DANCE A DANÇA DOS QUE MANDAM ou MAMÃE QUERO SER EU

PERSONAGENS
Ela
Auditor 1
Auditor 2
Auditor 3
Mãe
Menina
Dançarino 1
Dançarino 2
Plateia

CRÉDITOS INICIAIS/EXTERNA

ENQUANTO OS CRÉDITOS SÃO APRESENTADOS, VEMOS ELA DANÇANDO EM DIVERSOS CENÁRIOS; NUM CAMPO ABERTO, EM FRENTE À UM PRÉDIO ANTIGO, EM FRENTE DE UM PARQUE DE DIVERSÕES, NO MEIO DE PEDESTRES, ETC. EM ALGUNS MOMENTOS, SURGEM DOIS DANÇARINOS DANÇANDO COM ELA, EM OUTROS ELA ESTÁ SOZINHA. É APRESENTADO O TÍTULO DO FILME NO FIM DA COREOGRAFIA.

CENA 1/INTERNA/NOITE/SALA DE INTERROGATÓRIO

ELA ESTÁ UM POUCO MACHUCADA CABISBAIXA, SENTADA EM UMA DAS CADEIRAS. O AUDITOR 1 ESTÁ SENTADO E OS OUTROS DOIS EM UM CANTO.

AUDITOR 1
De que serve?

(silêncio)

AUDITOR 1
A pergunta que eu te fiz é: de que serve?

ELA
Meu corpo anda bem.

AUDITOR 1
Você é retardada?

AUDITOR 2
Ele quer saber de que bosta serve pra nós. Serve pra quê isso daí?

AUDITOR 1
Responda direito. Não venha com essa ladainha de bicho grilo pra cima da gente. Seja um pouco prática na vida, sem frescuras.

ELA
Nossos corpos andam bem, sem frescuras.

(o Auditor 3 dá um murro em cima da mesa; Ela já não se assusta mais)


CENA 2/EXTERNA E INTERNA/CENAS VARIADAS

EM UM FLASH VEMOS DIVERSOS TIPOS DE TRABALHOS; UMA COSTUREIRA E SEU SUOR, UM MECÂNICO E SEU SUOR, UM AGRICULTOR E SEU SUOR, ETC. MESCLANDO COM AS ATIVIDADES DE ALGUMAS PROFISSÕES, VEMOS ELA SUANDO POR SUA DANÇA.


CENA 3/INTERNA/NOITE/SALA DE INTERROGATÓRIO

AUDITOR 1
Quando você soa, seu suor vale de quê?

ELA
“Quando você sua”.

(silêncio)

ELA
O correto seria dizer “Quando você sua, seu suor vale de quê?”. Quem soa é sino.

(o Auditor 3 agarra Ela pelo cabelo)

AUDITOR 3
Você gosta de apanhar?

ELA
Adoro.

(o Auditor 2 surge com um alicate e o Auditor 3 segura a perna de Ela e tira seu sapato, segurando seu pé com força)

ELA
Não, não, não! Por favor! O dedo do pé não!

AUDITOR 1
Vai ser o dedão, bailarina. Equilíbrio desmoronado. Me diga. Qual é a sua função na Terra?

ELA
Ser puta. (ela cospe no Auditor 1)

AUDITOR 3
Arranque esse dedo fora!

ELA
Não, por favor! Pelo amor de deus!


CENA 4/UM DEDÃO

VEMOS UM PÉ EM PONTA POR ALGUNS LONGOS SEGUNDOS. UM SUOR CAI DO PESCOÇO DE ELA. AS PERNAS TREMEM. A PERSONAGEM MÃE APARECE GARGALHANDO EM FLASH. ELA APARECE ENTRANDO NA PREFEITURA DE SUA CIDADE E APRESENTANDO UM PROJETO PARA O SECRETÁRIO, QUE É NEGADO.

CENA 5/INTERNA/NOITE/SALA DE INTERROGATÓRIO

(Vemos sangue pelo chão e Ela caída em um canto; o Auditor 1 anda pela sala calmo)

AUDITOR 1
Um mecânico faz o meu carro andar. Um arquiteto projeta a minha casa. A mocinha do caixa do supermercado ensacola a minha compra. E você? Você come essas porras desses livros de poesia? (joga alguns livros na cara dela) Seu suor vale quanto pra que a máquina continue trabalhando, pra que todos continuem comendo?

(silêncio)

ELA
Eu nunca medi. Mas e o meu sangue? Quanto tá valendo? Tem gosto de quê?

(Ela leva um chacoalhão; silêncio)

AUDITOR 1
Você não serve. Você é peso morto.

AUDITOR 2
Você é uma bosta!

AUDITOR 1
O mundo não precisa dessa poesia barata, o mundo precisa de ação, precisa de suor pra continuar pra frente. Foi-se essa era.

AUDITOR 2 e 3
Foi-se essa era.

(silêncio)

ELA
Eu não preciso de plateia.

(todos riem)

AUDITOR 1
Então pra que serve? Você se alimenta de ar, minha querida? O cara que planta seu arroz não teve tempo pra ser intelectual como você acha que é. Intelectual, culta. Mas o arroz você quer comprar. Do suor dele. Você vai na porra de um supermercado e quer ter dinheiro pra comprar, não quer? Você quer ter dinheiro oferecendo o quê pro mundo? Seu direito por esse espaço que você está, tá sendo pago com que produto pra continuação da máquina? O que você oferece?

