O HOMEM DE DUAS MULHERES E O MISTERIOSO CASO DE SUA MORTE (2011)

O HOMEM DE DUAS MULHERES E O MISTERIOSO CASO DE SUA MORTE

Personagens
CÍNTIA
SARA
JUNIOR / DELEGADO / JUIZ

Cenário: um foco em cada extremidade do palco, dividindo o palco para a história de Cíntia e o outro lado para Sara, e um foco maior ao centro onde serão os flash backs.


I ATO

Cena I: AS RÉS

(Junior está deitado ao centro, com cara de quase morto, um tanto ridículo; ele sofre dos últimos suspiros, quase morrendo; uma gota de sangue desce pela boca; ele morre. Logo levanta e se arruma para o velório, com um terno, gravata, etc)

JUNIOR
Mulheres, mulheres... um terno simples é do que eu mais preciso no momento. Nada vale as gritarias, ou as lágrimas no travesseiro agora. Tudo agora vale merda. Merda. Só merda. E agora, bosta nenhuma importa pra bosta de amor nenhum! De que foi tudo isso? Pra que, eu digo. Disputazinha venenosa essa. (deita-se pronto no caixão)

(Cíntia e Sara entram chorando escandalosamente)

CÍNTIA
Meu deus! Meu deus! Mas por que?

SARA
Me deixa ir no seu lugar, Juninho! Me deixa!

CÍNTIA
Eu não mereço! Eu não mereço! Oh, Deus!

SARA
Me deixa, gostosão! Me deixa ir no seu lugar!

CÍNTIA
Por que, meu deus? Eu não entendo! Por quêêê? POR QUÊÊÊÊ?

SARA
Sua vaca intrometida, o que pensa que está fazendo aqui, hein? Nem agora vai deixar a minha vida em paz? Hein? Não vê o quanto eu sofro?

CÍNTIA
E eu? Não sofro, vagabunda? O que acha que eu sinto agora?

SARA
Devia sentir vergonha nessa sua cara!

CÍNTIA
Eu não pedi pra amar seu marido, Sara! Isso a gente sente.

SARA
Sente uma porra! Você vai sentir um murro na sua cara, sua cadela.

CÍNTIA
Para com isso, Sara. Eu to te avisando. Mostre um pouco de respeito.

SARA
Respeito é a sua bunda! Ou a falta dela!

CÍNTIA
Para, Sara. Por favor...

SARA
Cadelinha, é isso que você é. Era eu que ele amava! Eu que vou ficar com o nome dele, que vou ficar como viúva!

CÍNTIA
Viúva de chifre na testa!

SARA
Por sua culpa!

CÍNTIA
Eu amava ele! Ainda amo!

SARA
Ama nada! Eu amo ele!

CÍNTIA
Eu!

SARA
Eu!

CÍNTIA
Eu, caralho!

SARA
Vai tomar no cú, sua vaca!

(Junior se levanta impaciente)

JUNIOR
Puta que o pariu, viu. (sai) Boca suja do caralho.

SARA
Tá vendo o que você fez?

CÍNTIA
Eu? Agora a culpa é minha? Você que começou esse escândalo!

SARA
Vai cagar, sua vagabunda destruidora de lares!

CÍNTIA
Olha como fala, sua...

SARA
Filha de uma vaca, cale essa boca se não eu estouro seus dentes! (empurra Cíntia)

CÍNTIA
Porra, mas que porra,meu! Que porra de filha da putisse, sua lazarenta! Para com isso!

SARA
Para uma porra! Aposto que foi você quem fez isso com ele.

CÍNTIA
Eu? Você tá louca?

SARA
É isso mesmo. Eu sei que eu não posso provar, mas eu vou fazer tudo pra descobrir, sua vaca. (chama alguém invisível) Moço, tá vendo essa daqui? Ela é uma vaca, e ela matou meu marido!

CÍNTIA
Cale a boca! Você tá com depressão pós morte, é normal!

SARA
Depressão uma porra! Eu sei. Foi ela quem matou mesmo, moço! Foi você! Assassina!

CÍNTIA
Se você tá começando com esse joguinho, aposto que tá dizendo isso pra tirar o seu da reta. E se foi você, hein? Pode ter sido você. Por raiva, vingança, eu não sei.

SARA
Você não sabe do que tá falando, isso é ridículo.

CÍNTIA
Ridículo é sua cara, minha filha. Aposto que você teria coragem de matar o próprio marido. E talvez... ah, talvez até matar a amante.

SARA
Ah, mas você eu mataria mesmo!

CÍNTIA
Olha lá! Confessou! É louca! Matou o próprio marido!

SARA
Isso é loucura, moço. Ela fuma cocaína.

CÍNTIA
Loucura meu cu! Eu sei, te conheço bem, Sara.

SARA
Você não me conhece em nada, Cíntia. Nada.

CÍNTIA
Ele me contava tudo.

SARA
Pra mim também. Pensa que eu não sei da história do cheque?

CÍNTIA
Que cheque?

SARA
Que cheque? Não lembra, é? Lembra de um dia que você não tinha se preparado e aí ele pediu, você aceitou, aí...

CÍNTIA
Fica quieta, filha da puta!

SARA
O que? Tem medo que eu espalhe?

CÍNTIA
Não fale mais nada!

SARA
Srta. Cíntia Passa Cheque!

CÍNTIA
Vagabunda! (avança no pescoço dela) E você que não mete em dia santo!

(as duas rolam no chão; Junior entra entediado)

JUNIOR
(irritadíssimo) Parem vocês duas! (elas param assustadas) Para com essa bosta! Com essa bosta! Mas que porra de caralho de duas filhas da puta que vocês são! (sai)

SARA E CÍNTIA
(falam juntas) Viu? Não,“viu” você! Você, porra! A culpa é sua! Lazarenta, para! Cale essa boca! Cale essa boca você! Mas que porra! (viram-se cansadas)

CENA II: ESPOSA OFICIAL

(o Delegado entra e se posiciona no foco de Sara)

SARA
(calma) Vai embora, sua lazarenta. Deixa eu contar minha versão.

(Cíntia sai)

SARA
Como eu ia dizendo, doutor...

CÍNTIA
(em off) Depois sou eu, hein!

SARA
Cale a boca, merda! (pausa) Continuando, como eu dizia, eu cheguei em casa depois de uma tarde comum, eu o Juninho e a Layla, aí eu abri a porta e... eu não podia acreditar, doutor! Na minha própria casa, pra todo mundo ver. Eu sei que foi filha da putisse da parte dele, doutor – me desculpe pela palavra. Mas... eu amava ele. Não fui eu, doutor. Eu juro. Eu não poderia... (chora)

DELEGADO
Sra., continue. Você pegou os dois no flagra aí...

