruca também, por causa do cabelo curtinho.

MALVINA
Boa ideia, cara!

JULINHO
Ótimo. Agora podem me soltar. Graças a deus um pouco de justiça! Meu pai é muito importante pro filho dele ser morto num ritual de bruxas clandestinas que matam crianças ruins do século XXI. 

MALVINA
Arranje um vestido, Mongo. Eu tive uma ideia melhor ainda.

MONGO
Solto ele?

MALVINA
Não. Lógico que não. Chame a Víbora e arranje um vestido. Um pouco de maquiagem também e uma peruca.

(Mongo sai)

JULINHO
E então?

MALVINA
O que?

JULINHO
Não vai me soltar?

MALVINA
Não.

JULINHO
A menina, a Maria João deve tá aqui ainda. Com sorte vocês pegam ela.

MALVINA
Deixa ela ir embora.

JULINHO
Mas então o que...?

MALVINA
Fique vendo.

JULINHO
O monstro não quer um menino!

MALVINA
Tudo bem.

JULINHO
E eu sou um menino!

MALVINA
Por enquanto.

JULINHO
Como assim por enquanto? Como assim? Isso não tem nada a ver. Como assim, sua bruxa fedorenta e berebenta? Hein? (grita) Me fala!

(Víbora entra acompanhada de Mongo que segura um vestido rosa, uma peruca loira e um estojo de maquiagem)

VÍBORA
Ótima ideia, Malvina! Perfeita para a ocasião sobre gênero.

MALVINA
Obrigada.

VÍBORA
Antes teremos que verificar se ele realmente está um menino bom, se a poção funcionou.

JULINHO
Eu não estou bom! Eu ainda sou um chato...

MONGO
Isso é verdade.

JULINHO
Vou tirar sarro de todo mundo ainda. Querem ver? (para Víbora) Você, sua bruxa babona. Se acha a sabichona, a líder, mas com essa bunda imensa você não vai conseguir chegar em lugar nenhum! Nem com essa sua magia de merda e essa sua cara cheia de plástica.

MONGO
Seu moleque... (avança para Julinho)

VÍBORA
Espere, Mongo. Vamos aguardar o que ele tem pra falar.

JULINHO
É isso mesmo. E essa voz de taquara rachada não engana ninguém! Esse negócio de querer vir ficar dando sermão, de ficar falando de sociedade, do politicamente correto, até parece com a Profº Taquara Mariela Rachada, vocês conhecem a retardada? Dava aula aqui. A professora de sociologia. Foi demitida agora. Ainda bem que tiraram essas disciplinas da grade porque ninguém aguenta essa moralidade e essa voz de galinha botando ovo! Dá até nojo de ouvir sua voz, sua bruxa! Na hora que você canta. Não canta, tonta, não faz esse de passar vergonha mais. Você será conhecida como: Moralista Canto Mal Pra Caramba, igual a professora de sociologia que cantava musiquinha pra tentar ensinar coisinhas de amor. (gargalha) Ridícula. 

(Víbora fica um pouco sentida)

MALVINA
Não seja tão rude, Julinho!

JULINHO
E você! Pensa que é o braço direito dessa aí. Mas serve mesmo como capacho. Coadjuvante! Essa verruga nojenta que mais parece um carrapato aí dá um nó no meu estômago. Só de olhar pra isso eu tenho vontade de me enforcar. Senhorita Malvina Carrapatinho é o seu novo apelido. (gargalha) Não serve de nada. Se o Valdemar estivesse aqui ele não ia conseguir parar de rir só da sua cara. Tipo, ia olhar e ia rir, ia olhar e ia rir. Nojenta! Malvina Carrapatinho!

MALVINA
Malvina Carrapatinho era meu apelido na escola. (chora)

MONGO
Olha o que você fez, seu...

JULINHO
Seu o que, hein? Hein? Você é o cara mais burro que eu já vi. Burro. Parece um cachorro! Só balançando o rabo e comendo peixe cru! Que coisa mais nojenta! Você é nojento! É um porco! Se acha o espertinho mas não tem nada no cérebro. E...

