OPERAÇÃO MENINO MAU
Personagens (para
quatro atores)
Víbora
Malvina
Julinho
Mongo
Laurinha
Profª Mariela
Profº Clóvis
A Voz de Deus
Cenário: um porão
de escola. Algumas carteiras amontoadas, muita poeira e papéis. Iluminação com velas e lamparinas.
Cena 1: BRUXAS JUSTICEIRAS
(ouve-se um sinal
de escola; Víbora e Malvina entram gargalhando; elas cantam como em um show)
MALVINA E VÍBORA
“Justiceiras
Contra todas as mentira
E as história verdadeira o povo inventa
Bruxa também luta contra o mal
Feiticeira
Que ensina os idiota a ser descente
Piada não tem graça quando é a gente
Machuca, ofende, é tão colegial
Genial é uma pinóia
Isso aqui é coisa de louca
Essas criança, vive tudo aí solta
Vive sarrando os coleguinha em excessivo
Bate em mulher em forma de castigo
Se liga, minha senhora, o que eu fiz, eu não sei só rolou
A bruxaria aqui vai te mostrar
Que a arte funcionou
Justiceiras
Contra todas as mentira
E as histórias verdadeiras o povo inventa
Bruxa também luta contra o mal
Feiticeiras
Que ensina os idiota a ser descente
Piada não tem graça quando é a gente
Machuca, ofende, é tão colegial
(Mongo entra com
Julinho amarrado e amordaçado se debatendo)
MONGO
Senhoras. Mas que puta menino chato, esse, hein? Puxa vida, nunca tive que sequestrar alguém tão
chato. Sabe chato mesmo? Chato demais. Vocês acreditam que ele teve coragem de zoar com a minha
cara, na minha cara. As pessoas normais costumam falar pelas costas, mas na frente assim é muito chato.
VÍBORA
Do que que ele te xingou, Mongo?
MONGO
Ele falou um monte de coisas que
eu não entendi muito bem o significado, eu não entendo muito dessas gírias desses manolo, mas eu percebi que não devem ser boas coisas, pelo tom. Sorte que eu não sou
muito de me magoar.
VÍBORA
É seu coração de
pedra, presentinho da mamãe, querido. Nada abala o meu Mongolão!
MONGO
Nada, nada, nada!
VÍBORA
Muito bem, Mongo. Fez o seu trabalho como combinado. Pode deixá-lo nessa cadeira e se retirar.
MONGO
Nada, nada, nada!
VÍBORA
Muito bem, Mongo. Fez o seu trabalho como combinado. Pode deixá-lo nessa cadeira e se retirar.
MONGO
Ah! Tem um pequeno
problema, senhora. Um pequeno não. Um médio pra grandão.
VÍBORA
E qual é?
MONGO
A diretora da
escola percebeu a falta do menino na hora do intervalo.
VÍBORA
O que?
MONGO
A chatice dele deve de ser marcante pra caramba mesmo.
MALVINA
Como assim, Mongo? Como assim, cara?
MONGO
Marcante. Tipo,
quando ele falta todo mundo percebe que tá faltando uma chatice no ar. Tipo
aquelas piadas que não faz falta, mas agrada todo mundo. Sabe? Aquelas piadas de tio? Então.
MALVINA
O que eu quero dizer é que: como
assim a diretora percebeu, Mongo? Você não fez o planejado? Tava tudo nos planos, Mongo! Caramba! No que você cagou dessa vez?
MONGO
Eu não caguei! Eu não caguei! Vocês sabem, eu não sou o cara mais inteligente, responsável, atencioso, confiável, de boa memória, de que pode-se confiar toda uma missão do mundo.
VÍBORA
Você é um burro mesmo, Mongo.
(Julinho acena
concordando)
MONGO
E cala a boca você! Você não tem moral pra falar sobre mim! Só ela pode.
VÍBORA
Quantas vezes já dissemos que você deve ser prudente. Se ela
perceber a falta de mais uma criança nós estamos ferrados. Se a cidade começar a sentir falta desses ordinários travestidos de pré-adolescentes o que será de nós? E pior, se descobrirem
nosso esconderijo...
MALVINA
Se descobrirem que
pegamos esse porão de escola como cativeiro tudo vai por água abaixo, seria a entrada para a porta do inferno. Porque entre essas paredes velhas da educação foi onde o velho diabo colocou as passagens secretas para a morte.
MONGO
Ai, meu deus do céu! Não briguem
comigo.
MALVINA
Devíamos ter ido
nós mesmas fazer essa tarefa. Toda vez é a mesma porcaria!
VÍBORA
Bom, o menino já
está aqui. Seja o que as deusas quiserem. Duvido que alguém vá sentir tanta falta. Em uma semana todo mundo já esqueceu desse crápula. Devemos agir logo.
MALVINA
Claro. Vá buscar
as ferramentas, Mongo.
MONGO
Com prazer. (ele
sai)
VÍBORA
Bom, podemos
começar o tratamento com alguns testes de aptidão.
(Malvina tira a
mordaça de Julinho)
JULINHO
... suas
macumbeiras! Vaca! Me soltem! Me soltem, suas galinhas! Socorro!
MALVINA
Cala a boca, menino! Cale essa boquinha!
JULINHO
E se eu não calar,
hein? Hein?
MALVINA
Eu faço você comer
aquele rato, moleque!
JULINHO
Melhor você fazer
a barba, sua bruxa horrorosa! Eu não tenho medo de vocês!
MALVINA
(irritada) A
barba? O que você está insinuando, seu...? (pega ele pelo pescoço)
VÍBORA
Deixe ele em paz, Malvina.
Não vamos machucá-lo... ainda. Não por enquanto.
JULINHO
Quando meus pais
descobrirem vocês vão ver! Vocês não sabem quem eu sou!
MALVINA
Ai, cale essa boca que eu já tô cansada da sua voz!
JULINHO
E se eu não calar?
Hein? Hein? Eu não vou calar. Vou continuar falando o que eu quiser, e vou falar até a hora que eu quiser, porque ninguém manda na minha boca, até a hora que eu quiser! A gente vive uma democracia! Suas ignorantes macumbeiras.
MALVINA
Meu deus, que
menino insuportável!
(Mongo entra)
MONGO
Eu avisei.
