MICROUNICELULAR (2013)

MICROUNICELULAR

Personagens
Rodolfo, 24 anos, beleza exótica e forte.
Ramiro, 48 anos, magro, velho, débil.
Alana, 19 anos, pequena e bonitinha.

(a luz acende e Ramiro está com uma arma apontada para a cabeça de Alana; Rodolfo, desesperado, chora por baixo de um capuz; antes de um tiro, a luz se apaga)

CENA I

RODOLFO
(fuma encostado em um muro) Os sons lá de longe chegam até aqui. Demoram um pouco mais do que a iluminação, mas sempre chegam. (um raio) Enquanto for possível ouvir aquele específico barulho de sirene da ambulância que ajuda na remoção de uma vítima de um acidente duas quadras acima de sua casa, e você puder relatar que esse barulho existe, partículas estarão rebatendo em seus ouvidos. (um trovão) Nove Mississipi. Enquanto for possível distinguir cada pixel e cada cor utilizada, e cada detalhezinho daquela música preferida, daquele violino no fundo, cada som que um estranho estiver fazendo ao longe e esse som chegar à audição, partículas estarão quebrando sob nossa pele e sob nossos tímpanos e íris. (ele abre um guarda-chuva) Quando de repente você abre os olhos e os ouvidos para si mesmo, quando a máscara diária começa a ser usada intencionalmente, quando o olhar para um broto que nasce num muro frio não for de ignorante, a coisa começa a ficar mais clara. E passado e futuro se chocam transformando o presente em algo não existente. E aí você começa a prever coisas, a desmascarar mentiras de terceiros, desmascarar próprias mentiras, descobrir um puta de um segredo que você jamais pode imaginar que existia. Uma magia real na palma da mão. Tá, ok, muitas palestras e cursos de autoajuda já disseram por aí que o segredo está na palma da mão, que bastamos ser positivos para que tudo dê certo, que deus está no comando, que somos importantes e individuais e blá, blá, blá. Por partes, existe uma lógica em tudo isso. (com um desdém camuflado) E digo uma lógica pautada em estudos universitários. (pausa; nega com a cabeça) Mas tenho dito somente com base nas imagens que me pegam nos sonhos. E dos sinais que vejo pelo dia. Nas coisas que consigo prever e ver, e que nenhum outro ao meu lado enxerga; ou pelo menos diz que enxerga. Eu nunca digo pra ninguém quando acerto alguma conspiração diária, na maioria das vezes, então é difícil encontrar os entendidos nesse mundo muito louco. (pausa; ainda não chove) As pessoas inventaram mentiras absurdas para se confortarem. Vivem num conforto mentiroso que na maioria das vezes não trás conforto bosta nenhuma. Um conforto que traz angústia. (imita) “Ora, se pensarmos muito sobre isso ficamos loucos! Estou confortável com as coisas que imagino e não penso em mudar minha vida por causa de uma teoria besta. De que adianta saber?”. (olha impaciente para o céu) Cara, depois de pensar tanto só pude descobrir uma coisa: Deus existe. E ele existe pra caralho. Só que ele não é nada disso que falam por aí. (não chove; Rodolfo fecha o guarda-chuva indiferente e vai sair; antes, acrescenta) Por via das dúvidas, eu descobri isso sozinho. (sai)

CENA II

(Alana entra seguida por Rodolfo)

ALANA
Bom. É aqui.

RODOLFO
(um tanto romântico) Ah, já?

ALANA
Pois é. Moro nesse prédio bonito. (o prédio é feio)

RODOLFO
Bom,...

ALANA
Eu tenho que ir. Amanhã acordo cedo.

RODOLFO
(ri) Acorda cedo? O que faz de manhã, menina?

ALANA
Acordo cedo, oras. Não gosto de perder tempo dormindo.

RODOLFO
(com charme) Não vai nem me convidar para entrar? Pra tomar um café?

ALANA
(ri simpática) O que é? Você quer entrar e de repente vai que rola um sexo, é isso?

RODOLFO
Ué, não era essa a intenção do rolê?

ALANA
(ela se ofende de leve) Bom, acho que houve uma divergência nas intensões.

RODOLFO
Aaah!

ALANA
Eu tenho que ir mesmo, bonitão. (dá um beijo no rosto dele) Me liga pela semana.

RODOLFO
(insiste) Não. É sério.

ALANA
(ainda simpática) Eu também tô falando sério. Amanhã eu acordo cedo.

RODOLFO
Só uns beijos.

ALANA
Rapaz, que insistência! Eu mal te conheço. “Só uns beijos”.

RODOLFO
Eu te contei um monte de coisas sobre mim e eu sei um monte de coisas sobre você. Só uns beijos.

ALANA
Sexta-feira. A gente sai. Pode ser?

RODOLFO
(um tanto incomodado) E hoje? Gastei um monte no bar, meu.

ALANA
(acha graça) Aaai! Rodolfo, você é muito bonitinho. Muito fofinho. Mas a gente acabou de se conhecer. Eu te deixei pagar uma cerveja não te mandei flores. (ri)

RODOLFO
(ele fica sério) Pô.

ALANA
É sério. A gente vai se falando. Me liga. Você parece ser gente boa. Além de bonito.

RODOLFO
Pô, meu.

ALANA
Desculpe. Me liga mesmo. Boa noite, gatão.

(Alana começa a sair; Rodolfo, um pouco perturbado desabafa)

RODOLFO
Dá só uma pegadinha no meu pau aqui, então.

(clima; Alana se vira um tanto chocada, um tanto achando graça)

ALANA
O que?

RODOLFO
É. Só uma pegadinha.

ALANA
Uma pegadinha? Do tipo brincadeira, é isso, né?

RODOLFO
Não. Do tipo pega no meu pau mesmo, entende? Lambe. A cabeça.

ALANA
(brava) Dá licença.

(Rodolfo entra na frente de Alana)

RODOLFO
Opa! Calma aí, calma aí.

ALANA
O que é? Você é do tipo “dá ou desce”, é isso?

RODOLFO
Não. Sou do tipo que sente cheiro de buceta excitada.

(Alana tenta sair, Rodolfo a impede)

RODOLFO
Falei calma.

ALANA
Me deixa ir embora. Eu já falei. Por favor.

RODOLFO
Eu não gastei quarenta reais pra não ganhar nada em troca.

ALANA
Você não tá falando sério. Rodolfo. É brincadeira, né?

RODOLFO
Brincadeira você, pô. Noite perdida, é isso? Você acha!

ALANA
Você foi todo gentil...