MONGO
(não se ofende) Eu nunca me achei espertinho. Já disse várias vezes, não sou muito inteligente mesmo. E peixe cru é o que há.

JULINHO
(provocando) O que interessa é que você é burro! Muito Burro! Senhor Burronildo da Silva. (gargalha)

MONGO
(gargalha também) Muito boa. Muito boa. Burronildo da Silva!

JULINHO
(tentando) E feio. Feio pra caramba! Feio! Muito feio! Senhor Feião! Mais feio que você só dois de você. Vai morrer solteiro. (ri)

MONGO
(depois de uma pausa) Isso é o que você tem de melhor, Julinho? Nossa. Eu tô impressionado. Pensei que ele era daqueles babaca barra pesada. Nem sabe ofender de verdade.

JULINHO
Barrigudo! Alcoólatra!

MONGO
(boceja) Oh.

JULINHO
Gay! Seu gay! Você é gay! Gayzão.

MONGO
Muito obrigado! Gay pra mim é elogio. Todos os gays que eu conheço são pessoas maravilhosas. Gay é sinônimo de coisa boa pra mim. Seja mais criativo, Julinho, por favor.

JULINHO
Fedorento. Catarrento. Filho de uma mãe careca, analfabeta e de verruga na testa!

MONGO
(ele se choca) Ah! Mãe não! Mãe não!

VÍBORA
Calma, Mongo.

MONGO
Ninguém tem culpa de nascer com uma verruga daquele tamanho na testa! Eu amo ela! Eu amo ela! Você é o pior dos piores! O pior dos piores!

MALVINA
Por que todo mundo gosta de falar mal das mães e das verrugas, hein?

JULINHO
Agora me larguem, seus imbecis! Eu não tenho jeito! Eu vou ser sempre um menino chato! Não quero mudar! Tem tanta criança boazinha querendo sumir por aí. Peguem os depressivos! Peguem a carequinha! Aquela que parece menino. A Maria João. Ela tá sempre pra baixo, com uma cara triste. Talvez até iria gostar de ser comida por um monstro e não existir mais.

MALVINA
Você não sabe de nada! (ela sai chorando)

JULINHO
Sei que o monstro não gosta de gente chata, e que agora nem quer mais um menino! Pronto!

VÍBORA
Isso resolveremos rápido. Coloque esse vestido nele, Mongo.

JULINHO
O que?

VÍBORA
Eu me cansei dos seus joguinhos, Júlio. Agora vamos falar bem sério. De ser humano, pra ser humano. Vista-o, Mongo.

(Mongo obedece; Julinho resiste, mas Mongo é mais forte)

JULINHO
Você é bruxa, o papo vai ser de ser humano pra bruxa...

VÍBORA
(séria) Cale a boca que eu não terminei! (pausa; ela está calma, um pouco amorosa) Agora eu quero que você pense bem. Pense bem, Julinho. Pense bem por alguns segundos.

(Mongo termina de vesti-lo)

VÍBORA
Tudo o que você precisa é pensar bem.

JULINHO
Eu já to pensando bem, meu. Eu não sei o que vocês querem.

(Mongo gargalha)

MONGO
Que menina bonitinha que ficou! 

JULINHO
Para com isso!

VÍBORA
Não, caramba, você não entendeu! Pense bem em tudo que você já fez, cara.

JULINHO
Ai, vai começar o sermão! Fala aí, mamãe.

VÍBORA
Meu, eu to falando pra te ajudar! Será que você não entende? Eu vou te dar alguns segundos pra compreender esse enigma. Existe uma forma de não te entregarmos ao monstro. Só uma forma.

JULINHO
Eu sei. Se eu continuar mau, ele não me quer. Vocês disseram. Ele não gosta de meninos maus. E vocês acham que ele vai cair nessa história de vestido?

VÍBORA
Ele cai. Já caiu outras vezes. O lance é a maquiagem. Isso é tudo bobagem! E todo menino mau tem um lado bom, vamos passar um talco de neném em você que ele quase acredita que você é do bem. (pausa) Só tem um jeito. Um só.

JULINHO
E qual é então? Me fala!