VÍBORA
Deixe as coisas
aqui no canto, Mongo.
JULINHO
O que vocês
querem, hein? Isso é crime! É sequestro! Me larguem agora ou vocês vão para a cadeia! É ditadura! É ditadura! Socorro!
MONGO
Você quem vai pra
cadeia, legalzão! Isso que você faz é crime também. A gente não pode confundir a reação do oprimido com a violência do opressor.
MALVINA
Cale a boca,
Mongo. Você é burro, esqueceu?
MONGO
Ah, é.
MALVINA
Aceite que dói menos, Julinho. Você também pode muito bem ir pra cadeia também.
JULINHO
Pra cadeia? Eu sou
menor de idade, sua besta! Menor de idade não vai pra cadeia! E eu não fiz nada de errado!
MALVINA
Ah, não? Tem
certeza? E aquele dia que você...?
VÍBORA
Malvina, ainda não. Vamos devagar...
MONGO
Nós somos do submundo, garoto chato. Seus maiores medos estão prestes a se tornar realidade.
VÍBORA
Tome, Mongo! (tira da bolsa um peixe cru) Vá, vá se alimentar!
Malvina, ainda não. Vamos devagar...
MONGO
Nós somos do submundo, garoto chato. Seus maiores medos estão prestes a se tornar realidade.
VÍBORA
Tome, Mongo! (tira da bolsa um peixe cru) Vá, vá se alimentar!
MONGO
Delícia! Que
delícia!
VÍBORA
Sua varinha, Malvina.
MALVINA
Obrigada, Víbora!
MONGO
Obrigado, Víbora! Amo você. (vai saindo se deliciando com o peixe)
VÍBORA
Sua varinha, Malvina.
MALVINA
Obrigada, Víbora!
MONGO
Obrigado, Víbora! Amo você. (vai saindo se deliciando com o peixe)
JULINHO
Ai, que nojo, meu deus! O que é que vocês são? O que é que tá acontecendo aqui?
MONGO
Você nem queira imaginar! Moleque chato. É feitiçaria moderna. (sai)
JULINHO
Eu tô avisando, é
melhor vocês me soltarem. Meus pais são conhecidos na cidade.
MALVINA
E é por isso você
age feito um idiota, é? Nunca ouviu um "não"de papai.
JULINHO
Escuta aqui, sua
berebenta! Idiota é sua mãe, aquela pé rapada que não tem onde cair morta.
MALVINA
(ofendida) Ah!
Eu... você é um monstro! (chora)
VÍBORA
Se recomponha, Malvina!
Nada de choramingo. Vamos ao que interessa... (ela começa a misturar líquidos)
MALVINA
Ele xingou minha
mãe, Víbora. Onde é que vocês acham isso normal?
JULINHO
Sua mãe, seu pai,
seu tio! Seu passarinho, se você quiser! Todos uns idiotas! E você é a mais idiota. A idiota suprema!
MALVINA
Eu não tenho
passarinho só pra você saber!
VÍBORA
Malvina, deixe o
menino...
JULINHO
Claro, com essa
cara cheio de rugas só pode assustar tudo os passarinho. Tipo espantalho. (ri)
MALVINA
Seu menino
insolente... (agarra ele pelo pescoço)
VÍBORA
Malvina! Por
favor! Deixe ele em paz. Você está discutindo com um menino de onze anos!
JULINHO
Eu tenho treze!
MALVINA
(imitando) “Eu
tenho treze! Eu tenho treze!”
JULINHO
Pare com isso!
MALVINA
“Pare com isso!”
JULINHO
Eu já falei pra
parar!
MALVINA
Ahá! Encontrei seu
ponto fraco.
JULINHO
“Ahá! Encontrei
seu ponto fraco.”
MALVINA
Pode parar, seu
cocô!
JULINHO
“Pode parar, seu
cocô!”
MALVINA
(grita) Para!
JULINHO
“Para!”
MALVINA
Olha ele, Víbora!
Ele tá me irritando! Que moleque mais chato!
JULINHO
“Olha ele, Víbora!
Ele tá me irritando! Que moleque mais chato!”
MALVINA
Quando eu te
pegar... (pega ele pelo pescoço)
VÍBORA
Pare com isso,
Malvina! Chega vocês dois! Temos um plano a se seguir! Pare de dar atenção à esse imbecil.
MALVINA
Deixe eu arrancar
a língua dele, só pra ele calar essa boca por um instante!
VÍBORA
Ainda não. Não vai ser preciso. Tenha calma.
MALVINA
Esse menino não
tem jeito, cara. Eu tenho certeza que esse não tem jeito.
VÍBORA
Todos têm. Todos têm jeito.
MALVINA
Ah, esse não tem.
VÍBORA
Todos têm. Temos
que tentar. Com tudo isso acontecendo esse é o jeito que deu pra fazer. Quando não se tem um jeito definido, quando não se tiver jeito, vai do jeito que tiver que ser. (pausa) Qualquer coisa
passamos um talco nele e tudo fica certo.
JULINHO
Mas que diabos
vocês querem, hein? É dinheiro ou o que? O que que é essa roupa ridícula aí que vocês estão vestindo? Vocês não são bruxas de verdade, são?
VÍBORA
Não precisamos do
seu dinheiro. Temos uma missão para cumprir, moleque. E você é essa missão.
MALVINA
Ou alimentação.
(ri) Até rima.
VÍBORA
Silêncio, Malvina.
Vá, chame Mongo. Peça para que desamarre as cordas do focinho dele com cuidado.
Diga que o prenda com uma corrente bem forte dessa vez. Pode prepará-lo.
MALVINA
Você não espera o
que te aguarda, moleque! (sai)
JULINHO
Me preparar pra
que? Hein? Hein? (silêncio) Me responda sua bruxa gorda e fedorenta! (silêncio)
Qual é? Hein?
VÍBORA
Não estava dizendo
para preparar você. Para preparar ele.
JULINHO
Ele quem?
VÍBORA
Você verá.
(ouve-se um grunhido vindo de fora)
MALVINA
(grita em off) Me ajuda, Mongo! Ai!
MONGO
(em off) Jesus!
JULINHO
O que foi isso? O que é isso? Me
larguem! O que é que tá acontecendo, moça? Pelo amor de deus, me deixa ir embora.