RODOLFO
(grita alucinado) Era porque eu achava que ia te comer!

(Alana recua alguns passos)

RODOLFO
Eu não vou te estuprar. Não fique nervosa. Uma pegadinha não faz diferença. (pega a mão dela a força)

ALANA
Me larga, seu imbecil! Para, filho da puta!

(Rodolfo dá um tapa forte na cara de Alana)

ALANA
Filho da puta. Seu escroto! (grita) Socorro!

RODOLFO
Não grita! Não grita! Eu mato você antes de alguém chegar aqui.

ALANA
Bosta.

RODOLFO
Quem mandou morar na puta que o pariu?

ALANA
O que você quer?

RODOLFO
Eu só quero sua mão dentro da minha calça.  Eu me contento com pouco. Não costumo ser exigente. Se tivesse me dado um beijo, eu teria ido embora feliz. Mas agora quero um carinho. De leve.

(Alana se aproxima secamente e enfia a mão dentro da calça de Rodolfo)

ALANA
Tá bom assim?

RODOLFO
Não seja fria. Mexa nele. (ela aperta) Não assim, caralho! Mexa direito, porra. (pausa) Nunca pegou num pau, meu?

ALANA
Não à força.

RODOLFO
É assim, ó. (ele enfia a mão dentro da calça dela)

ALANA
Para! Por favor!

RODOLFO
Fica quieta. Fica quieta! Assim, ó.

(Rodolfo consegue manter a mão em Alana; ela começa um choro contido; em algum segundo a massagem faz ela passar de um choro desconfortável para um leve prazer)



CENA III

(Ramiro entra segurando um guarda-chuva fechado; Rodolfo e Alana estão um com a mão dentro da calça do outro; eles, os três, se olham desconfortáveis; depois de um segundo de um silêncio um tanto cômico:)

RAMIRO
Perdão. Eu só...

ALANA
Me ajuda, moço!

RODOLFO
(fala baixo) Cale a boca. Eu sei onde você mora. Eu te mato antes de esse cara te ajudar. (alto) Amigo, dá pra nos dar uma licença?

RAMIRO
Está tudo bem?

RODOLFO
Ela é minha namorada. Tá bêbada. Estamos nos masturbando.

(silêncio)

RAMIRO
Ela não parece estar gostando.

RODOLFO
(desiste) Vaza daqui, filho da puta. Vaza. Cuida dos teus assuntos. Num tô fazendo maldade com a mina aqui, não.

RAMIRO
Onde você mora, menina?

RODOLFO
Caralho!

ALANA
Aqui em cima.

RAMIRO
Vai embora, então.

RODOLFO
Falei pra vazar, porra! Tu é surdo? Tu não me conhece, coroa. Vai cuidar da tua vida!

RAMIRO
Vai, moça.

(Alana tenta sair e Rodolfo a segura pelo braço)

RODOLFO
Mas que caralho! (tira um canivete de algum lugar) Vaza daqui, bosta! Eu furo você! Eu furo você, caralho! E mato a menina.

(Ramiro não se mexe)

RODOLFO
(grita alucinado) VAZA!

RAMIRO
Dá uma pegadinha aqui no meu pau, otário.

(clima; Alana aproveita e corre)

RODOLFO
O que?

ALANA
Filho da puta. (sai)

RODOLFO
O que você disse, seu bixa?

RAMIRO
Dá uma pegadinha aqui no meu pau, otário. (ele abre o guarda-chuva) Na cabeça.

RODOLFO
(aponta o canivete se aproximando confiante) Coroa, tu me faz perder uma gozada e ainda tira com a minha cara? É bagunça? (vai continuar uma ameaça) Tu não sabe...

RAMIRO
Segura! (joga o guarda chuva aberto para Rodolfo)

RODOLFO
(ele segura por reflexo) O que é isso, porra?

RAMIRO
Um guarda-chuva.

RODOLFO
Tá de sacanagem?

RAMIRO
Não. Eu tô te salvando.

RODOLFO
Da chuva, seu bosta?

RAMIRO
Da vida. Posso ler um trecho da bíblia pra você? Deus tem uma mensagem pra você.

RODOLFO
Ah, enfia essa bosta no...! (avança em Ramiro)

(um clarão forte atinge a ponta do guarda-chuva; Rodolfo é eletrocutado)

(black-out)




CENA IV

(Ramiro está sentado no terraço de um prédio; fuma um cigarro e observa a cidade; um clarão ao longe, ele fecha os olhos e conta; demora)

