A SÉRIA MISSÃO DE UM MENINO PERTURBADO (2011)

A SÉRIA MISSÃO DE UM MENINO PERTURBADO

Personagens
Du; 10 anos.
Vilma; mãe.

CENÁRIO: Um quarto de casal. Uma cama e algumas gavetas.

DU
(conversa com a platéia) O mundo contemporâneo pode ter suas facilidades e rapidez na conclusão ou criação de alguns problemas. Tudo começou quando a imaginação humana conseguiu recriar assuntos fantasiosos num mundo possivelmente real. E logo veio a televisão e depois a internet. E depois veio essa geração esquisitíssima, problemática.

VILMA
(com a platéia) Os filhos crescem, às vezes não tanto. Os filhos amam, às vezes não tanto. Os filhos nos consomem, assim, por dentro, às vezes bastante. Os filhos às vezes podem nos trazer a graça divina do amor materno, mas o mundo é conspiratório e decididamente difícil de explicar. E o dinheiro. Ai, o dinheiro. Nos transporta para outra dimensão intelectual e para um destino complicadíssimo. Era mais fácil quando a brincadeira acontecia de pé no chão, na rua, com outras crianças unidas na séria brincadeira de pega-pega. Hoje o pega-pega é mais real. (pausa) Uma educação exemplar pode ser atrapalhada apenas por cartas de baralho. Percebem como é complicado?

DU
Mamãe não consegue entender os problemas mais sérios de seu filhinho assustado. Esse mundo é incrivelmente assustador e pode tirar boas noites de sono.

(Vilma dorme)

DU
(senta-se calmamente ao lado da cama; faz alguma breve oração e fala pausadamente em um mesmo ritmo) Mãe? Mãe? Mãe? Mãe? Mãe? Mãe? Mamãe? Mamãe? Mamãe? Mamãe? Mamãe? Mã? Mã? Mã? Mã? Mã? Mami? Mami? Mami? Mami? Mami?

VILMA
(gritando) Ah, moleque chato! O que você quer?

DU
Feliz aniversário! (entrega um pacotinho de presente)



VILMA
Du, meu aniversário é em agosto. Eu não dormi a noite inteira, tem como você me deixar em paz por um minuto? (se vira e dorme)

DU
(olhando para seu relógio; pausa de um minuto contado; Vilma inicia um ronco baixo) Mãe? Mãe? Mãe? Mãe? Mãe? Mãe? Mamãe? Mamãe? Mamãe? Mamãe? Mamãe? Mã? Mã? Mã? Mã? Mã? Mami? Mami? Mami? Mami? Mami?

VILMA
(gritando) Ah! Eu disse pra você me deixar em paz!

DU
Mas já passou um minuto, mãe. (silêncio) Mãe? Mãe? Mamãe? Mamãe?

VILMA
(gritando) O que?

DU
Que dia de agosto?

VILMA
Filho, tem que ser agora? É tão importante assim saber o dia do meu aniversário?

DU
Claro, que é! Oras, você é minha mamãe.

VILMA
Mas filho, eu preciso dormir. Depois a gente conversa. Agora a mamãe trabalha cedo.

(pausa)

DU
Mãe...?

VILMA
(gritando) Ah! Vinte e três! Vinte e três!

DU
Viu? Não foi tão difícil assim.


VILMA
Agora suma daqui!

DU
Só mais uma coisinha... (dá um beijo nela) Te amo!

VILMA
Ah, filho. Eu também te amo. Depois juro que te levo pra tomar sorvete, tudo bem?

DU
Sério? Ah, mãe, diz que é sério!

VILMA
Sério, filho!

DU
De chocolate?

VILMA
Depois você escolhe o sabor, filho...

DU
Ah, não! Tem que ser de chocolate!

VILMA
Tudo bem, mas agora eu preciso fechar os olhos e dormir, querido!

DU
Que coisa chata!

VILMA
O que?

DU
Você ter que dormir.

VILMA
Mas você também dorme, filho.

DU
Mas eu durmo na hora que é pra dormir, e você dorme toda hora. Eu tenho que te contar uma coisa, o pai...

VILMA
Não é verdade! Eduardo, vá pro seu quarto e espere até eu acordar!

DU
Mas, mãe...

VILMA
Agora!

DU
(vai saindo) Chata.

VILMA
O que disse?

DU
Linda!

VILMA
Você disse chata! Eu ouvi!

DU
Então por que perguntou?

VILMA
Pra eu ter certeza. Agora vaza! Tá de castigo!

DU
(vai saindo) Mas, mãe...!

VILMA
Por favor, Eduardo! Sai logo!

DU
Então me dá dinheiro pra comprar figurinha?

VILMA
Meu Deus, Eduardo, você não entendeu? Castigo! Cas-ti-go! E você não disse que não ia pra escola porque estava doente. Eu pago aquela merda pra quê? Hein? Doente não brinca de figurinha.