ELA
Eu ofereço meu corpo e alma.

(todos debocham)

AUDITOR 1
Ninguém come corpo e alma, queridona.

AUDITOR 2
É uma puta!

AUDITOR 3
Vamo esmagar o outro dedão!

AUDITOR 1
Você realmente se acha útil? Você consegue ver utilidade pública nisso que você faz.

(silêncio)

ELA
Se eu causo tanto desconforto, devo ter alguma utilidade.

(o Auditor 1 acende um cigarro em silêncio)

AUDITOR 1
Então me mostre. Eu quero ver. Mas primeiro eu quero ver o outro dedão.

ELA
Não! Não!


CENA 6/EXTERNA

VEMOS ELA NOVAMENTE DANÇANDO EM DIVERSOS CENÁRIOS; ; NUM CAMPO ABERTO, EM FRENTE À UM PRÉDIO ANTIGO, EM FRENTE À UM PARQUE DE DIVERSÕES, NO MEIO DE PEDESTRES, ETC. ALGUNS PEDESTRES TROMBAM COM ELA ATRAPALHANDO A COREOGRAFIA. NO AUGE DA DANÇA ELA CAI NO CAMPO ABERTO, COM O TORNOZELO TORCIDO. ELA OLHA PARA FRENTE COMO SE ESTIVESSE SENDO ASSISTIDA. VEMOS QUE UMA PLATEIA DE PESSOAS EXCÊNTRICAS ASSISTE A DANÇA SOLITÁRIA DO CAMPO ABERTO. TODOS ESTÃO EMOCIONADOS E APLAUDEM ELA FRENETICAMENTE. UMA MENINA CRIANÇA ESTÁ ENTRE O PÚBLICO.


CENA 7/INTERNA/NOITE/SALA DE INTERROGATÓRIO

A MENINA QUE ASSISTIA A DANÇA DE ELA AGORA SE ENCONTRA EM UM CANTO DA SALA DE INTERROGATÓRIO; REPETE-SE PARTE DA CENA 1, MAS AGORA DA PERSPECTIVA DA MENINA.

AUDITOR 1
Seja um pouco prática na vida, sem frescuras.

ELA
Nossos corpos andam bem, sem frescuras.

(o Auditor 3 dá um murro em cima da mesa; Ela já não se assusta mais; o áudio fica abafado e só vemos a expressão da Menina de horror enquanto Ela é torturada)


CENA 8/EXTERNA

VEMOS, ENTÃO, A MENINA TENTANDO DANÇAR NOS MESMOS CENÁRIOS QUE ELA. NUM CAMPO ABERTO, EM FRENTE À UM PRÉDIO ANTIGO, EM FRENTE À UM PARQUE DE DIVERSÕES, NO MEIO DE PEDESTRES, ETC. EM ALGUM MOMENTO A MENINA APALPA O PRÓPRIO PÉ COM MEDO DE PERDER O DEDÃO. A MÃE APARECE E PUXA A MENINA DO CENÁRIO COM O PARQUE DE DIVERSÕES.


CENA 9/INTERNA/NOITE/SALA DE INTERROGATÓRIO

(o Auditor 2 e 3 colocam Ela em pé)

AUDITOR 1
Vai. Então eu quero ver. Me mostre a porcaria que tiver que mostrar.

(silêncio; Ela se prepara timidamente e com dificuldades pela mutilação. Vemos as reações dos Auditores enquanto Ela dança; aos poucos, de homens frios, os auditores vão se envolvendo com a dança de Ela; ouvimos a narração)

ELA
Você odeia poesia, seu filho de uma puta? Eu como a sua alma enquanto minha falta de dedão pula nesse chão. Seu coração é meu enquanto eu encho seus olhos com a carne do meu corpo, que é lindo e gostoso e suado. Meu produto não é palpável, meu produto não se fabrica em escola nenhuma. Meu produto é cocô, é porra, é sangue, pus, bactérias, suor. Meu produto sou eu. (pausa)

(os Auditores estão emocionados com a dança de Ela)

ELA
E agora eu quero que você chore.

(Ela termina a dança e se reverencia ao seu público; o Auditor 1 esconde uma lágrima)

AUDITOR 3
Você é linda.

AUDITOR 1
Agora pegue a serra. Eu quero que arranquem uma perna dela. Quero ver a dança de uma perneta.

(o Auditor 2 mostra uma serra; black-out)

(um tempo)

CENA 10/INTERNA/COZINHA

(a Mãe lava a louça enquanto a menina está sentada comendo)

MENINA
Mãe, eu queria fazer aula de dança.

MÃE
Tem que estudar primeiro. Vai na escola pra você ser alguém na vida.

MENINA
Eu quero estudar dança também. Tem na prefeitura.

MÃE
Essas coisas não se aprende na prefeitura, menina. Tem que ter talento de nascença.

MENINA
Mas eu quero fazer. É de graça. E é de sábado.

MÃE
Você tem que pensar que você tem que trabalhar primeiro. Essa vida não é fácil. Vai que você perde um braço, uma perna por aí. Você tem que ter registro em carteira, pagar direitinho a previdência, pra você poder descansar da sua aposentadoria depois. A gente nunca sabe como vai ser a nossa vida. Não quero mais saber dessa besteira, ouviu?

(os créditos finais aparecem na cena da Mãe arrumando a cozinha e da Menina comendo cabisbaixa; as duas em um silêncio chato)

FIM


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