RAMIRO
Catorze Mississipi. (ri abobalhado; algo no ar chama a sua curiosidade, ele para e respira) Vai chover. (ri mais) Ai, que delícia. Eu amo isso! É ridículo, mas sim, é verdade. (ele ouve qualquer coisa lá embaixo) O que? O que você disse? (ri) Táxi! Táxi! Siga aquele carro! (gargalha alucinado) Cidade do caralho, eu amo você! Eu me amo! (alguém grita pra ele) Não calo! Não calo, não calo, não calo! Vai dormir você! (baixo) Não tenho tempo pra calar. Oitenta anos é pouca coisa. Não vai dar tempo de quase nada. (suspira e sente a brisa da noite) Ai, ai. Eu amo. Amo sim. (pega um livro de algum lugar, fecha os olhos e o abre escolhendo a página na sorte) Adoro essa parte. É muito premonitório. É bem sobre os dias de hoje. Sempre é sobre os dias de hoje. (recita) “Enquanto os mentirosos sobreviverem por suas mentiras, o coração pobre jamais conseguirá a graça de deus”. Jodí, capítulo nove, versículo treze. “Os mentirosos foram acordados pelo lado negro da terra, para que a demora da evolução fosse imensa. Bem aventurado aquele que recebe a mensagem verdadeira nos seus sonhos mais profundos e não se deixa abater pelo veneno da voz do homem.” Jodí, capítulo nove, versículo catorze. “Mas mesmo que a demora seja imensa, as experiências ruins da terra serão o aprendizado que deus tanto nos estima: a compreensão do sentido da vida”. Jodí, capítulo nove, versículo quinze. (pausa; conversa com as pessoas da cidade/plateia) Quando criança um livro importante nos é apresentado quase à força. Além de todas as outras teorias. E além, também, do que se filtra disso tudo com a hipocrisia do locutor principal. Você acorda vivo numa realidade maluca e as pessoas – não mais inteligentes por terem mais experiência – nos ensinam aquilo que acham correto. Aí você é um bebê e ouve besteiras de pais não preparados. E esses pais não preparados não devem se considerar culpados, oras! São todos vítimas de uma burrice geral. Um cópia do outro. Mas graças a deus, como toda coisa que foi copiada, não existe nada igualzinho ao outro. Então as cópias, assim como creio, vão tentando se entender um pouco mais que a original. Diferente do Xerox; o contrário de um Xerox! De um papel em branco, para uma folha totalmente preenchida da mais perfeita criação. E ocorrendo melhorias nos mais profundos detalhes, aos poucos. Por isso os jovens se cansam da caretice dos pais. Sim, pode existir uma porcentagem que regride, mas enquanto existir uma minoria que progride, estamos pensando. Costumo dizer que sou mais inteligente do que um jovem de vinte anos, por exemplo. Claro, eu tenho mais coisa para contar sobre as experiências da vida que tive. Com vinte e tantos anos a mais que esse jovem, obviamente eu tenho mais coisa na memória, consciente e inconsciente. Porém, é curioso pensar sobre como a agilidade e a descoberta do macro e micro tem influenciado na ciência hoje em dia. E aí com certeza esse cérebro do jovem de vinte anos tende a se adaptar com mais facilidade a esses novos meios. Então eu me pergunto: se fosse possível eu parar na idade que estou, com meus quarenta e oito anos, e eu conseguisse esperar esse jovem de vinte anos chegar na mesma idade que estou, será que o assunto entre esses dois velhos de quarenta e oito anos de épocas diferentes seriam igualmente inteligentes, ou igualmente burros, ou, assim como penso, o mais jovem se sobressairia cem vezes pois suas experiências estão correndo de acordo com o que o planeta tem exigido, e o planeta têm nos exigido e nos mostrado coisas absurdamente incríveis. Hoje temos um celular como coisa comum de dentro do bolso; há duzentos anos, isso era ficção das absurdas. E duzentos anos não é nada. (pausa; um raio; alguns segundos de silêncio e então um trovão) Está longe. Mas chegando. Perdoem-me a brisa forte. O vento bate e quando deus fala é uma coisa de louco. Ah, uma observação: a palavra deus, enquanto eu falar sobre ele, não se remete àquilo que vocês acreditam. Não se remete à alguém. Não se remete à uma história só. Não é o deus que vocês estão tentando achar que eu tô tentando dizer. Não é nada disso. É totalmente o contrário. O contrário, entende? (ele bate na cabeça um tanto maluco) Um puta de um contrário cheio de contradições. E é aí que tá o barato! (pausa débil) Vocês sabiam que a gente viaja no tempo o tempo inteiro? (um raio seguido rápido de um trovão forte e perto) Jesus! Chegou rápido demais! (pega um guarda-chuva e sai correndo)

(black-out)



CENA V

(a luz acende; Rodolfo e Alana estão com a mão um dentro da calça do outro; Ramiro entra; black-out; a luz acende e Rodolfo está caído no chão, logo após ser eletrocutado pelo raio)

RAMIRO
Em hora.

(Ramiro olha ao redor, coloca um saco na cabeça de Rodolfo e o carrega nos ombros)

RAMIRO
Não me julguem. Eu também sou vítima de um despreparo.

(sai)

(Surge uma sombra de uma mulher de joelhos chupando um homem)

(black-out)


CENA VI

(Rodolfo entra bem vestido e se posiciona ao centro; flashes de fotografias e perguntas de repórteres. Ele está em um púlpito numa coletiva de imprensa; Rodolfo faz gesto pedindo silêncio)

RODOLFO
Tenho ouvido uns comentários pela imprensa. De que um certo livro previu minha ascensão. (ri) Meus amigos, eu preciso que entendam que não tenho uma divina intenção. Não, eu não sou satanás. (ri com os repórteres) Não sou nada Anticristo. Curto bastante Jesus Cristo. Eles leram algo que se auto intitula premonitório, mas que é extremamente comum em todas as fases da evolução, que é o que? A ascensão de grandes homens. Perdoem-me a modéstia. E aí eles consideram todas as vezes que isso acontece como uma afronta a seu deus. Creio que este livro, que eles tanto defendem como única e perfeita verdade, já poderia ser desconsiderado e guardado como memória histórica – não com nostalgia, por favor, com alegria. Concordo que esse livro tem partes ótimas, além de ser um grande meio de se conhecer a história do mundo. Porém, sua melhor parte foi totalmente distorcida pela ideia do monoteísmo que ganhou muita força. Então vale a pena virar a página. Um homem super inteligente que só disse que seria legal se fôssemos legais uns com os outros foi crucificado com preconceitos e limites culturais de um deus finito. Todos nos lembramos da história. Porém de nada adiantou. Crucificaram o homem e crucificaram suas palavras depois. Sim, e continuam crucificando todos os dias. Principalmente os que mais falam em nome dele. E no fim das contas, de tanta babaquice falada em seu nome, sua crucificação virou coisa de careta. É verdade. Experimente chegar numa roda de jovens que estão bebendo em uma praça e pergunte pra eles se eles gostariam de ouvir a palavra de Cristo. Falar de Jesus virou caretice. E isso é uma pena. Não que Ele esteja nos julgando por crer ou não, mas é uma pena o desperdício de tanta movimentação na Terra por sua causa ter sido em vão. Depois de tudo, poucos entenderam. E os que entenderam tiveram o mesmo fim que o primeiro. (pausa) Nessa nova era devemos revisar as leis. Revisar os erros de interpretação. E revisar a cagada que fizeram em cima da grande ideia dos grandes mestres. O livro que estou lançando apresenta coisas importantíssimas para nossa geração. Mas já aviso no prefácio que essas páginas têm data de validade. Receio dizer essas palavras, mas acho necessário para a história que estamos fazendo. (com suspense) Eu estou lançando neste momento, escrito a partir de experiências e histórias de diversos homens (enfatiza) e mulheres ao redor do mundo, com – sem dúvida nenhuma – a verdadeira e única voz de deus, que está dentro de cada um desses seres não muito especiais; com revisão de grandes filósofos conhecidos pela área aleatoriamente escolhidos e com montagem – sem edição e nem corte – de minha pessoa; além do prefácio e observações de rodapés escritos por mim também, lhes apresento a Nova Bíblia.


CENA VII

(a luz acende e Rodolfo está amarrado em uma cadeira ao centro, ainda encapuzado e desmaiado; Alana fuma um cigarro e joga a fumaça pra dentro do capuz de Rodolfo; depois de um tempo ele acorda vagarosamente)

ALANA
Você tem religião? Por que tem “Jesus” tatuado nas costas? (silêncio) Não? Alô-ô? Você tem “Jesus” tatuado nas costas. E uma cruz na canela. O que significa? (silêncio) Fala alguma coisa, pô.