DU
Ai, nada a ver o que você tá falando. E eu já sarei.

VILMA
Já sarou? Já sarou então vai lá pra fora, pelo amor de deus, Eduardo! Vai. Antes que eu perca a paciência.

DU
Mas, mãe...

VILMA
Caralho de moleque! (suspira) Pega logo a bosta do dinheiro e vai comprar essa merda desse Yugimon aí. Pegue na minha carteira. Um real, hein!

DU
Dois!

VILMA
Um e cinquenta.

DU
Três!

VILMA
Não! Um e cinquenta e não se fala mais nisso.

DU
Então não quero mais essa merda! (vai sair)

VILMA
Eduardo Robert Junior, que boca é essa? (ela se levanta irritadíssima; ele corre para fora de cena) Perdeu o medo, é? Volte aqui seu filho da puta! A hora que seu pai chegar aqui você tá fudido!

DU
(em off) Foda-se!

VILMA
Agora eu te pego. (sai)

DU
(em off) Eu tinha uma coisa pra contar! Não, mãe! Não, mãe! Não, mãe! Não, mãe! Para! Para, mãe! Para! Para!

VILMA
(entra arrastando Du) Você fica me enchendo o saco, todo dia, todo santo dia, Eduardo! Puta que o pariu! Agora senta aí. Senta, porra! Senta, moleque! (ele começa chorar) Vai chorar? Vai chorar, é? É viadinho, é?

DU
Mãe...

VILMA
Que merda que é que tanto você quer conversar comigo? Desembucha, bosta! (silêncio) Caralho, Du, tu tá me deixando maluca, meu! Tu vai ficar sem vídeo-game! Ouça o que eu to falando! Eu quebro aquela merda!

DU
Não, mãe, me desculpa! Isso não! Tudo menos isso! Eu faço qualquer coisa! Qualquer coisa! Tudo menos isso, mãe! Me desculpa! Eu te deixo dormir em paz! Por favor! Isso não!

VILMA
(ela reflete um pouco; desiste) Saia daqui, Eduardo. Vai.

DU
(ele abaixa a cabeça e se dirige até a porta)

VILMA
Puta que o pariu, hein, Du? Puta sacanagem, filho. Depois a gente conversa.

DU
Você sempre fala isso. Eu queria te contar uma coisa.

VILMA
Eu sou ocupada, filho. Você não gosta de dinheiro? Então. Agora sai.

DU
Ah.

VILMA
Eu tô acostumando mal esse moleque.

DU
(para a plateia) Os adultos não conseguem entender os problemas mais sérios da vida. É necessário estrema delicadeza para conseguir atenção. (já saindo fala baixinho) Vaca.

VILMA
O que é isso? O que você disse? Você ficou maluco, Eduardo?

DU
Vaca! Vaca! Vaca!

VILMA
(dá um tapa na boca dele) Onde aprendeu essas coisas, hein? Responde! Responde, Eduardo!

DU
Com o pai.

VILMA
Ah, é?

DU
É. Ele tava falando isso pra Dona Jandira.

VILMA
Pra Dona Jandira? Como assim? Por que? O que mais ele disse?

DU
Ele nada. Só ficava gritando: vaca, vaca, vaca! Mas ela tava falando um monte de coisas que nem uma louca. Eu acho que ela estava endemoniada, mãe. Era isso que eu queria te contar. Eu fiquei cagando de medo...

VILMA
Não fale desse jeito, Eduardo!

DU
Ela tava se batendo igual a moça lá da igreja, mãe. Igual fala nas figurinhas. Ela ficava balançando a cabeça e pulando igual naquele filme. E o demônio tinha várias vozes. Eu vi! Eu juro, mãe!

VILMA
Eduardo, me explique direito. Eles estavam brigando, é isso?

DU
Não, mãe, o pai tava segurando ela e xingando ela de vaca! Aí ele tirou a roupa dela e eu achei que ele fosse ajudar. Mas aí que eu fique assustado mais ainda mãe. O pai tá nessa de demônio também. O mundo tá dominado, mãe.

VILMA
(fica em silêncio um tempo; fala pausadamente nervosíssima) Puta que o pariu! (para a plateia) A inocência infantil pode ajudar muito nos problemas mais inusitados.

DU
Ah, eu tirei uma foto com o meu celular novo! Dá pra ver mais ou menos porque eu tava em uma missão.

VILMA
Missão de que, moleque?

DU
Numa missão aqui em casa, ué. Desvendei o mistério do lavabo. (mostra a foto) Ó.

VILMA
Puta que o pariu! Filho da puta! Eu não acredito! Que nojo!