VÍBORA
O que aconteceu, Mongo?
(Mongo entra)
MONGO
Víbora, agora
ferrou! Agora ferrou tudo! Ferrou! Ferrou!
VÍBORA
O que foi?
MONGO
Ferrou! Tá tudo
ferrado! Beleléu!
VÍBORA
Desembucha, resto
de professor de educação artística!
MONGO
A Malvina. Ela foi
engolida!
VÍBORA e JULINHO
O que?
VÍBORA
Como assim
engolida?
JULINHO
E engolida por o
que?
(ouve-se o barulho
do monstro)
MALVINA
(em off) Socorro!
Que fedô!
MONGO
Engolida! Engolida! Ele engoliu ela!
VÍBORA
Ai, meu deus! Como
você foi deixar isso acontecer, Mongo?
MONGO
Eu não sou muito dos inteligente.
JULINHO
O que foi que engoliu ela?
VÍBORA
E agora?
MONGO
Posso cortar a
barriga dele, na pior das situações.
JULINHO
(grita) Cortar a barriga de quem?
MONGO
O monstro que vai
te comer, seu chato cagão!
JULINHO
Monstro? O que...?
(ouve-se o som do monstro) Ai, meu deus! Socorro! Socorro!
MALVINA
(off) Socorro!
VÍBORA
Deixe comigo! A espada de Paulo Coelho. (ela
surge com uma espada e sai; o monstro urra; em off) Larga ela, seu desgraçado! Ela é uma menina! Seu jantar já está quase pronto. Vomite!
MONGO
Ela está falando
de você. O jantar é você.
JULINHO
Mãe!
MONGO
Não, não sua mãe. Você.
(Víbora entra empurrada)
MONGO
Vai, Víbora! Eu tô dando apoio moral!
(Víbora sai guerrilheira)
MONGO
Aquela espada machuca e depois cicatriza. É demais esses lances de magia.
(Víbora entra empurrada)
MONGO
Vai, Víbora! Eu tô dando apoio moral!
(Víbora sai guerrilheira)
MONGO
Aquela espada machuca e depois cicatriza. É demais esses lances de magia.
JULINHO
Faz o favor de me soltar, seu fedorento! Eu não acredito nesses negócios de magia.
MONGO
Mas você é chato
mesmo! Essas coisas ofendem, sabia? Toda vez que alguém fala isso uma fadinha bonitinha morre. Sorte que eu tenho o coração de pedra, seu ser humaninho nojento.
VÍBORA
(em off; grita) Vomita!
(ouve-se um vomito e depois o choro do monstro)
(ouve-se um vomito e depois o choro do monstro)
MALVINA
(em off) Ai, que
nojo! Que coisa mais nojenta!
(Malvina e Víbora
entram; Malvina está toda melecada com a baba do monstro)
MALVINA
Que nojo! Nojinho!
MONGO
Você foi burra de
querer chegar perto da boca dele.
MALVINA
Aquela era a boca?
Eu pensei que fosse o traseiro dele. Era perto do rabo.
MONGO
(pensa) Eita, você
tem razão. Ele te engoliu pela bunda! (gargalha)
MALVINA
Que nojo!
JULINHO
Socorro!
MALVINA
E é tudo culpa
sua! Vamos entregar ele pro monstro logo!
VÍBORA
Calma, ele precisa
estar puro. Ele ainda está cheio de impurezas. Se não o monstro não vai querer comer ele! Ele só gosta de crianças
puras.
MALVINA
Mas eu não sou
criança. E muito menos pura. Eu sou uma bruxa muito má, e quando eu colocar a mão nesse
moleque desgranhento...
MONGO
Mas é que você foi
engolida pela bunda do monstro, ele nem percebeu o gosto! (gargalha)
VÍBORA
Cale a boca,
Mongo!
MONGO
Você entrou
certinho pelo...
VÍBORA
Mongo! Vá acalmar
o bicho.
MONGO
Tudo eu, tudo eu. (sai)
MALVINA
Que nojo, meu
deus!
JULINHO
“Que nojo, meu
deus!”
MALVINA
Para! Para! Que
ódio!
JULINHO
Então me solta!
VÍBORA
Você deve estar se
divertindo com tudo isso, não é, Júlio? Como você sempre fez, não é? Infelizmente não podemos
te entregar desse jeito para o monstro.
MALVINA
Não que não
queremos.
VÍBORA
Com todas essas
nojentices impregnadas na sua mão. Ele tem um paladar muito peculiar, o nosso monstro. Por isso temos que purificá-lo para não dar alguma indigestão indesejável.
JULINHO
Purificar-me de
que? Eu não fiz nada de errado! Eu vou na igreja todo domingo com a minha mãe.
MALVINA
Ah, você não faz nada de errado, Júlinho? Nada, nadinha?
JULINHO
Não. Nadinha, que eu saiba.
MALVNA
Você não se lembra da Laurinha, não é?
JULINHO
Não. Nadinha, que eu saiba.
MALVNA
Você não se lembra da Laurinha, não é?
JULINHO
Laurinha?
MALVINA
Sim! Coitada!
Coitadinha da Laurinha!
VÍBORA
Temos que falar
desse assunto mais tarde, a poção ainda não está pronta.
JULINHO
(pensativo) Não me
lembro de nenhuma Laurinha.
MALVINA
É. Mas ela lembra
bem de você.
VÍBORA
Como eu dizia,
toda sexta-feira temos que alimentar o monstro, para que possamos usufruir de
seus poderes. E, infelizmente, ele gosta somente de crianças boazinhas. Sim, meu querido, as bruxas conseguiram sobreviver à perseguição e vivemos muito bem com nossos rituais de matar criancinhas por aí. (pausa)
Você nunca foi uma criança boazinha, não é, Júlio? Todo esse tempo você tem
sido uma criança muito má.
MALVINA
Com todas aquelas
piadas e brincadeiras sobre coisas que as pessoas não escolhem!
VÍBORA
Fizemos uma
escolha bárbara. Podíamos muito bem escolher crianças boas, crianças dedicadas
e que só gostam de brincar, sem magoar os outros, aquelas que respeitam o espaço do outro. É do que o monstro precisa, desse tipo de proteína infantil. Porém essas crianças fazem
mais falta do que as chatas. Os pais sentem falta, a sociedade sente falta. As chatas, as metidas, no começo, pode até fazer um pouco de falta. Mas
depois todo mundo dá graças a deus de elas terem sumido.