RODOLFO
Tira esse capuz.

ALANA
Desculpe a má educação. Não é culpa de ninguém. (retira o capuz)

RODOLFO
Você?

ALANA
Eu?

RODOLFO
Você também.

ALANA
Eu também o que?

RODOLFO
O que vocês querem?

ALANA
Nossa, se eu fosse falar tudo o que eu quero, você não teria tempo.

RODOLFO
Para de papo furado! Que merda aconteceu? Cadê aquele filho da puta? O guarda-chuva é uma arma, porra!

ALANA
Que nada. O mundo é uma arma.

RODOLFO
Dá pra falar o que é? Vocês planejaram isso tudo, né? Desde o bar. Quem são vocês? Eu sabia que você era uma puta das baixas! Tava na cara que era merda.

ALANA
Não fala assim, amor.

(Alana não se ofende; ela se diverte maliciosamente; Rodolfo tenta se soltar sem sucesso)

RODOLFO
O que você quer, garota?

ALANA
Nem lembra meu nome, não é? Eu sabia que não ia lembrar.

RODOLFO
Eu disse que não ia lembrar.

ALANA
Você troca duas garrafas de cerveja por uma buceta toda quinta à noite. É assim seu mundo, não é?

RODOLFO
É assim meu mundo. Uma delícia.

ALANA
E se eu te dissesse que a importância da sua existência é maior que isso?

RODOLFO
Pelo amor de deus, não me venha falar de deus.

ALANA
Não. Relaxe, esse já tá velho. É sobre um livro.

RODOLFO
(grita) O que você quer, caralho? Dá pra você me soltar dessa porra?

ALANA
Não dá. Só o Ramiro tem a chave.

RODOLFO
Ramiro? (ri) Aquele viado filho da puta. Me deu um puta de um choque.

ALANA
Não, não. Não foi isso...

RODOLFO
Você é putinha dele, é isso?

ALANA
Sou bem mais que putinha dele.

RODOLFO
Caralho, menina.

ALANA
Eu sou igual o mundo todo. Eu sou o que você quiser.  (ri)

RODOLFO
O que vocês querem, porra? Eu não tenho dinheiro. Eu sou um fudido. Reclamo de quarenta contos no bar se não for rolar um sexo depois.

ALANA
Sei bem. (ri)

RODOLFO
Caralho! Para com essa porra de encenação e me fala, merda!

ALANA
Quer que eu dê uma pegadinha do seu pau, lindão? (ri) Quer?

RODOLFO
Vocês são o que? Curtem umas experiências? Fetiches, é isso? Vocês são um casal desses doidos?

ALANA
Não. Mas sexo é uma coisa importante pra tudo que temos para aprender. Por isso tanto problema sobre o assunto. Em breve você...

RODOLFO
Tá bom, tá bom! Eu tô aqui preso. Pronto! Agora vai logo com essa porra. Vai matar mata, vai cortar corta. Chega de enrolação! Vocês querem se vingar porque eu fiz aquilo com você, não é? Vai logo então. Enfia um pau no meu cu e pronto.

ALANA
Não iria adiantar. (lixa as unhas)

RODOLFO
(quase chora de raiva) Pelo amor de deeeeus, menina!

ALANA
De quem? Desculpe, eu não ouvi.

RODOLFO
O que?

ALANA
O que o que, meu filho? Você que tá dizendo.

(silêncio)

RODOLFO
(sem ânimo) Pelo amor de deus.

ALANA
Ah, sim. (chama) Ramiro! Ramiro! Sinal número um!

(Ramiro entra pronto e sorridente)

RAMIRO
Rapaz! Que alegria!

RODOLFO
Alegria meu cu! Me fala que merda é essa! Me solta daqui!

RAMIRO
Finalmente está acontecendo. Fique calmo. Teremos tempo.

RODOLFO
O que está acontecendo?

RAMIRO
Você é grande homem, rapaz! Grande homem!

ALANA
Se deus quiser.

RODOLFO
Vocês estão de sacanagem comigo, né?

RAMIRO
Não agora. Mas será necessário, uma hora.

RODOLFO
Me solta!

RAMIRO
Rapaz, tenho tanto pra te contar. Eu te procurei a vida toda, moleque.

RODOLFO
O que é isso, cara? Tá maluco?

RAMIRO
Rodolfo José Assis. Nascido na Bolívia. Trazido para o Brasil bebê. Mãe, curiosamente chamada de Maria...

ALANA
Excitante!

RAMIRO
... coincidência bastante provável. Criador de ideologias estranhas e duvidosas a partir do uso do cânhamo para fins pseudo intelectuais, usando do fumo como ritual. Maconheiro mesmo. Base de caráter um tanto idiota descendência de um atrito com assuntos paternos. Pai ausente. Não que a falta do sexo masculino pudesse causar algum problema numa criação, mas a ideia da falta de um pai quando se insistia uma existência dessa figura fez com que essa criança desenvolvesse esse pequeno transtorno que quase arruinou com os planos. Você esteve nos planos desde que o mundo é mundo, porque tudo está acontecendo ao mesmo tempo!

RODOLFO
Quem foi que te contou tudo isso? Que brisa forte, maluco. Dá pra me soltar?

RAMIRO
Meu amigo, é muito mais que isso. É coisa pra caralho além de uma brisa forte. Eu tenho uma pergunta pra você. Uma pergunta. Você nunca se sentiu diferente dos outros?

RODOLFO
Diferente como?

ALANA
Responda a pergunta, idiota. Eu já não aguento mais esperar.

RODOLFO
Eu não sei nada dessa porra que vocês estão falando! Eu sou um fudido, caralho! Não tenho nada nessa merda. Agora me solta! Me solta!

(silêncio)

RAMIRO
Você está contaminado.

RODOLFO
O que?

ALANA
O que? Como assim?

RAMIRO
Contaminado.

ALANA
Ai, a gente não vai ter que matar ele também, né? Diga que não. Eu não aguento mais procurar essa bosta.

(silêncio)

RODOLFO
Calma, pessoal. Vamos conversar.

ALANA
Ramiro.

RAMIRO
Não sei.

ALANA
Eu não acredito! Eu não acredito!

RODOLFO
Calma, é... é... eu me lembro...

ALANA
Eu sabia! Tanto pra nada!

RAMIRO
Não me deixe mais nervoso, Alana.