VÍBORA
(sai lentamente e misteriosa)

JULINHO
Onde você vai? Volta aqui! Me conta! (para Mongo) Mongo, me ajuda! Me larga! Eu juro que eu dou o tanto de peixes que você quiser. Eu sei pescar! Meu pai é pescador! 

(Mongo se aproxima com um estojo de maquiagens; música grandiosa)

JULINHO
Não, Mongo! Nãããão!

(Black-out)


CENA 3: OPERAÇÃO MENINO BOM

(Quando a luz se acende, Julinho é levantado por duas cordas que seguram seus pulsos, ao som grandioso de percussão; ele está com a peruca loira ao estilo King Kong)

(silêncio; ouve-se apenas Julinho ofegante)

JULINHO
Socorro! Alguém me ajuda!

(o monstro ruge longe)

JULINHO
Ah, meu deus! Ah, meu deus!

(Laurinha entra e se assusta)

JULINHO
Menina! Me ajuda! Me ajuda, por favor! Eu te dou tudo. Faço qualquer coisa se você me tirar daqui.

(Laurinha vai sair)

JULINHO
(quase chorando) Não! Por favor! Por favor! Fique! Por favor! (a menina volta devagar) Me ajude, menina. Eu to cagando de medo.

LAURINHA
Medo?

JULINHO
Sim. Por favor. Eu não sei o que fazer. Eu só tenho doze anos.

LAURINHA
Não era treze?

JULINHO
(meio irritado) O que importa? Vai me tirar daqui ou não?

LAURINHA
Você é um menino muito chato, sabia. Não devia ser assim.

JULINHO
Já me falaram isso. O que eu posso fazer? Eu sou assim. Cada um é cada um. É porque eu sou de escorpião. Agora me tire daqui.

LAURINHA
Não tem nada a ver esse negócio de signo. E eu não vou te ajudar.

JULINHO
Como não? Isso é malvadeza. Tem umas bruxas... Ninguém pode ser tão má assim!

LAURINHA
Eu sou de gêmeos.

JULINHO
Me ajuda, vai! Você não pode me deixar aqui pra ser devorado. Tem um monstro!

(o monstro ruge)

LAURINHA
Você me deixou pra ser devorada uma vez também.

JULINHO
O que?

LAURINHA
Você me deixou por aí na escola pra todo mundo rir da minha cara. Você fez uma música e colocou no Youtube, lembra?

JULINHO
O que?

LAURINHA
Maria João, não é? Isso foi parar na boca da minha mãe, sabia? Tá sendo tão difícil. Eu tenho me escondido lá em casa, me escondido em todos os lugares...

JULINHO
Seu nome é Laurinha, né? Agora que eu lembrei.

LAURINHA
Pois é. Eu.

JULINHO
Ora, se é só por aquilo que você não vai me soltar você é muito pior que eu. Aquilo foi só uma brincadeira. Uma brincadeira! Não sabe levar as coisas na esportiva? É só uma piada, meu.

LAURINHA
Que me fez chorar por quase duas semanas inteiras! Duas semanas! Eu nem queria mais vir na escola! E você estava lá, rindo de todos, parecendo feliz, mostrando como é que um babaca de verdade deve agir.

JULINHO
Agora vai me ofender, é? Eu nem falava seu nome no vídeo, ô! Se não vai me soltar vai embora então. Não tô nem ligando também! Vocês ficam se fazendo de vítima o tempo todo!

LAURINHA
Eu vou embora mesmo. Boa sorte. Você não sabe a festa que estava hoje no intervalo, sem você pra encher o saco de todo mundo. (sai)

JULINHO
Pode ir, sua birrentinha! Vai se vestir direito, ô moleque! Maria Joãozinho! (ele tenta se soltar mas desiste; ouve-se mais uma vez o monstro; ele grita, se esperneia desesperado; reflete por um tempo, se olha vestido de mulher e se entristece) Caramba. Eu tô ferrado.

(o monstro ruge perto; uma cadeira entra voando)

JULINHO
É agora! Ai, meu deus! Perdão! Perdão por tudo! Perdão, deus!

(fumaça e som grandioso de trombetas)

VOZ DE DEUS
De tudo o que?

JULINHO
Deus?