MALVINA
Ou melhor,
engolidas.
JULINHO
Pelo menos eu vou
ser comido pela boca, sua ridícula!
MALVINA
Cale a boca,
seu...
VÍBORA
Malvina!
JULINHO
Mas eu não sou um
menino mau! Todo mundo gosta de mim! Pode perguntar! Todo mundo se diverte
comigo. Pergunte pro Valdemar - vocês conhecem o Valdemar? Eu sou quase um ídolo na escola! Pode perguntar! Eu juro. O povo
todo se diverte comigo!
MALVINA
Se diverte das
piadas que você faz dos outros que não se divertem tanto, né?
JULINHO
Bom, é o que tem
pra poder rir na escola, né? E até eles riem às vezes.
MALVINA
Você deve ir pra
escola pra estudar e não pra rir.
JULINHO
Ah, larga a mão de
ser careta. Não existe esse negócio de ir pra escola pra estudar. Cada um faz o
que pode. Esse é meu jeito de me incluir na turma, de ser descolado, de ser diferente também!
MALVINA
De ser um panaca,
você quer dizer.
JULINHO
Vá cagar, sua
bafuda!
MALVINA
Bafuda é sua vó!
VÍBORA
Parem vocês dois!
(chama) Mongo! Vai logo com isso! (continua) Julinho, somos feiticeiras muito
poderosas. Mas não somos idiotas. O que você faz não é legal nem pra nós que
somos más. Tem gente que ri das piadas sobre elas mesmas, porque se não rir é excluído do grupo.
MALVINA
Podemos até matar
criancinhas com gosto, mas fazemos isso pra ajudar outras. Que a justiça seja
feita sempre!
VÍBORA e MALVINA
Amém.
JULINHO
Isso é ridículo.
Bruxas justiceiras. Até o mundo sobrenatural tá ficando chato, pô! Eu to começando a achar que isso é algum tipo de
brincadeira... É zoeira, né? Cadê as câmeras?
(Mongo entra
segurando um dente imenso)
MONGO
Nosso bebezão está
crescendo. Olha só, seu primeiro dente de leite caiu.
JULINHO
Meu deus...
MONGO
Acho que ele vai
engolir o menino por inteiro dessa vez. O bicho tá banguela. Ou teremos que
picar o menino pra ele mastigar mais fácil. Posso ficar com a cabeça de presente, Víbora?
JULINHO
Socorro! Alguém me
ajuda!
VÍBORA
Pronto. Terminei a
poção.
MALVINA
Segure-o, Mongo.
Está na hora.
JULINHO
Não! Por favor!
MONGO
Abra a boca,
espertinho.
MALVINA
Finalmente.
JULINHO
Não! Não!
(Víbora faz ele
beber a poção; Malvina se diverte)
VÍBORA
Pronto. Podemos
começar.
MONGO
Legal!
(uma música
ritualística acompanha)
MALVINA
(grita) Poderes espectrais de todas as maldades do mundo, fazei com que esse
menino expurgue todas as impurezas e malvadezas. Que se arrependa das injustiças e zoeiras na escola!
MONGO
E que ele vire um ser humano melhor!
VÍBORA
E que esteja
preparado para alimento de nosso querido monstro negro! Para que nunca mais
perturbe os colegas de escola, ou atrapalhe seus professores de dar aula!
VÍBORA, MONGO e MALVINA
Para que não ria das imperfeições!
VÍBORA, MONGO e MALVINA
Para que não ria das imperfeições!
MALVINA
Pois ele também
não é perfeito!
MONGO
Olha o tamanho
desse nariz!
MALVINA
E ele raspa os pelos do sovaco!
VÍBORA, MONGO e
MALVINA
Somos todos
imperfeitos, diferentes e com manias, e quem achar que está no direito de rir dos outros, deverá ser
sacrificado!
(eles cantam em ritual)
VÍBORA, MONGO e MALVINA
“Não gosto quando riem
Se fazendo de santo
Fazer chacota é coisa de malandro
Porque elas são todas lindas
E se xingam de feias
Os defeitos das pessoas sempre alvo de piada
MALVINA
Ria de mim agora
VÍBORA, MONGO e MALVINA
A justiça sempre vinga
VÍBORA
Queridinho, menininho
Você não é perfeitinho
Queridinho, menininho
Quem você pensa que é?
VÍBORA, MONGO e MALVINA
Um qualquer, um Zé ninguém
Você é um garoto mau
A vingança sanguinária
É a que merece ter
Ah, ah!
Comido será
Ah, ah!
Comido será!
(Julinho,
atordoado, desmaia)
(Black-out)
CENA 2: MENINA
(Julinho está
sozinho)
JULINHO
(acorda) Caramba.
Isso não pode estar acontecendo. Socorro! Alguém me ajuda! Alguém? (silêncio)
Isso aqui é uma escola ou o que? Cadê todo mundo? Ninguém desce no porão da escola, meu deus? (silêncio; ele tenta se
soltar das cordas) Puxa vida, o que eu fiz pra merecer isso? Eu não consigo entender.
(Laurinha entra e
se assusta; fica parada olhando para Julinho)
JULINHO
Ei, menina! Me
ajuda! Me ajuda! Umas loucas me amarraram e... elas falaram que são bruxas... e...
(ela sai correndo)
JULINHO
Não! Volte! Por
favor! Elas vão alimentar um monstro! E eu sou o alimento! Eu! Ah, deus! O que
eu fiz de errado? Eu não mereço morrer assim. (grita) Socorro! Alguém!
(Mongo entra)
MONGO
Nem adianta
gritar. A escola já fechou. Todo mundo foi embora. E é final de semana. (ri)
JULINHO
Tinha uma menina
aqui.
MONGO
Mentira. Para de
ser mentiroso. Além de chato, mentiroso. Credo, moleque.
JULINHO
Eu juro. Eu vi.
Aquela menina que parece menino, sabe? Do quarto ano. Como é o nome dela mesmo? Ela tinha um apelido.
MONGO
Menina que parece menino?
