A SÉRIA MISSÃO DE UM MENINO PERTURBADO
Personagens
Du; 10 anos.
Vilma; mãe.
CENÁRIO: Um quarto de casal. Uma cama e algumas gavetas.
DU
(conversa com a platéia) O mundo contemporâneo pode ter suas
facilidades e rapidez na conclusão ou criação de alguns problemas. Tudo começou
quando a imaginação humana conseguiu recriar assuntos fantasiosos num mundo
possivelmente real. E logo veio a televisão e depois a internet. E depois veio
essa geração esquisitíssima, problemática.
VILMA
(com a platéia) Os filhos crescem, às vezes não tanto. Os
filhos amam, às vezes não tanto. Os filhos nos consomem, assim, por dentro, às
vezes bastante. Os filhos às vezes podem nos trazer a graça divina do amor
materno, mas o mundo é conspiratório e decididamente difícil de explicar. E o
dinheiro. Ai, o dinheiro. Nos transporta para outra dimensão intelectual e para
um destino complicadíssimo. Era mais fácil quando a brincadeira acontecia de pé
no chão, na rua, com outras crianças unidas na séria brincadeira de pega-pega.
Hoje o pega-pega é mais real. (pausa) Uma educação exemplar pode ser
atrapalhada apenas por cartas de baralho. Percebem como é complicado?
DU
Mamãe não consegue entender os problemas mais sérios de seu
filhinho assustado. Esse mundo é incrivelmente assustador e pode tirar boas
noites de sono.
(Vilma dorme)
DU
(senta-se calmamente ao lado da cama; faz alguma breve oração
e fala pausadamente em um mesmo ritmo) Mãe? Mãe? Mãe? Mãe? Mãe? Mãe? Mamãe?
Mamãe? Mamãe? Mamãe? Mamãe? Mã? Mã? Mã? Mã? Mã? Mami? Mami? Mami? Mami? Mami?
VILMA
(gritando) Ah, moleque chato! O que você quer?
DU
Feliz aniversário! (entrega um pacotinho de presente)
VILMA
Du, meu aniversário é em agosto. Eu não dormi a noite inteira,
tem como você me deixar em paz por um minuto? (se vira e dorme)
DU
(olhando para seu relógio; pausa de um minuto contado; Vilma
inicia um ronco baixo) Mãe? Mãe? Mãe? Mãe? Mãe? Mãe? Mamãe? Mamãe? Mamãe?
Mamãe? Mamãe? Mã? Mã? Mã? Mã? Mã? Mami? Mami? Mami? Mami? Mami?
VILMA
(gritando) Ah! Eu disse pra você me deixar em paz!
DU
Mas já passou um minuto, mãe. (silêncio) Mãe? Mãe? Mamãe?
Mamãe?
VILMA
(gritando) O que?
DU
Que dia de agosto?
VILMA
Filho, tem que ser agora? É tão importante assim saber o dia
do meu aniversário?
DU
Claro, que é! Oras, você é minha mamãe.
VILMA
Mas filho, eu preciso dormir. Depois a gente conversa. Agora a
mamãe trabalha cedo.
(pausa)
DU
Mãe...?
VILMA
(gritando) Ah! Vinte e três! Vinte e três!
DU
Viu? Não foi tão difícil assim.
VILMA
Agora suma daqui!
DU
Só mais uma coisinha... (dá um beijo nela) Te amo!
VILMA
Ah, filho. Eu também te amo. Depois juro que te levo pra tomar
sorvete, tudo bem?
DU
Sério? Ah, mãe, diz que é sério!
VILMA
Sério, filho!
DU
De chocolate?
De chocolate?
VILMA
Depois você escolhe o sabor, filho...
DU
Ah, não! Tem que ser de chocolate!
VILMA
Tudo bem, mas agora eu preciso fechar os olhos e dormir,
querido!
DU
Que coisa chata!
VILMA
O que?
DU
Você ter que dormir.
VILMA
Mas você também dorme, filho.
DU
Mas eu durmo na hora que é pra dormir, e você dorme toda hora. Eu tenho que te contar uma coisa, o pai...
Mas eu durmo na hora que é pra dormir, e você dorme toda hora. Eu tenho que te contar uma coisa, o pai...
VILMA
Não é verdade! Eduardo, vá pro seu quarto e espere até eu
acordar!
DU
Mas, mãe...
VILMA
Agora!
DU
(vai saindo) Chata.
VILMA
O que disse?
DU
Linda!
VILMA
Você disse chata! Eu ouvi!
DU
Então por que perguntou?
VILMA
Pra eu ter certeza. Agora vaza! Tá de castigo!
DU
(vai saindo) Mas, mãe...!
VILMA
Por favor, Eduardo! Sai logo!
DU
Então me dá dinheiro pra comprar figurinha?
VILMA
Meu Deus, Eduardo, você não entendeu? Castigo! Cas-ti-go! E
você não disse que não ia pra escola porque estava doente. Eu pago aquela merda
pra quê? Hein? Doente não brinca de figurinha.