SARA
Não, doutor. Eu não peguei eles no flagra. Não, se tivesse sido assim eu até poderia ter sido a assassina. Eu entrei em casa com o Juninho e a Layla, aí ele chamou a gente e ela estava lá sentada bonitinha com aquela cara de songa no meu sofá de três lugares de couro que era da minha avó, o nome dela era Augusta se o senhor quiser anotar...

DELEGADO
De quem?

SARA
Da minha avó. Augusta, morava em Hortolândia, conhece?

DELEGADO
Continue a história, Sara.

SARA
Ah. É... aí, ele nos sentou no outro sofá do lado da janela da sala. Eu não tive reação nenhuma, nenhuma, doutor. Aí ela sorriu pra mim. Eu não estava entendendo, eu pensei que era alguma coisa que ele tinha me comprado, ou que ela era alguma repórter querendo filmar a história da minha vida de mulher e mãe trabalhadora. (pausa) Mas não. Ele me olhou nos olhos, com aqueles olhos lindos... e disse aquilo que eu mais temia na minha vida. A coisa que eu mais temi em toda a minha vida desde que conheci ele. Mas aí eu ia começar outra história, doutor.

(o Delegado vai até o centro e se caracteriza como Junior; Sara vai até ele sorridente e jovem)

SARA
Olá!

JUNIOR
Oi.

SARA
Tudo bem?

JUNIOR
Tudo e você?

SARA
Tudo bem.

JUNIOR
Que legal.

SARA
É, né?

(silêncio)

SARA
E aí? O que a gente vai fazer hoje?

JUNIOR
Não sei. O que você quer fazer?

SARA
Não, escolhe você.

JUNIOR
Pode escolher.

SARA
Escolhe você, Ju.

JUNIOR
Pode escolher, coração. Qualquer coisa.

SARA
Tá bom. (tagarelando) Eu queria muito ir ver aquele filme novo do Tom Hanks no cinema. Disseram que é Cult. Eu quero ver. Podíamos depois do cinema dar uma volta no parque e aí tomar um sorvete. Ou melhor! Podemos dar uma volta no parque e depois comer naquele restaurante de comida japonesa que dizem que é super jovem e super a nossa cara como casal, Ju. Aí depois tomar sorvete. Ou se você quiser tomar o sorvete antes tudo bem. Pode até ser antes e depois, né? Isso depois a gente vê. Ou a gente podia comer comida japonesa, ir no cinema... Não. Ir no cinema primeiro, depois comida japonesa e aí podíamos ir escrever nossos nomes numa árvore no parque...

(Sara continua falando sobre as coisas que quer fazer naquela noite com uma voz baixa; Junior conversa com a platéia)

JUNIOR
Eu namoro com ela há dois dias. Eu acho ela uma gracinha com esse jeitinho chato de falar. Eu acho engraçado. Ela fala, fala, fala e nunca conclui nada. Eu sou um cara romântico. Sou sim. E eu sinto, eu quero casar com essa mulher. É cedo pra dizer isso mas eu gostaria muito de ter filhos com ela, sei lá. (pausa)

SARA
... e aí seria legal pedir sushi e camarão, ou casquinha de siri se você preferir. Ah, não. Eu to confundindo com restaurante de praia. Pode ser sashimi, sushi, ou shi-nuan com mortadela. já comeu esse? É bom. (pausa; longa pausa) Nossa, aquele filme do Tom Hanks parece ser incrível, ele...

JUNIOR
(continua para a platéia) Eu ainda peço ela em casamento. Juro que peço. (ele observa ela falar)

SARA
Nada a ver assistir filme de ação em casal, né, Ju? Tipo assim, eu prefiro muito mais ver Almodóvar, Lars Von Trier, Pitágoras. Odeio aquele filme que o Tom Hanks fez de cabelo curtinho, não é esse que vamos assistir, claro. Falo daquele do...

JUNIOR
Bonitinha, né? Eu ainda peço ela em casamento, escrevam o que to dizendo. Não já, claro. Só que antes de tudo eu preciso avisar ela de uma coisa.

SARA
... e no fim, com certeza vai rolar casamentos e muitos filhos e fidelidade e muita harmonia e paz para o casal que, mesmo sendo ridiculamente clichê, viveram felizes para sempre. Demais, né? (pausa)

(Junior a encara)

SARA
Que foi?

JUNIOR
Você é incrível, sabia?

SARA
Você também!

JUNIOR
Eu não quero te magoar, Sara. Nunca. Nunca mesmo. Você parece ser uma menina maravilhosa, mesmo te conhecendo há pouco tempo. E eu quero te contar uma coisa. Uma coisa sobre mim.

SARA
Não tem nada sobre você que eu não saiba. Li tudo na internet. Sei até que você namorou sua própria prima.

JUNIOR
É. Pois é. Mas isso que eu vou te dizer você não sabe.

(pausa)

SARA
Então me fala, oras!

JUNIOR
Eu sou homem de mais de uma mulher. É isso.

SARA
Como assim?

JUNIOR
Eu sempre me apaixono por mais de uma mulher. Sempre. Eu tive duas mães, duas irmãs. Eu não sei, é uma coisa dentro de mim.

SARA
(começa chorar) Você tem outra? Ou outras?

JUNIOR
Não! Não é isso. Ainda não...

SARA
(grita) Como assim?

JUNIOR
Eu tenho que te falar, calma. Eu não tenho ninguém agora. Só você. Só você mesmo. Eu juro. Mas... eu não vou conseguir evitar. Eu sei que um dia eu vou me encantar por outra pessoa. Mas... como eu disse aquele dia. Eu me encantei por você. E como eu também disse, eu sinto que isso não vai passar. Você é linda demais. O que eu sinto por você nunca vai mudar. Eu juro. De jeito nenhum, aconteça o que acontecer.

SARA
Você só queria me comer! É isso! (chora)

JUNIOR
Não, Sara! Não é isso! (sincero) Eu juro. Você foi um achado. Eu quero muito ficar com você. Eu não quero me separar de você.

SARA
E você quer que eu aceite você e outra mulher? Ou outras mulheres?

JUNIOR
(pausa) Ah, eu não sei...

SARA
(vai sair raivosa) Você é ridículo.

JUNIOR
Não. Eu te disse. Eu amo você.

SARA
A gente se conhece há dois dias.

JUNIOR
Mas eu amo. Casa comigo.

SARA
O que?

JUNIOR
Casa comigo?

SARA
Para com isso, Junior. Não tem a menor graça.