JULINHO
Sim! É verdade.
Ela tem o cabelo curtinho. Bem curtinho. (ri) Parece um menino mesmo. Usa umas roupas
de moleque, tipo coisa de gente louca. (ri) Modinha.
MONGO
E isso é
engraçado?
JULINHO
E não? Roupa de menino é roupa de menino e roupa de menina é roupa de menina. Eu acho ridículo quem tenta
ser diferente desse jeito. É querer aparecer. E ela é a maior esquisitona da escola. Não lembro o nome dela. O apelido! Acho que chamavam ela de Maria João.
MONGO
Quem?
JULINHO
Ela. A menina.
MONGO
Não. Quem chamava ela de Maria João?
JULINHO
Todo mundo, ué. Tinha até uma música.
MONGO
Todo mundo quem?
JULINHO
A escola, poxa!
MONGO
Hum. E aposto que
foi você quem inventou o apelido.
JULINHO
(pensa) Não, lógico que não. Mas a música fui eu quem inventei. Eu que inventei. (ri) Mó da hora. "Maria João, Maria João, a mina é bonita, mas é sapatão". (gargalha)
MONGO
É nada, cara. Não achei graça nenhuma. Já pensou
que ela pode não gostar dessas coisas?
JULINHO
Ah, até parece. Ela nem liga. É só zoeira.
MONGO
Como você tem tanta certeza?
JULINHO
Sei lá, mas é só
brincadeira. Todo mundo tem que saber brincar.
(Malvina entra)
MALVINA
Agora ferrou!
Ferrou tudo! Tudo!
MONGO
O que foi?
MALVINA
Ferrou, Mongo!
Ferrou! Tá tudo ferrado!
MONGO
Mas o que aconteceu?
MALVINA
Você não sabe o
que é ferrar?
MONGO
Eu sei! Mas o que
aconteceu pra ferrar com tudo?
MALVINA
O monstro contou
em telepatia para a Víbora que ele não está mais querendo se alimentar de um menino essa
noite. Agora ele decidiu que ele quer uma menina. Uma menina!
JULINHO
Cheio de frescura esses seres sobrenaturais, meu!
JULINHO
Cheio de frescura esses seres sobrenaturais, meu!
MONGO
Ah, não! Mas e
agora, Malvina? É final de semana!
MALVINA
Sei lá. Agora que ferrou. A Víbora me contou chorando.
JULINHO
Se ferraram, seus
cagões! Agora vão ter que me devolver. Se forem espertos ainda pegam aquela
menina que eu disse. Só que eu já vou avisando que ela se parece com um menino. Talvez se vocês
tentarem uma saia, ou uma tiara, até dá pra enganar. Vão precisar de uma peruca
também, por causa do cabelo curtinho.
MALVINA
Boa ideia, cara!
JULINHO
Ótimo. Agora podem
me soltar. Graças a deus um pouco de justiça! Meu pai é muito importante pro filho dele ser morto num ritual de bruxas clandestinas que matam crianças ruins do século XXI.
MALVINA
Arranje um
vestido, Mongo. Eu tive uma ideia melhor ainda.
MONGO
Solto ele?
MALVINA
Não. Lógico que não. Chame a
Víbora e arranje um vestido. Um pouco de maquiagem também e uma peruca.
(Mongo sai)
JULINHO
E então?
MALVINA
O que?
JULINHO
Não vai me soltar?
MALVINA
Não.
JULINHO
A menina, a Maria João deve tá aqui ainda. Com sorte vocês pegam ela.
MALVINA
Deixa ela ir embora.
JULINHO
Mas então o que...?
MALVINA
Fique vendo.
JULINHO
O monstro não quer
um menino!
MALVINA
Tudo bem.
JULINHO
E eu sou um
menino!
MALVINA
Por enquanto.
JULINHO
Como assim por
enquanto? Como assim? Isso não tem nada a ver. Como assim, sua bruxa fedorenta
e berebenta? Hein? (grita) Me fala!
(Víbora entra
acompanhada de Mongo que segura um vestido rosa, uma peruca loira e um estojo
de maquiagem)
VÍBORA
Ótima ideia,
Malvina! Perfeita para a ocasião sobre gênero.
MALVINA
Obrigada.
VÍBORA
Antes teremos que
verificar se ele realmente está um menino bom, se a poção funcionou.
JULINHO
Eu não estou bom!
Eu ainda sou um chato...
MONGO
Isso é verdade.
JULINHO
Vou tirar sarro de
todo mundo ainda. Querem ver? (para Víbora) Você, sua bruxa babona. Se acha a sabichona, a
líder, mas com essa bunda imensa você não vai conseguir chegar em lugar nenhum! Nem com essa sua magia de merda e essa sua cara cheia de plástica.
MONGO
Seu moleque...
(avança para Julinho)
VÍBORA
Espere, Mongo.
Vamos aguardar o que ele tem pra falar.
JULINHO
É isso mesmo. E
essa voz de taquara rachada não engana ninguém! Esse negócio de querer vir ficar dando sermão, de ficar falando de sociedade, do politicamente correto, até parece com a Profº Taquara
Mariela Rachada, vocês conhecem a retardada? Dava aula aqui. A professora de sociologia. Foi demitida agora. Ainda bem que tiraram essas disciplinas da grade porque ninguém aguenta essa moralidade e essa voz de galinha botando ovo! Dá até nojo de ouvir sua
voz, sua bruxa! Na hora que você canta. Não canta, tonta, não faz esse de passar vergonha mais. Você será conhecida como: Moralista Canto
Mal Pra Caramba, igual a professora de sociologia que cantava musiquinha pra tentar ensinar coisinhas de amor. (gargalha) Ridícula.
(Víbora fica um pouco sentida)
MALVINA
Não seja tão rude,
Julinho!
JULINHO
E você! Pensa que
é o braço direito dessa aí. Mas serve mesmo como capacho. Coadjuvante! Essa verruga nojenta
que mais parece um carrapato aí dá um nó no meu estômago. Só de olhar pra isso
eu tenho vontade de me enforcar. Senhorita Malvina Carrapatinho é o seu novo
apelido. (gargalha) Não serve de nada. Se o Valdemar estivesse aqui ele não ia conseguir parar de rir só da sua cara. Tipo, ia olhar e ia rir, ia olhar e ia rir. Nojenta! Malvina Carrapatinho!