ALANA
Que raiva! Desovar um corpo é uma coisa muito cansativa.

RODOLFO
Talvez eu tenha feito algumas coisas quando criança! Eu não sei.

(silêncio)

ALANA
Que tipo de coisas?

RODOLFO
Umas coisas.

ALANA
Que coisas, caralho?

RODOLFO
Uma vez eu limpei uma água suja. Uma vez.

RAMIRO
O que?

RODOLFO
Eu limpei uma água suja, eu acho.

ALANA
E transformou em vinho? Vamos ter que matar.

RODOLFO
Não! É sério.

ALANA
Imbecil, a coisa que estamos dizendo é coisa grande. Não minta pra gente, porque se descobrirmos mais tarde, a morte pode ser mais dolorida. Seria melhor morrer agora.

RODOLFO
Pelo amor de deus! Pelo amor de deus! Me deixem ir! Eu não conto pra ninguém! Eu não sou um cara do mal. Eu só curto buceta.

RAMIRO
Como assim “pelo amor de deus”? É literalmente que você diz?

ALANA
Não é ele, Ramiro! De novo! Não é ele!

RODOLFO
Eu limpei a água. Eu juro. Eu limpei uma água suja. E depois eu bebi e era boa.

ALANA
Essa não é a questão! Ramiro, você mesmo disse. Precisa ter um fio de senso já formado. A gente não pode fazer milagre! Esse cara só pensa com o pinto!

RAMIRO
Já estamos esperando muito. Há séculos. Um pouco de tara sexual talvez ajude. Acho que com esse podemos...

ALANA
Ra, por favor! E se não for só o problema sexual? E se tiver mais problemas e distúrbios?

RAMIRO
Podemos consertar. Pelo que sabemos teve coisas de positivo.

ALANA
(indignada) Um depósito de dez reais para o Teleton!

RAMIRO
Eu acho que há uma esperança.

ALANA
Pois eu acho que não! Tínhamos um acordo. Só quando os dois tiverem certeza.

RODOLFO
Vocês podem resumir o que diabos é tudo isso? Foi de coração.

ALANA
Não interessa! (para Ramiro) Traga a injeção. Eu aplico. (para Rodolfo) Não se preocupe. Será um sono profundo. Veja que coisa louca.

RODOLFO
(ele chora como uma menininha; muito nervoso) Não, não... Por favor. Eu estava brincando. Sou eu aqui, caralho. Sou eu aqui.

RAMIRO
Você? Você o que?

RODOLFO
Oi?

RAMIRO
Oi. Você. Você disse que é você.

RODOLFO
O que...

RAMIRO
Você acabou de dizer: sou eu aqui, caralho!

ALANA
O que?

RAMIRO
Ele acabou de dizer. “Eu estava brincando. Sou eu aqui, caralho. Sou eu aqui” Ele já sabe, Alana. Eu disse que não teríamos problemas. Finalmente! (gargalha abobalhado)

ALANA
(preocupada) Não é ele, Ramiro! Não é ele. Não viaja! Não é ele... Ele estava dizendo que...

RAMIRO
É ele sim. Ele disse. Eu sei que é. Resposta espontânea, Alana. Resposta “dele”.

ALANA
Ai, meu deus!

RAMIRO
Amigo, você se lembra? Você estava falando e aí chorou que nem uma menininha e disse: “Sou eu aqui, caralho. Sou eu aqui”. Você disse, lembra? Você já sabe, não é? Já sabe o que tem que fazer, não é? A atividade do seu cérebro – que obviamente tem algumas porcentagens a mais que a minha, por exemplo – já vieram pré-moldadas junto com a evolução do homem, não é? Sua genética já é feita do novo mundo, não? Foi sempre assim. Com os grandes mestres. Eles eram grandes homens fisicamente. Da mesma forma que grandes maníacos assassinos são grandes homens fisicamente. Que grandes defensores da paz possam curar uns aos outros pela fé. E que grandes destruidores possam matar milhões em nome da fé. Existem seres humanos especiais e grandes. E não de altura, de concepção.  Jesus aceitou uma missão que falou em sua cabeça. Não creio que antes de ser homem, ele estava ao lado de deus assistindo os dinossauros e tudo o mais. Jesus foi um homem que olhou pro céu e pras estrelas e ouviu o que sua cabeça dizia. Talvez a gravidez do espírito santo para com Maria fosse mais uma das possibilidades de histórias do universo, e não algo premeditado. Homens sonharam com um profeta, eu sei. Talvez porque todos temos a necessidade de esperar por um salvador de nossas dores. Imagine ainda naquela época! Desculpe, eu não creio que Jesus me ama. Ele não me ama hoje. Creio que ele me amou. Existe uma teoria que diz que quando um homem descobrir exatamente para que nasceu, para que vive e para que morrerá, este ser deverá desaparecer pelo vácuo, porque seu conhecimento o transforma no tudo. O leva de volta pra deus. (pausa) Jesus veio para nos mostrar a mágica do poder da fé, e a mágica da contaminação de energias e dos milagres misteriosos dela, do quanto temos nas mãos a escolha de sermos todos – eu disse todos – homens que viverão num inferno criado por nós mesmos, e propagando esse inferno – que já é comum e suportável – pelos séculos e séculos que virão. Ou então podíamos muito bem começar a tentar deixar um planeta para nossas próprias cópias humanas das gerações seguintes, um lugar de paz e harmonia sem preocupação e sem competição; o conhecido paraíso. E que venha bondade e paz, lógico! A força deste lado gera melhorias para o mundo todo e melhorias para deus também. Meu amigo, me diga: você já se sentiu alguma coisa diferente?

RODOLFO
Alguma coisa diferente?

RAMIRO
Isso! Isso! Você sabe de alguma coisa diferente, não sabe?

(silêncio)

RODOLFO
Pode ser, eu acho.

ALANA
Menino, cale essa boca. Você não tem noção do que...!

RAMIRO
Alana!

RODOLFO
Talvez eu tenha me sentido especial em alguns momentos.

ALANA
Eu mandei você calar a boca!

RAMIRO
Alana!

RODOLFO
A história da água é ridícula, eu sei, mas é verdade. (pausa) Quando eu era criança eu não gostava de ficar no escuro. Eu sei que é besta e comum, mas eu me sentia próximo e longe de alguma coisa quando estava no escuro. Entende? Bem, eu estava no escuro e eu não era mais eu. Entenderam? Aceitei isso como medo. Coisa de louco, eu sei. Não consigo explicar. Era como se eu não existisse e não sentisse nada. Ninguém acreditava em mim, aí eu chorava e acendiam a luz.