JUNIOR
Casa ou não?

SARA
Você tá louco! A gente se conhece há...

JUNIOR
Eu sei! Eu sei! Mas foda-se!

SARA
Não fale palavrão.

JUNIOR
Casa comigo? Casa, vai. Hein? Casa! Casa!

SARA
Mas e essa história de duas ou várias mulheres, isso é ridículo. Não existe possibilidade de...

JUNIOR
Eu amo você nesse momento! Que dure o quanto durar então!

SARA
Até o dia que você achar outra.

JUNIOR
Você também pode achar outro.

SARA
Ah, de jeito nenhum. Eu nunca iria conseguir.

JUNIOR
A gente se conhece há dois dias.

SARA
Mesmo assim.

JUNIOR
Casa comigo, Sara. Eu quero muito. Eu acho que tá na hora. E você é a pessoa certa.

SARA
Eu nunca aceitaria outra mulher com a gente...

JUNIOR
(desistindo) Eu não vou achar outra mulher. Contente?

SARA
Me prometa que quando você se desinteressar por mim, e quando você achar outra mulher, primeiro, antes de tudo me conta! Pode ser? Me conta. Não me deixe ficar sabendo pelos outros. Isso me mataria.

JUNIOR
Tá certo, então...

SARA
(pensa) Caso. Só porque você é lindo. Só tem uma coisa que eu também quero te avisar. Eu não faço amor em dias santos, tá?

(Junior olha pra platéia meio assustado; Cíntia aparece, gargalha e sai; Junior se veste de Delegado; Sara vai devagar até ele no foco ao canto)

SARA
E aquele dia que ele apareceu com ela em casa foi o dia que ele me contou. Ele ainda não tinha tocado na vaca. Eles nunca tinham ficado nem nada. Ele veio me contar antes, me pedir permissão. (se irrita) O filho da puta veio me pedir pra eu aceitar que ele se casasse com ela também.Também! Sabe o que isso significa? Que eu seria a primeira esposa e ela a segunda! Ele queria Dona Flor e seus dois maridos invertidos, o filho da puta! Eu tive vontade de esganar ele! Picar ele bem picadinho e fazer sushi com o pinto dele! Arrancar o saco dele com a unha e fazer ele comer bola por bola! “Isso é inadmissível! Outra mulher? Você é um filho da puta”!

DELEGADO
Eu?

SARA
Não, o filho da puta do meu marido! Daí aquela vagabunda falou pra eu ficar calma, ah, mas naquele momento eu tive vontade de estuprar aquela desgraçada destruidora de lares. Vontade de enfiar um pau naquela bunda enorme que ela tem. Mas...

DELEGADO
(desesperado; fala num rádio) Senhores, mandem uma viatura escoltar a dona Cíntia. A Sara acabou de se confessar psicótica. Ela está em perigo.

SARA
O que? Você não entendeu, eu...

DELEGADO
Guardas, segurem ela.

(Cíntia entra com uma boina policial e segura Sara)

DELEGADO
Eu percebo uma falta de senso na sua voz, Sara. Você fraquejou, parecia mentir quando falava sobre amor.

SARA
Não é isso. Todo mundo tem vergonha de falar de amor, seu delegado.

DELEGADO
Você disse que teve vontade de matar a vítima e de matar a Cíntia, que agora já deve estar segura.

SARA
Não, você não entendeu... Foi modo de dizer...

DELEGADO
Você vai ficar aqui essa noite, espertinha.

SARA
Nãããããão!

(música grandiosa)


CENA III: ESPOSA DOIS

CÍNTIA
Aqui ela não vai ficar porque agora é minha vez. (empurra Sara para fora) Vamos no foco de cá, delegado. Porque esse foco é da vaca da Sara. (vão para o outro foco) Como eu dizia, seu delegado, ela chegou, eu estava tremendo de medo da reação dela. Quando ele me contou eu também achei estranho. Mas a vida deve ser levada do jeito que ela aparece pra gente. Eu dividiria tranqüila ele com a Sara. Você não conheceu ele, seu delegado. Ele era incrível. Eu amava muito esse homem, muito. Eu não poderia ter feito esse crime... (chora)

DELEGADO
Continue, Sra. Cíntia. Por favor.

CÍNTIA
Ela chegou e ele disse que me amava e que queria as duas como esposa. Tipo Dona Flor e seus dois maridos invertido. Aí ela surtou. Eu pedi pra ela ficar calma e ela me xingou de todos os nomes, disse que queria me matar. Isso é coisa séria. Eu não tenho como provar, mas isso foi tipo uma ameaça, não foi?

DELEGADO
Continue a história, Cíntia.

CÍNTIA
Bom, e por fim, depois de semanas de choro e discussões e vidro quebrado, ela aceitou. Aceitou porque ele disse que não ia mais conseguir viver sem as duas. Aí ela aceitou e eu fui morar com eles. Em quarto separado, claro, ordem da Sara. Ele dormia metade da semana com ela e metade comigo. Por mim eu não me importaria de dormir juntos e de transar juntos, eu até tenho uma fissurinha por mulher também. Uma vez eu conheci uma menina lá no bar onde eu toco...

DELEGADO
Não me importa suas opções, Cíntia. Continue a história.

CÍNTIA
E foi um inferno. Era briga todo dia. Ela tentando se sobressair em tudo. Poxa, mas em tudo? Eu tinha que ter o meu espaço também. Ela queria atrapalhar todos os meus dias de esposa. Ela interrompia toda vez, delegado. Tipo coito, sabe?

DELEGADO
Chegue na parte que ela os ameaçou novamente.

CÍNTIA
Bom, era uma noite de chuva e a gente tinha acabado de transar...

(o Delegado se veste de Junior e vai para o centro; senta-se constrangido; Cíntia vai até ele mais constrangida)

(longo silêncio)

JUNIOR
Amor...

CÍNTIA
Ai, não fale nada, Ju. Eu to morrendo de vergonha.

JUNIOR
Essas coisas acontecem.

CÍNTIA
Não fale nada.

JUNIOR
Mas não se preocupe.

CÍNTIA
Não me preocupe. Aham.

JUNIOR
É sério. Eu não ligo. É normal.

CÍNTIA
Já aconteceu com você e ela?

JUNIOR
Não. Porque ela nunca...

CÍNTIA
Nunca quis dar o rabo pra você, não é? Eu sou uma imbecil. Que vergonha.

JUNIOR
Calma, Cí. Isso não muda nada. Foi bom mesmo assim.

CÍNTIA
Foi bom? Foi bom? Gostoso ter o pau cheio de bosta, né?

JUNIOR
Não fala assim, que horror! Acontece...