MALVINA
Malvina Carrapatinho era meu apelido na escola. (chora)
MONGO
Olha o que você
fez, seu...
JULINHO
Seu o que, hein? Hein?
Você é o cara mais burro que eu já vi. Burro. Parece um cachorro! Só balançando
o rabo e comendo peixe cru! Que coisa mais nojenta! Você é nojento! É um porco! Se acha o espertinho mas
não tem nada no cérebro. E...
MONGO
(não se ofende) Eu
nunca me achei espertinho. Já disse várias vezes, não sou muito inteligente
mesmo. E peixe cru é o que há.
JULINHO
(provocando) O que
interessa é que você é burro! Muito Burro! Senhor Burronildo da Silva.
(gargalha)
MONGO
(gargalha também)
Muito boa. Muito boa. Burronildo da Silva!
JULINHO
(tentando) E feio.
Feio pra caramba! Feio! Muito feio! Senhor Feião! Mais feio que você só dois de você. Vai morrer solteiro. (ri)
MONGO
(depois de uma
pausa) Isso é o que você tem de melhor, Julinho? Nossa. Eu tô impressionado. Pensei que ele era daqueles babaca barra pesada. Nem sabe ofender de verdade.
JULINHO
Barrigudo! Alcoólatra!
MONGO
(boceja) Oh.
JULINHO
Gay! Seu gay! Você é gay! Gayzão.
MONGO
Muito obrigado! Gay pra mim é elogio. Todos os gays que eu conheço são pessoas maravilhosas. Gay é sinônimo de coisa boa pra mim. Seja mais criativo, Julinho, por favor.
JULINHO
Fedorento. Catarrento. Filho de uma mãe careca, analfabeta e de verruga na testa!
MONGO
(ele se choca) Ah! Mãe não! Mãe não!
VÍBORA
Calma, Mongo.
MONGO
Ninguém tem culpa de nascer com uma verruga daquele tamanho na testa! Eu amo ela! Eu amo ela! Você é o pior dos piores! O pior dos piores!
MALVINA
Por que todo mundo gosta de falar mal das mães e das verrugas, hein?
VÍBORA
Calma, Mongo.
MONGO
Ninguém tem culpa de nascer com uma verruga daquele tamanho na testa! Eu amo ela! Eu amo ela! Você é o pior dos piores! O pior dos piores!
MALVINA
Por que todo mundo gosta de falar mal das mães e das verrugas, hein?
JULINHO
Agora me larguem,
seus imbecis! Eu não tenho jeito! Eu vou ser sempre um menino chato! Não quero
mudar! Tem tanta criança boazinha querendo sumir por aí. Peguem os depressivos! Peguem a carequinha!
Aquela que parece menino. A Maria João. Ela tá sempre pra baixo, com uma cara triste. Talvez
até iria gostar de ser comida por um monstro e não existir mais.
MALVINA
Você não sabe de
nada! (ela sai chorando)
JULINHO
Sei que o monstro
não gosta de gente chata, e que agora nem quer mais um menino! Pronto!
VÍBORA
Isso resolveremos
rápido. Coloque esse vestido nele, Mongo.
JULINHO
O que?
VÍBORA
Eu me cansei dos
seus joguinhos, Júlio. Agora vamos falar bem sério. De ser humano, pra ser
humano. Vista-o, Mongo.
(Mongo obedece;
Julinho resiste, mas Mongo é mais forte)
JULINHO
Você é bruxa, o
papo vai ser de ser humano pra bruxa...
VÍBORA
(séria) Cale
a boca que eu não terminei! (pausa; ela está calma, um pouco amorosa) Agora eu
quero que você pense bem. Pense bem, Julinho. Pense bem por alguns segundos.
(Mongo termina de
vesti-lo)
VÍBORA
Tudo o que você
precisa é pensar bem.
JULINHO
Eu já to pensando
bem, meu. Eu não sei o que vocês querem.
(Mongo gargalha)
MONGO
Que menina
bonitinha que ficou!
JULINHO
Para com isso!
VÍBORA
Não, caramba, você
não entendeu! Pense bem em tudo que você já fez, cara.
JULINHO
Ai, vai começar o
sermão! Fala aí, mamãe.
VÍBORA
Meu, eu to falando
pra te ajudar! Será que você não entende? Eu vou te dar alguns segundos pra
compreender esse enigma. Existe uma forma de não te entregarmos ao monstro. Só uma forma.
JULINHO
Eu sei. Se eu
continuar mau, ele não me quer. Vocês disseram. Ele não gosta de meninos maus. E
vocês acham que ele vai cair nessa história de vestido?
VÍBORA
Ele cai. Já caiu
outras vezes. O lance é a maquiagem. Isso é tudo bobagem! E todo menino mau tem um lado bom, vamos
passar um talco de neném em você que ele quase acredita que você é do bem. (pausa)
Só tem um jeito. Um só.
JULINHO
E qual é então? Me
fala!
VÍBORA
(sai lentamente e
misteriosa)
JULINHO
Onde você vai? Volta aqui! Me
conta! (para Mongo) Mongo, me ajuda! Me larga! Eu juro que eu dou o tanto de
peixes que você quiser. Eu sei pescar! Meu pai é pescador!
(Mongo se aproxima
com um estojo de maquiagens; música grandiosa)
JULINHO
Não, Mongo!
Nãããão!
(Black-out)
CENA 3: OPERAÇÃO MENINO BOM
(Quando a luz se
acende, Julinho é levantado por duas cordas que seguram seus pulsos, ao som
grandioso de percussão; ele está com a peruca loira ao estilo King Kong)
(silêncio; ouve-se
apenas Julinho ofegante)
JULINHO
Socorro! Alguém me
ajuda!
(o monstro ruge longe)
JULINHO
Ah, meu deus! Ah,
meu deus!
(Laurinha entra e
se assusta)
JULINHO
Menina! Me ajuda!
Me ajuda, por favor! Eu te dou tudo. Faço qualquer coisa se você me tirar
daqui.
(Laurinha vai
sair)
JULINHO
(quase chorando)
Não! Por favor! Por favor! Fique! Por favor! (a menina volta devagar) Me ajude,
menina. Eu to cagando de medo.