VOZ DE DEUS
Talvez sim, talvez não, meu filho. Depende muito do que você acredita. Confesse-se antes de ser engolido por aquela criatura magnífica que eu mesmo criei.

JULINHO
Me salve, deus! Por favor! Me salve!

VOZ DE DEUS
O papo era de perdão, não de salvação. Foi por isso que vim.

JULINHO
Me perdoa! Por ter feito tudo isso! Por ter feito algumas pessoas chorarem!

VOZ DE DEUS
Algumas não. Várias.

JULINHO
Várias. Me desculpa de ter sido um babaca. De ter rido das diferenças dos outros, dos defeitos. Eu sei que não sou perfeito, olha o meu nariz. Eu me arrependo. De ter feito isso. Juro que me arrependo. De às vezes ter sido um idiota.

VOZ DE DEUS
Às vezes não. Muitas vezes.

JULINHO
Muitas vezes. Me perdoa. 

VOZ DE DEUS
(pensa) Hum... perdoado então! Tá perdoado, Julinho. Pena que agora é tarde. Pelo menos agora você vai poder vir pro céu aqui comigo. 

JULINHO
Não! Quando eu me arrependesse eu devia ser salvo!

VOZ DE DEUS
Não é assim que a vida funciona, meu filho. Adeus, Julinho! Até daqui a pouco depois da sua morte.

JULINHO
Não! Volta! Por favor! E agora? E agora? Eu estou mesmo arrependido. Eu estou...

(Laurinha entra raivosa)

LAURINHA
Que raiva! Fiquei trancada aqui dentro da escola! Me trancaram! E agora?

JULINHO
Laurinha! Laurinha! Me ajuda! Por favor!

LAURINHA
Não! Você é chato pra caramba! Espero que o monstro te coma sem mastigar! Ainda que agora, ele tá sem dente mesmo.

JULINHO
(desconfiado) Como sabe disso?

LAURINHA
Eu... é... não interessa! Tive uma ideia! Vou pular o muro. Sempre quis fazer isso. (vai sair)

JULINHO
Espere! (pausa) Antes, eu queria te pedir uma coisa.

LAURINHA
Nem adianta que eu não vou te salvar!

JULINHO
Não é isso. Eu só queria te dizer que... que...

LAURINHA
Que?

JULINHO
É difícil. Muito difícil pra mim.

LAURINHA
Bom, eu estou com pressa... (vai sair)

JULINHO
Espera! (longa pausa; Laurinha aguarda) Eu só queria te pedir desculpas.

LAURINHA
Desculpas de que?

JULINHO
De ter sido um idiota. Eu sei que eu fui um panaca. Mas é que... é que... eu só queria ser legal, que as pessoas gostassem de mim.

LAURINHA
Não funcionou desse jeito. Você pode até ser lembrado como o engraçadinho, mas todo mundo te odeia. Você magoou muita gente, Julinho.

JULINHO
Eu sei. Eu estou arrependido.

(silêncio; Laurinha se aproxima de Julinho e começa a desamarrar a corda; mais um rugido; grande tensão)

JULINHO
Rápido, rápido! Ele está chegando perto! Oh, meu deus!

LAURINHA
Eu não tô conseguindo!

JULINHO
É ele! É ele! Nós vamos morrer!

(quando o monstro parece que vai entrar, Víbora acende a luz; silêncio)

LAURINHA
Ah, meu deus!

JULINHO
Fuja Laurinha, fuja! Eu estou pronto, deixe ela fora disso. Acabem logo com isso. Soltem o bicho pra que ele me coma.

VÍBORA
Não posso fazer isso.

JULINHO
Eu não estou entendendo. O que está acontecendo? Chega de enrolação!

VÍBORA
Como comentamos, nós concordamos que iríamos sacrificar apenas os meninos verdadeiramente maus. Você não parece um menino tão mau assim agora, você está se borrando as calças. Você é apenas mais um menino assustado que não sabe lidar com o medo da rejeição. E por isso rejeita o outro. Só isso. É uma pena porque você também é uma vítima, apesar de tudo. Teremos que achar outro menino que seja incurável para ele comer. Tá ficando cada vez mais difícil de encontrar.