CÍNTIA
Ai, que burra que eu sou!

JUNIOR
Na próxima você se prepara.

CÍNTIA
Ah, mas não vai ter próxima! De jeito nenhum. Você ainda consegue se excitar comigo depois dessa nojeira? Eu não acredito nisso. Eu estraguei tudo.

JUNIOR
Calma, Cí. Eu já disse que não ligo. Eu amo você.

CÍNTIA
Pare com isso.

JUNIOR
Amo mesmo. (vai beijá-la)

(Sara entra)

SARA
Terminaram? Amor, acabou o leite. Poderia ir no mercado comprar pra gente.

CÍNTIA
Hoje é meu dia, Sara. Eu que devo pedir.

SARA
Então, senhorita, podia fazer um favor de pedir para meu marido ir comprar leite.

CÍNTIA
Agora não. Estamos ocupados.

SARA
Vocês já terminaram. Tá cheirando sexo aqui. Sexo terminado. (pausa) Que cheiro é esse?

CÍNTIA
Não é nada. Saia daqui!

SARA
Que cheiro de m...

JUNIOR
Sara, por favor. Depois eu vou buscar o leite.

SARA
Como assim depois vai buscar o leite? As crianças estão indo deitar sem leite.

CÍNTIA
Depois ele vai, ele já disse.

SARA
Eu não estou falando com você, sua intrometida!

CÍNTIA
Junior! Fale alguma coisa!

JUNIOR
Parem vocês duas. Sara, eu estava conversando com a Cíntia. Hoje é o dia dela, lembra?

CÍNTIA
Isso mesmo.

SARA
(pausa) É isso. Eu sabia que isso ia acontecer um dia. Você tá me deixando de lado, Junior. Você não percebe? Eu to virando a segunda. Custa ir buscar o leite pras crianças?

CÍNTIA
Você tá pedindo isso só pra atrapalhar, Sara! Não precisa de leite porra nenhuma.

SARA
Não fale palavrão na minha casa, sua desgraçada!

CÍNTIA
Deixe a gente em paz, Sara. Fale pra ela, Ju.

JUNIOR
Sara, por favor...

SARA
(perplexa) Certo. Ok. Tudo bem. (respira fundo e vai sair; volta raivosa) Escuta aqui seu filho da puta escroto! Eu concordei em morar com essa vagabunda, mas eu não aceito virar a segunda esposa desse jeito! Eu não mereço! Não mereço! (pausa) Dessa vez vai passar. Mas é a única vez, Junior. Se na próxima vez você...

CÍNTIA
Chega, Sara. Pelo amor de deus!

SARA
Cale a boca que eu não estou falando com você! Se na próxima vez você escolher defender essa galinha ordinária, eu juro, juro por todos os meus descendentes que ainda vão vir, que eu mato você. Eu juro que mato! (sai)

CÍNTIA
E foi assim, seu delegado.

(Junior se veste de delegado e vai até o foco)

DELEGADO
Certo. Então iremos apurar melhor os fatos e...

SARA
(em off) Conta a história do dia que vocês se conheceram, ordinária!

CÍNTIA
Ora, não é necessário.

DELEGADO
O que aconteceu nesse dia?

CÍNTIA
A gente se conheceu, ué. Só isso.

SARA
(em off) Mentirosa! Conta pra ele, sua cadela!

CÍNTIA
Você sempre interrompe a minha história, sua vagabunda!

DELEGADO
O que aconteceu nesse dia?

SARA
(entra algemada) Essa daí era cantora de boate! Cantora de boate vagabunda! E golpista!

CÍNTIA
Posso contar minha versão?

DELEGADO
Por favor. Saia daqui, Sara.

SARA
Caralho. (sai) O que é justo é justo.

CÍNTIA
(vai indo até o centro) Eu estava no bar onde eu tocava – não era boate, tá? – , já tinha bebido algumas, naquela época eu ainda era usuária de cocaína, e eu já me livrei, seu delegado, juro que me livrei. Aí ele entrou no bar meio depressivo...

SARA
(entra) A gente tinha discutido porque eu não queria fazer sexo anal com ele.

CÍNTIA
(irritadíssima) Saia daquiiii!

(Sara sai)

CÍNTIA
Ele entrou no bar meio depressivo, e eu estava numa fase um pouco feminista, cantando Cássia, e outras. Aí ele chegou. Eu estava na pausa do meu show. E Junior tinha um certo volume nas calças, meio desproporcional, sabe. Você deve ter conferido na autópsia.

DELEGADO
Realmente. Está no atestado de óbito. Mas continue.

CÍNTIA
Aí eu achei que ele era um tarado maluco. Ele entrou com toda aquela mala...

(o Delegado se torna Junior, com uma bebida na mão)


CÍNTIA
... com a cara pra baixo, parecendo olhar pra própria mala. O Junior era maravilhoso, mas naquele dia eu senti muita raiva dele. Aquele olhar meio sedutor me deixou com nojo dele. Imaginei o cara machista, que coça o saco na frente dos outros. Imaginei ele batendo em mulheres, doutor. Aí eu senti muita raiva. Ele se aproximou de mim e disse:

JUNIOR
Posso te pagar um drink, senhorita?

CÍNTIA
“Eu não sou nenhuma puta, seu bosta!” Eu gritei. Ele tentou se desculpar e eu fiquei com mais raiva ainda. Ele começou a falar com uma voz agradável, amável quase, e começou a falar manso. Como um... um... cavalheiro. E eu meio que fiquei... como eu posso dizer? Meio mexida. E isso me irritou de uma tal maneira, que o senhor não tem noção.

JUNIOR
(continuando)... aí eu falei pra ele, “Meu, mulher não deve ser tratada assim. Eu beijo os pés da minha mulher. E também daquela outra por quem eu ainda vou me apaixonar.”

CÍNTIA
(depois de uma longa pausa) Você é um babaca.

JUNIOR
Você acha? (pausa) Me desculpe. Eu vou te deixar em paz, então.

CÍNTIA
Seria ótimo.

JUNIOR
Eu achei você muito encantadora.

CÍNTIA
Vaza, adúltero.

JUNIOR
Ok. Mas é verdade. Vou me sentar ali. Com licença. Se mudar de idéia...

CÍNTIA
Cacete, moço!

JUNIOR
Tá bom. Tá bom. Tô vazando.

CÍNTIA
(para a platéia) Gente, voltamos da nossa pausa. Eu queria agradecer ao Jaimão, que está sentado ali perto da menina punk, e que tem ajudado na grana pra eu gravar meu primeiro cd. Eu vou cantar para vocês uma música que eu adoro muito, tem tudo a ver com o momento. (irônica) Fala sobre amor.