LAURINHA
Medo?
JULINHO
Sim. Por favor. Eu
não sei o que fazer. Eu só tenho doze anos.
LAURINHA
Não era treze?
JULINHO
(meio irritado) O
que importa? Vai me tirar daqui ou não?
LAURINHA
Você é um menino
muito chato, sabia. Não devia ser assim.
JULINHO
Já me falaram
isso. O que eu posso fazer? Eu sou assim. Cada um é cada um. É porque eu sou de escorpião. Agora me tire
daqui.
LAURINHA
Não tem nada a ver esse negócio de signo. E eu não vou te
ajudar.
JULINHO
Como não? Isso é
malvadeza. Tem umas bruxas... Ninguém pode ser tão má assim!
LAURINHA
Eu sou de gêmeos.
JULINHO
Me ajuda, vai! Você não
pode me deixar aqui pra ser devorado. Tem um monstro!
(o monstro ruge)
LAURINHA
Você me deixou pra ser devorada uma vez também.
JULINHO
O que?
LAURINHA
Você me deixou por
aí na escola pra todo mundo rir da minha cara. Você fez uma música e colocou no Youtube, lembra?
JULINHO
O que?
LAURINHA
Maria João, não
é? Isso foi parar na boca da minha mãe, sabia? Tá sendo tão difícil. Eu tenho
me escondido lá em casa, me escondido em todos os lugares...
JULINHO
Seu nome é Laurinha, né? Agora que eu lembrei.
LAURINHA
Pois é. Eu.
JULINHO
Ora, se é só por
aquilo que você não vai me soltar você é muito pior que eu. Aquilo foi só uma
brincadeira. Uma brincadeira! Não sabe levar as coisas na esportiva? É só uma piada, meu.
LAURINHA
Que me fez chorar
por quase duas semanas inteiras! Duas semanas! Eu nem queria mais vir na
escola! E você estava lá, rindo de todos, parecendo feliz, mostrando como é que
um babaca de verdade deve agir.
JULINHO
Agora vai me
ofender, é? Eu nem falava seu nome no vídeo, ô! Se não vai me soltar vai embora então. Não tô nem ligando também! Vocês ficam se fazendo de vítima o tempo todo!
LAURINHA
Eu vou embora mesmo. Boa
sorte. Você não sabe a festa que estava hoje no intervalo, sem você pra encher
o saco de todo mundo. (sai)
JULINHO
Pode ir, sua
birrentinha! Vai se vestir direito, ô moleque! Maria Joãozinho! (ele tenta se soltar mas desiste;
ouve-se mais uma vez o monstro; ele grita, se esperneia desesperado; reflete
por um tempo, se olha vestido de mulher e se entristece) Caramba. Eu tô ferrado.
(o monstro ruge
perto; uma cadeira entra voando)
JULINHO
É agora! Ai, meu
deus! Perdão! Perdão por tudo! Perdão, deus!
(fumaça e som
grandioso de trombetas)
VOZ DE DEUS
De tudo o que?
JULINHO
Deus?
VOZ DE DEUS
Talvez sim, talvez não, meu filho. Depende muito do que você acredita. Confesse-se antes de ser engolido por aquela criatura magnífica que eu mesmo
criei.
JULINHO
Me salve, deus!
Por favor! Me salve!
VOZ DE DEUS
O papo era de
perdão, não de salvação. Foi por isso que vim.
JULINHO
Me perdoa! Por ter
feito tudo isso! Por ter feito algumas pessoas chorarem!
VOZ DE DEUS
Algumas não.
Várias.
JULINHO
Várias. Me
desculpa de ter sido um babaca. De ter rido das diferenças dos outros, dos
defeitos. Eu sei que não sou perfeito, olha o meu nariz. Eu me arrependo. De
ter feito isso. Juro que me arrependo. De às vezes ter sido um idiota.
VOZ DE DEUS
Às vezes não. Muitas vezes.
JULINHO
Muitas vezes. Me perdoa.
VOZ DE DEUS
Às vezes não. Muitas vezes.
JULINHO
Muitas vezes. Me perdoa.
VOZ DE DEUS
(pensa) Hum...
perdoado então! Tá perdoado, Julinho. Pena que agora é tarde. Pelo menos agora
você vai poder vir pro céu aqui comigo.
JULINHO
Não! Quando eu me
arrependesse eu devia ser salvo!
VOZ DE DEUS
Não é assim que a
vida funciona, meu filho. Adeus, Julinho! Até daqui a pouco depois da sua morte.
JULINHO
Não! Volta! Por
favor! E agora? E agora? Eu estou mesmo arrependido. Eu estou...
(Laurinha entra
raivosa)
LAURINHA
Que raiva! Fiquei
trancada aqui dentro da escola! Me trancaram! E agora?
JULINHO
Laurinha!
Laurinha! Me ajuda! Por favor!
LAURINHA
Não! Você é chato
pra caramba! Espero que o monstro te coma sem mastigar! Ainda que agora, ele tá
sem dente mesmo.
JULINHO
(desconfiado) Como
sabe disso?
LAURINHA
Eu... é... não
interessa! Tive uma ideia! Vou pular o muro. Sempre quis fazer isso. (vai sair)
JULINHO
Espere! (pausa)
Antes, eu queria te pedir uma coisa.
LAURINHA
Nem adianta que eu
não vou te salvar!
JULINHO
Não é isso. Eu só
queria te dizer que... que...
LAURINHA
Que?
JULINHO
É difícil. Muito
difícil pra mim.
LAURINHA
Bom, eu estou com
pressa... (vai sair)
JULINHO
Espera! (longa
pausa; Laurinha aguarda) Eu só queria te pedir desculpas.
LAURINHA
Desculpas de que?
JULINHO
De ter sido um
idiota. Eu sei que eu fui um panaca. Mas é que... é que... eu só queria ser
legal, que as pessoas gostassem de mim.
LAURINHA
Não funcionou
desse jeito. Você pode até ser lembrado como o engraçadinho, mas todo mundo te
odeia. Você magoou muita gente, Julinho.
JULINHO
Eu sei. Eu estou
arrependido.