(silêncio)

ALANA
Não é ele.

RODOLFO
Me deixem tentar! É ele quem? Eu tento! Por favor, não me matem.

RAMIRO
Calma.

ALANA
Não é ele, Ramiro.

RAMIRO
Não é. Mas os outros também não eram. Nem Jesus era.

ALANA
Eu sei. Mas todos eles tinham propósitos.

RAMIRO
Nós temos o propósito. Ele tem o corpo.

(silêncio)

RODOLFO
Quem diabos vocês estão procurando? O que é tudo isso?

ALANA
Não interessa pra você! É muito pra sua cabecinha regredida!

RAMIRO
Um novo homem. Estamos procurando um novo homem. Não eu, nem ela. Muitos. Há alguns séculos já se procura esse novo homem. Nossos avós fizeram um grande trabalho de conservação da real palavra. Surgiram alguns. Grandes, mas não tão convincentes. Procuramos outro homem que substitua o velho.

RODOLFO
Calma...

ALANA
Um novo messias. Um novo Cristo. Um novo Jesus. Buda. Seja lá o nome que você queira dar.

RAMIRO
Trabalhamos com publicidade. Eu tenho uma agência.

ALANA
Somos sócios. Eu tô estagiando, na verdade.

RAMIRO
Queremos lançar a verdadeira ideia para o mundo. Usando dos meios de hoje.

ALANA
E ele espera que seja você esse cara pra fazer isso.  

(black-out)

(sombras de um homem sendo chupado por outro)



CENA VIII

(a luz acende; em um bar numa esquina Alana está fumando um cigarro vestindo uma saia curta)

ALANA
(conversa com um homem; um tanto sensual) Oi? Sim. Patrícia. Você quem sabe. Quanto acha que é? Quanto? (ri) Tudo isso, é? Muito o caramba. Pouco, isso sim. Bem pouco. Vamos fazer o seguinte, você responde a uma charada que eu vou te dar e aí tá tudo liberado. Hoje eu tô boazinha. Tudo liberado, ué. Liberada. É, bonitão, uma pergunta simples. Quer? Pode ser? (pausa) Legal. Lá vai, então. “Quantos caminhos um homem deve percorrer?”. É isso. (pausa) É isso, ué! “Quantos caminhos um homem deve percorrer?”, é isso. “Quantos caminhos um homem deve percorrer?”. Não. Não. Não, não, não. Não nesse sentido, mais no sentido de “quantos caminhos” literalmente, entende? Literalmente, literalmente, oras. (algo faz com que ela se ofenda com o que o homem diz) Entendi. Nossa. Tudo bem, então. Quanto é? Bom, se tivesse acertado a pergunta – que seria: “a resposta está soprada nos ventos” – o serviço completo sairia por oitenta. Isso é uma pergunta de um livro que um idiota me entregou. Tenho me encafifado muito com isso. Mesmo eu não sendo homem, acredito que a frase fala de mulheres também. (ri burra) “Quantos caminhos um homem deve percorrer?” A resposta é a que o livro já dá. Bob, capítulo trinta e sete, versículo cento e dez. “A resposta está soprada nos ventos”. Ou seja, a bosta do livro não respondeu nada. Jogou a responsabilidade na mão do coitado do vento. Quem diabos é Bob? (ri; longa pausa; por alguns segundos Alana fecha os olhos numa piração) Quem diabos eu sou? (pausa; mecanicamente) Eu faço programa pra pagar minha faculdade de publicidade e propaganda. (volta rápido da brisa; para o homem) Mas como você errou, faço por noventa. (pausa) Sim, sou mesmo uma puta bacana. (dá uma piscadinha)

(black-out)

(outra vez a sombra de um homem sendo chupado por outro; a sombra de uma mulher entra, se aproxima, se agacha e, então os dois juntos chupam o terceiro homem; logo, o homem que está chupando se levanta e apenas observa o sexo oral que segue por um tempo longo)

(a luz acende novamente e Alana acaba de sair do carro; se despede sorridente para o motorista limpando o canto dos lábios)

ALANA
Tchau, nojento. Perdoem-me os homens, mas eu os odeio. (cospe no chão) Tenho nojo de testosterona. Eu daria pra uma boa sapatão. (ri) “A resposta está soprada no vento”. Sim, senhor. Bem que está. Bem que está.

(Alana reflete sobre coisas que a incomodam; então, o riso se torna uma cena depressiva; ela surta em silêncio, apenas com suor e olhares; de repente, acorda consciente)

ALANA
(para a plateia, um tanto didática) Mas o que diabos sexo têm a ver com tudo isso?

(Ramiro entra gargalhando)

RAMIRO
Essa é a mais fácil de todas! (gargalha debochando de Alana) Burrinha, querida. Bem burrinha. Você é muito burrinha pra querer reclamar de algo, menina. Não devia ter o direito de perguntar nada! Tira essa carinha de bunda que você tá e bora pra vida! Bora, bora!

ALANA
É só bunda, saco e pinto que eu tenho na minha vida. Minha cara está se camuflando.

RAMIRO
É só bunda, saco, pinto e piriquita que todo mundo tem na vida toda, minha linda. Não se sinta mais especial. Você não é nenhum pouco mais especial que ninguém.

ALANA
Não, definitivamente eu não estava me sentindo especial.  Eu estava falando de lixo mesmo.

RAMIRO
Ora, cale a boca. Cale essa sua boca.

(silêncio)

ALANA
Desculpe.

RAMIRO
O que sexo tem a ver com isso? É isso que você quer saber?

ALANA
Sim. O que é? Por que é tão assim? Por que tudo é tão baixo, tudo tão chulo e triste?

RAMIRO
Triste? Não invente isso! Pelo amor de deus!

ALANA
É triste sim. Talvez eu entenda o que a tal da bíblia queria dizer sobre casamento casto. Talvez se nos guardássemos somente pra uma pessoa, não seria tão difícil de não nos contentar depois. Não teríamos com o que comparar, e nem iríamos nos lembrar de amores passados, e nem de pintos passados, ou de flertes bacanas no metrô. Pois de amor – teoricamente – só teria acontecido um.