(Junior assovia; ela faz uma cara de bosta)

CÍNTIA
“As coisas mudam e eu espero que nada aconteça
Mas sempre acontece toda vez que eu perco a cabeça
Eu digo frases que parecem ter saído de uma novela
E de repente lá se vai a TV, ah, pela janela

Eu nunca te amei idiota
Eu nunca te amei, La, La, La.”

(“Eu nunca te amei, idiota!” Ana Carolina)

JUNIOR
Bravo! Bravo! Essa mulher é maravilhosa! Bravo! Incrível! Extraordinário! Incrível! Muitíssimo! Maravilhosa, essa mulher!

CÍNTIA
Tá bom, moço. Chega.

JUNIOR
Chega nada! Você é linda! E canta pra caralho! Casa comigo?

CÍNTIA
Cale a boca, seu imbecil!

JUNIOR
Casa! Eu to falando sério! Casa comigo?

CÍNTIA
Seguranças!

JUNIOR
Não! Por favor, eu não vou conseguir viver sem você...

CÍNTIA
Você tá louco! Cheirou, né, filho da puta? Seguranças! Esse homem está drogado! (funga o nariz)

JUNIOR
Cíntia! Por favor! Me deixa te convencer. Eu juro. Você é encantadora! Eu quero muito... (toca de leve o braço dela)

CÍNTIA
Seu filho da puta!... (avança em cima de Junior, o deita e o enforca) A próxima vez que fizer isso, eu te capo, seu filho da puta! Eu te capo e como a sua alma!

JUNIOR
Calma... eu... gostei mesmo de você!

CÍNTIA
Cala a boca! Cadê os bostas dos seguranças? Jaimão! Dá uma força aqui!

JUNIOR
Me... me... me larga! (consegue se soltar)

CÍNTIA
Vá embora daqui antes que eu perca a cabeça!

JUNIOR
Meu deus, você é a mulher que eu pedi a deus. A segunda.

CÍNTIA
Puta que o pariu, você é tapado? Vaza, bicho!

JUNIOR
(realmente triste com a despedida) Tudo bem. Eu só queria te dizer uma coisa antes de nunca mais nos vermos. Eu amei seu olhar no primeiro segundo que eu te vi, quando eu entrei no bar e você olhou pro meu pau. Eu juro que eu me apaixonei.

CÍNTIA
Eu não olhei pro seu pau! Eu tenho namorada, meu filho.

JUNIOR
Então tá certo. Me desculpe. (vai sair triste) É tão triste essas coisas. Se apaixonar e ter que se despedir. (sai)

CÍNTIA
Bom, gente. Desculpe o transtorno. Vai tomar no cu, seu segurança. O Brasil é uma merda mesmo. (pausa) Agora eu vou cantar pra vocês a música que lembra muito a minha infância. Velhas Virgens com “Papai Noel Filho da Puta”. (ela começa a introdução)

JUNIOR
(entra e canta) “Eu tenho tanto pra lhe falar
Mas com palavras não sei dizer
Como é grande o meu amor por...

(Cíntia raivosíssima pula e empurra Junior para fora de cena; os dois saem; Sara entra e observa; ouve-se barulhos de socos e cabeça batendo na sarjeta; Junior grita até desmaiar; termina com:)

JUNIOR
(em off) Eu ainda... te amo. Muito.

SARA
O vagabundo primeiro me disse que tinha sido assaltado.

CÍNTIA
(entrando) Ué, você não disse que ele te contava tudo.

(Sara enlouquecida avança em Cíntia e a morde)

CÍNTIA
Ai! Sua louca! Me larga! (consegue se soltar) Você me mordeu, sua cadela! Seu delegado, faça alguma coisa!

(o Delegado entra)

DELEGADO
O que você queria dizer, Sara, com “conte a história do dia que vocês se conheceram”?

SARA
Como assim? Você é burro?

CÍNTIA
Não tem nada a ver, seu delegado. Ela é louca.

SARA
Louca é sua mãe, Cíntia! Você não percebe? Meu marido ficou em coma! Depois de duas semanas ele acordou e falou que dois caras tinham batido nele. Eu só fui descobrir muito tempo depois quando eu me toquei que os bandidos não tinham levado nada e que a roupa dele cheirava perfume de sapatão!

CÍNTIA
Sua vaca!

DELEGADO
Vá ao ponto, Sara.

SARA
Que ponto?

DELEGADO
O que quer dizer com essa história?

SARA
Meu deus! Mas que ignorante! Ela teve forças para deixar ele em coma, quando ele disse que amava essa galinha! Quando disse que amava! Que mulher faz isso? Essa mulher é maluca!

CÍNTIA
Isso é ridículo. Eu era feminista naquela época. Não acreditava em amor. Até ele me convencer dois meses depois.

DELEGADO
De certo ponto você tem razão.

CÍNTIA
Viu?

SARA
Mas, seu delegado...

DELEGADO
Você parece mesmo uma mulher descontrolada, fria...

SARA
Eu?

DELEGADO
Não! Ela!

CÍNTIA
Eu?

DELEGADO
Você. Com essa história de deixar marido em coma, de capar e tudo mais, eu tenho que prevenir o caso. Guardas, prendam ela!

CÍNTIA
Não!

SARA
Ahá!

DELEGADO
As duas ficarão sob cárcere até que o caso seja resolvido. E nessa história não existe advogados!

(Black-out; fim do primeiro ato)



II ATO

Cena I: A VERSÃO DO MORTO

(Cíntia e Sara estão cada uma em seu foco; elas cantam)

CÍNTIA E SARA
“Ás vezes no silêncio da noite
Eu fico imaginando nós dois
Eu fico aqui sonhando acordada
Juntando
O antes, o agora e o depois

CÍNTIA
Por que você me deixa tão solta?

SARA
E se eu me interessar por alguém?

CÍNTIA E SARA
Tô me sentindo muito sozinha.
(elas se abraçam e cantam quase unidas)
Quando a gente gosta é claro que a gente cuida
Fala que me ama só que é da boca pra fora
Ou você me engana ou não está maduro
Yeah, yeah, yeah, yeah, yeah
Onde está você agora?

SARA
Eu tinha medo disso tudo. Sempre tive. Eu sempre desconfiei que isso fosse dar merda. E olha no que deu.

CÍNTIA
Merda. Como sempre.

SARA
Eu nunca fui uma pessoa pessimista, mas esse caso parece que vai dar muito problema pra todo mundo.

CÍNTIA
Ou só pra nós duas.

SARA
E o pior é que eu não fiz nada.

CÍNTIA
Nem eu.