DU
Ai, nada a ver o que você tá falando. E eu já sarei.
VILMA
Já sarou? Já sarou então vai lá pra fora, pelo amor de deus,
Eduardo! Vai. Antes que eu perca a paciência.
DU
Mas, mãe...
VILMA
Caralho de moleque! (suspira) Pega logo a bosta do dinheiro e
vai comprar essa merda desse Yugimon aí. Pegue na minha carteira. Um real,
hein!
DU
Dois!
VILMA
Um e cinquenta.
DU
Três!
VILMA
Não! Um e cinquenta e não se fala mais nisso.
DU
Então não quero mais essa merda! (vai sair)
VILMA
Eduardo Robert Junior, que boca é essa? (ela se levanta irritadíssima; ele corre para fora de cena) Perdeu o medo, é? Volte aqui seu filho da puta! A hora que seu pai chegar aqui você tá fudido!
Eduardo Robert Junior, que boca é essa? (ela se levanta irritadíssima; ele corre para fora de cena) Perdeu o medo, é? Volte aqui seu filho da puta! A hora que seu pai chegar aqui você tá fudido!
DU
(em off) Foda-se!
VILMA
Agora eu te pego. (sai)
Agora eu te pego. (sai)
DU
(em off) Eu tinha uma coisa pra contar! Não, mãe! Não, mãe!
Não, mãe! Não, mãe! Para! Para, mãe! Para! Para!
VILMA
(entra arrastando Du) Você fica me enchendo o saco, todo dia,
todo santo dia, Eduardo! Puta que o pariu! Agora senta aí. Senta, porra! Senta,
moleque! (ele começa chorar) Vai chorar? Vai chorar, é? É viadinho, é?
DU
Mãe...
VILMA
Que merda que é que tanto você quer conversar comigo?
Desembucha, bosta! (silêncio) Caralho, Du, tu tá me deixando maluca, meu! Tu
vai ficar sem vídeo-game! Ouça o que eu to falando! Eu quebro aquela merda!
DU
Não, mãe, me desculpa! Isso não! Tudo menos isso! Eu faço
qualquer coisa! Qualquer coisa! Tudo menos isso, mãe! Me desculpa! Eu te deixo
dormir em paz! Por favor! Isso não!
VILMA
(ela reflete um pouco; desiste) Saia daqui, Eduardo. Vai.
DU
(ele abaixa a cabeça e se dirige até a porta)
VILMA
Puta que o pariu, hein, Du? Puta sacanagem, filho. Depois a
gente conversa.
DU
Você sempre fala isso. Eu queria te contar uma coisa.
VILMA
Eu sou ocupada, filho. Você não gosta de dinheiro? Então.
Agora sai.
DU
Ah.
VILMA
Eu tô acostumando mal esse moleque.
DU
(para a plateia) Os adultos não conseguem entender os
problemas mais sérios da vida. É necessário estrema delicadeza para conseguir
atenção. (já saindo fala baixinho) Vaca.
VILMA
O que é isso? O que você disse? Você ficou maluco, Eduardo?
DU
Vaca! Vaca! Vaca!
VILMA
(dá um tapa na boca dele) Onde aprendeu essas coisas, hein?
Responde! Responde, Eduardo!
DU
Com o pai.
VILMA
Ah, é?
DU
É. Ele tava falando isso pra Dona Jandira.
VILMA
Pra Dona Jandira? Como assim? Por que? O que mais ele disse?
DU
Ele nada. Só ficava gritando: vaca, vaca, vaca! Mas ela tava
falando um monte de coisas que nem uma louca. Eu acho que ela estava
endemoniada, mãe. Era isso que eu queria te contar. Eu fiquei cagando de
medo...
VILMA
Não fale desse jeito, Eduardo!
DU
Ela tava se batendo igual a moça lá da igreja, mãe. Igual fala
nas figurinhas. Ela ficava balançando a cabeça e pulando igual naquele filme. E
o demônio tinha várias vozes. Eu vi! Eu juro, mãe!
VILMA
Eduardo, me explique direito. Eles estavam brigando, é isso?
DU
Não, mãe, o pai tava segurando ela e xingando ela de vaca! Aí
ele tirou a roupa dela e eu achei que ele fosse ajudar. Mas aí que eu fique
assustado mais ainda mãe. O pai tá nessa de demônio também. O mundo tá
dominado, mãe.
VILMA
(fica em silêncio um tempo; fala pausadamente nervosíssima)
Puta que o pariu! (para a plateia) A inocência infantil pode ajudar muito nos
problemas mais inusitados.
DU
Ah, eu tirei uma foto com o meu celular novo! Dá pra ver mais
ou menos porque eu tava em uma missão.
VILMA
Missão de que, moleque?
DU
Numa missão aqui em casa, ué. Desvendei o mistério do lavabo. (mostra
a foto) Ó.
VILMA
Puta que o pariu! Filho da puta! Eu não acredito! Que nojo!