RAMIRO
Você falou um monte de merda. A cagada tá nesse negócio de todo mundo querer amar só uma pessoa num mundo com milhões e milhões! (imita) “Eu me limito a querer falar e ter intimidades somente com amigos e família! Eu me limito a ser um retardado limitado!”. Foi o homem idiota que inventou que casais devem ser constituídos de duas pessoas. O amor se tornou egoísmo hoje, sabe. Você prende a outra pessoa pra você e não quer que ela tenha outras experiências além. O amor devia ser de outro jeito. Eu gosto de imaginar um bosque, cheio de gente bacana e bonita e limpa. E aí nesse bosque, com essas pessoas brilhantes – um tanto gnomísticas, eu imagino – os dias se seguem de farturas e todo mundo se apalpando e se beijando e dormindo abraçados uns aos outros. E aí não existe o pudor do “pega no meu pau”, porque o pegar no meu pau seria como pegar na minha mão.

(silêncio)

RAMIRO
Entende?

(Alana, curiosa, pega no pau de Ramiro)

RAMIRO
Opa!

ALANA
Não. Não é a mesma coisa.

RAMIRO
Sim. Eu sei. Eu fiz uma suposição do que eu imagino para um mundo perfeito, só isso.

ALANA
Todo mundo um pegando no pau do outro?

RAMIRO
Não, caralho! Caramba, mas que difícil! Por isso que as mulheres foram excluídas das grandes histórias.

ALANA
É nada. Seu escroto! Tem Dalila, imbecil. Madalena.

RAMIRO
A primeira foi apresentada a todos como uma filha da puta, e a outra como puta mesmo e esquecida ainda, coitada.

ALANA
E qual o problema de ser filha da puta ou de ser puta esquecida? Qual o problema? Qual o problema? Não tem nada de coitada, não! Odeio que sintam pena.

RAMIRO
É isso, menina! Isso que eu quero dizer! Não tem problema nenhum, oras! Nenhum! Tente usar mais o sentimento e menos a razão. Não existe problema nenhum!

(silêncio)

ALANA
Nenhum, nenhum?

RAMIRO
Não. Lógico que tem os problemas de doenças transmissíveis e tal. Mas de resto, tudo tranquilo, caramba!

ALANA
Nem todos pensam assim.

RAMIRO
Exatamente. É essa nossa missão.

ALANA
O que?

RAMIRO
Você leu todo o livro que eu te dei?

ALANA
Todo não. Fui abrindo na sorte.

RAMIRO
Leia tudo. É importante.

ALANA
Mas, caralho, Ramiro. Ele me joga uma pergunta e depois diz que a resposta está no vento. Que tipo de livro de auto ajuda é esse?

RAMIRO
(para por alguns segundos e a ordena a fazer silêncio e ouvir) São três Rs. Relaxe e receba a resposta. Relaxe e receba a resposta, Alana. Lembre-se. É mais fácil do que parece e bem mais divertido do que nos ensinaram. Repita. Relaxe e receba a resposta.

ALANA
Relaxe e receba a resposta.

RAMIRO
Exato! Até! (ele sai subitamente) Leia o livro inteirinho!

(Alana sozinha, olha para os lados e decide acender um cigarro; ela fuma distraída por alguns segundos; ela tenta refletir mas logo desiste; por um tempo ela não faz exatamente nada; de repente algo na fumaça a interessa; ela se interessa mais e mais com a fumaça que sai da ponta do cigarro; o palco é tomado por uma fumaça branca; Alana brinca debilmente entre desenhos e sombras projetadas na fumaça; vê se imagens de sexo, de paisagens naturais, de bebês, de idosos, de guerras, de Cristo, etc. Por fim, extasiada, Alana compreende coisas que não sabia; ela agradece sinceramente:)

ALANA
Ah, Deus, caralho! É você, meu amigo! Somos nós!

(black-out)



CENA IX

(a luz acende; Rodolfo ainda está amarrado, mas em uma posição mais confortável; Alana lê em um canto; Ramiro entra com uma bandeja com xícaras)

RODOLFO
Quanto tempo eu vou ter que ficar aqui?

RAMIRO
Beba. (entrega uma xícara para ele)

RODOLFO
O que é isso?

RAMIRO
Beba. Você vai se sentir melhor.

RODOLFO
Cara, já amanheceu. Eu tenho coisas pra fazer, meu. Vamos combinar de continuar com isso mais tarde. Eu juro que eu venho. Eu juro.

(Alana ri baixo)

RAMIRO
Você não entendeu. Beba logo.

(Rodolfo bebe; quase no mesmo instante deixa a xícara cair no chão e se contorce alucinado; a viagem de Rodolfo pode ser parecida como se estivesse sob os efeitos da erva salvia divinorum – ver vídeos; ele balbucia com os olhos tortos, numa mescla de engraçado com assustador)

RODOLFO
Nossa... quem?... nossa... uh! Nossa... (ri estranho)

RAMIRO
Aberto, Alana.

RODOLFO
Nossa! Uh!

ALANA
Onde?

RAMIRO
Na perna.

(Alana tira uma faca de algum lugar e enfia na perna de Rodolfo)

(black-out)

(surge a sombra de uma mulher de quatro; um homem a masturba com a ponta de uma faca)


CENA X

(Rodolfo está nu e sozinho no palco; ele está alucinado)

(Alana e Ramiro entram, também nus, e abraçam Rodolfo; Alana na frente e Ramiro por trás; Rodolfo não reage)

(eles transam os corpos; eles se lambem; Rodolfo não reage)

(Alana e Ramiro fazem um corte nas mãos e passam o sangue pelo corpo de Rodolfo)

RODOLFO
(em transe) Isso que vocês fazem, é satânico?

ALANA
Cale a boca!

(eles continuam o ritual; Ramiro faz Rodolfo se abaixar; e o penetra)

RODOLFO
(grogue) Vocês não estão falando de deus, estão? Soa meio sujo falar isso agora.

RAMIRO
Chiu. Fica quietinho, fica.

(Ramiro continua a meter)

RODOLFO
O que você tá fazendo aí?

RAMIRO
Te purificando.

RODOLFO
Dói, um pouco.

RAMIRO
Relaxe.

(Ramiro apressa as metidas com força; Alana inicia um cântico de vogais)

RODOLFO
Gozo?

RAMIRO
Goze.

RODOLFO
Goze.

RAMIRO
Calma.

(ele mete mais um pouco e goza; Rodolfo continua alucinado e mole; Ramiro e Alana colocam ele sentado)

RAMIRO
Rodolfo, isso foi um presente que estamos te dando. A natureza já preparou tudinho. Tudinho, tudinho. O sexo é importante, Alana, porque trocamos energia com ele. Já deve saber o que foi que eu passei pra ele, não sabe?

RODOLFO
Tava sem camisinha, essa porra?

ALANA
Sei. Eu entendo, Ramiro. Faz todo sentido.