SARA e CÍNTIA
É minha primeira noite numa prisão. Essa escuridão vai me matar.

(Junior entra morto)

JUNIOR
Mulheres, mulheres... podemos viver sem elas? Podemos viver com elas? (pausa) Agora é minha vez de dar uma versão. Isso não seria possível no mundo real, por isso não vai ajudar em nada no caso, mas agora é a vez do morto falar. (pausa) O dia que eu morri começou trágico.

(foco ao centro; Sara vai até o centro desesperada)

SARA
Junior! Junior! Cacete, aquela vagabunda usou meu perfume de novo! Junior? Cadê você? Eu não agüento mais! Não agüento mais!

(Junior vai até ela)

JUNIOR
(cansado) O que foi, amor?

SARA
Ah, Junior, mas desse jeito fica difícil, né? Difícil. Eu to de saco cheio dessa mulher, ela não ajuda em nada, não põe a mão em porcaria de louça suja nenhuma. Sabe o que ela fez também, amor? Você não acredita, mas ela xingou o Juninho e a Layla só porque eles queriam brincar de super heróis. Quem ela pensa que é pra xingar nossos filhos. Você não percebe o quanto eles estão sofrendo com tudo isso, Ju? Eles não te falam, mas reclamam pra mim depois. E o que eu faço? O que? Eu não sei.

JUNIOR
Calma, amor, tudo deve ser resolvido na conversa.

SARA
Com essa daí não tem papo, ela parece burra pra não ouvir o que eu digo.

 CÍNTIA
(entra) É que você se acha a dona da razão, e isso me irrita.

SARA
Olha lá! Tá vendo, Ju? É assim que ela me trata. (para Cíntia) E você nunca mais xingue meus filhos, você tá entendendo? Nunca mais!

JUNIOR
Ela tem razão, Cíntia. Não arranje mais problemas.

CÍNTIA
Eles queriam brincar de super-man e mulher maravilha com...

SARA
E o que tem? Eles são crianças!

CÍNTIA
Exatamente! A menina queria usar meu sutiã e meu espartilho e o moleque pegou meu vestido de festa vermelho pra usar de capa. O que queria que eu fizesse?

SARA
Não interessa! Deixasse.

CÍNTIA
(ri) Ah, deixasse. Você é incrível, Sara.

SARA
Eu sou mesmo! Ajudo tudo em casa, faço tudo pra...

CÍNTIA
Você não trabalha! Eu tenho ajudado o Ju com as contas, tá? Se você não tá sabendo...

SARA
É o mínimo depois de roubar meu marido.

CÍNTIA
Eu não roubei ninguém...!

JUNIOR
Parem vocês duas! Eu to de saco cheio de vocês duas! Das duas!

SARA
Mas, amor...

JUNIOR
“Mas amor” é o caralho. Vocês não me deixam em paz nunca!

CÍNTIA
Você quem escolheu ter duas mulheres. Duas tpms, duas tudo! Agora agüente.

JUNIOR
Eu não agüento mais. Eu não quero mais agüentar. Vocês são chatas pra caralho! Eu queria poder amar vocês duas do mesmo jeito, mas eu to pegando raiva de vocês. Não tenho sossego. É sempre discussão e discussão. Uma querendo mais espaço que a outra.

SARA
Eu tenho o direito de mais espaço que ela porque...

JUNIOR
Tem direito nenhum! Eu te avisei! Eu amo as duas! As duas! Mas desse jeito pra mim tá foda. Foda demais. Pra mim chega.

SARA
O que? O que isso significa?

CÍNTIA
Ju...

JUNIOR
Eu vou pra Santa Catarina na nossa casa de verão.

SARA
Mas a gente nem fez as malas nem nada.

JUNIOR
Eu disse que eu vou!

SARA
Ju!

CÍNTIA
Ju, não faça isso.  Se você for, quando voltar eu não vou mais estar aqui. Você tá me ouvindo?

SARA
(pensa) Isso mesmo, amor. É melhor mesmo. Melhor você ir, esfriar um pouco a cabeça e quando voltar tudo vai estar de novo no lugar.

JUNIOR
Eu não disse que vou voltar.

SARA
Junior!

JUNIOR
Eu não posso viver com as duas e nem sem as duas. O que eu faço? Eu não sei.  Eu não sei!

(sai)

SARA
Junior! Junior, volte aqui! Calisto Junior, volte já aqui!

CÍNTIA
Deixa ele.

SARA
Cale a boca, sua vaca. Ele é meu marido.

CÍNTIA
Meu também, no papel e na católica!

SARA
Eu vi primeiro!

CÍNTIA
E eu segundo! E aí?

(ouve-se o carro saindo)

SARA
Ele tá saindo! Tá saindo! Eu não acredito que ele fez isso! Eu não acredito! (grita) Junior! Volta aqui, seu filho da puta! E os nossos filhos? (chora) Meu deus...

CÍNTIA
Calma, Sara...

SARA
Não me peça pra ficar calma. A culpa disso tudo é sua!

CÍNTIA
Minha nada! Você que gosta desses escândalos!

SARA
Escândalo seu cu! Eu gosto do que é certo.

CÍNTIA
O certo é relativo, Sara. Eu não sei por que não podemos ser amigas.

SARA
Aff, que papo de maloqueira!

CÍNTIA
Você só me dá patadas!

SARA
Cadela é assim que se trata.

CÍNTIA
Vai se fuder, sua...!

SARA
Vai você, sua...!

(as duas iniciam xingamentos e gritaria; Junior entra no foco e conversa com a platéia)

JUNIOR
Um veneno. Uma gota de um veneno forte. E eu nem percebi. Quando vi, já estava morto. (pausa) Eu saí com o carro e fui só até a esquina. Aí eu senti uma saudade imensa das duas e das crianças e não tive coragem de ir. Eu voltei e elas continuavam discutindo...

SARA
... puta de galinheiro, é o que você é.

CÍNTIA
Ah vá! Pelo menos eu compareço no dia de Santo Antonio!

SARA
Mas ele é santo! Como consegue pensar em besteira?

CÍNTIA
(ri) Você é ridícula! Sexo vai em qualquer dia, minha filha.

SARA
Mas é uma puta mesmo...

CÍNTIA
Por isso que ele teve que se apaixonar por mim.

SARA
Minha filha, é só porque eu não gosto de sexo anal. Agora, você é expert, né? Trabalha até com cheque.

CÍNTIA
Vai se fuder!

SARA
Vai você, sua galinha!

JUNIOR
Parem vocês duas pelo amor do bom deus! Mas que porraaaaa! Parecem duas galinhas cacarejando o tempo todo.