DU
Nojo? Você acha nojento? Chupa essa: depois ele ainda cuspiu
na cara dela, mãe! Eu vi. Eu queria te contar porque eu acho que o pai está indo
para o lado do mal, mãe. Ele não quis ajudar ela. Tadinha. Ela ficou lá, toda
babada. E ele xingando ela de vaca. (misterioso) Olha, eu tô desconfiando que o
pai deve ter feito algum pacto com algum lorde espiritual que emana seus
poderes do mal através de cartas malignas, mãe. O bagulho é sério. Coisa do
capeta, ás vezes.
VILMA
Não tem pacto bosta nenhuma! Ele tá me chifrando!
Não tem pacto bosta nenhuma! Ele tá me chifrando!
DU
Puta que o pariu! Já tem chifre na parada? Eu tenho que contar
para o Pedrinho. (ele liga para o amigo)
VILMA
Não é pra você falar “puta que o pariu”, Eduardo! Mas que
merda! Quantas vezes eu já disso isso? (ela procura alguma coisa nas gavetas;
para a plateia) Aquele lazarento cometeu um erro tremendo! Ele conseguiu acabar
com a vida perfeita de uma família moderna recém-eletrônica e contemporânea!
DU
Pedrinho? Meu pai já tá com chifre, cara! O que é que eu faço?
(ouve) O que? É sério? Mas, cara... Meu pai tá com chifre, meu, tu não tá
ligado!
VILMA
Quem tem chifre nessa história sou eu, Eduardo! Cadê meu
celular? (procura nas gavetas)
DU
(fica estático por um momento; ele mostra certo medo) Mãe.
Você...? Depois te ligo, Pedrinho. Falou. (desliga)
VILMA
Achei. Filho da puta. (disca)
DU
(com muito medo; desconfiado da mãe) O que vai fazer com isso?
VILMA
(se vira bruscamente) Ligar pra aquele lazarento!
DU
(agacha-se assustado com o gesto da mãe, como se ela fosse
bater nele com o celular) Não! Por favor!
VILMA
Tá louco, menino?
DU
Não me leve! Não me leve! Por favor!
VILMA
O que foi, Eduardo? Pirou?
DU
Você não vai levar minha família, seu lazarento! (ele sai
correndo)
VILMA
Do que você tá falando...? E não é pra você falar “lazarento”.
(alguém atende o celular; ela grita escandalosamente) Eduardo, seu filho da
puta! Filho da puta, eu vou te capar, seu desgraçado! Como é que você pode?
Como pode?
DU
(entra com algumas cartinhas, beija uma delas) Você não vai
levar minha família. (para a platéia) Yukasanimon deixou seus ensinamentos mais
profundos sobre a criação da humanidade. Somos uma geração revolucionária, que
sabe a hora de agir. Os poderosos criaram diversos conceitos sobre maldade e
espiritualidade, formando a palavra chamada “religião” num equivoco ridículo. O
mal está ligado ao que sabemos e aprendemos. O mal está ligado àquilo que
costumam ensinar nas esquinas do mundo. O que realmente importa é a influência
daquilo que aprendemos. Nosso instinto está relacionado à ética, hoje em dia. Ainda
mais agora que podemos, que temos o bolso cheio de inteligência.
VILMA
(para a plateia) Os desenhos animados são um perigo para nossa
geração. Assim como os livros foram para os conservadores. Hoje em dia coisas
conseguem sair da tela de um cinema, e num preço acessível. É capaz dos
sentimentos e da realidade se fundirem numa coisa só e causarem uma tragédia.
DU
(para a plateia; grita) O demônio! O demônio atrapalhou a
juventude de Yukasanimon! Levou sua família, levou seus amigos. Me fez passar
terríveis horas do almoço frente à TV, tudo para aprender como entender o que é
ser homem. (pausa) Ele não vai acabar com minha família também.
VILMA
Eu adoro meu celular. (no telefone) Com a dona Jandira? A dona
Jandira? Você é um nojento! Não! Eu não quero ouvir nada! Você nunca mais vai
ver a minha cara e nem a do seu filho, seu bosta! Tá contente? Estamos indo pra
Miami! Agora eu posso, imbecil! Pode ficar com a bosta do carro! O home theater é meu! Eu quero mais
é que você se...
DU
(tira uma faca do bolso e a enfia um pouco delicadamente nas
costas da mãe) Você não vai levar minha família, seu desgraçado! (grita)
Justiça!
VILMA
Du!
DU
Você destruiu a vida do Yukasanimon e não vai destruir a
minha!
VILMA
(vai caindo aos poucos; música dramática) Eduardo...
DU
Saia da minha mãe, seu desgraçado!
VILMA
Eu pensei que fosse Yugimon. (morre)
DU
(telefona para Pedrinho) Alô? Pronto. Eu fiz o que você disse.
Liga pra Letícia, vê se por lá está tudo ok. Fiquei sabendo que o demônio tá
dentro da irmãzinha dela de seis anos. Esse filho da puta não vai possuir mais
ninguém, cara. Agora é nossa vez de rir. Eu cansei, Pedrinho. Cansei desse
filho da puta. (pausa) Agora me diz. Como eu faço pra ressuscitar ela?
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