JULINHO
Isso não faz sentido. Você disse que o monstro queria meninos bons.

VÍBORA
Ora, ele é um monstro. Ele tá pouco se lixando se vai ser um menino bom ou ruim. Mas as bruxas já tem uma fama horrível. (desamarra-o) Se começarmos a matar criancinhas boas, ou que podem ficar boas, o mundo vai cair em cima da gente de novo. E dá-lhe fogueira nas bruxas! É regra. Mataremos somente as crianças más e incuráveis. Isso tudo foi esse teste, pra ver se você poderia ficar do bem. E você pode. Isso é uma merda pra gente, mas é bom pra você.

LAURINHA
Ela falou “merda”. (ri inocente)

VÍBORA
Desculpe. Agora vá. Vão embora vocês dois.

JULINHO
(vai sair correndo, volta-se) Valeu.

(os dois saem)

(Víbora tira a roupa, o chapéu e a peruca, está vestindo um jaleco de professor; ela é Profª Mariela)

MARIELA
Clóvis! Professor! Ele já foi.

(Clóvis entra segurando a roupa de Mongo)

CLÓVIS
Professora Mariela, que incrível! Foi incrível! Uma ótima ideia essa. No desespero, é o que temos pra fazer. (eles se abraçam) Deu certo, finalmente!

MARIELA
Eu disse que daria. Ele vai pensar em muita coisa agora.

CLÓVIS
Aconteceu alguns pequenos deslizes, mas foi legal.

MARIELA
É. Só essa roupa que era quente demais.

CLÓVIS
E agora? Será que ele entendeu mesmo?

MARIELA
Acho que sim. Vai fazer ele pensar. Alguma coisa ele vai pensar. E se ele contar isso pra alguém vão achar que ele é louco. Bruxas e monstros no porão da escola! (ri) Depois que você apareceu como deus, ele se desesperou. Foi um improviso sensacional, parabéns!

CLÓVIS
Tive que improvisar. Ele aguentou até o fim, Mariela. Achei que não fosse ceder.

MARIELA
Eu acredito que no fundo toda pessoa ruim tem um certo tipo de remorso. (pausa) Será que a Laurinha foi embora com ele?

(Laurinha entra)

LAURINHA
Tô aqui. Eu nunca vi alguém subir tão rápido no muro da escola. Fingi ter esquecido minha bolsa. Ele correu num pinote. Ele falou até de começar a se envolver com o grêmio da escola pra lutar contra o bullying. 

MARIELA
Não acredito! Tá vendo?

CLÓVIS
Ele parece ter se arrependido mesmo. Deve ter aprendido.

MARIELA
O que achou da nossa interpretação, hein?

LAURINHA
Incrível. Ainda mais você, uma professora de sociologia, parecia atriz de verdade. Já o Clóvis é professor de artes, deve saber fazer isso muito bem.

CLÓVIS
Na verdade eu não sou muito inteligente mesmo.

(eles riem)

LAURINHA
Gente, foi uma ideia muito boa. Adorei fazer a Malvina, foi muito legal. Só assim pra esse povo aprender a respeitar os outros. Eu to sentindo novos ares. Chega de tirar sarro dos outros. Ou o monstro pode voltar, não é? (ri)

MARIELA
Exatamente. E depois que ele tentar espalhar essa história, tudo isso vai virar lenda. E lenda ensina. A gente nem vai mais precisar fazer essa encenação toda, daqui um tempo.

LAURINHA
Bruxas e monstros no porão da escola!

CLÓVIS
Operação menino mau!

MARIELA
Arrasamos, meninos. Vocês arrasaram!

CLÓVIS
E quem é o próximo da lista?

LAURINHA
(tira um caderninho da bolsa) É o Valdemar. Ele é líder do time de futebol. Seu alvo principal de piadas e chacota são com os meninos da dança. 

CLÓVIS
Amanhã a gente vai fazer ele rebolar até o chão, então.

MARIELA
Ao som do Bonde do Tigrão.

LAURINHA
E Valeska Popozuda!

(um funk começa e os atores agradecem)


(FIM)




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