(silêncio;
Laurinha se aproxima de Julinho e começa a desamarrar a corda; mais um rugido;
grande tensão)
JULINHO
Rápido, rápido! Ele está chegando perto! Oh, meu deus!
LAURINHA
Eu não tô conseguindo!
JULINHO
É ele! É ele! Nós vamos morrer!
LAURINHA
Eu não tô conseguindo!
JULINHO
É ele! É ele! Nós vamos morrer!
(quando o monstro
parece que vai entrar, Víbora acende a luz; silêncio)
LAURINHA
Ah, meu deus!
JULINHO
Fuja Laurinha,
fuja! Eu estou pronto, deixe ela fora disso. Acabem logo com isso. Soltem o bicho
pra que ele me coma.
VÍBORA
Não posso fazer
isso.
JULINHO
Eu não estou entendendo. O que está acontecendo? Chega de enrolação!
VÍBORA
Como comentamos, nós concordamos que iríamos sacrificar apenas os meninos verdadeiramente maus. Você não parece um menino tão mau assim agora, você está se borrando as calças. Você é apenas mais um menino assustado que não sabe lidar com o medo da rejeição. E por isso rejeita o outro. Só isso. É uma pena porque você também é uma vítima, apesar de tudo. Teremos que achar outro menino que seja incurável para ele comer. Tá ficando cada vez mais difícil de encontrar.
JULINHO
Eu não estou entendendo. O que está acontecendo? Chega de enrolação!
VÍBORA
Como comentamos, nós concordamos que iríamos sacrificar apenas os meninos verdadeiramente maus. Você não parece um menino tão mau assim agora, você está se borrando as calças. Você é apenas mais um menino assustado que não sabe lidar com o medo da rejeição. E por isso rejeita o outro. Só isso. É uma pena porque você também é uma vítima, apesar de tudo. Teremos que achar outro menino que seja incurável para ele comer. Tá ficando cada vez mais difícil de encontrar.
JULINHO
Isso não faz
sentido. Você disse que o monstro queria meninos bons.
VÍBORA
Ora, ele é um
monstro. Ele tá pouco se lixando se vai ser um menino bom ou ruim. Mas as
bruxas já tem uma fama horrível. (desamarra-o) Se começarmos a matar
criancinhas boas, ou que podem ficar boas, o mundo vai cair em cima da gente de novo. E dá-lhe fogueira nas bruxas! É
regra. Mataremos somente as crianças más e incuráveis. Isso tudo foi esse teste, pra ver se você
poderia ficar do bem. E você pode. Isso é uma merda pra gente, mas é bom pra você.
LAURINHA
Ela falou “merda”.
(ri inocente)
VÍBORA
Desculpe. Agora
vá. Vão embora vocês dois.
JULINHO
(vai sair
correndo, volta-se) Valeu.
(os dois saem)
(Víbora tira a
roupa, o chapéu e a peruca, está vestindo um jaleco de professor; ela é Profª
Mariela)
MARIELA
Clóvis! Professor!
Ele já foi.
(Clóvis entra
segurando a roupa de Mongo)
CLÓVIS
Professora
Mariela, que incrível! Foi incrível! Uma ótima ideia essa. No desespero, é o que temos pra fazer. (eles se abraçam)
Deu certo, finalmente!
MARIELA
Eu disse que
daria. Ele vai pensar em muita coisa agora.
CLÓVIS
Aconteceu alguns
pequenos deslizes, mas foi legal.
MARIELA
É. Só essa roupa que era
quente demais.
CLÓVIS
E agora? Será que
ele entendeu mesmo?
MARIELA
Acho que sim. Vai
fazer ele pensar. Alguma coisa ele vai pensar. E se ele contar isso pra alguém vão achar que ele é louco. Bruxas e monstros no porão da escola! (ri) Depois
que você apareceu como deus, ele se desesperou. Foi um improviso sensacional, parabéns!
CLÓVIS
Tive que
improvisar. Ele aguentou até o fim, Mariela. Achei que não fosse ceder.
MARIELA
Eu acredito que no fundo toda pessoa ruim tem um certo tipo de remorso. (pausa) Será que a
Laurinha foi embora com ele?
(Laurinha entra)
LAURINHA
Tô aqui. Eu nunca
vi alguém subir tão rápido no muro da escola. Fingi ter esquecido minha bolsa.
Ele correu num pinote. Ele falou até de começar a se envolver com o grêmio da escola pra lutar contra o bullying.
MARIELA
Não acredito! Tá vendo?
MARIELA
Não acredito! Tá vendo?
CLÓVIS
Ele parece ter se
arrependido mesmo. Deve ter aprendido.
MARIELA
O que achou da nossa interpretação, hein?
LAURINHA
Incrível. Ainda
mais você, uma professora de sociologia, parecia atriz de verdade. Já o Clóvis é
professor de artes, deve saber fazer isso muito bem.
CLÓVIS
Na verdade eu não
sou muito inteligente mesmo.
(eles riem)
LAURINHA
Gente, foi uma
ideia muito boa. Adorei fazer a Malvina, foi muito legal. Só assim pra esse
povo aprender a respeitar os outros. Eu to sentindo novos ares. Chega de tirar
sarro dos outros. Ou o monstro pode voltar, não é? (ri)
MARIELA
Exatamente. E
depois que ele tentar espalhar essa história, tudo isso vai virar lenda. E
lenda ensina. A gente nem vai mais precisar fazer essa encenação toda, daqui um
tempo.
LAURINHA
Bruxas e monstros no porão da escola!
CLÓVIS
Operação menino mau!
MARIELA
Arrasamos, meninos. Vocês arrasaram!
LAURINHA
Bruxas e monstros no porão da escola!
CLÓVIS
Operação menino mau!
MARIELA
Arrasamos, meninos. Vocês arrasaram!
CLÓVIS
E quem é o
próximo da lista?
LAURINHA
(tira um
caderninho da bolsa) É o Valdemar. Ele é líder do time de futebol. Seu alvo principal de piadas e chacota são com os meninos da dança.
CLÓVIS
Amanhã a gente vai fazer ele rebolar até o chão, então.
MARIELA
Ao som do Bonde do
Tigrão.
LAURINHA
E Valeska Popozuda!
(um funk começa e
os atores agradecem)
Nenhum comentário:
Postar um comentário