DU
Nojo? Você acha nojento? Chupa essa: depois ele ainda cuspiu na cara dela, mãe! Eu vi. Eu queria te contar porque eu acho que o pai está indo para o lado do mal, mãe. Ele não quis ajudar ela. Tadinha. Ela ficou lá, toda babada. E ele xingando ela de vaca. (misterioso) Olha, eu tô desconfiando que o pai deve ter feito algum pacto com algum lorde espiritual que emana seus poderes do mal através de cartas malignas, mãe. O bagulho é sério. Coisa do capeta, ás vezes.

VILMA
Não tem pacto bosta nenhuma! Ele tá me chifrando!

DU
Puta que o pariu! Já tem chifre na parada? Eu tenho que contar para o Pedrinho. (ele liga para o amigo)

VILMA
Não é pra você falar “puta que o pariu”, Eduardo! Mas que merda! Quantas vezes eu já disso isso? (ela procura alguma coisa nas gavetas; para a plateia) Aquele lazarento cometeu um erro tremendo! Ele conseguiu acabar com a vida perfeita de uma família moderna recém-eletrônica e contemporânea!

DU
Pedrinho? Meu pai já tá com chifre, cara! O que é que eu faço? (ouve) O que? É sério? Mas, cara... Meu pai tá com chifre, meu, tu não tá ligado!

VILMA
Quem tem chifre nessa história sou eu, Eduardo! Cadê meu celular? (procura nas gavetas)

DU
(fica estático por um momento; ele mostra certo medo) Mãe. Você...? Depois te ligo, Pedrinho. Falou. (desliga)

VILMA
Achei. Filho da puta. (disca)

DU
(com muito medo; desconfiado da mãe) O que vai fazer com isso?

VILMA
(se vira bruscamente) Ligar pra aquele lazarento!

DU
(agacha-se assustado com o gesto da mãe, como se ela fosse bater nele com o celular) Não! Por favor!

VILMA
Tá louco, menino?

DU
Não me leve! Não me leve! Por favor!

VILMA
O que foi, Eduardo? Pirou?

DU
Você não vai levar minha família, seu lazarento! (ele sai correndo)

VILMA
Do que você tá falando...? E não é pra você falar “lazarento”. (alguém atende o celular; ela grita escandalosamente) Eduardo, seu filho da puta! Filho da puta, eu vou te capar, seu desgraçado! Como é que você pode? Como pode?

DU
(entra com algumas cartinhas, beija uma delas) Você não vai levar minha família. (para a platéia) Yukasanimon deixou seus ensinamentos mais profundos sobre a criação da humanidade. Somos uma geração revolucionária, que sabe a hora de agir. Os poderosos criaram diversos conceitos sobre maldade e espiritualidade, formando a palavra chamada “religião” num equivoco ridículo. O mal está ligado ao que sabemos e aprendemos. O mal está ligado àquilo que costumam ensinar nas esquinas do mundo. O que realmente importa é a influência daquilo que aprendemos. Nosso instinto está relacionado à ética, hoje em dia. Ainda mais agora que podemos, que temos o bolso cheio de inteligência.

VILMA
(para a plateia) Os desenhos animados são um perigo para nossa geração. Assim como os livros foram para os conservadores. Hoje em dia coisas conseguem sair da tela de um cinema, e num preço acessível. É capaz dos sentimentos e da realidade se fundirem numa coisa só e causarem uma tragédia.

DU
(para a plateia; grita) O demônio! O demônio atrapalhou a juventude de Yukasanimon! Levou sua família, levou seus amigos. Me fez passar terríveis horas do almoço frente à TV, tudo para aprender como entender o que é ser homem. (pausa) Ele não vai acabar com minha família também.

VILMA
Eu adoro meu celular. (no telefone) Com a dona Jandira? A dona Jandira? Você é um nojento! Não! Eu não quero ouvir nada! Você nunca mais vai ver a minha cara e nem a do seu filho, seu bosta! Tá contente? Estamos indo pra Miami! Agora eu posso, imbecil! Pode ficar com a bosta do carro! O home theater é meu! Eu quero mais é que você se...

DU
(tira uma faca do bolso e a enfia um pouco delicadamente nas costas da mãe) Você não vai levar minha família, seu desgraçado! (grita) Justiça!

VILMA
Du!

DU
Você destruiu a vida do Yukasanimon e não vai destruir a minha!

VILMA
(vai caindo aos poucos; música dramática) Eduardo...

DU
Saia da minha mãe, seu desgraçado!

VILMA
Eu pensei que fosse Yugimon. (morre)

DU
(telefona para Pedrinho) Alô? Pronto. Eu fiz o que você disse. Liga pra Letícia, vê se por lá está tudo ok. Fiquei sabendo que o demônio tá dentro da irmãzinha dela de seis anos. Esse filho da puta não vai possuir mais ninguém, cara. Agora é nossa vez de rir. Eu cansei, Pedrinho. Cansei desse filho da puta. (pausa) Agora me diz. Como eu faço pra ressuscitar ela?


FIM



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