RAMIRO
Agora me dê um pouco de pimenta.

ALANA
(tira de uma sacola) Aqui. (entrega pra Ramiro)

RAMIRO
(põe no nariz de Rodolfo um pouquinho do pó) Cheire.

(Rodolfo espirra forte)

(as luzes piscam; um carro ao longe dispara o alarme)

ALANA
Incrível.

RAMIRO
Agora é sua vez, Alana. Ensine o que você sabe.

ALANA
Sim. (ela se aproxima sensualmente de Rodolfo)

RODOLFO
(ri mole e malicioso) Ufa. Pelo menos isso.

(Ramiro o coloca em pé novamente e o abaixa como da primeira vez, de costas para Alana)

(Alana retira um gel da sacola e passa em uma das mãos até o cotovelo)

(por fim, ela passa um pouco do gel no cu de Rodolfo; e enfia a mão dentro dele)

(black-out)


CENA XI

(as luzes acendem e Alana está enxugando a mão; Ramiro coloca Rodolfo sentado na cadeira e o encapuza novamente; eles preparam uma cena; Alana se ajoelha e Ramiro saca um revólver; ele aponta pra cabeça de Alana)

(eles esperam por alguns segundos até que Rodolfo acorda)

RODOLFO
Ai, meu deus!

ALANA
(interpreta) Por favor! Pelo amor de deus, não faz isso, Ramiro!

RAMIRO
Traidora! Biscate!

ALANA
Não, pelo amor de deus!

(Ramiro atira para o alto)

ALANA
Ah!

RODOLFO
(chora) Pelo amor de deus! O que é isso? O que tá acontecendo?

(Ramiro tira o capuz da cara dele)

RAMIRO
Ela nos traiu, Rodolfo.

ALANA
Não.

RAMIRO
Ela está envolvida com a organização que nos caça.

ALANA
É mentira!

RAMIRO
Cale a boca!

RAMIRO
Traidor bom é traidor morto.

RODOLFO
Não precisa matar ela, cara.

RAMIRO
Precisa sim! Ela quase ferrou com meu plano.

RODOLFO
Calma, tem outro jeito...

(Ramiro atira de novo)

ALANA
Ah!

RODOLFO
Calma, porra! Pelo amor de deus, cara!

(ele atira mais algumas vezes; Rodolfo e Alana se encolhem)

RODOLFO
Tenho mais duas balas.

(Ramiro aponta decidido pra cabeça de Alana)

RAMIRO
Alana, eu vou atirar.

ALANA
(séria) Ramiro...

RAMIRO
Só assim.

RODOLFO
Por favor...

ALANA
(verdadeiramente assustada) Ramiro, pense bem... E se deu errado?

RAMIRO
Temos que assumir o risco. Eu vou atirar.

ALANA
Ramiro! Por favor!

RAMIRO
Vai dar tudo certo. Feche os olhos.

ALANA
Ramiro! Pare! É sério! Pare! E se não deu certo, Ramiro? Você vai me matar!

RAMIRO
(grita) Temos que tentar!

ALANA
Ramiro!

(silêncio)

RAMIRO
Temos que tentar.

(ele atira)

(as luzes piscam)

(Ramiro cai morto no chão; Alana e Rodolfo permanecem encolhidos em silêncio; aos poucos eles tomam consciência)

ALANA
Você conseguiu, seu filho da mãe.

RODOLFO
O que?

ALANA
Foi você quem desviou a bala.

RODOLFO
O que?

ALANA
Ele ia me matar e você desviou a bala. Ele esperava que você desviasse a bala pra outro lugar.

RODOLFO
Me solta daqui.

(Alana solta Rodolfo)

ALANA
Nós conseguimos, Rodolfo. Agora você pode fazer tudo. Nós tínhamos o propósito e você o corpo. Seu corpo será utilizado pra pregar a grande verdade. E com seus poderes prova-las. Finalmente as pessoas terão alguém pra seguir como exemplo de novo. (ela retira um livro da sacola) Tudo o que você precisa saber sobre a verdade está aqui escrita nesse livro. Você vai saber usufruir dos seus novos dons, Rodolfo. E aí poderemos lançar a Nova Bíblia, finalmente! E mudar o rumo da nossa história no planeta, Rodolfo.

RODOLFO
Por que diabos não podia ser um de vocês?

ALANA
O que?

RODOLFO
Se foram vocês quem me deram esses poderes, porque não foram lá e se tornaram o Novo Cristo vocês?

ALANA
Tem que ser um homem. E tem que ser um homem jovem. Nós que fazemos publicidade percebemos isso com o tempo. Não adianta regredir, deve sempre atingir a juventude.

RODOLFO
Que babaquice.

(silêncio)

RODOLFO
Escuta, vocês não pensaram em nenhum momento que eu não iria gostar de ser o Novo Cristo?

ALANA
Você não tem escolha, é o seu destino.

RODOLFO
Meu destino o cacete! Eu tenho escolha.

(ele pega o revolver e aponta pra própria cabeça)

ALANA
Não faça isso.

RODOLFO
Por que? Se esse lance todo fosse realmente verdade a coisa tinha que acontecer naturalmente. Eu teria que descobrir essa fita sozinho.

ALANA
Nós te demos um presente, Rodolfo! Isso é sério! Foram anos e anos de estudo sobre o micro e sobre o macro pra chegarmos à magia completa!

RODOLFO
Eu quero que se dane esse papo todo! Puta idiotice!

ALANA
Não é idiotice. Você viu!

RODOLFO
Eu vou atirar.

ALANA
Por favor!

RODOLFO
Eu não quero esse peso nas minhas costas.

ALANA
Rodolfo...

(ele atira)

(black-out pouco depois de ver que é Alana quem cai)


CENA XII

RODOLFO
(fuma encostado em um muro) Os sons lá de longe chegam até aqui. Demoram um pouco mais do que a iluminação, mas sempre chegam. (um raio) Enquanto for possível ouvir aquele específico barulho de sirene da ambulância que ajuda na remoção de uma vítima de um acidente duas quadras acima de sua casa, e você puder relatar que esse barulho existe, partículas estarão rebatendo em seus ouvidos. (um trovão) Nove Mississipi.

(silêncio)

RODOLFO
Eu sou o Superman.

(em vídeo, vemos Rodolfo curtindo a vida adoidado; ele bebe, fuma, mete, bebe, mete, etc; Paparazzis e fotógrafos o flagram em situações constrangedoras e polêmicas; fotos com a Nova Bíblia, e fotos com bucetas de verdade)




FIM




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