(silêncio)

CÍNTIA e SARA
(chocadas) Galinhas cacarejando?

JUNIOR
Isso mesmo. Galinhas! Cheias de papo. Eu não agüento, não agüento... Mas que merda de mulheres que vocês são! Não foi por essas mulheres que eu me apaixonei.

CÍNTIA e SARA
Merda de mulheres?

JUNIOR
Merda de mulheres! Merda! Só merda!

CÍNTIA e SARA
(pausa) Escuta aqui, seu filho da puta escroto... (as duas iniciam uma gigantesca gritaria na cabeça de Junior; coisas do tipo:) Merda de cu é rola! Eu até dei o rabo pra você, seu desgraçado! Eu faço tudo! Tudo! Na próxima eu corto seu pinto fora, seu bosta! Me xingar desse jeito, mas que absurdo! Você não lembra da viagem pro Cazaquistão? Eu fui inteiramente fêmea e sua! Corno! Bosta! Cachorro! Cafajeste!

JUNIOR
(para a platéia) E depois eu não lembro de mais nada. Simplesmente morri. (enfia dois algodões no nariz e deita no chão) Envenenado!

(Cíntia e Sara olham culpadas para a platéia)

CÍNTIA e SARA
Não fui eu, eu juro! Foi você sim, eu sei! Não fui, foi você! Você! Você, porra! Que merda, Cíntia/Sara! Você é a assassina! Eu? Você tá louca! Louca é sua mãe, sua galinha! Para com isso! Para! Cale essa boca! Cale essa boca você! Mas que porra! (sentam-se cansadas)

CÍNTIA
(para a platéia) Depois da discussão eu fui até a cozinha e preparei um suco de laranja que é a bebida preferida do Ju, mas eu juro que não coloquei veneno nenhum.

SARA
É vodka a bebida preferida do Ju. Eu peguei o suco de laranja que ela fez e adicionei vodka. Mas nada de veneno, eu juro por qualquer coisa.

CÍNTIA e SARA
Aí ele tomou o suco com vodka e morreu bem na nossa frente. Na autopsia descobriram que ele tinha sido envenenado. E só pode ter sido essa vaca aqui. Foi você! Você! Mas de novo, porra? (longo silêncio; elas estão exaustas; por um tempo elas se encaram; depois de grande reflexão elas choram e se abraçam) Me desculpa! Não, me desculpa você. Eu sou uma imbecil. Eu que sou. Eu, não fala assim. Mas eu sou mesmo. Eu que sou. Porra, eu que sou imbecil! Então somos duas, tá certo. Agora me diga, você matou ele? Eu não! Então quem foi, meu deus? Quem foi?

(música de mistério; Black-out)

CENA II: A VERSÃO DO DELEGADO E O JUIZ VIADO

(a luz acende; o Delegado está sentado em uma mesa ao centro; ele fuma um charuto, o mais clichê dos delegados)

DELEGADO
O que eu vou dizer agora, senhor juiz, é uma coisa muito impactante pra essa história. Realmente vai ser a coisa mais surpreendente dessa peça. Nada se compara a esse grande clímax nessa hora certa. Nem palavrões e nem falar sobre putaria é mais excitante que isso que eu vou dizer. (pausa) Senhor Juiz, eu conhecia o Junior antes de ele ser morto. Exatamente. Nós éramos amigos e ele tinha uma mala enorme, se quiser ver está aí no atestado de óbito. Página três, bem ali embaixo. Isso. Não, senhor, eu não era o terceiro não. Eu comentei da mala porque era uma coisa marcante nele, senhor. Mas nunca tivemos um caso. Ele é hétero, doutor. Era. Temos mesmo que falar sobre homossexualidade, senhor? (pausa) Bom, se é assim, como eu dizia, Junior era meu conhecido.  Conhecido próximo. Íamos  a quase todos os lugares juntos. As duas nunca souberam porque íamos para lugares onde elas não poderiam saber que íamos. Entendeu? Não, não era bem um puteiro, era mais um happy hour com garotas fazendo stripp. Nada demais, entende? Aí elas não podiam saber. (pausa) Eu ou ele? Não, porque eu já comi uma mina lá. Desculpe, fiz... é... pratiquei sexo com uma delas. Mas o Ju não. Não, ele não. O Ju era e sempre foi fiel ás suas mulheres. Eu não tenho duvida e nem mais porque mentir, né? Ele já... se foi mesmo, né? (pausa) O que? (pausa) O que quer que eu fale sobre isso, seu juiz? (pausa) Porra, mas o que a mala do Junior tem a ver com o caso, meritíssimo? Vamos voltar ao assunto, por favor. Ordem no tribunal! Continue, seu juiz, como ia dizendo... Ah, não! Eu quem devo continuar. Desculpe. Força do hábito, seu juiz. Bom, como eu ia dizendo, nos seus últimos dias, o Junior tava meio pra baixo, de cabeça baixa como se olhasse pra própria m... pro pé. Aí eu perguntei pra ele o que tava acontecendo na segunda de manhã, e ele começou a falar e falar, mas eu tava meio bêbado e tinha uma menina esfregando a bu... a vagina na cara do carinha do lado e eu num prestei muita atenção. Mas aí na terça eu perguntei de novo e ele reclamou, adivinhe do que? Das duas. Cíntia e Sara. Eu fiquei meio assustado com as coisas que ele me disse. Ele contou que elas duas eram malucas e que ficava um inferno dentro de casa com coisas voando pela janela e tudo. Parecia novela, meritíssimo. Era coisa muito louca. (pausa) Se eu vi? Não, não vi. Mas ele me contou esse pouquinho na terça a noite. (pausa) Bom, já que o senhor pergunta... na minha opinião as duas mataram ele. As duas. De uma vez. Num complô. Sabe a Cíntia? Ela é sapatão, às vezes elas combinaram tudo pra fugir juntas pra viverem juntas num clube lésbico, sei lá. Quem sabe? E Sara meio que adora dinheiro e dizem que não pratica sexo em dias santos. Tá escrito aí no inquérito, página dezoito. Se elas estão tramando, eu vou descobrir, senhor. Ah, vou! Eu coloquei uma câmera na cela onde elas estão presas pra ver se pego alguma coisa, fica tranqüilo. Se o caso não for resolvido hoje, claro.

(Cíntia e Sara entram como se estivessem sendo seguradas por guardas; elas vestem roupa de presidiário; elas gritam, esperneiam e xingam as mães dos guardas)

SARA
Filho da puta, me larga!

CÍNTIA
Tira a mão de mim, seu porco!

(o Delegado põe uma peruca de juiz)

JUIZ
(cínico; um tanto afeminado) Malucas? Não, acho que não. Então vocês são as mulheres do homem de duas mulheres e o misterioso caso de sua morte, não é? Que maravilha. Há muito queria conhecê-las. Ouvi muito a seu respeito. Gostaria de ver vocês fazendo todo o escândalo que sempre gostaram de fazer. Lidar com a situação não é xingar de filho da puta, entenderam filhas da puta? Mas que merda de encenação que vocês estão fazendo! É muito merda que sai da boca de vocês! Que puta de caralho de história que vocês fizeram! Mataram o próprio marido e agora viraram sapatão! Ai, mas eu odeio sapatão!

SARA
Eu não matei meu marido!

CÍNTIA
Nem eu!

SARA
E eu não sou sapatão!

CÍNTIA
Nem eu. Não mais.

JUIZ
(exageradíssimo) Vocês desperdiçaram um homem maravilhoso! Um homem incógnito! Um homem sem palavras! Um homem forte, fiel! Um homem inteiramente de vocês duas! Um homem que todo homem deseja ter! E toda mulher! E todo mundo! E vocês matam o desgraçado? Qual é o problema de vocês duas? Vocês são feministas?

SARA
Ela é!

CÍNTIA
Não sou mais! Faz tempo. E agora eu vou virar freira depois de tudo isso. Isso é muita maluquice pra minha vida.

SARA
Todo bandido vira crente na cadeia. Ela tá confessando, meritíssimo!

CÍNTIA
Você é louca, Sara! Para com isso! Você sabe que eu não matei!

SARA
Eu também não matei!

JUIZ
(grita) Mentiroooooosaaaas! Odeio sapatão mentirosa! Mas que porra, gente! Vamos colocar ordem nessa merda aqui! Eu sou o juiz dessa joça! Quem manda aqui sou eu, certo? Certo. E como na minha opinião –  já que não houve provas concretas da inocência de vocês duas – vocês causaram um dos maiores crimes que uma mulher pode fazer com o nosso planeta: matar os homens! Eu sugiro a pena de morte para as duas, por enforcamento como se faziam com bruxas que é o que vocês são. Rachas dos infernos! (sai)

CÍNTIA e SARA
Viado filho da putaaaaa!

CENA III: A TRAGÉDIA

(duas cordas descem com o laço pronto, cada uma em um foco; música tensa)







CÍNTIA e SARA
(indo até a corda calmamente) Eu não matei o meu marido. (pausa; mecanicamente) Me desculpa, senhor, por tantos pecados. Me desculpa, senhor, por tantos palavrões. Me desculpa, senhor, por não conseguir provar a merda da minha inocência! Uma inocente será sacrificada hoje, e talvez uma outra culpada. (elas colocam a corda no pescoço) Historinha venenosa essa, hein?

SARA
Juninho, cuide bem de sua irmã. Ela vai precisar de você.

CÍNTIA
(baixo) Mas que merda.

SARA
Querida, não chora. Vai ficar tudo bem, La. A vovó vai cuidar de vocês. Mamãe vai ter que fazer uma viagem, tá? Mas não se preocupe.

CÍNTIA
Que merda, que merda!

SARA
Não fale essa palavra na frente deles!

CÍNTIA
(grita) Eu confesso! Fui eu! Fui eu! Agora deixe essa vagabunda ir embora!

SARA
O que?

CÍNTIA
Eu matei nosso marido, Sara! Fui eu! (grita mais alto) Eu matei! Agora soltem ela.

SARA
(tira a corda do pescoço devagar; baixo) Você está mentindo, não está?

CÍNTIA
(baixo) Estou. Vá embora. Vá cuidar dos seus filhos. Eles vão precisar ao menos de uma mãe.

(Sara vai sair mas volta; beija o rosto de Cíntia)

SARA
Obrigada, sua cadela.

CÍNTIA
De nada, vaca.

(Sara sai; longo silêncio; Cíntia olha para os lados vendo os homens preparando as coisas; ela está meio calma; uma música de suspense em crescente mostra o fim dos preparativos para o enforcamento; no ápice, Cíntia diz)

CÍNTIA
O Brasil é uma merda mesmo.

(ela é enforcada; Black-out; música fúnebre; o foco do centro se acende rapidamente e Sara entra)

SARA
( contentíssima) Enfim! Enfim! Deus existe! O que é certo é certo!

(o delegado entra e atira em Sara)

DELEGADO
Eu sei que foi você, sua interesseira!

SARA
Eu...? (morre)

DELEGADO
Se a justiça é falha, o homem correto concerta. Tá uma moda essa história de dramaturgia que não resolve o caso no final deixando todo mundo puto, não é mesmo? (sai)

(black-out; fim do segundo ato; música grandiosa)

FIM







EPÍLOGO

O epílogo fica a critério da direção em utilizar ou não na encenação.

(Junior entra cansado)

JUNIOR
Ah, que vida! Que vida!

CÍNTIA
(entra) Está aqui seu suco de laranja, amor.

JUNIOR
Obrigado.

CÍNTIA
Ah, espere um pouco. (vira-se de costas limpando o copo, quase parecendo que coloca alguma coisa na bebida) Pronto. Tinha uma mancha na beiradinha.

SARA
(entra) Eu trouxe sua vodka, amor. (vê Cíntia) Ah, você aqui. Hum, suco de laranja. Deixa que eu completo pra você, coração. (coloca a vodka no suco) Peraí, amor. (tira o copo da mão dele e sai; logo volta) Fui colocar um gelinho.

CÍNTIA
(imita) “Fui colocar um gelinho.”

SARA
Para de ser intrometida, menina!

CÍNTIA
A menina aqui é você, sua infantil!

SARA
Há! Olha quem diz!

CÍNTIA
O que? E não é?

SARA
Vai se fuder,sua biscate!

CÍNTIA
Eu falei pra você nunca mais me chamar de biscate!

SARA
Ou o que, biscatão?

CÍNTIA
Eu te mato, sua galinha! Para com isso!

SARA
Vai te catar, Cíntia! Você é biscate mesmo!

CÍNTIA
Antes biscate do que burra! Ignorante!

SARA
Vagabunda!

CÍNTIA
Xucra!

SARA
Cola velcro!

CÍNTIA
Beatinha do caralho!

(Junior vai indo para o proscênio enquanto a discussão é abafada pela música; ele tira um frasquinho com um líquido verde do bolso e despeja no copo de suco com vodka; joga o frasco pela janela; olha uma última vez para as duas)

JUNIOR
Mulheres, mulheres... (toma o suco de laranja com vodka e veneno)

(Black-out)


FIM




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